Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
76/21.7GAVMS.G1
Relator: JÚLIO PINTO
Descritores: INCONSTITUCIONALIDADE
CRIME DE MORTE E MAUS TRATOS DE ANIMAL DE COMPANHIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
É materialmente inconstitucional o artigo 387.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação dos artigos 27.º e 18.º, § 2.º e 29.º, § 1.º, da Constituição
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de tribunal singular, com o NUIPC 76/21...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca ... - Juízo Local Competência Genérica ..., em que é arguido, AA, realizado o julgamento, foi proferida seguinte sentença:
«5- Dispositivo:
Face ao exposto, julgando totalmente procedente, por provada, a acusação pública, decide-se:
5.1- Condenar o arguido, AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de um crime de morte e maus tratos de animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 387.º, n.º 3 do Código Penal, por referência ao art.º 389.º, n.º 1 do Código Penal, a que corresponde as penas acessórias previstas no art.º 388.º -A do Código Penal, na pena 80 (oitenta) dias de multa, à taxa de € 5,00 (cinco euros) a qual perfaz o montante total de € 400,00 (quatrocentos euros). 
5.2- Não condenar o arguido, AA, em qualquer pena acessória;
5.3- Condenar o arguido nas custas e encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 U.C. (duas unidades de conta) nos termos conjugados das normas constantes do n.º 1 do art. 513.º e n.º 1 do art. 514.º, ambos do Código de Processo Penal, e art. 8.º, n.º 9, e Tabela III anexa do Regulamento das Custas Processuais;
5.4- Remeter, após trânsito, boletim aos Serviços de Identificação Criminal (art. 6º, al. a), da Lei nº. 37/2015, de 5 de maio).»
*
2. Não se conformando com essa condenação, o arguido recorreu da sentença, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem: (Transcrição)
“(…)
«CONCLUSÕES
I. Ao condenar o recorrente pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo disposto no artigo 387º, número 3 , do Código Penal, o tribunal aplicou norma nula, por ser materialmente inconstitucional, uma vez que:
a. o tipo legal de crime não protege bem jurídico constitucionalmente reconhecido (artigo 18º, 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP); e
b. a conduta típica descrita no tipo legal de crime viola o princípio da tipicidade penal (artigo 29.º, 1 da CRP); e subsidiariamente,
II. Os factos em causa não se integram no crime em causa, uma vez que o animal e o contexto em que os factos ocorreram não o definem como animal de companhia, inexistindo, assim, a prática do crime.
Termos em que, e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele ser revogada a decisão condenatória recorrida, com a consequente absolvição do arguido.
Fazendo-se, assim, a habitual e necessária justiça!»
*
3. Em 1ª instância o Ministério Público apresentou resposta ao recurso, no qual pugna pela sua improcedência e confirmação da decisão proferida.
*
4. Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:
“(…)
2. DO MÉRITO DO RECURSO:
Embora não exista ainda arresto do Tribunal Constitucional a declarar a inconstitucionalidade com força obrigatória da norma constante do art. 387º, do C.Penal inconstitucional, tem sido abundante a jurisprudência nesse sentido, permitindo-nos destacar, por todos, o recente acórdão daquele Tribunal com o nº 9/2023, proc. nº305/22, de 7 de Fevereiro, em que, tal como os anteriores acórdãos no mesmo sentido considerou inconstitucional a referida norma.
Embora se reconheçam validos os argumentos esgrimidos pela Mº Juiz recorrida, somos, porem, sensíveis aos argumentos contrários referidos pelo acórdão do Tribunal Constitucional supra.
Também sobre a inconstitucionalidade se pronunciou o recente acórdão desta Relação de 29 de Junho de 2022, proc. nº 60/19.0GAVVD.G1 , onde depois de uma profunda resenha, e análise, da jurisprudência e da doutrina sobre a questão vertente concluiu:
“(…) a descrição típica do ilícito em referência apresenta um nível de indeterminação que é incompatível com o princípio enunciado.
Basta ver a indeterminação do que possa cogitar-se serem «quaisquer outros maus tratos físicos» e a não menor indeterminação do que seja o próprio objeto da infração («animal de companhia»).
Com isso saindo vulnerado o artigo 29.º, § 1.º da Constituição.
Não se questiona, evidentemente, a necessidade de proteção jurídica dos animais e da punição dos atos de crueldade sobre eles. O que nos suscita sérias reservas, desde logo de constitucionalidade, nos termos sucintamente sobreditos, é a mobilização do direito penal de justiça, para esse desiderato.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou, pelo menos, duas vezes pela inconstitucionalidade material do artigo 387.º CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 e agosto: através do acórdão 867/2021, da 3.ª Secção, no dia 10 de novembro de 2021, do qual foi relator o Cons. Lino Rodrigues Ribeiro, considerando estarem violados os artigos 27.º e 18.º, § 2.º, da Constituição; e da Decisão Sumária, n.º 344/2022, também da 3.ª Secção, proferida a 5 de maio de 2022, da qual foi relator o Cons. Afonso Patrão, considerando igualmente estarem vulnerados os artigos 27.º e 18.º, § 2.º, da Constituição.
Em suma: porque consideramos materialmente inconstitucional o artigo 387.º CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação dos artigos 27.º e 18.º, § 2.º e 29.º, § 1.º, da Constituição, recusamos a sua aplicação e, em consequência, concluímos pela inverificação do ilícito que se imputava ao arguido, devendo por tal razão o mesmo ser dele absolvido.»
Assim, e perfilhando o entendimento da jurisprudência que a titulo meramente exemplificativo citamos, somos de parecer que deverá o recurso ser declarado procedente e o arguido absolvido, face à inconstitucionalidade material do artigo 387.º CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação dos artigos 27.º e 18.º, § 2.º e 29.º, § 1.º, da Constituição;»
*
5. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu a esse parecer.
*
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do mesmo código.
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Questões a decidir

Dispondo o art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que "a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido", são, pois, as conclusões que constituem o limite do objeto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso. (Arts. 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal e do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995).

Assim, balizadas pelas conclusões formuladas pela recorrente, as questões a apreciar são as seguintes:
- Inconstitucionalidade do crime de maus tratos a animais de companhia;
- Qualificação jurídica dos factos.
*
2. Sentença recorrida

É do seguinte teor a motivação de facto e de direito constante da sentença recorrida (transcrição):
“(…)
«2. Da Fundamentação de Facto:
2.1- Factos Provados:
Discutida a causa resultaram provados os seguintes factos, com relevo para a decisão: 
[Da Acusação Pública]
2.1.1- No dia 15 de dezembro de 2021, cerca das 12h30, no Lugar ...”, em ..., o arguido AA aproximou-se do canídeo de raça Cão de Gado Transmontano, de nome BB, pertencente a CC, e de forma a afastá-lo dos seus canídeos, desferiu-lhe um golpe com uma foice roçadoura de cabo curto, vulgo “calagouça”, atingindo-o na pata dianteira esquerda.
2.1.2- Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o canídeo sofreu, para além de dores na zona do corpo atingida, um corte profundo com corte de vasos sanguíneos que careceu de ser suturado.
2.1.3- O arguido ao agir da forma descrita, sabia que podia provocar lesões na integridade física do canídeo, assim como lhe infligir dor, ciente que era consequência adequada e previsível da sua conduta, o que veio a acontecer, e atuou conformando-se com essa possibilidade.
2.1.4- O arguido não possuía motivo legitimo que justificasse esta atuação.
2.1.5- Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei penal.
*
[Da contestação]
2.1.6- O cão é um “cão de gado”, sendo utilizado para fins pecuários, para guardar/acompanhar um rebanho;
2.1.7- O canídeo em causa trata-se de um “Canídeo da categoria B – Fins Económicos”;
2.1.8- O canídeo, “BB”, faz companhia aos seus proprietários;
*
[Das condições pessoais do arguido]
2.1.9- O arguido é Pastor e, nessa qualidade, aufere o montante de cerca de € 100,00 (cem euros) mensais, sendo que a esposa não se encontra a trabalhar, contando com a ajuda de familiares para corresponder às suas despesas;
2.1.10- O arguido tem dois créditos bancários associados ao imóvel onde reside;
2.1.11- O arguido tem dois filhos, com 4 (quatro) e 11 (onze) anos; 
2.1.12- O arguido tem a 4ª classe.
[Dos Antecedentes Criminais]
2.1.13- O arguido não tem antecedentes criminais.
*
2.2- Factos não provados:
Não resultaram quaisquer factos para o provar.
*
2.3- Motivação da matéria de facto
2.3.1- A formação da convicção do Tribunal, quanto aos FACTOS PROVADOS, baseou-se na seguinte motivação:
[Da Acusação Pública]
A convicção do Tribunal, para a fixação da matéria de facto dada como provada e como não provada, fundamentou-se na análise ponderada e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, apreciada criticamente à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127.º do Código Processo Penal.
Mais concretamente, o Tribunal considerou o depoimento prestado pela testemunha, DD, em sede de audiência de julgamento, que afirmou ter conhecimento direto dos factos, na medida em que os mesmos sucederam na sua presença. Mais concretamente, mencionou que, no dia 15-12-2021, estava num terreno, por volta das 12h00, a guardar o rebanho, sendo que o arguido estava do outro lado da estrada, tendo largado o gado, vindo em direção à testemunha e trazendo os seus cães, sendo que a testemunha encontrava-se, por seu turno, também com os seus cães. Referiu que, nessa circunstância, os cães começaram a “guerrear” (expressão que utilizou), sendo que o arguido dirigiu-se ao “BB” e atingiu-o na perna com uma “calagouça”, que constitui um objeto com lâmina. Referiu que o levou o canídeo ao veterinário, tendo sido submetido a uma intervenção médica (referiu, mormente, que tiveram de coser a ferida) e tomado antibióticos. Referiu que o canídeo ficou mal durante uns dias, referindo que “parecia estar em coma”. Mais, ainda, referiu a testemunha que o canídeo está registado em nome da sua esposa, EE.
Do mesmo modo, o Tribunal considerou o depoimento prestado por EE, que apesar de não ter assistido a qualquer facto, mencionou ser proprietária de um canídeo com o nome “BB”, da raça “gado transmontano”, tendo verificado que, há cerca de um ano (15 de dezembro de 2021), o mesmo apareceu magoado, em casa. Referiu que o canídeo em causa estava a perder muito sangue e a ganir. Mencionou que o animal constitui um “cão de guarda”, nomeadamente, do gado, mas que é, também, um animal de companhia, uma vez que a acompanha quando vai com o gado, manifestando que gosta muito do mesmo e que lhe faz companhia.
Por seu turno, a testemunha, FF, médica veterinária, referiu conhecer o BB, pois há cerca de um ano tratou do mesmo. Mencionou que, à data, o animal apresentava ferida aberta com profundidade no membro interior esquerdo; lesão, esta, compatível com objeto cortante. Referiu que o canídeo esteve debilitado cerca de dois/três meses, tendo corrido perigo de vida, porquanto o golpe atingiu a veia da corrente sanguínea. Mencionou, de forma perentória, que o canídeo teve dores, tendo tomado antibióticos e anti-inflamatórios que lhe foram receitados. Do mesmo modo, referiu que, profissionalmente, foi a primeira vez que teve contacto com o canídeo, tendo-o visto na zona onde reside. Referiu que o animal visa a proteção do gado, mas não tem dúvidas que o animal em causa é, também, um animal de companhia para os seus proprietários quando os mesmos vão pastorear – tendo realizado a aludida afirmação de forma perentória.
As testemunhas aludidas apresentaram credibilidade, tendo apresentado um discurso congruente e espontâneo, permitindo, deste modo, a formação da convicção do Tribunal.
O Tribunal considerou, ainda, a folha se suporte fotográfico, a fls. 8., onde se vislumbram as lesões na pata dianteira esquerda.
O Tribunal considerou, também, o Boletim Sanitário de Cães ou Gatos, referente ao canídeo “BB”, registado na Junta de Freguesia ..., propriedade de CC, identificado como “Cão de Gado Transmontano”, fls. 9-14. Para o mesmo efeito, atendeu-se ao registo no “DGAV”, fls. 15 e 16. Além disso, considerou-se a Licença   emitida pela Freguesia ..., a fls. 17 – identificando-se como taxa de licença Categoria B – Fins Económicos.
Os aludidos documentos corroboraram o teor dos depoimentos a que supra se fez referência, tendo merecido, deste modo, e atenta a conjugação com os aludidos meios probatórios, a credibilidade do Tribunal.
O arguido, no exercício do direito ao silêncio, não prestou declarações.
No que toca aos elementos subjetivos, em relação aos elementos subjetivos dos factos imputados ao arguido, pertencendo os mesmos à vida interior de cada um, decorrem da conjugação da factualidade objetiva apurada com as regras da normalidade e da experiência comum do julgador. E quem atua como o arguido atuou, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e volitiva, não pode deixar de querer atuar como descrito, de ter consciência da proibição da conduta e de conformar-se com as consequências legais da mesma.
Para prova do elemento volitivo e intelectual do arguido e da consciência da ilicitude, apoiou-se, por conseguinte, o Tribunal no conjunto da prova produzida, tomada à luz das regras da experiência comum, concluindo pela conduta deliberada e esclarecida da mesma.
Com efeito, para prova dos elementos subjetivos considerou-se o encadeamento sequencial e lógico dos restantes factos provados conjugados com as regras da experiência. Resulta, assim, do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas, de acordo com as regras da razoabilidade e da experiência comum decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum, que a arguida praticou os factos de que vem incurso, nos termos em que resultaram provados.
Neste sentido, resultaram provados os factos contantes dos pontos 2.1.1 a 2.1.5.
*
Quanto aos factos relativos à contestação, os factos constantes em 2.1.6 e 2.1.7, alegados em sede de contestação, os mesmos resultaram comprovados atento o depoimento prestado pelas testemunhas supra mencionadas, que confirmaram que o canídeo em apreço é um cão de guarda, sendo certo que a Licença emitida pela Freguesia ..., a fls. 17 – identifica a licença atribuída, referindo “Categoria B – Fins Económicos”. 
Por outro lado, no que toca ao facto consignado em 2.1.8 resultou, igualmente, corroborado. Na verdade, apesar de o arguido ter alegado, em sede de contestação, que o canídeo em apreço não é um animal de companhia, o certo é que o Tribunal pôde comprovar precisamente o contrário. Na verdade, apesar de o aludido conceito ser conclusivo, o certo é que o Tribunal apurou, tendo presente o depoimento prestado por EE, que o canídeo não é, apenas, utilizado, para proteção do gado, na medida em que a testemunha em apreço referiu que o mesmo lhe faz companhia, tendo, outrossim, mencionado que “gosta muito do cão”. Do mesmo modo, a testemunha, FF, médica veterinária disse, de forma perentória, que o animal fazia, também, companhia aos seus proprietários, nomeadamente, quando os mesmos vão pastorear o gado. Na verdade, a aludida testemunha, residindo na zona onde residem os proprietários do “BB”, tal como a própria mencionou, não teve dúvidas em afirmar a função de companhia exercida por aquele animal, demonstrando que tal é comum e normal no meio onde se integra. Assim, o Tribunal não teve dúvidas quanto à verificação do facto mencionado.
*
Os factos relativos à condição pessoal (2.1.8 a 2.1.12) do arguido resultaram comprovados pelas declarações prestadas pelo mesmo, que se mostraram credíveis e convincentes.
*
No que toca aos factos relativos aos antecedentes criminais (facto 2.1.13) o mesmo resultou do certificado de registo criminal junto aos autos (referência eletrónica n.º ...52).
**
3- Da Fundamentação de Direito:
3.1- Do enquadramento jurídico-penal dos factos:

O arguido vem acusado da prática de um crime de morte e maus tratos de animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 387.º, n.º 3 do Código Penal, por referência ao art.º 389.º, n.º 1 do Código Penal, a que corresponde as penas acessórias previstas no art.º 388.º -A do Código Penal. 

O crime de maus tratos a animais de companhia encontra-se consagrado no art. 387.º do Código Penal, que prevê o seguinte:
“1 - Quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o limite máximo da pena referida no número anterior é agravado em um terço.
3 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias.
4 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, ou se o crime for praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
5 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se referem os n.os 2 e 4, entre outras, a circunstância de:
a) O crime ser de especial crueldade, designadamente por empregar tortura ou ato de crueldade que aumente o sofrimento do animal;
b) Utilizar armas, instrumentos, objetos ou quaisquer meios e métodos insidiosos ou particularmente perigosos;
c) Ser determinado pela avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou por qualquer motivo torpe ou fútil.”

Por seu turno, o art. 389.º do Código Penal apresenta a seguinte redação:
“1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia. 
2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos.
3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância.”.

Na verdade, não se tem revelado tarefa fácil determinar o bem jurídico tutelado pelas normas em apreço; razão pela qual, as normas aludidas (nomeadamente, a consagrada no art. 387.º do Código Penal) tenha sido, já, declarada inconstitucional, como veremos infra.
Todavia, acolhemos, a este respeito, a noção de bem jurídico descrita no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 18-06-2019, processo n.º 90/16.4GFSTB.E1.E1, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode ler o seguinte: «O bem jurídico protegido pelo artigo 387.º do Código Penal não reside na integridade física e na vida do animal de companhia. É sim um “bem colectivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais directos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem-estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação actual (passada e/ou potencial) que com eles mantém”.».
Os elementos objetivos do tipo legal de crime são os seguintes:
O elemento objetivo deste crime é o seguinte: infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia, sem motivo legítimo.
Quanto ao elemento subjetivo, trata-se de um crime doloso, em qualquer das modalidades de dolo, nos termos do art. 14.º do Código Penal.
Por outro lado, importa atender ao conceito de “animal de companhia”, a que alude o já citado art. 389.º do Código Penal.
Decorre da Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia – art. 1.º , o seguinte: “entende-se por animal de companhia qualquer animal possuído ou destinado a ser possuído pelo homem, designadamente, em sua casa, para seu entretenimento e enquanto companhia” – nº 1.
Por seu turno, o Decreto-Lei nº 276/2001, de 17 de outubro, no seu art. 2.º, nº 1, al. a), estabelece uma noção de animais de companhia idêntica à da Convenção definindo-os como “qualquer animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia”.
Como refere o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28-09-2022, processo n.º 613/19.7GDVFR.P1, disponível em www.dgsi.pt, relativamente ao conceito de “animais de companhia”: “(…) trata-se de uma noção ampla, que abrange uma diversidade enorme de espécies, comummente aceites como animais de companhia: cães, gatos, peixes de aquário, coelhos, roedores de diversa natureza, aves anfíbios, répteis, desde que não abrangidos por legislação especial que proíba a sua detenção. Naturalmente que poderão existir animais que exerçam uma dupla função, ou seja, que sejam detidos para entretenimento e companhia dos donos, mas igualmente para auxílio em determinadas tarefas profissionais – pense-se nos cães pastores, cães de caça ou nos chamados “animais da quinta”, em ambiente doméstico (burros/cavalos). Ou noutros animais que tradicionalmente não são destinados a ser de companhia, como sucede com coelhos, galinhas ou porcos, mas que poderão ser integrados no ambiente familiar em condições de proximidade idêntica às dos cães ou dos gatos. Por sua vez entendemos que o bem-estar animal, ao menos na dimensão de tutela da respectiva integridade física e psicológica e mesmo da sua vida, é um bem constitucionalmente tutelado.”.
Mais acrescenta o aludido o acórdão o seguinte: “Um animal pode considerar-se de companhia se apenas frequentar parte de um espaço que integre a zona habitacional, como é caso de um anexo de uma habitação, nutrindo-se por ele grande afeto e convivendo com ele.”.
A propósito do crime em apreço, tem-se questionado a constitucionalidade da norma penal em apreço. Mais concretamente, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 867/2021, disponível em www.tribunalconstitucional.pt decidiu “Julgar inconstitucional a norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação, conjugadamente, dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição”. Do mesmo modo, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 472/2022, decidiu “julgar inconstitucional a norma incriminatória contida no artigo 387.º do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação, conjugadamente, dos artigos 27.º e 18.º, n.º 2, da Constituição”.
Apesar de conhecermos as razões que tiveram na base da declaração de inconstitucionalidade em apreço, discordamos das aludidas decisões, pelos motivos que passaremos a explanar.
Na verdade, concordamos com António Jorge Martins Torres , disponível em “A (in)dignidade jurídica do animal no ordenamento português”, Dissertação de Mestrado Profissionalizante na Área de Ciências Jurídico-Forenses apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2016, p. 69, disponível em http://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/32575/1/ulfd134671_tese.pdf), onde se pode ler o seguinte: “(…) a tutela do bem-estar do animal representa não um fim, mas um meio ou instrumento de proteção mediata de outros bens jurídicos fundamentais, como por exemplo, o da própria dignidade humana, o da justiça e da solidariedade, todos eles previstos no artigo 1.º da nossa Constituição.”.
Assim sendo, pese embora se tenha questionado a possibilidade de compatibilizar o bem jurídico tutelado pelo crime em causa com as normas constitucionalmente previstas, o certo é que se entende que está em casa a responsabilidade do próprio ser-humano para com um animal, que será sempre afetado pelo seu comportamento e pelas suas decisões.
Nesta simbiose, acolhemos, na íntegra, o teor do acórdão da Relação de Coimbra, de 26-10-2022, processo n.º 190/20.6T9SEI.C1, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode ler o seguinte: “Estamos, no essencial, em sintonia com o decidido nesse acórdão, entendendo que é precisamente nessa direcção que haverá que procurar a génese da tutela penal dos chamados direitos dos animais que, conquanto esbarrando na impossibilidade jurídica de estes se afirmarem como sujeitos de direitos, não deixa de se impor como imperativo civilizacional, decorrente da percepção de que os direitos humanos se afirmam também através da aceitação de deveres para com os demais titulares de direitos, ou seja, para com a  sociedade em geral. Isso mesmo é reconhecido pela Declaração Universal dos Direitos do Homem quando dispõe no respectivo artigo 29.º nos seguintes termos: 1. O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade. 2. No exercício deste direito e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática. 3. Em caso algum estes direitos e liberdades poderão ser exercidos contrariamente aos fins e aos princípios das Nações Unidas. (…) A perenidade desta Declaração Universal, adoptada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de Dezembro de 1948, portanto, há mais de 70 anos, mas sobrevivente sem alterações até aos dias de hoje, só foi possível na medida em que logrou consagrar princípios incontornáveis naquilo que não pode – ou não deve – admitir discussão, sem no entanto se encerrar em formulações dogmáticas limitadoras duma interpretação que se pretende em permanente adaptação a cada estádio civilizacional. (…) A amplitude dessa abrangência evidencia-se sem margem para dúvidas na clausula inserta no nº 2 acima transcrito na medida em que, remetendo para a satisfação das justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática, postula uma interpretação necessariamente consentânea com os valores vigentes ou comummente aceites no momento em que a norma é chamada para aferição da conformidade da lei geral com a Declaração Universal. Esta Declaração Universal confere guarida a outros diplomas de direito supranacional de natureza sectorial que com ela se compaginem, aí abrangida a já referida Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia, em cujos considerandos preambulares os Estados Membros do Conselho da Europa signatários reconhecem (…) que o homem tem uma obrigação moral de respeitar todas as criaturas vivas e tendo presentes os laços particulares existentes entre o homem e os animais de companhia; e (…) a importância dos animais de companhia em virtude da sua contribuição para a qualidade de vida e, por conseguinte, o seu valor para a sociedade.”.
*
Posto isto, importa proceder à subsunção fáctico-jurídica.
Resultou da matéria provada o seguinte:
2.1.1- No dia 15 de dezembro de 2021, cerca das 12h30, no Lugar ...”, em ..., o arguido AA aproximou-se do canídeo de raça Cão de Gado Transmontano, de nome BB, pertencente a CC, e de forma a afastá-lo dos seus canídeos, desferiu-lhe um golpe com uma foice roçadoura de cabo curto, vulgo “calagouça”, atingindo-o na pata dianteira esquerda.
2.1.2- Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, o canídeo sofreu, para além de dores na zona do corpo atingida, um corte profundo com corte de vasos sanguíneos que careceu de ser suturado.
2.1.3- O arguido ao agir da forma descrita, sabia que podia provocar lesões na integridade física do canídeo, assim como lhe infligir dor, ciente que era consequência adequada e previsível da sua conduta, o que veio a acontecer, e atuou conformando-se com essa possibilidade.
2.1.4- O arguido não possuía motivo legitimo que justificasse esta atuação.
2.1.5- Agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei penal.
Tendo presente os factos supra consignados, dúvidas inexistem que o arguido atingiu o animal, “BB”, na perna dianteira esquerda, tendo, com isso, provocado dores e, bem assim, um corte profundo com corte de vasos sanguíneos.
Neste sentido, não tendo resultado apurado qualquer motivo legítimo para a referida factualidade, resultam verificados os elementos objetivos de que dependem a incriminação.
Por outro lado, verificando-se que o arguido sabia que a sua atuação poderia provocar leões na integridade física do animal em exegese, agindo de forma, livre voluntária e consciente, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido pela lei penal. Dúvidas não subsistem, de igual modo, quanto à verificação do elemento subjetivo do tipo legal de crime.
Note-se, além do mais, que o “BB”, canídeo de raça “Cão de Gado Transmontano” insere-se, no entendimento deste Tribunal no conceito de animal de companhia, a que alude o art. 389.º do Código Penal. 
Na verdade, a este propósito, acolhemos, na íntegra o teor do acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28-09-2022, processo n.º 613/19.7GDVFR.P1, disponível em www.dgsi.pt, já citado. Isto é, o conceito de animal de companhia não abrange, apenas, os animais que sejam adotados para entreter os seus proprietários, podendo englobar, também, os animais que oferecem uma dupla função, ou seja, que sejam detidos para entretenimento e companhia, mas, igualmente, para auxilio em determinadas tarefas profissionais. Neste conspecto, apesar de o “BB” ser utilizado para guardar/acompanhar o rebanho, o certo é que, também, faz companhia aos seus proprietários (veja-se os factos 2.1.6 e 2.1.8 da matéria de facto provada).
Assim, se dúvidas inexistem, porquanto decorre das regras da normalidade e da experiencia, que os cães são, por referencia, animais de companhia, o certo é que a integração em tal conceito não fica afetada, na ótica deste Tribunal, pelo facto de exercerem outra função, como seja a de guardar/acompanhar o rebanho.
Nesta lógica, entende o Tribunal que existe uma impossibilidade concomitante, atento o que resultou provado, de integrar o animal em causa no conceito de “animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos”, a que alude o n.º 2 do art. 389.º do Código Penal. Dúvidas não subsistem, portanto, que o “BB”, auxiliando os seus proprietários na função de “guardar/acompanhar o rebanho”, constitui, de igual modo, um animal de companhia, não se podendo equiparar a outros animais que visam, única e exclusivamente, uma finalidade económica.
Posto isto, importa, ainda, reiterar, tal como já se expôs oportunamente, que, na opinião deste Tribunal, o tipo legal de crime em causa não é inconstitucional, sendo que o bem jurídico tutelado pela norma encontra-se suportado pela dignidade humana, pela justiça e pela solidariedade (constitucionalmente consagrados).
Em consonância, importa concluir que o arguido praticou o crime de morte e maus tratos de animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 387.º, n.º 3 do Código Penal, por referência ao art.º 389.º, n.º 1 do Código Penal.
**
3.2- Da escolha da pena:

O crime de morte e maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 387.º, n.º 3 do Código Penal, por referência ao art.º 389.º, n.º 1 do Código Penal, é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias.
Nesta lógica, dispõe o art. 70.º, do Código Penal o seguinte: “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”.
A este propósito, importa atender ao disposto no art. 40.º, n.º 1 do Código Penal, de onde decorre que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visam a proteção de bens jurídicos, bem como a reintegração do agente na sociedade”.
Ora, tal como alude Figueiredo Dias (in Direito Penal – Questões fundamentais – A doutrina geral do crime - Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, p.141), “as finalidades das penas, consagradas no art. 40.º, n.º 1 do Código Penal, evidenciam a escolha do legislador, pela conformação da pena às necessidades de prevenção geral positiva e de prevenção especial positiva (…)”.
Nesta senda, “pela prevenção geral (positiva) faz-se apelo à consciencialização geral da importância social do bem jurídico tutelado e ao restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efetiva tutela penal dos bens jurídicos”, sendo que, “pela prevenção especial pretende-se a ressocialização do delinquente (prevenção especial positiva) e a dissuasão da prática de novos crimes (prevenção especial negativa)” – vide in, acórdão Tribunal da Relação de Coimbra, de 10-03-2010, processo 1452/09.0PCCBR.C1, disponível em 0.
No presente caso, constatamos que as necessidades de prevenção geral apresentam, quanto à prática do crime em causa, um grau médio, considerando o bem jurídico em causa, o modo e o tempo de execução dos factos e as consequências emergentes.
Ora, constatamos que a prática de maus tratos sobre animais de companhia apresenta-se recorrente, apesar de existir uma maior consciencialização da população em geral para a responsabilização decorrente da detenção destes animais. Assim sendo, a sociedade impõe   uma atuação exemplar, com o intuito de prevenir a prática destes crimes e de promover uma maior consciencialização e responsabilidade para a questão em causa.
Por outro lado, as circunstâncias concretas em que o crime foi praticado (designadamente, o objeto que foi utilizado - foice roçadoura de cabo curto, vulgo “calagouça”- e as lesões concretamente provocadas) impõem, do mesmo modo, uma atuação adequada, com vista a revigorar a confiança da sociedade.
Por outro lado, no que rege às necessidades de prevenção especial, constatamos que o arguido está socialmente integrado e não apresenta antecedentes criminais, o que demonstra as baixas necessidades de prevenção especial.
Tendo em consideração o supra mencionado, o Tribunal entende ser, ainda, adequada a aplicação de uma pena de multa, tendo presente, desde logo, que a pena de prisão constituí a ultima ratio.
*
3.3- Da medida concreta da pena:

Dispõe o art. 71.º, n.º 1do Código Penal, que “a determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Importa, por isso, atender ao disposto no artigo 40.º, n.º 2 do Código Penal, onde se pode ler que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.
Do mesmo modo, atendendo ao disposto no art. 71.º, n.º 2 do Código Penal, a determinação da medida concreta da pena deverá resultar da apreciação de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele. Nomeadamente, deverão atender-se às circunstâncias melhor descritas nas alíneas da aludida disposição legal. Isto é, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente (al. a); a intensidade do dolo e da negligência (al. b); os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou os motivos que o determinaram (al. c); as condições pessoais do agente e a sua situação económica (al. d); a conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando seja destinada a reparar as consequências do crime (al. e); a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena (al. f).
Ora, tal como decorre do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 21-05-2018, processo 151/17.2GAVFL.G1, e seguindo os ensinamentos de Figueiredo Dias, os mencionados indícios poderão dividir-se em “fatores relativos à execução do facto, fatores relativos à personalidade do agente e fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto.”, sendo que “as alíneas a), b), c) e e), parte final, integram os fatores relativos à execução do facto, as alíneas d) e f), os fatores relativos à personalidade do agente e a alínea e) os fatores relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto.”.
Tais circunstâncias revelam-se, portanto, elementos e critérios relevantes para o apuramento da culpa e das necessidades de prevenção.
Atendendo aos fatores descritos, previstos no art. 71.º, n.º 2 do Código Penal, somos a concluir o seguinte:
O grau de ilicitude, para além do que já é valorado pelo tipo legal de crime é médio, tendo presente o objeto utilizado pelo arguido, que provocou as lesões mencionadas.
Relativamente ao modo de execução, além do objeto concretamente utilizado, nada de relevante se apurou.
Quanto à gravidade das consequências decorrentes da prática do crime, verificamos que o canídeo sofreu, para além de dores na zona do corpo atingida, um corte profundo com corte de vasos sanguíneos que careceu de ser suturado.
Quanto ao grau de violação dos deveres impostos ao agente, nada de relevante se apurou.
Quanto à intensidade do dolo, o arguido agiu com dolo direto.
Relativamente aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, nada de relevante se apurou.
No que concerne à situação económica do arguido, apurou-se que o mesmo é Pastor, auferindo cerca de € 100,00 (cem euros) mensais e subsistido com a ajuda de familiares.
O arguido não apresenta antecedentes criminais. 
Assim, as necessidades de prevenção geral apresentam-se, atenta a prática do crime em causa e tendo em conta as considerações já mencionadas a esse respeito no tópico concernente à escolha da pena, por si só, médias.
Quanto às necessidades de prevenção especial, estas apresentam um grau baixo, o que deverá ser levado em consideração para efeito de determinação da medida da pena.
*
Em face do exposto, importa proceder, então, à determinação das medidas concretas das penas, seguindo, nesta parte, os ensinamentos do Professor Doutor Figueiredo Dias (in Direito Penal – Questões fundamentais – A doutrina geral do crime - Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121), onde se pode ler o seguinte: “1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”
Analisadas as circunstâncias concretas, relativas à prática do crime em causa e ao seu agente, consideramos que, em face das necessidades de prevenção geral e especial, bem como ao critério da culpa, deverá ser aplicada ao arguido.
1- Pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia, uma pena de multa de 80 (oitenta) dias.
*
Por outro lado, considerando a pena de multa ora decidida, deverá proceder-se à determinação do quantitativo da multa, que, por sua vez, deverá corresponder à situação financeira do condenado e aos seus encargos pessoais.
Ora, quanto a esta questão verificamos que o arguido é Pastor e aufere cerca de € 100,00 (cem euros) mensais, sendo que a sua esposa não se encontra a trabalhar, contando   com a ajuda de familiares para corresponder às suas despesas, na medida em que tem, ainda, dois créditos bancários e dois filhos, com 4 (quatro) e 11 (onze) anos.
Neste sentido, tendo presente a referida situação económica, bem como as necessidades da pena (que não podem resultar frustradas) impõe-se a fixação do quantitativo da pena de multa aludida, no montante de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz o montante global de € 400,00 (quatrocentos euros).
*
3.4- Da pena acessória:

A acusação pública faz, ainda, menção às penas acessórias previstas no art. 388.º-A do Código Penal.
Ora, a aludida disposição legal prevê o seguinte:
“ 1 - Consoante a gravidade do ilícito e a culpa do agente, podem ser aplicadas, cumulativamente com as penas previstas para os crimes referidos nos artigos 387.º e 388.º, as seguintes penas acessórias:
a) Privação do direito de detenção de animais de companhia pelo período máximo de 6 anos;
b) Privação do direito de participar em feiras, mercados, exposições ou concursos relacionados com animais de companhia;
c) Encerramento de estabelecimento relacionado com animais de companhia cujo funcionamento esteja sujeito a autorização ou licença administrativa; d) Suspensão de permissões administrativas, incluindo autorizações, licenças e alvarás, relacionadas com animais de companhia.
2 - As penas acessórias referidas nas alíneas b), c) e d) do número anterior têm a duração máxima de três anos, contados a partir da decisão condenatória.”.
Como se vislumbra, a aplicação das aludidas penas acessórias deverá ser ponderada pelo Tribunal, tendo presente a gravidade do ilícito e a culpa do agente, não constituindo, por isso, um efeito automático.
No caso concreto, atentas as necessidades de prevenção geral e especial a que já se aludiu, entende-se que não deverá ser aplicada qualquer pena acessória ao arguido. 
Considera-se que a condenação do arguido na prática do crime mencionado será suficiente para o consciencializar para a sua conduta, alertando-o e, consequentemente, impedindo-o de repetir tal conduta.
Por conseguinte, decide-se não condenar o arguido na prática de qualquer pena acessória.
*
4- Das custas criminais:

Nos termos do art. 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, o arguido é responsável pelas custas, quando ocorra condenação em primeira instância e decaimento total em qualquer recurso.
Por seu turno, o art. 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais (aprovado pelo D.L. n.º 34/2008, de 26 de fevereiro, na redação conferida pela Lei n.º 42/2016, de 28/12) estabelece que a taxa de justiça deverá ser paga a final, sendo fixada em face da complexidade da causa, dentro dos limites fixados pela Tabela III (sendo que, esta, determina a possibilidade de fixação da taxa de justiça entre duas e seis unidades de conta).
No caso concreto, a acusação foi julgada totalmente procedente.
Ora, tendo presente o critério da complexidade da causa fixa-se a taxa de justiça em 2 UC (duas unidades de conta),
*
5- Dispositivo:

Face ao exposto, julgando totalmente procedente, por provada, a acusação pública, decide-se:

5.1- Condenar o arguido, AA, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de um crime de morte e maus tratos de animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 387.º, n.º 3 do Código Penal, por referência ao art.º 389.º, n.º 1 do Código Penal, a que corresponde as penas acessórias previstas no art.º 388.º -A do Código Penal, na pena 80 (oitenta) dias de multa, à taxa de € 5,00 (cinco euros) a qual perfaz o montante total de € 400,00 (quatrocentos euros). 
5.2- Não condenar o arguido, AA, em qualquer pena acessória;
5.3- Condenar o arguido nas custas e encargos do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 U.C. (duas unidades de conta) nos termos conjugados das normas constantes do n.º 1 do art. 513.º e n.º 1 do art. 514.º, ambos do Código de Processo Penal, e art. 8.º, n.º 9, e Tabela III anexa do Regulamento das Custas Processuais;
5.4- Remeter, após trânsito, boletim aos Serviços de Identificação Criminal (art. 6º, al. a), da Lei nº. 37/2015, de 5 de maio).
*
3. Apreciação do Recurso

Da inconstitucionalidade do art. 387º do CP
Da inconstitucionalidade material da norma incriminatória prevista no artigo 387.º do Código Penal.
O recorrente suscita o problema da constitucionalidade do tipo de crime de maus tratos a animais, afirmando que: “Ao condenar o recorrente pela prática de um crime de maus tratos a animais de companhia p. e p. pelo disposto no artigo 387º, número 3 , do Código Penal, o tribunal aplicou norma nula, por ser materialmente inconstitucional, uma vez que:

a. o tipo legal de crime não protege bem jurídico constitucionalmente reconhecido (artigo 18º, 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP); e
b. a conduta típica descrita no tipo legal de crime viola o princípio da tipicidade penal (artigo 29.º, 1 da CRP); e subsidiariamente;”
Como se vê, o recorrente fundamenta a sua asserção (de inconstitucionalidade) na alegada não salvaguarda, por parte daquele preceito penal, de direitos ou interesses que detenham manifestação e proteção constitucional, ou seja, da constatação de uma ausência de bem jurídico.
Os factos imputados ao arguido, com referência ao artigo 387.º, nº 3 e 4, do Código Penal, reportam-se ao dia 15 de dezembro de 2021, devendo, pois, nos termos do disposto nos artigos 2.º e 3.º CP, ter-se em vista a redação deste artigo vigente àquela data, ou seja, a dada pela Lei n.º 39/2020, de 18 de agosto.
O preceito legal cuja conformidade com a constituição importa analisar é, pois, o nº 3 do art. 387º, do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 39/2020, de 18/08.
A primeira questão suscitada prende-se com a conformidade da norma incriminadora com o teor do art.18 nº2 da CRP, onde se consagra que: «A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.»
Estabelece-se que o direito penal só adquire legitimidade quando está em causa a tutela de direitos ou interesses protegidos pela Constituição.
Acresce que se tem vindo a entender, e é também invocado pelo recorrente, que tal preceito é também violador do princípio da tipicidade consagrado no art. 29 nº1 da CRP, que dispõe: «Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.»
A conduta típica penalmente proibida tem de estar descrita de modo especialmente preciso e determinado, de forma que os destinatários da norma incriminadora possam, com segurança, conhecer os elementos objetivos e subjetivos que integram a infração.

Vejamos.

O crime encontra-se tipificado no art. 387º, do CP, inserido no 
«TÍTULO VI
Dos crimes contra animais de companhia
  Artigo 387.º
Morte e maus tratos de animal de companhia
1 - Quem, sem motivo legítimo, matar animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o limite máximo da pena referida no número anterior é agravado em um terço.
3 - Quem, sem motivo legítimo, infligir dor, sofrimento ou quaisquer outros maus tratos físicos a um animal de companhia é punido com pena de prisão de 6 meses a 1 ano ou com pena de multa de 60 a 120 dias.
4 - Se dos factos previstos no número anterior resultar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro ou a afetação grave e permanente da sua capacidade de locomoção, ou se o crime for praticado em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 6 meses a 2 anos ou com pena de multa de 60 a 240 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
5 - É suscetível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se referem os n.os 2 e 4, entre outras, a circunstância de:
a) O crime ser de especial crueldade, designadamente por empregar tortura ou ato de crueldade que aumente o sofrimento do animal;
b) Utilizar armas, instrumentos, objetos ou quaisquer meios e métodos insidiosos ou particularmente perigosos;
c) Ser determinado pela avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou por qualquer motivo torpe ou fútil.»
Este normativo, e o previsto no art. 388º do mesmo diploma legal (Abandono de animais de companhia) são complementados pelo art. 389º do Código Penal, que estabelece o conceito de animal de companhia, estatuindo assim:
“1 - Para efeitos do disposto neste título, entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.
2 - O disposto no número anterior não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de exploração agrícola, pecuária ou agroindustrial, assim como não se aplica a factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos.
3 - São igualmente considerados animais de companhia, para efeitos do disposto no presente título, aqueles sujeitos a registo no Sistema de Informação de Animais de Companhia (SIAC) mesmo que se encontrem em estado de abandono ou errância.”
Tem vindo a formar-se algum consenso doutrinal ou jurisprudencial em torno do teor do art. 387º do Código Penal, no entendimento de que o tipo de crime em apreço apresenta deficiências estruturais, a exigir redobrada atenção por parte do intérprete, designadamente de ordem constitucional.
Assim, relativamente aos animais em geral, a Lei nº 92/95, de 12 de Setembro (lei de proteção aos animais) previa no nº 1 do seu artigo 1º que são proibidas todas as violências injustificadas contra animais, considerando-se como tais os atos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento cruel e prolongado ou graves lesões a um animal, norma que foi depois incluída no art. 7º, nº 3, da Lei nº 276/2001, com supressão do termo injustificadas, ficando aí  consignado que são proibidas todas as violências contra animais, considerando-se como tais os atos consistentes em, sem necessidade, se infligir a morte, o sofrimento ou lesões a um animal.
Esta norma deixava já antever a futura criminalização dos maus tratos contra animais que, no entanto, se veio a restringir aos animais de companhia. Com efeito, visto o teor da norma na formulação contemporânea da prática dos factos, tal como já acontecia com a anterior versão conferida pela Lei 69/2014, de 29/08, não oferece dúvida que a tutela gizada no art. 387º do Código Penal tem em vista apenas os animais de companhia, por expressa opção do legislador vertida no respetivo texto.
A definição de animais de companhia tem a sua origem remota no Decreto nº 13/93, de 13 de Abril, que aprovou, para ratificação, a Convenção Europeia para a Protecção dos Animais de Companhia. Segundo o art. 1º, nº 1, da referida Convenção, entende-se por animal de companhia qualquer animal possuído ou destinado a ser possuído pelo homem, designadamente em sua casa, para seu entretenimento e enquanto companhia, prevendo o art. 2º, nº 1, a sua aplicação e execução
(…)
a) Aos animais de companhia possuídos por uma pessoa singular ou colectiva em qualquer lar, em qualquer estabelecimento que se dedique ao comércio ou à criação e manutenção a título comercial desses animais, bem como em qualquer abrigo para animais;
b) Se for o caso, aos animais vadios;
(…)
O DL nº 276/2001, de 17 de Outubro, que estabeleceu as normas legais tendentes a pôr em aplicação em Portugal a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia e um regime especial para a detenção de animais potencialmente perigosos, manteve praticamente inalterada a definição de animais de companhia, ao estabelecer que para efeitos daquele diploma se entende por «Animal de companhia» qualquer animal detido ou destinado a ser detido pelo homem, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia; [cfr. o respectivo artigo 2º, nº 1, al. a)].
Feita esta resenha sobre a origem da norma em questão, vejamos então o problema relativo à sua inserção, respeito e acolhimento pela nossa Constituição.
A este título sufragamos o entendimento vertido no Ac. da Rel. de Évora, 7 de junho de 2022, relatado por J. F. Moreira das Neves, disponível em www.dgsi.pt, cuja fundamentação, com a devida vénia, seguimos e transcrevemos, (posição sufragada em vários arestos dos nossos tribunais superiores, v.g entre outros os Acórdãos; da Rel. Porto, de 08/03/2023; Rel. Évora, de 25/10/2022, de 18/06/2019, e do Tribunal Constitucional abaixo referidos) que é:
«A incriminação em referência afigura-se-nos inconstitucional, por duas ordens de razões:
1. Por não encontrar na ordem axiológica jurídico-constitucional uma imposição ou uma necessidade de tutela (penal) do bem-estar animal, à luz do princípio da proporcionalidade em sentido amplo (Faria Costa, apud, Maria João Antunes, Constituição, Lei Penal e Controlo da Constitucionalidade, 2021 (7.ª edição - reimpressão), Almedina, pp. 57.), em termos que possa justificar a restrição de direitos fundamentais que lhe vem impregnada, conforme resulta no § 2.º do artigo 18.º da Constituição contém resulta.
Com efeito, apesar de a Constituição atribuir ao legislador parlamentar larga margem de conformação das ações ou omissões criminalmente relevantes, esse poder de definir novos crimes é um poder constitucionalmente vinculado, não prescindido do referencial axiológico-constitucional.
Num Estado de direito democrático os bens jurídicos elegíveis pelo legislador penal hão de encontrar-se refletidos num «valor jurídico-constitucionalmente reconhecido» (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte geral, Tomo I, 2019, Gestlegal, pp.136.), isto é, possuir dignidade constitucional e ser comprovada a necessidade de tutela à luz do princípio da proporcionalidade em sentido amplo.
O conceito de bem jurídico não encontra definição consensual na doutrina penal de matriz europeia continental. Tal conceito entra na dogmática penal no séc. XIX, em decorrência da teoria do contrato social (Cf. Han-Heirich Jescheck y Thomas Weigend, Tratado de Derecho penal, Parte General, 5.ª ed., 2002, Comares Editorial, pp. 274.).
Entre nós Jorge de Figueiredo Dias (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, tomo I, Gestlegal, 3.ª Ed., 2019, pp. 130.) define-o como constituindo «a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso». Ou «concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais e à ordenação social, política e económica.» (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, tomo I, Gestlegal, 3.ª Ed., 2019, pp. 137.)
Han-Heirich Jescheck y Thomas Weigend (Tratado de Derecho Penal, Parte General, 5.ª ed., 2002, Comares Editorial, pp. 275.) entendem-no como «um valor abstrato de ordem social, juridicamente protegido, cuja defesa interessa à comunidade e cuja titularidade tanto pode ser individual como comunitária.» A doutrina mais moderna, referem estes mesmos autores, releva, com razão, que os bens jurídicos não devem compreender-se como se de bens materiais se tratasse, porque se reportam às relações das pessoas com os interesses mais elevados da vida comunitária (7 Op. e loc. cit.)
Bernd Schünemann, por seu turno, refere tratar-se de um conceito tipológico de elevado nível de abstração, em que o respetivo núcleo se constituirá, por um lado, pelos direitos inatos do ser humano, e, por outro, pela essentialia do Estado de Direito; sendo limitado pelo contratipo que é caracterizado pela imposição de certas formas de vida, por via do direito penal, de que a história regista significativos exemplos (v.g. a repugnante execução de pessoas que se recusaram a acreditar num dado dogma). (Cf. Bernd Schünemann, Direito Penal, Racionalidade e Dogmática, pp. 74/75, Marcial Pons, São Paulo, 2018;)
Claus Roxin alude a «realidades ou fins úteis para o desenvolvimento individual e para o livre desenvolvimento da sua personalidade, como parte de um sistema orientado para esse objetivo ou para o funcionamento do próprio sistema» (Claus Roxin, Strafrecht AT 1, 3.ª Ed., 1997, § 2.º, nm. 9, cit, por Knut Amelung, El concepto «bien jurídico» en la teoria de la protección penal de bienes jurídicos. La Teoria del Bien Jurídico - ?Fundamento de Legitimación del derecho penal o juego de aborios dogmático?, Roland Hefendehl (ed), Marcial Pons, Ediciones Jurídicas y Sociales, S. A., 2007; Claus Roxin, El concepto de bien jurídico como instrumento de crítica legislativa sometido a examen, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología (RECPC) 15-01 (2013): http://criminet.ugr.es/recpc). Ou também, que os bens jurídicos são uma combinação de valores fundamentais por referência à axiologia constitucional; que são como entes que visam o bom funcionamento da sociedade e as suas valorações éticas, sociais e culturais.
«Os bens jurídicos merecedores de tutela penal são ainda aqueles que, apesar de não se encontrarem positivados na Constituição, são, ainda assim, hermenêuticamente discerníveis e isoláveis a partir das suas normas (Cf. Augusto Silva Dias, «Delicta in Se» e «Delicta Mere Prohibita», 2008, Coimbra Editora, pp. 650 e ss.), encaradas estas como partes do todo em que se exprime a ordenação unitária da vida política e social de uma determinada comunidade estadual.» (Declaração de voto da Cons. Joana Fernandes Costa, acórdão TC 867/2021, da 3.ª Secção, de 10nov2021.)
Imprescindível é, pois, que haja uma certa congruência entre o bem jurídico selecionado pelo legislador penal e a ordem axiológica jurídico-constitucional.
Sucede, porém, que no ilícito típico a que nos vimos referindo, seja pela respetiva conformação descritiva, seja ainda pela sua inserção sistemática não se evidencia o bem jurídico que visa proteger! E com isso, inapelavelmente, sai vulnerado o artigo 27.º, com referência ao § 2.º do artigo 18.º da Constituição.
Há, claro, quem não comungue destas premissas, sobrevalorizando o princípio democrático (o princípio da maioria), em detrimento de uma conceção liberal e institucionalista da democracia e da organização do Estado, com seus freios e contrapesos, com clara distinção entre o que são maiorias conjunturais e pactos de vida em comum, conforme referencia Maria João Antunes. (Maria João Antunes, Constituição, Lei Penal e Controlo da Constitucionalidade, 2021 (7.ª edição - reimpressão), Almedina.
Nesta linha e em expressa referência ao temário do ilícito de maus tratos a animais de companhia, indica-se a opinião de Jorge Reis Novais (No diário Público, do dia 23nov2021), que considera, justamente, que o legislador ordinário é livre de conformar os tipos de crime que entenda. Concretamente afirmando que «a Constituição serve para garantir direitos fundamentais e para assegurar a separação de poderes e a organização do poder político. Não é um repositório ou um catálogo de bens jurídicos de onde se deduzam mecanicamente uma pretensa hierarquia entre valores onde uma sociedade se revê.»
A melhor síntese que expressa o nosso pensamento sobre este assunto, consta do preclaro voto proferido pelo Cons. Gonçalo Almeida Ribeiro, no acórdão n.º 867/2021, de 10 de novembro de 2021, do Tribunal Constitucional, (Aí se referindo que tal opinião já fora lavrada noutra declaração de voto, no proc. 464/2019 do mesmo Tribunal.) no qual se plasmou o seguinte entendimento: «A lei democrática exprime a vontade da maioria conjuntural legitimada nas urnas. Os atos legislativos não traduzem a unidade política dos cidadãos; ao invés, refletem o pluralismo das suas conceções sobre a sociedade justa e o bem comum, e o imperativo de que a controvérsia política que daí resulta seja arbitrada periodicamente através dos processos eleitorais da democracia representativa. A Constituição, pelo contrário, consubstancia um pacto de vida comum entre cidadãos divididos por compromissos mundividenciais concorrentes, a forma através da qual a pluralidade irredutível que é a matéria da comunidade política se estrutura numa unidade estável.»
É esta também a opinião que maioritariamente vemos sustentada pela doutrina nacional e o caminho que vem trilhando o Tribunal Constitucional. (Veja-se, por todos, Maria João Antunes, ob. cit. pp. 51 ss.)
2. A segunda razão pela qual entendemos que o artigo 387.º CP é inconstitucional prende-se com o princípio da legalidade penal, expresso pelo brocardo latino nullum crimen, nulla poena, sine lege stricta, a que se reporta o § 1.º do artigo 29.º da Constituição. Decorre deste princípio que a norma conformadora do tipo de ilícito penal contenha os seus elementos objetivos e subjetivos bem identificados, por forma a que qualquer potencial infrator conheça (possa conhecer) bem a conduta ilícita.
Sobre esta matéria ensina Jorge de Figueiredo Dias, que: «importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente, se torne objetivamente motivável e dirigível a conduta dos cidadãos (...) Do mesmo modo, se é inevitável que a formulação dos tipos legais não consiga renunciar à utilização de elementos normativos, de conceitos indeterminados, de cláusulas gerais e de fórmulas gerais de valor, é indispensável que a sua utilização não obste à determinabilidade objetiva das condutas proibidas e demais elementos de punibilidade requeridos, sob pena de violação irremissível, neste plano, do princípio da legalidade e sobretudo da sua teleologia garantística.»
Ora, a descrição típica do ilícito em referência apresenta um nível de indeterminação que é incompatível com o princípio enunciado.
Basta ver a indeterminação do que possa cogitar-se serem «quaisquer outros maus tratos físicos» e a não menor indeterminação do que seja o próprio objeto da infração («animal de companhia»).
Com isso saindo vulnerado o artigo 29.º, § 1.º da Constituição.
Não se questiona, evidentemente, a necessidade de proteção jurídica dos animais e da punição dos atos de crueldade sobre eles. O que nos suscita sérias reservas, desde logo de constitucionalidade, nos termos sucintamente sobreditos, é a mobilização do direito penal de justiça, para esse desiderato.
O Tribunal Constitucional já se pronunciou, pelo menos, duas vezes pela inconstitucionalidade material do artigo 387.º CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 e agosto: através do acórdão 867/2021, da 3.ª Secção, no dia 10 de novembro de 2021, do qual foi relator o Cons. Lino Rodrigues Ribeiro, considerando estarem violados os artigos 27.º e 18.º, § 2.º, da Constituição; e da Decisão Sumária, n.º 344/2022, também da 3.ª Secção, proferida a 5 de maio de 2022, da qual foi relator o Cons. Afonso Patrão, considerando igualmente estarem vulnerados os artigos 27.º e 18.º, § 2.º, da Constituição.
Em suma: porque consideramos materialmente inconstitucional o artigo 387.º CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto, por violação dos artigos 27.º e 18.º, § 2.º e 29.º, § 1.º, da Constituição, recusamos a sua aplicação e, em consequência, concluímos pela inverificação do ilícito que se imputava ao arguido, devendo por tal razão o mesmo ser dele absolvido.»
É esta precisamente a nossa posição, e, perante a exuberância, proficiência e consistência jurídica dos fundamentos exarados no acórdão acabado de transcrever, que subscrevemos na íntegra, afigura-se-nos absolutamente despiciendo acrescentar o quer que seja.
Assim sendo, pelas razões expostas, o recurso interposto pelo recorrente merecerá provimento.
Pelo que, perante o ora decidido mostra-se prejudicada a análise da outra questão colocada pelo recorrente.
*
III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em:

- Julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA;
- Declarar materialmente inconstitucional o artigo 387.º do CP, por violação dos artigos 27.º e 18.º, § 2.º e 29.º, § 1.º, da Constituição;
- Absolver o recorrente da prática do crime de maus tratos a animais de companhia, p. e p. pelo artigo 387.º do CP, , por que havia sido condenado.
*
Sem custas, por não serem devidas, [art. 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal].
*
(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)
*
Guimarães 12 de junho, de 2023
Os Juízes Desembargadores
Relator - José Júlio Pinto
1º Adjunto - Pedro Cunha Lopes
2º Adjunto – Fátima Furtado