Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
361/18.5T8PRG.G1
Relator: MARIA LUÍSA RAMOS
Descritores: COMPROPRIEDADE
PRETERIÇÃO DE LITISCONSÓRCIO NECESSÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. Impõe-se a intervenção de todos os interessados, no lado passivo, quando se pretende o reconhecimento por um deles, e relativamente aos demais comproprietários, do direito de compropriedade de imóvel, ocorrendo a situação de litisconsórcio necessário passivo.

II. In casu, ocorre a situação de litisconsórcio necessário passivo pois que da própria natureza da relação jurídica resulta a necessidade da intervenção de todas as comproprietárias do imóvel para que a decisão produza o seu efeito útil normal e a possibilidade de o Tribunal regular de forma definitiva o direito, formando caso julgado relativamente à concreta situação dos autos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

M. F., Autora nos autos de Processo Comum, em curso, em que é Ré M. C., inconformada com o despacho saneador proferido nos autos nos termos do qual se julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade passiva, suscitada pelo Ré na contestação, absolvendo as mesmas da instância nos termos dos artº 30.º, 33.º, 278.º, n.º 1, alínea d), e 577.º, alínea e), do Código de Processo Civil, de tal decisão veio interpor recurso de apelação.

O recurso foi recebido como recurso de apelação, com subida nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.

Nas alegações de recurso que apresentou, a apelante formula as seguintes Conclusões:

1. O litígio da presente acção versa sobre um prédio compropriedade da A. e da R. e de mais quatro irmãs.
2. De acordo com os pedidos formulados, a A. pretende a condenação da R. a repor o prédio na situação original, especificamente quanto a umas escadas e rampa que constituíam os meios de ligação e acesso entre os socalcos que compõem o prédio.
3. Uma vez que essas escadas e rampa foram destruídas pela R. e constituíam os meios de ligação e acesso aos calços que ficaram a pertencer à A. conforme uma divisão de facto acordada entre todas as comproprietárias e por elas respeitada e mantida desde a aquisição do prédio (por partilha em vida dos pais, há cerca de 10 anos), parece-nos evidente não ocorrer qualquer situação de litisconsórcio necessário passivo pois, face à concreta configuração de relação material controvertida, não é necessário, muito menos exigível, serem demandadas aos demais comproprietárias.
4. Isso porque, tratando-se apenas de repor o prédio na sua situação original e não o reconhecimento ou constituição de qualquer direito alheio ou extravasante da compropriedade (documentalmente provada e expressamente aceite pela R.), contrariamente ao que se entendeu e decidiu pelo despacho recorrido, as demais comproprietárias, não têm qualquer interessem contradizer, nem a sua intervenção é necessária para que a acção produza o seu efeito útil normal .
5. Assim não tendo entendido e decidido e ao considerar-se necessária a intervenção, como demandadas, das demais comproprietárias do prédio, o despacho recorrido não fez a melhor e mais correta interpretação e aplicação ao caso das pertinentes disposições legais, nomeadamente dos arts. 30º, 33º, 278º, nº1 al.d), 577º al.e) do C.P.C. assim como do nº1 do art. 1406º do C. Civil ,

Não foram proferidas contra – alegações.

O recurso veio a ser admitido neste tribunal da Relação na espécie e com o modo de subida fixados no despacho de admissão do recurso na 1ª instância.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Delimitação do objecto do recurso: Questões a decidir.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, tal como decorre das disposições legais dos artº 635º-nº4 do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões “salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras “( artº 608º-nº2 do CPC), das conclusões de apelação deduzidas, e supra descritas, é a seguinte a questão objecto de recurso:

- reapreciação da decisão recorrida que julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade, relativamente à Ré M. C., por preterição de litisconsórcio necessário passivo nos termos do artº 33º do CPC, absolvendo-a da instância

FUNDAMENTAÇÂO ( de facto e de direito )

I. 1.M. F. instaurou os presentes autos de Processo Comum contra M. C., na qualidade de comproprietária do prédio rústico identificado no art.1º da pi., sendo a Ré uma de mais quatro comproprietárias do mesmo prédio, todas irmãs, formulando o seguinte pedido:

… deve a presente acção ser julgada procedente e provada, e, declarando-se o direito de compropriedade da A., sobre o identificado prédio, ser a Ré condenada:
a) a não impedir ou, por qualquer forma ou meio limitar, que a A. faça acesso apeado aos seus calços a partir do limite inferior de todo o prédio e através das escadas e rampas entre os mesmos calços existentes, tal como sempre sucedeu;
b) a repor na situação anterior, tanto as escadas que inutilizou (pedra de xisto), como as que destruiu (em blocos e cimento) ou pagar à A. as quantias correspondentes aos custos dessa mesma reposição, ou seja 350€ para as primeiras e 300€ para as segundas;
c) ser a R. condenada a indemnizar a A. dos danos morais por esta sofridos em consequência da situação por ela criada, no montante que resultar de liquidação em execução de sentença, tudo com as demais consequências legais”.
2. Como fundamento desses pedidos alegou a Autora que após a constituição da compropriedade por partilha em vida feita pelos seus pais, foi acordada entre todas as adquirentes a divisão de facto do prédio rústico, segundo a qual, a A. ficou com três calços na parte superior, enquanto que a R. ficou com um calço situado a nível inferior.

Tendo sido acordada a divisão de facto, e porque o prédio, na totalidade, é composto por socalcos que se estendem em sentido ascendente, a partir da estrada pública de Alvações do Corgo que dá acesso à igreja, a ligação entre os vários calços é feita através de rampas e escadas que sempre se mantiveram tal como existiam no tempo dos pais da A. e R.
Por isso e porque o acesso a todo o prédio e aos vários calços que o compõem sempre se fez, tanto a partir do seu limite inferior como superior, através de escadas e rampas, a A. sempre acedeu aos seus calços, passando pelos calços da J., M. e A. P. (outras três comproprietárias), subindo primeiro uma rampa em terra e depois, através de umas escadas em pedra de xisto
Sucede que, entretanto, a R. adquiriu a quota que pertencia à irmã A. P. após o que mandou cobrir de pedras, para assim as inu- tilizar, as referidas escadas em pedra de xisto que existiam e faziam a ligação entre o calço da A. P. e o 1º da Autora.
Além disso, a Ré também mandou destruir umas escadas de blocos e cimento que a A. construiu no espaço de uma rampa que também constituía outro acesso aos seus calços pelos calços da A. P..
Assim tendo a A. ficado impossibilitada de continuar a fazer o referido acesso apeado e sofrido danos morais e patrimoniais.
3. Deduziu a Ré contestação invocando estar-se perante uma compropriedade de acordo com o artº 1403º do Código civil e assim ocorrer litisconsórcio activo ou passivo, e, invocou a violação pela Autora de acordo estabelecido entre as comproprietárias relativamente ao uso comum da coisa nos termos do artº 1406º-nº1 do Código Civil.
4. Em sede de despacho saneador foi proferida a decisão recorrida que declarou a Ré parte ilegítima na acção, absolvendo-a da instância, no seguimento do conhecimento da excepção de ilegitimidade passiva, por preterição de litisconsórcio necessário suscitada em sede de contestação pela Ré.

Fundamentando-se na decisão recorrida:

“ … A autora pretende ver reconhecida a compropriedade e pretende retirar consequências de um acordo de utilização do bem em regime de compropriedade a que alegadamente todas as comproprietárias se vincularam no passado. Assim sendo, porque as restantes comproprietárias integram a relação material controvertida, porque o que se pretende que o Tribunal decida se projecta sobre o modo como todas as comproprietárias utilizam o bem comum e porque o efeito útil normal da presente acção sempre dependerá da presença nesta acção das demais comproprietárias, consideramos existir uma situação de litisconsórcio necessário passivo (artigo 33.º do Código de Processo Civil), já que a ré não deverá estar na presente acção desacompanhada das restantes comproprietárias”.
II. Nos termos do disposto no art.º 30º do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer ( n.º 1 ), exprimindo-se o interesse pela utilidade derivada da procedência da acção, ou, ainda, pelo prejuízo que dessa procedência advenha ( n.º 3 ), e, nos termos do n.º 3, do mesmo preceito legal, são ainda considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
A legitimidade é uma posição de autor e réu, em relação ao objecto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objecto do processo “ – Prof. Castro Mendes, in Manual de Processo Civil, pg. 251.
… a ilegitimidade de qualquer das partes só se verificará quando em juízo se não encontrar o titular da alegada relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação “ – Miguel Teixeira de Sousa, in “ A Legitimidade Singular em Processo Declarativo”.
Também segundo Barbosa de Magalhães, in Gazeta da Relação de Lisboa, vol.32º, pg.274, citado in Código de Processo Civil, anotado, F.Brito e D. Mesquita, pg.148, o qual inspirou o legislador na redacção dada ao art.º 26º do Código de Processo Civil, na reforma operada pelo Decreto-Lei n.º 329-A/95, tal como expressamente consta do respectivo preâmbulo (tendo o artº 30º do NCPC vindo a reproduzir o indicado artº 26º), e no tocante à determinação da legitimidade singular, “ as partes são legítimas quando sejam sujeitos da pretensa relação jurídica controvertida”.
A reforma do Código do Processo Civil de 1995-1996, ao alterar a redacção do art. 26º, nº3, aditando a expressão “tal como ela é configurada pelo autor”, resolveu a conhecida querela doutrinária entre os Professores José Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães sobre o conceito de ilegitimidade, passando a adoptar-se um conceito subjectivista.

Nestes termos, deve aferir-se desse pressuposto tendo em conta a relação material controvertida tal como ela é configurada pelo autor, considerando o pedido formulado e a causa de pedir invocada, ainda, distinguindo-se da legitimidade substantiva.
Relativamente ao “Litisconsórcio Necessário “ dispõe o artº 33º-nº1 do Código do Processo Civil que “ Se, porém, a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer deles é motivo de ilegitimidade” ( nº 1 ), “ É igualmente necessária a intervenção de todos os interessados quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão produza o seu efeito útil normal ( nº 2 ), sendo que, e como dispõe o nº 3 do indicado preceito legal “ A decisão produz o seu efeito útil normal sempre que, não vinculando embora os restantes interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado”.
Reportando-nos ao caso sub judice a questão que se coloca é a de saber se ocorre excepção dilatória de ilegitimidade, relativamente à Ré M. C., por preterição de litisconsórcio necessário passivo nos termos do artº 33º do CPC, desacompanhada das demais comproprietárias do imóvel, como se decidiu no despacho recorrido, ou se tal excepção não ocorre.
Relativamente ao pedido de declaração e reconhecimento do direito de compropriedade, sendo que tal pedido poderá realizar-se apenas em relação a cada um dos consortes nos termos da previsibilidade do nº 2 do artº 1405º do Código Civil, quando reportada a casos de reivindicação de terceiro da coisa comum, casos em que, expressamente, a lei civil prevê a possibilidade de intervenção de apenas um dos comproprietários- e, como se decidiu já no Ac. do STJ de 11/4/2019, P.204/13.6TBAMT.P1.S1, in www.dgsi.pt – “ O artigo 1405º, nº 2 do Cód. Civil é bem claro quando estabelece que cada consorte pode reivindicar de terceiro a coisa comum, sem que a este lhe seja lícito opor-lhe que ela lhe não pertence por inteiro. Consagrou-se naquela norma a legitimidade de cada comproprietário para a acção de reivindicação, numa situação manifesta de litisconsórcio voluntário activo, pelo que os autores, desacompanhados dos demais comproprietários, são parte legítima (artigos 30º e 32º, nº 2 do Cód. de Proc. Civil)”, nas demais situações, em particular a dos autos, impõe-se já a intervenção de todos os interessados, no lado passivo, quando se pretende o reconhecimento por um deles do direito de compropriedade. Neste sentido v. Ac. TRE de 29/3/2007- P.740/06-3, in www.dgsi.pt : “-Pretendendo alguns comproprietários de um prédio o reconhecimento do seu direito e a condenação de outros comproprietários nesse reconhecimento, impõe-se que demandem todos os demais comproprietários sob pena de ilegitimidade, já que se está perante uma situação de litisconsórcio necessário passivo. II-Com efeito o reconhecimento daquele direito em acção intentada, apenas contra uma das comproprietárias, não produz o seu efeito útil normal, já que, não estando os restantes comproprietários na causa, nunca seriam abrangidos pelo caso julgado material formado pela decisão que viesse a ser proferida”.
Com efeito, relativamente ao indicado pedido afigura-se necessária a intervenção de todos os interessados, pela própria natureza da relação jurídica, intervenção plural necessária para que a decisão possa produzir o seu efeito útil normal.
Como se refere no citado Ac. TRE, em caso similar: “Quid juris se os restantes comproprietários viessem noutra acção pôr em causa o direito de propriedade dos ora autores sobre “½” do prédio indivisível identificado nos autos(?) Ora, a sentença que nestes autos se pronunciar sobre o direito dos autores, enquanto comproprietários de ½ do prédio identificado no art. 13º da petição inicial, só fixará em definitivo a situação concreta das partes se os restantes comproprietários estiverem na lide a par da ré. Estamos, pois, perante um litisconsórcio necessário passivo”.
“O efeito útil normal da sentença é declarar o direito de modo definitivo, formando caso julgado material (...). Se este resultado não puder conseguir-se sem que estejam em juízo todos os interessados, estaremos em presença dum caso de litisconsórcio necessário emanado da própria natureza da relação jurídica”, só nestes casos se verificando litisconsórcio necessário passivo decorrente da própria natureza da relação jurídica, tendo este natureza excepcional (cfr. A. Reis, in CPC, anotado, Vol I, pg.95 – v. ainda, Abílio Neto, in CPC, anotado, anotações artº 33º, e aí citados Ac. STJ de 1/2/1995, in BMJ 444/531, Ac. STJ 27/6/1995, in BMJ 448/309 ).
Também relativamente ao pedido formulado em a), supra, e, respectiva causa de pedir, considera-se existir, igualmente, litisconsórcio necessário ou natural, nos termos dos nº 2 do citado artº 33º do CPC.
Com efeito, não obstante não se traduza o indicado pedido formulado em a) da p.i. no exercício de um direito real, desde logo, não havendo lugar no caso de compropriedade, (nem sendo, na realidade, pedido) o estabelecimento de servidão legal de passagem ou de qualquer outro direito real sobre o prédio rústico entre os consortes, carecendo assim de efeitos erga omnes eventual decisão condenatória, nesta parte, e, antes se tratando de exercício de direito pessoal ou obrigacional, deduzido pela Autora contra a Ré, o certo é que a base da sua causa de pedir corresponde a alegado acordo estabelecido entre as comproprietárias do imóvel, relativo ao uso da coisa comum nos termos do artº 1406º-nº1 do Código Civil, e seu alegado uso pela Autora e sua violação pela Ré, nestes termos da causa de pedir e pedido se revelando terem as demais comproprietárias ( eventual ) interesse directo em contradizer, por ( eventual ) prejuízo poderem considerar existir advindo da eventual procedência da acção, e, ainda, sendo certo que, sendo as demais comproprietárias alheias às alegadas relações entre Autora e Ré e a que se reportam os pedidos b) e c), já relativamente ao pedido formulado em a), supra referido, e respectiva causa de pedir, são todas as comproprietárias no seu conjunto as titulares da relação material controvertida.
E, assim, da própria natureza da relação jurídica resulta a necessidade da intervenção de todas as comproprietárias para que a decisão produza o seu efeito útil normal e a possibilidade de o Tribunal regular de forma definitiva o direito, formando caso julgado relativamente à concreta situação dos autos.
Concluindo-se, nos termos expostos, ser a Ré parte ilegítima na acção, desacompanhada das demais comproprietárias do prédio rústico, ocorrendo preterição litisconsórcio necessário passivo nos termos do artigo 33.º do Código de Processo Civil, nestes termos se mantendo o despacho recorrido e improcedendo a apelação.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Guimarães, 17 de Outubro de 2019