Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
344/16.0GCVNF.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: HOMICÍDIO NEGLIGENTE
ACIDENTE ESTRADAL
VELOCIDADE EXCESSIVA
ERRO NOTÓRIO
NÃO REENVIO
PENA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) A perda do controlo do veículo ao descrever uma curva, o atravessamento deste, desgovernado, em rodopio, da faixa de rodagem (10,70 m), a inversão do posicionamento em relação à trajectória inicial, o embate no talude da parte esquerda da estrada e o regresso à faixa de rodagem contrária onde ainda veio a embater no veículo automóvel que circulava em sentido contrário, fazendo-o recuar, são elementos objectivos atinentes à dinâmica do embate que à luz das regras da experiência comum não podem deixar de indiciar uma velocidade excessiva. De igual modo, o estado de destruição em que ficaram os veículos envolvidos.

II) Só por erro notório na apreciação da prova se concebe que o tribunal a quo não tenha conseguido concluir a que se deveu o despiste do veículo conduzido pela arguida, ainda que a prova produzida não lhe tenha permitido determinar a que velocidade circulava, mais concretamente se tal velocidade excedia a permitida para o local (70Km/hora).

III) Tal impossibilidade não era, de modo algum, impeditiva para se concluir pelo mencionado excesso de velocidade relativo e dai que não se vislumbre necessário proceder a qualquer diligência probatória com vista a tal apuramento.

IV) Os elementos objectivos atinentes à dinâmica do embate conjugados com as características da via e as condições climatéricas que se faziam sentir inculcam, sem margem para dúvida, que a arguida violou o especial dever de cuidado que sobre si recaía de adequar a velocidade ao estado do tempo (chovia) e condições particulares da estrada: tratava-se de uma curva, com uma inclinação descendente de 8%, o piso estava molhado, escorregadio e em mau estado – tudo devidamente informado no local - pelo que a não adequação dessa velocidade a tais condições, levou a que ao descrever a curva perdesse o controlo do veículo, o qual apenas se veio a imobilizar após o embate no veículo que circulava em sentido contrário.

V) A conclusão que se impõe - e não se admite qualquer outra à luz das regras da normalidade da vida e da lógica - é que a velocidade a que circulava o veículo da arguida era inadequada ou excessiva face às mencionadas características da via em que circulava e ao estado do tempo que se fazia sentir, tanto mais que não se apurou qualquer outra causa, designadamente relacionada com alguma avaria mecânica do veículo ou algum facto extraordinário estranho à vontade da conduta, que possa ter contribuído para a mencionada perda do controlo.

VI) O crime de homicídio negligente ou culposo verifica-se quando o agente causa a morte de alguém, por ter omitido a cautela, a atenção ou a diligência a que estava obrigado, em face das circunstâncias, sendo-lhe exigível na situação concreta em que se encontrava um comportamento atento e culposo.

VII) É do conhecimento geral que a condução constitui uma actividade perigosa pelos riscos que comporta. Um desses riscos é precisamente o acidente.
A não observância das regras estradais aumenta esse risco e, no caso concreto, a arguida descuidou as regras estradais constantes dos artigos 24,nº1 e 25º,nº1, als. h) e j) do Código da Estrada, as quais lhe impunham circular a uma velocidade que lhe permitisse descrever a curva e prosseguir na sua trajectória, sem perigo de despiste e embate, violação que foi a directamente causal do embate.

VIII) Agiu pois com negligência inconsciente (artigo 15, alínea b) do C.Penal), tendo incorrido na prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º,nº1, do C.Penal.
Decisão Texto Integral:
Desembargadora Relatora: Cândida Martinho
Desembargador Adjunto: António Teixeira

Acordam, em conferência, os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1.
No processo comum singular, com o número 344/16.0GCVNF que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Local Criminal de Vila Nova de Famalicão -Juiz 3, realizado o julgamento foi a arguida T. M. absolvida da prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelos artigos 137º,nº1 e 69º,nº1, al. b), ambos do C.Penal e 24º,25ºe 27º, do Código da Estrada, do qual vinha pronunciada.

2.
Não se conformando com essa absolvição, veio o assistente C. V. recorrer da sentença, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:


A decisão recorrida causou aos recorrentes a maior das estupefacções, ainda que não detenham quaisquer especiais conhecimentos em Direito Penal ou Direito Processual Penal.
E a mesma estupefacção conseguiu causar ao aqui signatário.

Antes de mais importa salientar que arguida (bem sabemos que tem o direito ao silencio ou até a faltar à verdade) desde momento do acidente que sempre quis fazer crer que era passageira e que o condutor era o falecido C. V..

Com esse seu comportamento causou a maior das perturbações nos autos, fazendo com que as energias despendidas nos autos pela investigação se tivessem direcionado no sentido de se apurar quem era efectivamente o condutor do veículo JE, apenas tendo assumido a condução daquele veículo na audiência de discussão e julgamento, fase processual onde entendeu prestar declarações (e já agora, a faltar despudoradamente à verdade).

E não percamos de vista que a arguida tinha um dever acrescido de ajudar na descoberta da verdade, tanto mais que se trata de pessoa com formação superior, em Psicologia…!

Com efeito, e desde o início que quer o Ministério Público, quer depois o Meritíssimo Juíz a quo tiveram sempre a preocupação de afirmar que não foi possível determinar a concreta velocidade a que a arguida circulava.
Melhor teriam andado, com o devido respeito, se ao invés de se fixarem no critério de excesso de velocidade, se tivesse atido ao critério de velocidade excessiva, bem mais ajustado ao que se discute nos autos.

Como é sabido, um e outro critério são conceptualmente diferentes, sendo que o primeiro (excesso de velocidade) está relacionado com a circulação a uma velocidade superior àquela que legalmente está prevista, e o segundo (velocidade excessiva) diz respeito à condução a uma velocidade inadequada, nomeadamente, às condições de tempo e de piso, como decorre do disposto no artigo 24º do Código da Estrada.

Foi tido por provado que o tempo estava de chuva e o piso encontrava-se molhado e escorregadio, o que era do perfeito conhecimento da arguida desde que iniciou aquela viagem que veria a ser mortal para o passageiro C. V..

Mais se provou que a arguida a dado passo do seu percurso a arguida perdeu o controlo do veículo que conduzia, sendo certo que não soube explicar – ou não quis…! – o porquê disso ter sucedido.

Mas igualmente se provou que a arguida, antes do local do acidente pôde ver a sinalização melhor descrita no ponto 7 dos factos provados.
10ª
Não obstante toda essa sinalização vertical e o estado do tempo (chuva) e do piso (molhado e escorregadio), a arguida manteve aquela sua temerária condução, o que levou ao seu despiste.
11ª
Aventou como hipótese o facto de ao ter travado (que como referiu no seu depoimento foi uma travagem normal, não de emergência!) o veículo despistou-se.
Em consequência dessa perda de controlo por parte da arguida, o veículo JE atravessou toda a V.I.M. da direita para a esquerda, a rodopiar, embateu violentamente no talude existente do seu lado esquerdo, após o que regressou à faixa de rodagem, onde embateu no veículo QP que estava parado ou quase parado no momento em que é embatido.
12ª
E o veículo QP estava assim parado ou quase parado, em consequência da manobra imprevista temerária e inopinada praticada pela arguida, como resultou provado no ponto 20 dos factos provados.
13ª
Mas para o Meritíssimo Juiz a quo, não obstante esse despiste (notoriamente devido a velocidade excessiva para aquelas concretas circunstâncias de tempo e piso) relevou apenas o facto de não se ter determinado a velocidade a que circulava a arguida.
Ora, com o devido respeito, e tendo o Meritíssimo Juíz a quo feito apelo às regras da experiencia comum e ao normal suceder, é caso para perguntar se circulando a velocidade adequada àquelas concretas circunstâncias de tempo e piso se ocorreria aquele despiste? A resposta é estrondosamente óbvia. Natural e seguramente que não.
14ª
É que não ocorreu e/ou foi demonstrada qualquer anomalia no veículo conduzido pela arguida que pudesse estar na origem desse despiste, bem como não existia no piso da V.I.M. qualquer deficiência que provocasse aquele despiste.
Veja-se a este propósito que a arguida referiu ter travado pelo facto de um veículo
que alegadamente circulava à sua frente ter travado. O que sucedeu a esse alegado veículo?

NADA RIGOROSAMENTE NADA.

15ª
Melhor teria andado, com o devido respeito, o Meritíssimo Juiz a quo se tivesse referido na sua decisão que a arguida circulava a velocidade não concretamente apurada, mas absolutamente desajustada (por excessiva) para aquelas concretas circunstâncias de tempo (chuva) e de piso (molhado e escorregadio).
É o que nos dizem as mais elementares regras de experiência comum e do normal suceder.
Naquelas concretas circunstâncias impunha-se à arguida a adopção de outra conduta estradal que não aquela que demonstradamente adoptou.
16ª
E, se nos é permitido, não tivesse a mesma consciência da sua falta de cuidado, e jamais teria enveredado pelo caminho que enveredou desde o acidente, de negar à evidencia que era ela a condutora daquele veículo JE.
17ª
Violou, assim, de forma grosseira as mais elementares regras do dever de cuidado que se lhe impunha, quer pela abundante sinalização vertical que antecedia o local do despiste, quer pelo estado do tempo (chuva) e do piso (molhado e escorregadio), quer ainda por estar a conduzir um veículo que não era o seu, o que, tudo, lhe impunha a tomada de outro tipo de condução que não aquele que declaradamente tomou.
18ª
Conforme nos dizem centenas e centenas de doutos acórdãos dos nossos Tribunais Superiores, entende-se que age com culpa aquele que não consegue dominar o veículo que conduz, permitindo que o mesmo se despiste.
Ora foi precisamente isso que se passou, tanto mais que a arguida, no seu depoimento, não apontou fosse que anomalia fosse quer ao veículo que conduzia, quer ao piso da V.I.M. naquele local.
A menos que ali existisse um qualquer ser que aguardava a passagem da arguida para a “empurrar” pra a faixa contrária…!
Valha-nos Santo Ivo…!
19ª
De todo o modo, e não tendo sido possível apurar a concreta velocidade a que circulava a arguida nos momentos que antecederam o seu despiste, sempre existem as mais diversas fotografias dos veículos (colhidas quer no local do acidente, quer nas oficinas para onde foram removidos), as quais demonstram à saciedade a brutal e notória violência dos embates.
Destas destaca-se, para além das que demonstram o grave dano sofrido na parte lateral direita do veículo JE (onde seguia o C. V. como passageiro), os danos que apresentava o veículo QP que foi embatido pelo veículo da arguida já depois deste ter embatido no talude existente do lado esquerdo da V.I.M., atento o seu sentido de marcha.
20ª
A violência do embate do veículo JE no canto da frente do lado esquerdo do veículo QP denota um fortíssimo embate, não obstante aquele ter perdido necessariamente velocidade com o embate no talude, o que, tudo, não é minimamente compatível com uma velocidade de 50 ou até 60 Kms por hora.
Por isso, e em face destas evidências, melhor teria andado o Meritíssimo Juíz a quo (à semelhança da Srª Procuradora titular dos autos na fase de Inquérito) se tivesse referido que a velocidade a que circulava a arguida era – como foi – absolutamente inadequada àquelas concretas circunstâncias de tempo (chuva) e de piso (escorregadio e molhado).
21ª
O veículo conduzido pela arguida foi submetido, na fase de Inquérito, a uma inspecção pelo agente do NICAV responsável pela investigação das causas do despiste sofrido pela arguida.
E como decorre do relatório final, os pneus traseiros daquele veículo JE apresentavam piso no limite do “taco” colocado pelo fabricante.
Não estavam, como é fácil de perceber, em condições de provocar, sem mais, o despiste que a arguida sofreu.
E, diga-se em abono da verdade, que conhecendo a arguida essa realidade desde a fase do Inquérito, nunca em circunstância alguma fez apelo a essa factualidade…!, ou seja, jamais imputou aquele seu despiste ao “mau estado” dos pneus traseiros do veículo JE.
22ª
Como bem concluiu o agente do NICAV da G.N.R. encarregue da averiguação do sinistro dos autos, o mesmo ficou a dever-se ao facto de a arguida não ter adequado a velocidade a que circulava ao estado do tempo (chuva) e do piso (molhado e escorregadio), isto é, circulando com velocidade excessiva para aquelas concretas condições de tempo e piso.
23ª
Assim, e como está fácil de ver, ainda que a arguida circulasse – e não circulava – dentro da velocidade regulamentar, ou seja, não seguindo em excesso de velocidade, sempre circularia com velocidade excessiva por inadequada àquelas concretas circunstâncias.
Por isso, atenta toda a prova produzida nos presentes autos, deveria o Meritíssimo Juíz a quo ter dado esse facto por provado, invocando o facto de não se ter determinado qual a velocidade concreta a que a arguia circulava, escrevendo – como em milhares de outras decisões se pôde ler – que a arguida circulava a velocidade não concretamente apurada.!
24ª
Todavia, e como resulta do pensamento vertido pelo Meritíssimo Juíz a quo na decisão em crise, não se tendo apurado a concreta velocidade a que circulava a arguida, tem a mesma de ser absolvida por força do principio in dubiu pro reo...!
Se este “principio” vingasse dessa forma, melhor seria que os acidentes de viação mortais acabassem logo arquivados ab initio.
Só nós apetece dizer, com o devido respeito, Valha-nos Santo Ivo...!
25ª
Como é sabido – ou devia ser – uma das obrigações decorrentes do dever de cuidado consagrado nas normas jurídicas é a percepção de uma situação de perigo e, consequentemente, a sua correcta avaliação de modo a evitar a produção do resultado: a ofensa do bem jurídico protegido pela norma incriminadora.
Ora, revelam ou não os autos que a arguida não avaliou de forma correcta a produção daquele resultado que viria a ocorrer, em consequência do seu despiste, qual seja o da morte do filho dos recorrentes?
A resposta parece particularmente óbvia, e encontra-se no depoimento da própria arguida, que não percebeu nunca que, como diz o sábio Povo, ao tapar a cabeça destapa os pés...!
26ª
Uma correcta avaliação das circunstâncias que a rodeavam impunham-lhe a adopção de uma condução que em nada se assemelhasse àquele que empreendia e que provocou o despiste do veículo que conduzia.
27ª
Com o devido respeito, por muito que os recorrentes se esforcem não conseguem encontrar mais argumentos para demonstrar aquilo que está à frente dos olhos, isto é, que apenas uma condução negligente da arguida provocou o despiste e, consequentemente, a morte do filho dos recorrentes.
28ª
Por isso, considerando a matéria de facto tida por provada e as “dúvidas” que o Meritíssimo Juíz a quo diz ter sentido – e facilmente ultrapassáveis com a utilização dos mesmos critérios utilizados pelo Meritíssimo Juiz a quo, a saber, as regras da experiência de vida e do normal suceder – deverá a matéria tida por não provada das alíneas A), B), C), D), E), F), G) e H) ser considerada provada, devendo apenas fazer-se um reparo ao que ali vai referido, no sentido de se referir que A arguida circulava a velocidade não concretamente apurada, mas excessiva para as concretas condições de tempo e piso referidas em 11.
29ª
Finalmente uma palavra para a determinação da medida da pena a aplicar à arguida, como é de inteira Justiça.
Assim, e atendendo a todo o seu comportamento desde o momento imediatamente a seguir às violentas colisões (bastante bem retratado nos autos e no seu depoimento em sede de audiência de discussão e julgamento), considerando que se trata de uma cidadã com responsabilidades acrescidas por força da sua formação superior em Psicologia e de não ter demonstrado o mais ténue arrependimento pelo sucedido aos recorrentes (que perderam um filho na flor da idade), impõe-se uma pena privativa da liberdade para que possa produzir o efeito pretendido, nunca inferior a 18 meses.
30ª
Todavia, deverá a sua execução ser suspensa por igual período na condição de a arguida frequentar um curso de condução defensiva e, bem assim, prestar serviço comunitário nas Urgências do Hospital da sua área de residência.

Pelo exposto, Alterando a decisão recorrida, como se impõe, por outra que condene a arguida pelo crime de que vinha pronunciada, é fazer-se sã e acostumada
JUSTIÇA.

3.
A Exma Procuradora-Adjunta na primeira instância respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões que se transcrevem, pugnado pela improcedência do recurso.

1. O recorrente vem impugnar a matéria de facto dada como provada, alegando constatar-se desconformidades entre a prova produzida e a perceção que dela foi feita, porquanto deveriam ter sido dados como provados os factos A), B), C), D), E), G) e H) e, em consequência, ser a arguida condenada.
2. Nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”, vigorando, assim, entre nós, o princípio da livre apreciação da prova.
3. Assim, a convicção do julgador não nasce da avaliação isolada e individual de cada um dos meios de prova, mas antes do seu confronto, articulação e compatibilização.
4. E conforme na sentença recorrida bem se fundamenta, a prova testemunhal e documental suportam os factos dados como provados e não provados, e que acabaram por determinar a absolvição da arguida.
5. Assim, andou bem o tribunal porquanto a decisão proferida quanto à matéria de facto fez uma correcta e devida ponderação de todos os meios de prova oferecidos em audiência quando deu como não provados os factos vertidos nas alíneas A), B), C), D), E), F), G) e H) da pronúncia, não logrando superar a dúvida quanto à respectiva ocorrência, assim se tendo lançado mão do princípio in dúbio pro reo e absolvendo a arguida da prática do crime de que vinha pronunciado.
6. Assim não sobejam dúvidas de que andou bem o tribunal a quo ao proferir decisão absolutória, razão pela qual o presente recurso é manifestamente improcedente.
7. Pelo exposto, não merece qualquer reparo a douta decisão sob recurso, contanto que a mesma não violou qualquer disposição legal.»

4.
A arguida veio também responder ao recurso e pugnando pela sua improcedência, concluiu nos seguintes termos que a seguir se transcrevem:

A) A douta sentença recorrida não merece qualquer censura, inexistindo qualquer razão na pretensão do recorrente.
B) As conclusões constituem o limite do objecto do recurso delas se devendo extrair as decisões a decidir em cada caso.
C) Subsumem-se as motivações do recorrente à pretensao de ver dados como provados os factos A, B, C, D, E, G e H (dados como não provados) e em consequência ver a recorrida condenada.
D) Mas o recorrente fá-lo colocando em causa nao a prova produzida mas a avaliação que dessa prova fez o Exmo Sr. Juiz a quo – violando o principio previsto no artigo 127.º do CPP.
E) É evidente que o princípio da livre convicção do juiz é vinculado e não pode significar arbítrio na apreciação das provas, não se podendo aceitar a análise do recorrente no sentido de que a decisão proferida pelo tribunal a quo se encontre ferida de arbitrariedade.
F) Aliás, o que o referido princípio não comporta é a interpretação da prova ao gosto de cada um, designadamente de acordo com a vontade do recorrente, e muito menos que se retire de cada depoimento aquilo que interessa, ocultando as contradições.
G) O presente recurso coloca, desde logo, em causa, conforme se referiu, o principio da livre apreciação da prova que vigora quer no direito civil como no direito penal e de acordo com o qual o tribunal “aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto.” - art.º 127ºCPP.
H) Ora, por força deste princípio, uma vez fixada a matéria de facto, esta não mais poderá ser alterada, excepto se ocorrer uma das situações previstas pelo art.º 431º do CPP, que não estão aqui em causa.
I) Para Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, II vol., pág. 209) “esta apreciação livre das provas tem de ser entendida como uma apreciação convicta do julgador, subordinada apenas à sua experiência e prudência e guiando-se sempre por factores de probabilidade e nunca de certezas absolutas, estas sempre intangíveis, nunca entendida num sentido arbitrário, de mero capricho ou de simples produto do momento, mas como uma análise serena e objectiva de todos os elementos de facto que foram levados a julgamento, tudo por forma a que uma resposta dada a determinado quesito seja o reflexo e deve reflectir o resultado da conjugação de vários elementos de prova que na audiência ou em momento anterior foram sujeitos às regras da contraditoriedade, da imediação ou da oralidade."
J) Citando o Ac. do TRP de 17/09/01 in http:www.dgsi.pt/jtrp.nsf., “ a convicção do julgador da 1ª instância resulta da experiência, prudência e saber daquele, sendo certo que é no contacto pessoal e directo com as provas, designadamente com a testemunhal, que aquelas qualidades de julgador mais são necessárias, pois é com base nelas que determinado depoimento pode ou não convencer quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recai, constituindo uma das manifestações dos princípios da oralidade e da imediação, por via das quais o julgador tem a oportunidade de se aperceber da frontalidade, tibieza, lucidez, rigor e firmeza com que os depoimentos são produzidos, mesmo do confronto imediato entre os vários depoimentos, do contraditório formado pelos intervenientes, advogados e juizes, do interrogatório do advogado que a apresenta, do contraditório do outro mandatário e das dúvidas do próprio tribunal, melhor ajuizando e aquilatando desta forma da sua validade.”
K) Ora, não podemos confundir o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, com erro na apreciação da prova. Só existe erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta com toda a evidência a conclusão contrária à que chegou o tribunal.
L) Com efeito, nada no texto da sentença recorrida, em conexão com as regras da dita experiência comum, impõe uma conclusão contrária à que foi exposta pelo tribunal.
M) A motivação do julgador é livre e nesse sentido pessoal, regendo-se por isso por critérios objectivos. Deste modo, vigorando no processo penal o já referido principio da livre apreciação da prova, nada obsta a que a convicção do juiz, que como se disse não é arbitrária mas antes objectiva, se forme com base nas declarações da arguida, no depoimento do agente do NICAV (considerou objectivo, seguro, isento e credivel) bem como no das testemunhas A. R. e M. R..

N) A sentença recorrida, na sua fundamentação indicou todos os meios de prova que serviram para formar a sua convicção (declarações da arguida, no depoimento do agente do NICAV D. N., teor dos documentos juntos aos autos a fls. 36 a 40 (auto de participação do acidente), 116 a 121 (relatório fotográfico), 237 a 245 (relatório final), bem como no depoimento das restantes testemunhas, nenhuma delas proibida por lei (art.º 343º, 164º 170º e 128º a 139º CPP), e todas da livre apreciação do julgador segundo as regras da experiência comum e a sua convicção pessoal (art.º 127º CPP).
O) Além disso, elaborou a sua análise critica, explicitando individualmente os elementos de prova que considerou primordiais, bem como o crédito probatório que concedeu e denegou a cada um deles para a formação dessa mesma convicção. Salientando-se ainda que o recorrente não imputa à sentença o vício da falta de fundamentação.
P) O tribunal apreciou todos os elementos carreados para os autos, pelo que não existe qualquer razão ao recorrente, não merecendo a decisão recorrida qualquer reparo.
Q) O recorrente insurge-se apenas, e tão só, contra o facto de não aceitar a sentença recorrida. R) Pretende o recorrente causar sofrimento à recorrida pelo facto desta, na opinião daquele, não ter tido no processo a posição que o mesmo considerava que ela devia ter tido.
S) O douto tribunal a quo analisou a questão da velocidade até à exaustão, conluindo que «tudo o que se poder dizer sobre a velocidade excessiva será um exercício de mera especulação».
T) Nenhuma das testemunhas aludiu à velocidade com que a recorrida circulava. E a mesma assegurou que cumpria os limites impostos.
U) O que aconteceu foi um ACIDENTE que ocorreu por circunstâncias que se desconhecem mas motivadas pelo estado do piso molhado e gorduroso.
V) Neste sentido valorou o tribunal a quo, o depoimento prestado pelo militar da GNR, D. N., guarda principal em serviço no N.I.C.A.V. do destacamento de Trânsito da Guarda Nacional Republicana de Braga, e investigador responsável pela recolha dos indícios, que num depoimento objetivo, seguro, isento e credível (cit sentença recorrida) depôs sobre as circunstâncias de tempo e lugar, estado do piso, condições da estrada e do veículo.
W) O agente do NICAV esclareceu que o piso se encontrava tao gorduroso que escorregava caminhar sob o mesmo.
X) E que nao conseguiram determinar a velocidade a que a arguida se deslocava aquando do acidente.
Y) Nos termos do artigo 127.º CPP “a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
Z) Na apreciação da prova, o tribunal é livre de formar a sua convicção, desde que não contrarie as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos. Fazendo, desde modo, uso do princípio da livre apreciação de prova consagrado pelo art. 127º CPP.
AA) Assim, nos termos da sentença recorrida, “…. Impõe-se, atento o aludido princípio in dúbio pro reo, considerar como não provado que arguida circulava em excesso de velocidade ou de forma desatenta”.
AB) Pelo que, a decisão recorrida não violou qualquer preceito legal e não merece qualquer censura.

TERMOS em que deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo integralmente a decisão recorrida, por ser de JUSTIÇA

5.

Neste tribunal da Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, considerando que a sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no art.410º,nº2,al. a), do C.P.P., porquanto, tendo considerado necessária para o apuramento da velocidade a que circulava o veículo da arguida antes do embate, uma perícia aos danos que resultaram no mesmo, não levou a efeito a mesma, mas também do vício a que se reporta a alínea c), do mesmo preceito legal – erro notório na apreciação da prova – na medida em que uma “análise da dinâmica evolutiva do veículo conduzido pela arguida, com particular incidência nos sucessivos momentos que antecederam a imobilização (…) permitem um juízo decisório quanto à velocidade, pelo menos infractora do disposto no artigo 24º do Código da Estrada”.

Concluiu assim que «verificando-se a nosso ver, os aludidos vícios na decisão, cujo conhecimento é oficioso (…) e parecendo-nos, sobretudo em razão do primeiro, que não é possível nesta instância decidir a causa, considera-se que se deve determinar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo, nos termos dos artºs426º,nº1,e 426º-A, durante o qual se determinará a perícia que a sentença recorrida reputou em falta e necessária – art.340º - a qual terá, naturalmente, presente o conteúdo do relatório junto aos autos a fls.237 a 245.

Por tudo quanto fica exposto, somos do parecer que o recurso seja julgado procedente, embora com o proposto reenvio do processo – art.426º,nº1.»

5.
Cumprido o art. 417º,nº2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.

6.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.419º,nº3,al.c), do diploma citado.

II. Fundamentação

A) Delimitação do Objeto do Recurso

Dispõe o art. 412º,nº1, do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.

O objecto do processo define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º - naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cf.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, VolIII, 1994,pág.340, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).
O âmbito do recurso é dado, assim, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior ad quem, as questões a decidir e as razões que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam.

No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, a questão a resolver é também do conhecimento oficioso e passará por saber se a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova ao não ter concluído que a perda de controlo do veículo conduzido pela arguida se deveu ao facto da velocidade que lhe imprimia não ser a adequada às características do piso e condições climatéricas que se faziam sentir.

B) Da Sentença Recorrida

«II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

2.1. Discutida a causa, com relevância para a decisão da mesma, resultaram PROVADOS os seguintes factos:

1. Cerca das 20h10 do dia 18.10.2016 ocorreu um acidente de viação na VIM Joane – Vizela, em Pedome – Vila Nova de Famalicão, em que intervieram os veículos ligeiros de passageiros:
a) – JE, propriedade do falecido C. V. e conduzido pela arguida T. M. e
b) – QP, conduzido pelo proprietário, A. R..
2. A arguida conduzia o referido veículo JE pela metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Joane – Vizela, a velocidade não concretamente apurada.
3. O local por onde circulava o veículo conduzido pela arguida descreve-se em curva para a direita, atento o seu sentido de marcha,
4. Com inclinação descendente de 8%,
5. Existindo uma faixa de rodagem destinada ao trânsito que circula no sentido Joane – Vizela e duas pistas de rodagem para o trânsito em sentido contrário, encontrando-se estas últimas duas divididas entre si por linha longitudinal descontínua e da faixa de sentido contrário por linha longitudinal contínua dupla, marcas bem visíveis no pavimento.
6. O piso era em betuminoso e estava em mau estado de conservação, molhado e escorregadio por força dos chuviscos que se faziam sentir no momento da colisão.
7. Antes do local do acidente, e considerando o sentido de marcha da arguida, existia a seguinte sinalização vertical:
a) Sinal de pré-sinalização I8 – com indicação de “ATENÇÃO”, “Velocidade Moderada”, com os sinais de perigo A5 – pavimento escorregadio e A13 – visibilidade insuficiente;
b) Sinal de perigo A1a – curva à direita;
c) Sinal de perigo C13 – proibição de exceder a velocidade máxima de 70 Kms por hora;
8. A faixa de rodagem, no local do embate, tinha a largura total de 10,70 metros,
9. Encontrando-se aquela via ladeada por taludes em terra de um e do outro lado da estrada.
10. A velocidade máxima permitida para aquele local, como supra se referiu, é de 70 Kms por hora, o que estava sinalizado por placa vertical sinal C13.
11. Assim, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1) era de noite, chuviscava e o piso apresentava-se molhado e escorregadio e era mau o seu estado de conservação, como previamente anunciado por placas verticais.
12. Ao descrever uma curva para a sua direita, perdeu o controlo do veículo que conduzia.
13. Permitindo que o mesmo se despistasse para a sua esquerda, com o transpôs a linha longitudinal contínua dupla existente no eixo da via,
14. Invadindo a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido Joane – Vizela.
15. E assim despistada atravessou toda a VIM da direita para a esquerda, atento o seu sentido de marcha,
16. Rodopiando no sentido dos ponteiros do relógio.
17. Acabando por colidir com a parte lateral direita do veículo JE no talude ali existente desse seu lado esquerdo.
18. Após o que regressou a pista direita da metade direita da faixa de rodagem da VIM, atento o sentido Vizela – Joane.
19. Onde acabou por embater com a parte lateral direita, sensivelmente junto à porta da frente, do veículo JE no canto da frente do lado esquerdo do veículo QP.
20. Assim, em face de tão imprevista, temerária e inopinada manobra, o condutor do veículo QP, que circulava pela pista de rodagem direita da metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Vizela – Joane, não obstante ter travado e encostado o mais possível à sua direita.
21. Não consegui evitar ser embatido na parte da frente do lado esquerdo do veículo QP pela parte lateral direita do veículo JE.
22. Após o que foi projectado para trás.
23. Ficando na berma do seu lado direito, com a frente voltada para os lados de Joane, enquanto que o veículo JE ficou atravessado na pista direita da metade direita da faixa de rodagem, considerando o sentido Vizela – Joane, com a frente voltada para a berma do lado esquerdo, atento o referido sentido.
24. Em consequência daquele embate o C. V., que seguia como passageiro no banco da frente do lado direito do veículo JE, sofreu as lesões melhor descritas no relatório de autópsia médico-legal e que, de forma directa, adequada e necessária determinaram a sua morte, ainda no local do acidente.

Provou-se, ainda, que:

25. T. M. é a mais velha de dois irmãos, proveniente de um agregado em que os progenitores, operários fabris, asseguraram de forma adequada a subsistência do agregado. T. M. reporta o seu processo de crescimento como pautado por valores bem estruturados, ancorados na partilha familiar e muito equilibrados a nível relacional.
26. A arguida iniciou o seu percurso escolar em idade própria, tendo concluído aos 22 anos a licenciatura em Psicologia na faculdade de Psicologia da Universidade de Coimbra.
27. Aos 24 anos iniciou a frequência do Mestrado Integrado de Psicologia Clinica e Saúde no ISMAI, e, à data dos factos subjacentes ao presente processo estava a iniciar o estágio curricular no Hospital psiquiátrico ... no Porto.
28. T. M. iniciou actividade ocupacional após ter concluído a licenciatura, aos 22 anos, trabalhando em regime de part-time em cafés, actividade que desempenhava à data dos factos subjacentes ao presente processo.
29. A arguida não identifica, nem lhe é imputado qualquer comportamento aditivo.
30. Ao longo do seu trajecto vivencial, a arguida tem apresentado, ao que tudo indica um comportamento globalmente consentâneo com os padrões e normas sociais, tendo sido escuteira dos 7 aos 19 anos.
31. No período a que se reportam os factos subjacentes ao presente processo, assim como actualmente T. M. integra o agregado de origem usufruindo de forte apoio do seu núcleo familiar.
32. À data dos factos subjacentes ao presente processo e conforme referenciado, T. M. estava a iniciar o estágio curricular no Hospital psiquiátrico ... no Porto, bem como trabalhava em regime de part-time em cafés.
33. Na sequência do acidente de viação sofrido e devido aos problemas de saúde daí resultantes, designadamente ao nível de ortopedia (fratura total da clavícula) com posterior intervenção cirúrgica, T. M. interrompeu a sua formação académica, bem como a sua actividade ocupacional, reportando um período longo de algum isolamento relacional motivado pelo desgaste emocional sofrido.
34. Conforme refere, em Agosto de 2018 terminou o seu estágio curricular, estando actualmente a preparar a dissertação do Mestrado que visa concluir em Janeiro do próximo ano. Ao nível profissional, T. M. trabalha desde Outubro de 2018 como assistente comercial numa empresa do sector têxtil na sua área de residência, auferindo uma média de 600,00 euros/mês.
35. A arguida centra o seu quotidiano no exercício da sua actividade profissional, na preparação da dissertação do mestrado, no convívio familiar, mantendo relacionamento de namoro há cerca de ano e meio.
36. Ao nível sociocomunitário constata-se que T. M. projecta uma imagem proactiva não sobressaindo qualquer referência ou indicador passível de constituir factor de risco.
37. Não tem antecedentes criminais.
*
2.2. De resto, NÃO SE PROVOU:

A. Não obstante toda a sinalização vertical existente antes do local do acidente, e já supra descrita, a arguida imprimia ao veículo que conduzia uma velocidade superior a 70 Kms por hora, que se mostrava manifestamente excessiva em face das condições climatéricas (chuva) e das condições da via (molhada e escorregadia),
B. E fazia-o de forma desatenta, descuidada e sem a mínima atenção à sinalização vertical existente antes do local do acidente, bem como às características da via e do piso naquele local,
C. Motivo por que, ao descrever uma curva para a sua direita, perdeu o controlo do veículo que conduzia
D. A arguida devia ter regulado a velocidade do veículo que conduzia de modo a que, atendendo ao estado do tempo – chuva – e do piso – molhado e escorregadio – pudesse, com condições de segurança, descrever aquela curva que para si se desenhava para a direita sem perder o controlo do referido veículo, o que podia e devia fazer se circulasse de forma atenta e cuidada, até por que tinha passado por toda a sinalização vertical que a alertava para o estado daquela via e daquele piso.
E. Assim, e se tivesse regulado, como podia e devia, a velocidade às condições climatéricas e da via tinha descrito aquela curva sem perigo de se despistar e, consequentemente, de provocar o acidente que provocou, assim como as lesões que vieram a determinar o falecimento do C. V..
F. A arguida sabia que deveria exercer a condução de forma atenta, cuidada, regulando a velocidade do veículo que conduzia (JE) de modo a poder, em condições de segurança, efectuar a manobra cuja necessidade fosse de prever.
G. Ao agir conforme descrito e de forma deliberada, livre e consciente, não conduzindo o veículo JE de maneira atenta, cuidada e adequando a velocidade ao estado do tempo (chuva) e às condições do piso (molhado e escorregadio) teria evitado o despiste e consequente embate no veículo QP, a arguida violou o dever de cuidado que a condução exige, e que podia e devia ter observado, para evitar o resultado que, do mesmo modo, podia e devia esperar.
H. Sabia, por isso, a arguida que aquela sua conduta era proibida e punida por lei.
*
III. MOTIVAÇÃO DO TRIBUNAL

Funda-se a convicção do Tribunal, quer positiva, quer negativa, no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, nomeadamente nos depoimentos das testemunhas ouvidas, atendendo-se, neste último caso, à respetiva coerência, congruência, objetividade e isenção, sem prejuízo da consideração pelos documentos, meios de prova conjugados com as regras gerais da experiência e com a normalidade do acontecer, de acordo com a lógica que sempre tem de presidir à apreciação da prova, como se explicará, não esquecendo ainda a livre convicção como que o Tribunal aprecia toda a prova [cf. artigo 127.º do CPP].

1. Assim, relativamente à prova documental, tomámos em consideração os seguintes elementos:

 auto de participação de acidente de viação de fls. 36-40 (incluindo o croqui), subscrito por militar da GNR, na própria data do acidente, identificando o local, as viaturas intervenientes (incluindo a que a arguida conduzia), a identificação dos seus condutores e das vítimas; as condições meteorológicas, de luminosidade e de visibilidade; e as respetivas medições.
 relatório fotográfico de fls. 116-121 (que evidencia o estado dos veículos após o embate);
 Relatório final de fls. 237-245.
*
2. Para a formação da nossa convicção, tomámos também em consideração a prova oralmente produzida no julgamento, designadamente:

→ declarações da arguida: que confirmou no que respeita à circunstância de ser a condutora do veículo JE; ao sentido em que circulava, ao tempo, local, características e estado da via em que ocorreu o acidente; à posição em que seguia a vítima no interior da viatura, como passageiro; à circunstância de ter acionado os travões e ter imediatamente perdido o controlo do veículo, o que provocou o seu despiste, embatendo no talude e posteriormente noutro veículo.
Quanto ao demais, rejeitou que circulava em excesso de velocidade e de forma desatenta.
→ depoimento de D. N., guarda principal, em serviço no N.I.C.A.V. do Destacamento de Trânsito da Guarda Nacional Republicana de Braga, investigador responsável pela recolha dos indícios, que num depoimento objetivo, seguro, isento e credível, confirmou que foi o investigador do acidente, tendo elaborado o relatório final de fls. 237-245; mais depôs sobre as circunstâncias de tempo e lugar, bem como quanto ao estado do pavimento, condições da estrada e do veículo, designadamente o desgaste dos dois pneus traseiros, marcas e vestígios existentes na via. De acordo com a sua experiência no Núcleo de investigação de acidentes de viação da G.N.R., descreveu a dinâmica do acidente, tendo em conta os vestígios existentes na via logo após o acidente.

Foi igualmente este militar da GNR-BT que colheu as fotografias que constituem os documentos de fls. 116-121.
→ o depoimento da testemunha A. R. condutor que circulava na faixa de rodagem de sentido contrário, tendo assistido ao despiste do veículo conduzido pela arguida, e ao posterior embate no seu veículo. Descreveu ter visto perfeitamente que o veículo conduzido pela arguida embateu no muro, rodopiou, e embateu na frente do veículo por si conduzido. Caracterizou o estado da estrada e o tempo que se fazia sentir.
Os referidos factos foram também confirmados pela testemunha M. R., que circulava no mesmo sentido da testemunha anterior, que de igual modo confirmou o despiste, o estado do tempo e da via, assim como o embate nos termos em que se deram como provados.
*
No que concerne às lesões e à morte de C. V., a nossa convicção resulta também do relatório de autópsia de fls. 291 a 293. Sendo relatório de perícia médica realizada pela entidade oficial competente (Instituto Nacional de Medicina Legal - INML) o seu valor probatório presumido atribuído pelo artigo 163.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não saiu minimamente beliscado do confronto com a demais prova produzida.
*
Enunciados todos os elementos probatórios que valoramos, cumpre examiná-los conjugada e criticamente, de forma a fundamentar a convicção formada pelo Tribunal.
Antes de mais importa referir que os factos relativos à data, hora e local do acidente, viaturas intervenientes, identificação do seu condutor, identidade da vítima, e às condições da via, designadamente morfologia, dimensões, sinalização, foram confirmados, de modo espontâneo e objetivo, pela própria arguida. De resto, estes factos constavam já do auto de participação do acidente, tendo sido igualmente relatados por todas as testemunhas inquiridas e que presenciaram o acidente.
A arguida confirmou também o embate com a parte lateral da viatura por si conduzida [JE] na viatura conduzida pela testemunha A. R. [QP], admitindo as lesões causadas, incluindo a determinação da morte de C. V..
Assim, a dinâmica do acidente é de uma forma genérica assumida pela arguida, que apenas não explica a razão do despiste, afirmando que se limitou a acionar os travões, por ter avistado as luzes de travagem do veículo que seguia à sua frente.
A questão que se impõe é a de saber por que razão ocorreu o despiste.
Depois de negar o excesso de velocidade e a desatenção, a arguida explicou que acionou os travões e imediatamente perdeu o controle do veículo. Quanto ao excesso de velocidade, nenhuma das testemunhas aludiu à velocidade que a arguida circulava. Ora, tudo o que se poder dizer sobre a velocidade excessiva, será um exercício de mera especulação. Teria sido necessário que fosse levado a cabo uma perícia aos danos que resultaram no veículo JE, para desse modo determinar a velocidade que a arguida circulava antes do embate. Sucede que, esse exame não foi efetuado. É um facto que ocorreu o despiste, todavia, não foi possível determinar qual a concreta causa que determinou o mesmo.
Aqui chegados, resulta do exposto que os factos criminosos imputados à arguida não foram confirmados diretamente por prova testemunhal. A imputação também não se mostra demonstrada através da prova perícia. Desde logo, não foi realizada qualquer perícia ao veículo conduzido pela arguida. Importa referir que, em regra, a velocidade excessiva, não costuma ser detetada por prova testemunhal, como no caso em apreciação. Por isso mesmo, tais factos resultam essencialmente da análise direta dos depoimentos das próprias vítimas e, por vezes, ainda, em confronto com as declarações dos arguidos [caso estes aceitem prestar declarações]. Deste modo, são muito importantes e, por vezes até decisivos, a análise dos vestígios, como as marcas de travagem [que no caso inexistem], os danos nos veículos, a distância de projeção, etc. Sucede que, no presente caso, nenhuma destas diligências probatórias foi realizada para permitir o apuramento da velocidade imprimida pela arguida.
Ora, o Direito Penal vigora o princípio da presunção de inocência do arguido, consagrado no artigo 32.º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, que dispõe que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação.
A Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948, estatui no artigo 11.º, nº 1, que toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas.
Por um lado, este princípio tem como consequência a isenção do arguido da prova da sua inocência e, por outro, implica que o arguido não é considerado como mero objeto processual ou meio de prova, mas sim sujeito processual com armas iguais às do Ministério Público.
Ainda como corolário deste princípio, surge o princípio in dubio pro reo. Sob a égide deste princípio procura-se responder ao problema da dúvida sobre os factos que são trazidos a tribunal através da audiência de julgamento.

Conforme entende RUI PATRÍCIO1, “O princípio in dubio pro reo parte da premissa de que o juiz não pode terminar o julgamento com um non liquet, ou seja, não pode abster-se de optar pela condenação ou pela absolvição, existindo uma obrigatoriedade de decisão, e determina que, na dúvida quanto ao sentido em que aponta a prova feita, o arguido seja absolvido”.

Diferentemente do que se passa em processo civil, no processo penal compete ao juiz, oficiosamente, o dever de aferir da verdade dos factos sujeitos a julgamento.
No entanto, como nota FIGUEIREDO DIAS2, “se o tribunal mesmo através da sua actividade probatória não lograr obter a certeza dos factos mas antes permanecer na dúvida, terá por princípio de decidir em desfavor da acusação, absolvendo o arguido por falta de provas”.
Este princípio tem subjacente que a dúvida terá de possuir as seguintes caraterísticas: ser insanável e razoável, isto é, pressupõe-se que o tribunal tenha desenvolvido uma atividade no sentido do apuramento dos factos, sem que, contudo, se tenha conseguido ultrapassar o estado de dúvida.
Ora, parece-nos evidente que na ausência de vestígios que permitam determinar a velocidade que a arguida imprimia ao veículo por si conduzido e as múltiplas causas possíveis que podem justificar o despiste do mesmo, revela uma dúvida que impediu o Tribunal formar uma convicção, para além de qualquer dúvida razoável, sobre o que (e se) aconteceu.

1 In O princípio da presunção de inocência do arguido na fase do julgamento no actual processo penal português, pág. 30.
2 In Direito Processual Penal, lições policopiadas, 1988/89, pág. 144.

Impõe-se, atento o aludido princípio in dubio pro reo, considerar como não provado que a arguida circulava em excesso de velocidade ou de forma desatenta, e praticado o crime de que vinha pronunciada.
*
3. A situação pessoal, profissional e familiar da arguida resultou do teor do relatório social.
*
4. Em relação à ausência de antecedentes criminais, teve-se em consideração o seu C.R.C. junto a fls. 510.
*
*
IV. ENQUADRAMENTO JURÍDICO-CRIMINAL

 comissão da prática de um crime de HOMICÍDIO negligente, previsto e punido pelo artigo 137º, n.º1 e 2, do Código Penal.

Decorre do artigo 137.º do Código Penal que:

1-Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2-Em caso de negligência grosseira, o agente é punido com pena de prisão até cinco anos.

O bem jurídico protegido pela referida incriminação é, naturalmente, a vida humana - bem supremo constitucionalmente previsto no artigo 24.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Pressupõe este tipo legal, os seguintes elementos:

- ação ou omissão de supressão de uma vida humana;
- a violação de um dever objetivo de cuidado; e,
- a imputação objetiva do resultado baseado no erro da conduta [nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado produzido – a morte - de tal forma que se possa afirmar que a morte resultou direta e necessariamente da atuação daquele].

No que concerne à violação do dever objetivo de cuidado, dispõe o art. 15.º do Código Penal que:

Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas actuar sem se conformar com essa realização;
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.

Diferencia-se, assim, a chamada negligência consciente da inconsciente.
Estamos perante negligência consciente quando o agente admite como possível a ocorrência do resultado, confiando e conformando-se, no entano, que o mesmo não se irá verificar (se existisse conformação, já estaríamos no domínio do dolo eventual).
A negligência inconsciente verifica-se quando o agente não chega sequer a representar a possibilidade de realização do resultado.
Com o dever objetivo de cuidado visa-se acautelar o perigo para o bem jurídico protegido, resultante da conduta ou da omissão concreta, devendo ser aferido como o cuidado a tomar perante a situação de perigo por um homem médio com a capacidade do agente, podendo este, segundo a experiência geral prever o resultado como consequência possível do seu ato ou omissão, conforme prescrito pelo artigo 10.º do Código Penal.
O conceito de negligência grosseira previsto no n.º 2 do art. 137.º não encontra definição prevista na legislação penal.
Porém, é seguro que, em consonância com a agravação da moldura penal que esta impõe, “a negligência grosseira constitui um grau essencialmente aumentado ou expandido de negligência”. Assim, para que a mesma se verifique, torna-se indispensável que se esteja perante “uma acção particularmente perigosa e de um resultado de verificação altamente provável à luz da conduta adoptada”.3
Isto considerado, importa descer ao caso que nos ocupa e averiguar se os factos descritos supõem o preenchimento, por parte da arguida, da factualidade típica constitutiva do crime em apreço.
Logo se depreende que não.
Com efeito, a factualidade provada de forma alguma permite imputar à arguida a prática de um ilícito criminal, concretamente do ilícito criminal de que vinha pronunciada, na medida em que apenas se provou a condução e o despiste. Quanto aos demais factos que lhe eram imputados, o Tribunal não logrou superar a dúvida decorrente da prova produzida quanto à respetiva ocorrência, nos termos e com os fundamentos expostos em sede de motivação da matéria de facto, o que determinou que não se tivesse por demonstrado nem o facto alegado nem o facto seu contrário, assim se tendo lançado mão do princípio in dubio pro reo.

3 FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Pág. 113.


Isto na medida em que, como ensina FIGUEIREDO DIAS, um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido: é com este sentido e conteúdo que se afirma aquele princípio,4 certo que nenhum a dos factos imputados foram confirmados, nos termos e com os fundamentos explicados em sede própria.
Por tudo o que se expôs, nada mais resta senão absolver a arguida da prática do crime de que vinha pronunciado.»
*

C) Apreciação do Recurso

Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
No que tange à matéria de facto, a mesma pode ser sindicada por duas vias: no âmbito restrito, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, ou por via da impugnação ampla a que se reporta o artigo 412.º, n.º 3, 4 e 6, do Código Processo Penal, caso em que a apreciação se alarga à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência.
De acordo com o citado artigo 410 nº2 do CPP, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: al.a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; al. b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e al.c) erro notório na apreciação da prova».
Ou seja, como resulta do referido preceito, tais vícios têm que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para os fundamentar como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da decisão que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.

Nesta forma de reagir - invocação dos vícios do art. 410º,nº2 - contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto – a denominada “revista alargada” - o tribunal de recurso limita-se a detetar os vícios que a sentença em si mesmo evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art.426º,nº1).

No caso vertente, ainda que não o qualifique, o recorrente pugna no sentido de que a sentença recorrida padece de um erro notório na apreciação da prova, na medida em que perante a factualidade apurada a respeito das características da via e das condições climatéricas que se faziam sentir, as mais elementares regras da experiência e do normal suceder impunham que o tribunal a quo tivesse concluído que a perda do controlo do veículo por banda da arguida ao descrever a uma curva para a sua direita se deveu ao facto de circular a uma velocidade, ainda que não concretamente apurada, desadequada a tais características da via (molhado, escorregadio e em mau estado de conservação) e às condições climatéricas que se faziam sentir (chovia) e, por isso, em clara violação do disposto no artigo 24º do Código da Estrada.

Para o recorrente, a impossibilidade de determinar a velocidade concreta a que circulava o veículo conduzido pela arguida, nunca podia ter levado o tribunal a concluir nos termos em que o fez, sendo absolutamente notório, em face das regras da experiência comum, que o despiste ocorrido quando a arguida descrevia uma curva para a sua direita ficou a dever-se a um comportamento negligente da mesma que demonstradamente não adequou, como podia e devia, a velocidade a que circulava àquelas concretas circunstâncias (chuva e piso escorregadio).

Consequentemente, pugna no sentido da matéria de facto considerada não provada nas alíneas A) a H) seja dada como provada, sendo que no que em especial se refere à matéria atinente à velocidade deverá considerar-se que circulava a uma velocidade não concretamente apurada, mas excessiva para as concretas condições de tempo e piso referidas em 11.

Vejamos então se a sentença recorrida padece, de facto, do mencionado erro notório na apreciação da prova.
Este existe quando do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resulte que se deu como provado algo que não podia ter acontecido ou que se deu como não provado algo que não podia deixar de ter acontecido ou, ainda, quando se retira de um facto uma conclusão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.
Existe este vício quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341).

Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74).

Como se salienta no Ac.do STJ de 9/4/2008, no processo nº1188/06 e constitui jurisprudência pacífica no mais alto tribunal “ o erro notório na apreciação da prova, como os demais vícios elencados no nº2, do art.410º do C.P.P., deve resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência, e tem de ser de tal modo evidente que uma pessoa de mediana compreensão o possa descortinar. E existe quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica corrente, não se teriam podido verificar ou são contraditados por documentos que fazem prova plena e que não tenham sido arguidos de falsos. Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.

Os vícios previstos no art.410º,nº2 do C.P.P., nomeadamente o erro notório na apreciação da prova, não podem, por outro lado, ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova inscrito no art.127º do C.P.P. Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do art. 410º,nº2, do C.P.P., a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.” (sublinhado nosso).
Compulsada a sentença recorrida, cremos que a mesma padece do vício em apreço.

Na verdade, o tribunal a quo, perante os meios probatórios elencados e a factualidade dada como provada, não podia à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida ter concluído nos termos em que concluiu, mas antes no sentido de que a perda de controlo do veículo por banda da arguida ao descrever a curva para a sua direita se deveu à velocidade que imprimiu ao veículo, porquanto desadequada às características da via e às condições climatéricas que se faziam sentir.

Vejamos porquê.

No que tange à dinâmica do embate, resulta da factualidade provada que cerca das 20h10 do dia 18.10.2016 a arguida conduzia o veículo JE pela metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Joane – Vizela, a velocidade não concretamente apurada e ao descrever uma curva para a sua direita, perdeu o controlo do veículo que conduzia, permitindo que o mesmo se despistasse para a sua esquerda, com o que transpôs a linha longitudinal contínua dupla existente no eixo da via, invadindo a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido Joane – Vizela e assim despistada atravessou toda a VIM da direita para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, rodopiando no sentido dos ponteiros do relógio.

Mais se apurou que na sequência deste despiste acabou por colidir com a parte lateral direita do veículo JE no talude ali existente desse seu lado esquerdo, após o que regressou à pista direita da metade direita da faixa de rodagem da VIM, atento o sentido Vizela – Joane, onde acabou por embater com a parte lateral direita, sensivelmente junto à porta da frente, do veículo JE no canto da frente do lado esquerdo do veículo QP, que circulava pela pista de rodagem direita da metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Vizela – Joane, não obstante o condutor deste ter travado e encostado o mais possível à sua direita, após o que foi projectado para trás, ficando na berma do seu lado direito, com a frente voltada para os lados de Joane, enquanto que o veículo JE ficou atravessado na pista direita da metade direita da faixa de rodagem, considerando o sentido Vizela – Joane, com a frente voltada para a berma do lado esquerdo, atento o referido sentido.

Já a respeito das características da via por onde circulava a arguida e das condições climatéricas que se faziam sentir aquando do embate, provou-se que a mencionada curva tinha uma inclinação descendente de 8%, que o piso era em betuminoso e estava em mau estado de conservação, molhado e escorregadio por força dos chuviscos que se faziam sentir no momento da colisão.

Provou-se também que antes do local do acidente, e considerando o sentido de marcha da arguida, existia a seguinte sinalização vertical:

a) Sinal de pré-sinalização I8 – com indicação de “ATENÇÃO”, “Velocidade Moderada”, com os sinais de perigo A5 – pavimento escorregadio e A13 – visibilidade insuficiente;
b) Sinal de perigo A1a – curva à direita;
c) Sinal de perigo C13 – proibição de exceder a velocidade máxima de 70 Kms por hora.

Ora, de acordo com o artigo 24º, nº1 do Código da Estrada, com as alterações introduzidas pela Lei 72/2013, de 3/9 “O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os vulneráveis, às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente”.

Como refere Jerónimo Freitas, in anotação ao Código da Estrada, aprovado pelo D.L.114/94, de 3/5 e Legislação Complementar, Anotado, 3ª Edição, págs.59/60 que “A condução com excesso de velocidade existe não só quando o condutor ultrapassa os limites legais, mas também quando perante um determinado evento, características da via ou do veículo, ou outra circunstância relevante para a circulação em segurança, que seja previsível para um condutor com a capacidade de diligência de um cidadão médio, devido à velocidade que anima o veículo, este não logra concretizar determinada manobra que pretendia realizar ou deter a marcha do mesmo no espaço livre e visível à sua frente”.

Acrescenta o mesmo autor que “O excesso de velocidade relativo, ou seja, aquele que se verifica quando o condutor não consegue efectuar a manobra necessária ou imobilizar o veículo, sem que tal se deva a uma circunstância imprevisível ou à ocorrência fortuita de determinado evento, independentemente do valor absoluto da velocidade, resultará, por consequência, de uma condução imprudente, descuidada ou temerária.

A sua verificação está, em regra, correlacionada com acidentes de viação que têm subjacente, como causa directa e determinante da sua ocorrência o facto de o condutor circular a uma velocidade para além daquela que seria adequada naquele conjunto de circunstâncias, factor que determinou a perda de controlo do veículo ou a impossibilidade de deter a sua marcha no espaço livre e visível à sua frente, apesar de lhe ser exigível que tivesse previsto a possibilidade de verificação daquele resultado e, por isso mesmo, que tivesse um comportamento mais diligente”.

A respeito ainda da velocidade, resulta do art.25º,nº1, do mesmo diploma, que “Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade:

(…)
h) “ Nas curvas (…)”.
(…)
j) Nos troços de via em mau estado de conservação, molhados, enlameados ou que ofereçam precárias condições de aderência.
(…)”.
E isto porque, neste circunstancialismo, o risco inerente à circulação de veículos potencia-se.
Perante o que vimos expondo e tendo em conta a matéria de facto dada como provada, não podia o tribunal a quo ter ficado num estado de dúvida a respeito do que originou a perda do controlo do veículo conduzido pela arguida e consequentemente, à luz do princípio processual “In dubio pro reo”, ter dado como não provado que a arguida circulasse com velocidade excessiva em face das condições climatéricas e das condições da via e que por tal motivo perdeu o controlo do veículo que conduzia ao descrever uma curva para a direita.
O raciocínio do tribunal roça as mais elementares regras da experiência comum e da lógica.
Nem este tribunal, nem o recorrente, nem certamente o cidadão comum poderá compreender o raciocínio seguido pelo tribunal a quo.
Desde logo, a perda do controlo do veículo ao descrever uma curva, o atravessamento deste, desgovernado, em rodopio, da faixa de rodagem (10,70 m), a inversão do posicionamento em relação à trajectória inicial, o embate no talude da parte esquerda da estrada e o regresso à faixa de rodagem contrária onde ainda veio a embater no veículo automóvel que circulava em sentido contrário, fazendo-o recuar, são elementos objectivos atinentes à dinâmica do embate que à luz das regras da experiência comum não podem deixar de indiciar uma velocidade excessiva.
De igual modo, o estado de destruição em que ficaram os veículos envolvidos, espelhado no Relatório fotográfico junto aos autos e sopesado na convicção do tribunal a quo, não pode deixar de apontar nesse mesmo sentido.
Atente-se ainda que, como referiu o Mmo Juiz na fundamentação da sua convicção, a arguida declarou que accionou os travões e perdeu o controlo.
Tal perda de controlo, como resulta da factualidade provada, ocorreu ao descrever a curva
Ora, a admitir-se a mencionada travagem, tal não significa mais do que o reconhecimento da inadequação da velocidade que imprima ao veículo ao descrever tal curva, pois só isso poderá tê-la levado a procurar reduzir a velocidade.
Só por erro se concebe que o tribunal a quo não tenha conseguido concluir a que se deveu o despiste do veículo conduzido pela arguida, ainda que a prova produzida não lhe tenha permitido determinar a que velocidade circulava, mais concretamente se tal velocidade excedia a permitida para o local (70Km/hora).
Tal impossibilidade não era, de modo algum, impeditiva para se concluir pelo mencionado excesso de velocidade relativo e dai que não se vislumbre a necessidade de proceder a qualquer diligência probatória com vista a tal apuramento.
Não é necessário, de facto, determinar a velocidade concreta a que circulava o veículo automóvel conduzido pela arguida para se determinar o que na realidade determinou a perda do controlo do mesmo e consequente despiste.
Na verdade, tais elementos objectivos atinentes à dinâmica do embate conjugados com as características da via e as condições climatéricas que se faziam sentir – tudo descrito na factualidade provada – inculcam, sem margem para dúvida, que a arguida violou o especial dever de cuidado que sobre si recaía de adequar a velocidade ao estado do tempo (chovia) e condições particulares da estrada: tratava-se de uma curva, com uma inclinação descendente de 8%, o piso estava molhado, escorregadio e em mau estado – tudo devidamente informado no local - pelo que a não adequação dessa velocidade a tais condições, levou a que ao descrever a curva perdesse o controlo do veículo, o qual apenas se veio a imobilizar após o embate no veículo que circulava em sentido contrário.
A conclusão que se impõe – e não se admite qualquer outra à luz das regras da normalidade da vida e da lógica - é que a velocidade a que circulava o veículo da arguida era inadequada ou excessiva face às mencionadas características da via em que circulava e ao estado do tempo que se fazia sentir, tanto mais que não se apurou qualquer outra causa, designadamente relacionada com alguma avaria mecânica do veículo ou algum facto extraordinário estranho à vontade da conduta, que possa ter contribuído para a mencionada perda do controlo.

Por tudo o exposto, sem necessidade de quaisquer outras considerações, conclui-se pois que a sentença recorrida padece de erro notório na apreciação da prova.

Verificado tal vício e contendo os autos todos os elementos necessários para o efeito, impõe-se nos termos das disposições conjugadas dos artigos 426,nº1, “à contrário”, 428º e 431º,al.a), todos do Código de Processo Penal, proceder à alteração da matéria de facto e determinação das consequências jurídico-penais dessa alteração.

Como se escreveu no Acórdão do STJ de 17/1/2008, proferido no âmbito do processo 2696/07, “A Relação, concluindo que a decisão da 1ª instância padece do vício de “erro notório na apreciação da prova” e verificando que os autos possibilitam a modificação da matéria de facto e a determinação das consequências jurídico-penais dessa alteração, pode modificar a matéria de facto constante da decisão da 1ª instância, ainda que não tenha sido impugnada a matéria de facto nos termos do art.412º,nº3, do C.P.P., nem se tenha procedido à renovação da prova”.

Procedendo-se à modificação da matéria de facto em conformidade com a verificação do aludido vício, o ponto 12 da factualidade provada passará a ter a seguinte redacção:

“Em virtude do referido no ponto anterior e da velocidade que imprimia ao veículo que conduzia, a arguida, ao descrever uma curva para a sua direita, perdeu o controlo do veículo que conduzia”.

Em conformidade, será eliminada a alínea C) do elenco dos factos não provados, passando a constar apenas da alínea A) que “a arguida imprimia ao veículo que conduzia uma velocidade superior a 70Kms por hora.

Para o elenco dos factos provados passará o vertido nas alíneas B) G) e H), dos factos não provados, sendo o teor das duas primeiras alíneas alterado, respectivamente, nos seguintes termos:

“A arguida conduzia o veículo de forma desatenta, descuidada e sem atenção à sinalização vertical existente antes do local do acidente e às características da via e do piso”.
“Ao agir conforme o descrito quis a arguida de forma voluntária, livre e consciente, imprimir ao veículo que conduzia a velocidade a que seguia, sendo capaz de prever que a mesma não lhe permitiria, em face das características da via – traçado curvo com inclinação descendente, piso em mau estado de conservação, molhado, escorregadio – e condições climatéricas (chovia), descrever a curva que se desenhava à sua direita, sem perda do controlo e consequente embate.”

No que tange à factualidade não provada descrita nas alíneas D), E) e F), contendo a mesma matéria conclusiva e de direito, a ser apreciada em sede de enquadramento jurídico-penal, considera-se a mesma não escrita.

Passando agora ao enquadramento jurídico-penal, vejamos então se a arguida pode ser responsabilizada pelo crime de homicídio por negligência que lhe vinha imputado na pronúncia.
Comete este crime "Quem matar outra pessoa por negligência...".

São elementos constitutivos deste tipo legal, ora em análise:

- a morte;
- uma acção ou omissão adequada a produzir o resultado;
- a imputação deste ultimo ao agente a título de negligência.

O crime de homicídio negligente ou culposo verifica-se assim quando o agente causa a morte de alguém, por ter omitido a cautela, a atenção ou a diligência a que estava obrigado, em face das circunstâncias, sendo-lhe exigível na situação concreta em que se encontrava um comportamento atento e culposo

Discutida a causa, provou-se a morte e a acção adequada a produzi-la.
Na verdade, provou-se que o veículo JE, conduzido pela arguida, na sequência do despiste ao descrever uma curva à sua direita, veio a embater com a parte lateral direita, sensivelmente junto à porta da frente do veículo, no canto da frente do lado esquerdo do veículo QP, e que, em consequência de tal embate, a vítima C. V. que seguia como passageiro no banco da frente do lado direito veio a sofrer lesões que foram causa directa e necessária da sua morte.

Surpreendemos, pois, nestes factos, uma acção, um resultado (morte) e um nexo de causalidade entre aquela e este.

Mas, será este resultado letal imputável ao arguido a título de negligência?

Por outras palavras: Será que a arguida deixou de cumprir os deveres de cuidado a que se encontrava adstrita no caso concreto, considerados os seus conhecimentos e aptidões nos termos do art. 15º do C.Penal, norma a que haverá sempre que fazer apelo para complementar ou concretizar os tipos negligentes, consabidamente considerados tipos “abertos” (cfr. Hans Welser, Derecho Penal Alemán, 11ªEd., tradução espanhola, Santiago do Chile, 1970, 187), a fim de determinar se tal resultado mortal é imputado ao arguido a título de negligência?

A noção de negligência consta do artigo 15º do C.Penal.

Age com negligência quem por não proceder com o cuidado a que segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz:

- Representa como possível a realização de um facto correspondente a um tipo de crime, mas actua sem se conformar com essa realização;
- Não chega, sequer, a representar a possibilidade de realização do facto.

A negligência revela-se na omissão de um dever de cuidado, adequado a evitar a realização de um tipo legal de crime, que se traduz num dever de previsão ou de justa previsão daquela realização e que o agente, segundo as circunstâncias concretas do caso e as suas capacidade pessoais, podia ter cumprido.

Porém, o que se censura não é uma vontade do resultado, que obviamente falta na negligência, nem uma vontade de violação do dever de cuidado. O fundamento da punição por actos negligentes radica, sim, no facto de o agente não ter querido, em face do conhecimento de que certos resultados são puníveis, preparar-se para - sempre que uma conduta que projecta seja adequada para os produzir - representar esses resultados ou para os representar justamente.

Assim, é à concreta violação dos deveres que resultam da proibição de certos eventos que se refere a censura que fundamenta a punição da negligência.

Com efeito, nas sociedades modernas são múltiplas as actividades perigosas susceptíveis de produzir eventos típicos. Não obstante, tais actividades são permitidas porque sem elas a vida social seria condenada à inacção. Todavia, a sua realização fica sujeita à observância de certas regras ou preceitos de cautela de modo a evitar a produção de factos ilícitos. Porém, quando se omitem esses cuidados e, por via disso, o efeito proibido pela lei vem a ter lugar, este efeito pode ser imputado ao agente porque este omitiu aquele dever de diligência ligado à conduta perigosa, bem como, o dever de representação ou justa representação daquele efeito.

A condução é inequivocamente uma dessas actividades.

A negligência desdobra-se nos seguintes elementos estruturantes, claramente apontados pela doutrina:

- a omissão de um dever objectivo de cuidado adequado a evitar o resultado típico;
- a previsibilidade da produção do evento;
- a possibilidade do agente, segundo as circunstâncias do caso e as suas capacidades pessoais, prever ou prever correctamente a realização do tipo legal de crime;
- a verificação do resultado típico e o nexo de causalidade entre este e a omissão do dever de cuidado.

Volvendo-nos, agora, no caso concreto, perguntar-se-à:

Será que a arguida não agiu com o cuidado devido?

Ora, no que concerne à infracção do dever de cuidado ou atenção, também designado norma de cuidado, consubstancia-se a mesma na criação de um risco tipicamente relevante, isto é, na criação de um risco de lesão, o qual, encontrando-se para lá daquele ponto que resulta juridicamente permitido, atenta a utilidade social do comportamento do agente, coloca em perigo o bem jurídico-penalmente considerado. Um tal dever tem em vista, sobretudo, a prática de um comportamento externo adequado a evitar a produção do resultado típico (aquilo que a doutrina designa por cuidado externo – cfr. Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, PG,4ª Ed.,526), sendo que atendendo à multiplicidade de factores causais intercorrentes num dado evento concreto, somente uma análise casuística, que tome em linha de conta as especiais circunstâncias concorrentes, poderá levar à conclusão de que era, para o caso em apreço, o comportamento jurídico-socialmente adequado. Sendo certo, ademais, que tal comportamento não pode buscar-se somente em disposições de carácter legal ou regulamentar, pois, atenta a riqueza das situações concretas, bem pode suceder que o conteúdo do dever de cuidado, objectivamente devido, se concretize por referência a princípios de experiência comum ou relativos a determinadas áreas científicas ou laborais (as chamadas “legis artis”) – quanto a esta duplicidade de fontes da norma de cuidado ( Acórdão da R.E. de 4/2/92, in CJ, I, 291 e Jeschek, obra cit.,528).

Em regra, os acidentes estradais comportam um descuido, uma falta, uma negligência.

O descuido no caso presente teve um efeito trágico: matou.

Mas onde está a falta de cuidado ou a negligência?

Tendo em conta as considerações já atrás tecidas a respeito da apreciação do vício da sentença recorrida, dúvidas inexistem de que causal do embate foi a condução deficiente da arguida, traduzida no facto de ter violado o especial dever de cuidado que sobre si recaía de adequar a velocidade ao estado do tempo (chovia) e condições particulares da estrada: tratava-se de uma curva com uma inclinação descendente, o piso encontrava-se molhado e escorregadio e em mau estado de conservação, pelo que a não adequação dessa velocidade a tais condições, levou a que ao descrever uma curva à sua direita perdesse o controlo do veículo, permitindo que o mesmo se despistasse para a sua esquerda, com o que transpôs a linha longitudinal contínua dupla existente no eixo da via, invadindo a metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido Joane – Vizela e assim despistada atravessou toda a VIM da direita para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, rodopiando no sentido dos ponteiros do relógio, acabando por vir a colidir com a parte lateral direita do veículo JE no talude ali existente desse seu lado esquerdo, após o que regressou à pista direita da metade direita da faixa de rodagem da VIM, atento o sentido Vizela – Joane, onde acabou por embater com a parte lateral direita, sensivelmente junto à porta da frente, do veículo JE no canto da frente do lado esquerdo do veículo QP, que circulava pela pista de rodagem direita da metade direita da faixa de rodagem, atento o sentido Vizela – Joane.
A perda de controlo do veículo e com o consequente embate, resultou pois da omissão desse dever de cuidado.
A velocidade trazida pela arguida era inadequada/excessiva face às características da via em que circulava e ao estado do tempo que se fazia sentir.
Tais condições impunham-lhe que circulasse mais devagar. Por não o ter feito não conseguiu dominar o veículo e orientá-lo de forma a descrever a curva e continuar a sua trajectória sem perder o seu controlo.
O perigo que representa uma condução de noite e nessas condições foi negligenciado pela arguida.
Facto esse que não previu, mas podia e devia ter previsto, já que, como condutora normalmente prudente podia e devia ter calculado esse perigo e agir em conformidade.
Efectivamente, uma pessoa com as capacidades e faculdades da arguida, atentas as circunstâncias por ela conhecidas era capaz de prever que do facto de não circular devagar poderia ocorrer um embate e dele as lesões aos restantes utentes da via, neste caso, o falecido C. V. que circulava no lugar ao lado do condutor do veículo conduzido pela arguida.
Na verdade, é do conhecimento geral que a condução constitui uma actividade perigosa pelos riscos que comporta. Um desses riscos é precisamente o acidente.
A não observância das regras estradais aumenta esse risco e, no caso concreto, a arguida descuidou as regras estradais constantes dos artigos 24,nº1 e 25º,nº1, als. h) e j) do Código da Estrada, as quais lhe impunham circular a uma velocidade que lhe permitisse descrever a curva e prosseguir na sua trajectória, sem perigo de despiste e embate, violação que foi a directamente causal do embate.
Agiu pois com negligência inconsciente (artigo 15, alínea b) do C.Penal).
Incorreu assim a arguida na prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137º,nº1, do C.Penal.

Estatui o artigo 69.º, n.º 1, do Código Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, que “É condenado na pena de proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º;”
(…)”
Ora, tendo-se concluído, pelas razões supra expostas, que a arguida incorreu na prática de um crime de homicídio por negligência no exercício da condução de um veículo automóvel, com violação das regras gerais de trânsito rodoviário, previstas nos artigos 24,nº1 e 25º,nº1, als. h) e j), do Código da Estrada, impõe-se condenar a arguida na mencionada pena acessória de proibição de condução de veículos com motor.

Passemos agora à determinação da medida das penas (principal e acessória), de acordo com o Acórdão do STJ de fixação de jurisprudência nº4/2016, publicado no DR nº36/2016, Série I, de 22/2/2016, sendo certo que os autos contêm todos os elementos para tal.

Começando pela pena principal.

O crime de homicídio por negligência é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa - art.137,nº1.
A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, nº 1 do C. Penal) mas, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2 do mesmo artigo).
Na determinação da medida concreta da pena há que atender ao critério previsto no art.70º do C.Penal.

Dispõe este preceito legal que "Se ao crime forem aplicáveis em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição".

Determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime não é uma operação abstracta ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta - Robalo Cordeiro, Escolha e Medida da Pena, in Jornadas de Direito Criminal, publicação do C.E.J., pág 239).

No caso vertente, afigura-se-nos que a pena de multa não realiza de forma adequada e suficiente as exigências de prevenção geral.

É do conhecimento geral que o exercício da condução automóvel é uma actividade perigosa, designadamente, pelos riscos que comporta

Ora, face à natureza desta actividade, ao elevado número de acidentes de viação e seu sucessivo aumento, nas estradas portuguesas, com resultados trágicos e ao alarme e consternação social a que está ligada a criminalidade estradal, fácil é concluir que as exigências de prevenção geral, em casos como o dos autos e atendendo ao factor causal que esteve na lesão do bem jurídico vida (imprudência no exercício da condução automóvel) são demasiado fortes, não se coadunando com uma mera pena de multa.

A conduta da arguida deve pois ser punida com pena de prisão.

Só esta, atendendo às razões já expostas, é capaz de repor a confiança e validade da norma violada aos olhos da comunidade.

Optando-se pela pena de prisão, há que proceder agora à determinação da medida concreta da pena, tendo em conta os seus limites mínimo (1 mês) e máximo (3 anos).

Estabelece o art. 71º, nº 1 do C. Penal que, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Prevenção (geral e especial) e culpa são assim os factores a ter em conta na aplicação da pena e determinação da sua medida, reflectindo a primeira a necessidade comunitária da punição do caso concreto e constituindo a segunda, dirigida ao agente do crime, o limite inultrapassável da pena (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 214 e ss.).
Assim, a determinação da medida da pena há-de efectuar-se segundo os mencionados critérios orientadores gerais contidos no número 1 do citado artigo 71.º – culpa e prevenção – a que acrescem, por força do número do mesmo preceito legal, todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele.

A arguida é merecedora de um juízo de censura dado que agiu com negligência, tendo esta revestido a forma menos grave, dado que nem sequer chegou a representar as consequências da sua conduta.

O grau de ilicitude foi bastante elevado tenho em conta o modo de execução.

Elevadíssimas são as exigências de prevenção geral.
Como é do conhecimento público, amplamente divulgado pelos meios da comunicação social, Portugal regista uma alta taxa de sinistralidade rodoviária com resultados trágicos.
Depõe a favor da arguida a circunstância de ser delinquente primária e de já terem decorrido mais de três anos sobre a data do acidente, vindo a mesma a manter um comportamento conforme ao direito.
Milita ainda a seu favor o facto de se encontrar familiar, profissional e socialmente integrada.

Porém, importa trazer à liça que a arguida não interiorizou a gravidade e desconformidade da sua conduta à lei.
Na verdade, pese embora tenha admitido ter perdido o controlo do veículo, não reconheceu ter-se o mesmo devido à inadequação da velocidade que imprimiu ao veículo.

Assim, ainda que ténues, as exigências de prevenção especial fazem-se sentir.
Por tudo o exposto, afigura-se-nos adequada e equitativa a pena de 1 (um) ano de prisão.
Em nosso entender, esta pena não deverá ser efectiva.

Como já referimos, a arguida está familiar, profissional e socialmente integrada.

A sua conduta anterior e posterior ao facto garantem que a ameaça duma pena já constituirá uma forte reprovação do seu acto negligente.

Dissemos supra que as exigências de prevenção geral são intensas em casos como os dos autos.
Afigura-se-nos, no entanto, que elas não impõem a prisão efectiva da arguida.
O acidente dos autos constitui um facto isolado, acidental, na sua vida, pois tem mantido um comportamento de acordo com as exigências de ordem jurídico-criminal.
É de crer que a censura do facto e a ameaça da pena serão suficientes para reparar o mal praticado e para fazer com que a mesma, no futuro, conduza com mais cuidado, prudência e atenção.
Será ainda de realçar que a reprovação pública inerente à pena suspensa e o castigo que ela envolve, satisfazem o sentimento jurídico da comunidade e, consequentemente, as exigências de prevenção geral de defesa da ordem jurídica.
Pelos fundamentos expostos, ao abrigo do disposto no artigo 50,nºs1 e 5, do Código Penal, na redacção anterior à introduzida pela Lei 94/2017, de 23/8, decide-se suspender na sua execução a pena de um ano de prisão por igual período.
No que tange agora à determinação da medida da pena acessória, importa ter presente que o nosso Código Penal não estabelece um regime específico para a sua determinação.
Mas, pressupondo as penas acessórias a condenação do arguido numa pena principal (prisão ou multa), tratam-se, claro está, de verdadeiras penas criminais e, por isso, estão também ligadas à culpa do agente e são justificadas pelas exigências de prevenção (cfr. Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, 1ª Edição, 2013, Coimbra Editora, pág. 34).
São assim aplicáveis às penas acessórias os critérios legais de determinação das penas principais, ainda que a medida concreta da pena acessória não tenha que ser fixada na exacta proporção, por cálculo aritmético, da medida concreta da pena principal, sendo que aquela visa, essencialmente, prevenir a perigosidade do agente.
Com efeito, no que em especial se refere à pena acessória, importa não esquecer que está em causa o combate ao elevado índice de sinistralidade rodoviária ocorrido em Portugal, criando-se um efeito dissuasor com vista a fazer sentir aos condutores que sendo a condução de veículos motorizados uma actividade perigosa devem conduzir de forma atenta, cuidada e com observância das regras estradais.
Dai que as exigências de prevenção especial mereçam aqui uma especial importância, na medida em que visam a consciencialização e a socialização da arguida, de molde a que futuramente paute as condutas de acordo com o prescrito pela lei.
Tendo em conta a moldura abstracta (3 meses a 3 anos) e as circunstâncias ponderadas na determinação da pena principal, fixa-se a pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 6 (seis) meses.
Ainda que a proibição de conduzir veículos motorizados cause transtornos e não deixe de traduzir-se num sacrifício real para o agente, tal mostra-se necessário para prevenir a sua perigosidade ao desconsiderar os perigos resultantes de uma condução de veículos motorizados desatenta e violadora das regras estradais.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente o invocado vício - erro notório na apreciação da prova - com a consequente alteração da matéria de facto nos termos supra expostos, condenando-se a arguida T. M., como autora material de um crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos dos artigos 137º,nº1 e 69º,nº1,al.a), ambos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e ainda na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 6 (seis) meses.

Sem tributação.

- Após trânsito deverá ser remetido boletim ao registo.
- Nos termos do disposto no art. 69.º, n.º 3 do Código Penal e 500,nº2, do Código de Processo Penal, deverá a arguida ser notificada de que dispõe do prazo de 10 dias, após trânsito em julgado do acórdão, para proceder à entrega da carta de condução na secretaria do tribunal ou em qualquer posto policial, com a advertência de que a falta de entrega da carta de condução a fará incorrer na prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art.348º,nº1,al. a) do Código Penal.
Mais deverá ser expressamente advertida de que a condução de veículo a motor durante o período de proibição a fará incorrer na prática de um crime de violação de imposições, proibições e interdições, p. e p. pelo art.353º, do C.Penal.

(Texto elaborado pela relatora e revisto por ambos os signatários – art.94º,nº2, do C.P.P.)
Guimarães, 9 de março de 2020