Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1679/19.5T8BRG.G1
Relator: PEDRO MAURÍCIO
Descritores: REJEIÇÃO DA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
VÍCIO DA VONTADE
COMPRA E VENDA DE VEÍCULO
SIMULAÇÃO
USUCAPIÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Quanto ao ónus impugnatório previsto no art. 640º do C.P.Civil de 2013, têm vindo a constituir entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça que: 1) o Recorrente tem sempre que indicar os «concretos prontos de facto» que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; 2) o Recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos, mas não sendo necessário que tal especificação também conste das conclusões; 3) relativamente aos «pontos de facto» cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em «prova gravada», para além da supra referida especificação dos meios de prova, o Recorrente está obrigado a indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos, mas não sendo necessário que tal indicação conste das conclusões; e 4) na motivação, o Recorrente tem expressar a decisão, no seu entendimento, que deve ser proferida sobre os «concretos prontos de facto» que impugnou, tendo em atenção a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que se compreende em razão do reforço do ónus de alegação, com vista a evitar a interposição de recursos com conteúdo genérico ou inconsequente.
II - O incumprimento de qualquer dos ónus supra indicados conduz à imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto (rejeição que será total ou parcial, consoante o incumprimento seja relativo a todo o âmbito da impugnação ou seja relativo apenas a uma parte da impugnação), não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões.
III - O vício na formulação da vontade consistente na simulação (art. 240º do C.Civil) ocorre quando o declarante emite uma declaração não coincidente com a sua vontade real, por força de um conluio com o declaratário, com a intenção de enganar terceiros.
IV - A verificação da simulação depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: 1) o pacto (acordo) simulatório entre o declarante e o declaratário; 2) a divergência intencional entre o sentido da declaração e os efeitos do negócio jurídico simuladamente celebrado; e 3) o intuito de enganar terceiros.
V - Estes requisitos devem ser alegados e provados por quem pretenda prevalecer-se da simulação ou de aspectos do seu regime, o que está em total conformidade com as regras de repartição quer do ónus de alegação (cfr. art. 5º/1 do C.P.Civil de 2013), quer do ónus da prova (art. 342º/1 e 2 do C.Civil).
VI - A aquisição do direito de propriedade pode advir da usucapião, que constitui um modo de aquisição originária deste direito, que se funda na posse reiterada e exercida durante certo lapso de tempo do direito real correspondente (cfr. art. 1287º do C.Civil).
VII - A noção de posse está legalmente consagrada no art. 1251º do C.Civil: “é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”. Este poder traduz-se na prática de actos que o exteriorizam, no exercício de poderes de facto (corpus) reveladores da aparência do direito e que exprimem ou fazem presumir a vontade de quem os pratica, na relação material que mantém com coisa, de agir como titular do direito real correspondente (animus possidendi).
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES,
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1. RELATÓRIO

1.1. Da Decisão Impugnada
           
A Autora AA (menor de idade, sendo na ação representada pela sua mãe BB) interpôs acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra a Ré D... - COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, UNIPESSOAL LDA, contra o Réu CC, contra a Ré C... - CLIMATIZAÇÕES, SA, contra o Réu DD, contra o Réu EE, e contra o Réu FF, pedindo: «a) que fosse declarada nula, por vício de simulação, a transmissão de propriedade do veículo da marca ..., com a matrícula ..-HH-.., declarada entre a ré “D...” e o réu CC; b) que fosse declarada nula, por vício de simulação, a transmissão de propriedade do veículo da marca ..., com a matrícula ..-HH-.., declarada entre os réus CC e “C...”; c) que fosse declarada nula, por vício de simulação, a transmissão de propriedade do veículo da marca ..., com a matrícula ..-HH-.., declarada entre os réus “C...” e DD; e, Subsidiariamente, d) que fosse reconhecida a aquisição originária, por usucapião, do direito de propriedade sobre o veículo da marca ..., com a matrícula ..-HH-.., a favor de ...; e, Cumulativamente, e) que fosse determinado o cancelamento dos registos de propriedade nºs. ...68, de 22.04.2009, n.º ...69, de 22.04.2009 e n.º ...83, de 21.06.2013, incidentes sobre a referida viatura automóvel; e f) que o réu DD fosse condenado ao pagamento de uma indemnização correspondente ao valor de mercado do veículo automóvel, no montante de € 20 000,00, valor este por ele recebido do réu EE, acrescido de juros a contar do dia 14.01.2017 até ao seu efetivo e integral pagamento, que computou, até à data da interposição da ação, em 1.729,32€».

Fundamentou a sua pretensão, essencialmente, no seguinte: «é a herdeira única do falecido ..., seu pai; em .../.../2009, o seu falecido pai veio a adquirir à Ré D... a viatura com a matrícula ..-HH-.., em estado de semi-novo, pelo preço de 38.000,00€, que pagou na íntegra; na altura, o falecido encontrava-se em situação financeira precária e receava que os seus credores viessem a penhorar aquele veículo; o falecido pediu ao Réu CC para figurar como comprador fictício da viatura, informando-o de que o contrato seria verbal e que apenas teria que declarar que aceitava a compra do veículo, ainda que, de verdade, não o quisesse comprar, sendo o falecido a suportar todos os custos com o registo da propriedade do automóvel e a pagar o respetivo preço; a Ré D... não quis vender o veículo ao Réu CC, nem este o quis comprar; foi ao falecido que foi entregue a chave do automóvel e que usou e circulou durante anos nesse automóvel; nesse mesmo dia, e após já se encontrar registada a propriedade do veículo em nome do Réu CC, o falecido solicitou que este declarasse transmitir a mesma a favor da Ré C..., o que aquele Réu aceitou; também esta venda foi fictícia; foi o falecido que suportou os custos com os emolumentos na conservatória do registo automóvel, que sempre circulou nessa viatura automóvel, que assegurou o pagamento do imposto de circulação e do seguro relativamente à mesma, e que levou o carro às inspeções periódicas, abasteceu combustível, ordenou a realização dos consertos que tinha por necessários e/ou convenientes, pediu orçamentos e pagou os respetivos preços, tudo isto à vista de toda a gente, inclusivamente dos Réus CC e C...; estes negócios declarados e registados são simulados; perante o estado financeiro cada vez mais deficitário da Ré C..., o falecido pediu ao Réu DD o favor de, ficticiamente, declarar a compra daquela viatura, com o objetivo de evitar que a mesma fosse penhorada, o que este aceitou, embora não quisesse comprar nem a Ré C... o quisesse vender; o Réu DD não pagou qualquer importância a título de preço, as chaves não foram entregues, tendo o falecido suportado todos os custos com registos de transmissão de propriedade, sendo ele quem circulava no veículo, o abastecia, o sujeitava a reparações e suportava as mesmas, e pagava o imposto de circulação e seguro; este negócio foi simulado; a 12/01/2017, o pai da Autora foi assassinado e, em 14/01/2017, o Réu DD resolveu, por si, vender ao Réu EE o veículo, pelo preço de € 20 000,00, que aquele Réu embolsou; em 13/11/ 2018, o Réu EE vendeu, pelo mesmo preço, o automóvel ao Réu FF, a favor de quem se encontrava a respectiva propriedade registada; estes dois últimos Réus são terceiros de boa fé, perante os quais não pode ser invocada a simulação dos negócios anteriormente celebrados; ainda que não se considere a nulidade, por simulação, dos três negócios anteriores, deve ser reconhecida a aquisição originária do automóvel, por usucapião; a venda realizada pelo Réu DD é uma venda de coisa alheia, bem sabendo que a propriedade sempre pertenceu ao falecido, sendo um ato ilegítimo e ilícito, que ofende o direito da Autora, enquanto universal herdeira, sofrendo um prejuízo patrimonial correspondente ao valor de mercado do mesmo».

O Réu FF contestou e reconveio, pugnando pela «improcedência da acção, por não provada, procedência de todas as exceções alegadas, e em consequência, ser o réu absolvido da instância e/ou pedidos formulados pela Autora», e pugnando pela «procedência da reconvenção, por provada, e em consequência, ser declarado e reconhecido o direito de propriedade do réu/reconvinte sobre o veículo automóvel melhor identificado nos autos, e a autora /reconvinda condenada a reconhecer esse direito».

Fundamentou a sua defesa, essencialmente, no seguinte: «a petição inicial é inepta por falta de pedido e causa de pedir quanto ao Réu FF; a petição inicial é inepta por contradição do pedido e causa de pedir; a Autora é parte ilegítima; há falta de interesse em agir da autora contra o Réu FF; a petição inicial é inepta por incompatibilidade substancial dos pedidos; o Réu DD não adquiriu a viatura à Ré C..., mas à Massa Insolvente da sociedade C...; o falecido teve conhecimento da apreensão desse bem a favor da Massa, e não deduziu qualquer ação de restituição e separação de bens; o Réu FF adquiriu ao Réu EE o direito de propriedade sobre o veículo, no dia 10/11/2018, mediante contrato de compra e venda, pelo preço de 13.000,00€, data em que procedeu ao seu registo de aquisição, registo este constitui uma presunção de propriedade a seu favor; se de outro título não dispusesse, sempre e até por usucapião há muito teria adquirido o respetivo direito de propriedade sobre o carro».
O Réu EE contestou, pugnando pela «improcedência da acção, por não provada, procedência de todas as exceções alegadas, e em consequência, ser o réu absolvido da instância e/ou pedidos formulados pela Autora».

Fundamentou a sua defesa, essencialmente, no seguinte: «a petição inicial é inepta por falta de pedido e causa de pedir quanto ao Réu EE; a petição inicial é inepta por contradição do pedido e causa de pedir; a Autora é parte ilegítima; há falta de interesse em agir da autora contra o Réu EE; a petição inicial é inepta por incompatibilidade substancial dos pedidos; o Réu DD não adquiriu a viatura à Ré C..., mas à Massa Insolvente da sociedade C...; o falecido teve conhecimento da apreensão desse bem a favor da Massa, e não pediu a sua separação ou restituição;  e separação de bens; o Réu DD vendeu o mesmo à Ré D..., e esta empresa, no dia 11/01/2017, vendeu o carro ao Réu EE, pelo preço de 13.000,00€, o qual, por sua vez, o vendeu ao Réu FF em 13/11/2018».
A Ré D... contestou, pugnando por «a) a exceção de ilegitimidade da autora ser julgada procedente por provada, no caso de não se ter verificado provada a morte do pai da autora; caso assim não se entenda, deve: b) a ação ser considerada improcedente por não provada, e a ré absolvida do pedido».

Fundamentou a sua defesa, essencialmente, no seguinte: «a Autora é parte ilegítima; a viatura foi comprada pelo único sócio da Ré D..., GG, em Fevereiro de 2009, mas não tinha aquela matrícula portuguesa, uma vez que foi comprado na ...; o Réu CC mostrou-se interessado no veículo e o GG acedeu em tratar da compra do veículo para o Réu, fazendo o pedido de legalização já em nome do Réu; o veículo já legalizado, ficou pelo preço de 37.895,00€, mas quando estava pronto a ser utilizado, o Réu CC diz que já não conseguia ficar com ele, pelo que a 26/02/2009, a Ré D... compra-lhe o veículo;
em 18/03/2009, o ... decide adquiri-lo para a Ré C... por 40.000,00€; no dia 23/12/2016, a Ré D... comprou ao Réu DD o veículo pelo preço de 12.000,00€, vendendo-o no dia 11 de Janeiro de 2017 o mesmo veículo ao Réu EE pelo preço de 13.000,00€; o valor de mercado do veículo de é 11.500,00€».
O Réu DD contestou, pugnando por «ser o Réu absolvido dos pedidos contra si formulados».

Fundamentou a sua defesa, essencialmente, no seguinte: «o Réu DD, em 05.03.2013, no âmbito do processo de insolvência da C..., apresentou uma proposta de aquisição da viatura automóvel que foi aceite pelo Administrador de Insolvência, tendo pago o preço no valor de € 13.500,00; em 23.12.2016, o Réu DD alienou o automóvel à Ré D... pelo valor de € 12.000,00; em momento algum, o HH foi possuidor do veículo».
Em face do encerramento da liquidação da Ré C... (subsequente à sua insolvência), o Tribunal a quo determinou que «Nos termos dos arts. 151.º, n.º 8, e 163.º, n.º 2, do CSC, a extinta sociedade C... fosse citada na pessoa do Administrador da Insolvência que foi o liquidatário nomeado no âmbito do processo de insolvência», não tendo sido apresentada contestação.
A Autora respondeu à matéria das excepções e da reconvenção, pugnando pela «improcedência das excepções invocadas pelos Réus» e pela «inadmissibilidade da reconvenção deduzida pelo Réu FF ou, caso assim não se entenda, pela sua improcedência a final».
A Autora apresentou articulado superveniente, no qual deduziu a alteração da causa de pedir e do pedido, e termina pedindo que se «admita o presente articulado superveniente, bem como a alteração da causa de pedir relativamente ao negócio de compra e venda formalizado entre a C... e o réu DD, em conformidade com as razões invocadas no presente articulado e, em consequência, alterar-se o pedido formulado a este respeito na petição inicial, nos seguintes termos: declarar-se nula, por vício de simulação, por interposição fictícia de pessoas, a transmissão de propriedade do veículo da marca ..., com a matrícula ..-HH-.., declarada entre a massa insolvente da sociedade C... - Climatizações, S.A e o réu DD».
Realizou-se audiência prévia, no âmbito da qual, para além do mais, foi proferido despacho a «admitir a reconvenção», foi proferido despacho saneador que julgou «improcedente a nulidade invocada nulidade derivada da ineptidão da petição inicial», que julgou «improcedente a excepção de ilegitimidade ativa suscitada pelos réus», que julgou «verificada a excepção inominada de falta de interesse em agir da Autora e a excepção nominada de ilegitimidade passiva dos Réus EE e FF e, em consequência, absolveu os referidos réus da instância», e que admitiu o «articulado superveniente apresentado pela autora a fls. 112 e ss. e a requerida alteração da causa de pedir e pedido».
Por sentença proferida em 12/07/2021, o Tribunal a quo decidiu «julgar totalmente procedente o pedido reconvencional, reconhecendo o direito de propriedade do réu FF sobre o automóvel com a matrícula ..-HH-.. (à data da dedução do pedido reconvencional), condenando a autora a reconhecer tal direito».
Por despacho proferido em 23/09/2021, identificou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença com o seguinte decisório: “Nestes termos, julgo a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolvo os réus (Aqueles ainda não absolvidos da instância) do pedido contra si deduzido pela autora”.
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1.2. Do Recurso da Autora

Inconformada com a sentença, a Autora interpôs recurso de apelação, pedindo que seja “o presente recurso julgado procedente e, em consequência, ser revogada a sentença recorrida, condenando-se a recorrida no pedido pelos motivos supra expendidos”, e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações:

“1.ª - A recorrente entende que só será devida a apreciação do presente recurso em caso de improcedência do recurso anteriormente interposto que se encontra pendente.
2.ª - A recorrente não concorda com a decisão na parte em que reconheceu a validade do contrato de compra e venda do veículo objeto dos presentes autos declarada entre o recorrido DD e a recorrida massa insolvente da “C... -..” por da sua motivação referir o Tribunal a quo ter ficado convencido de que o recorrido adquiriu e quis efetivamente, por si e para si, adquirir a propriedade da viatura automóvel.
3.ª - A recorrente discorda do Tribunal a quo que assim concluiu por considerar ter existido prova do pagamento do preço acordado nesse “negócio”: estamos no domínio da simulação e, como tal, mais importante do que apurar se houve pagamento formal do preço pela “aquisição” da viatura, importaria apurar quem é que efetivamente suportou esse pagamento. Ora, crê a recorrente não ter sido provado quem é que efetivamente suportou esse preço - vd. art. 240.º do CC.
4.ª - Recaindo sobre o recorrido DD a prova de que suportou o preço declarado a expensas suas sem que tivesse cumprido tal ónus, e tendo sido produzida prova que permite duvidar da sua capacidade financeira para custear esse pagamento, o Tribunal a quo não deveria ter concluído pela validade do negócio declarado entre os recorridos DD e massa insolvente da “C... -..” - vd. arts. 240.º e 342.º do CC.
5.ª - Tanto mais que o Tribunal a quo deu por provado um conjunto de outros indícios que permitem concluir pela simulação desse negócio, como é exemplo o facto de ter ficado assente que o pai da recorrente continuou a servir-se da viatura mesmo após esse “negócio” e de não ter resultado provado que o recorrido DD também se servisse dela após constar no respetivo registo como seu proprietário - vd. art. 240.º do CC.
6.ª - Subsidiariamente, a recorrente considera que o Tribunal a quo deveria ter reconhecido a aquisição originária do direito de propriedade sobre o referido veículo automóvel a favor do seu pai - vd. arts. 1252.º, n.º 1, 1253.º, al. c), 1287.º e 1298.º do CC.
7.ª - Diferentemente daquele que foi o entendimento do Tribunal a quo, da matéria de facto dada por provada resultam factos que só poderiam permitir pela atuação daquele, pelo menos desde 2009 e até à data da sua morte, mas antes disso já pelos seus antepossuidores, com corpus e animus - vd. factos dados por provados elencados sob os pontos, Q, R, S e T
8.ª - Com todo o devido respeito, a recorrente julga que não se poderia concluir que o seu pai atuou como mero detentor, mas antes como verdadeiro possuidor da viatura em causa: sempre a usou diariamente, sem dependência de qualquer autorização, nas deslocações pessoais e familiares, em período de trabalho e de férias, em exclusivo, sem pagar qualquer contrapartida, à vista de todos e sem oposição e por isso sempre se comportou com a consciência e convicção de que o veículo era seu. E assim sucedeu mesmo após o recorrido DD ter registado a aquisição de propriedade (formal) a seu favor e sem que se fizesse prova de que o próprio recorrido utilizasse essa viatura.
9.ª - A recorrente entende, por fim, que da matéria de facto dada por assente não deveriam ter ficado a constar as referências à “C... -..” nos pontos L, N, O e crê, por sua vez, que deveriam ter ficado a constar do elenco dos factos provados os pontos 19, 25 e 26 dados como não provados”.
Nenhum dos Réus apresentou contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo.
Foram colhidos os vistos legais.
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2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR

Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[1] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[2]).

Neste “quadro legal” e atentas as conclusões do recurso de apelação interposto pela Autora, são três as questões a apreciar por este Tribunal ad quem:

1) Se a sentença recorrida deve ser alterada quanto à matéria de facto provado e não provada nos termos indicados pela Autora;
2) Se o contrato de compra e venda do veículo automóvel entre o Réu DD e Massa Insolvente da C... foi simulado;
3) E se o falecido pai da Autora adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre o veículo automóvel.
Assinale-se que a «questão prévia» suscitada pela Autora/Recorrente («A recorrente entende que só será devida a apreciação do presente recurso em caso de improcedência do recurso anteriormente interposto que se encontra pendente» - cfr. conclusão 1ª) já foi objecto de apreciação e decisão através do despacho proferido em 13/09/2022, que aqui se transcreve:
“Como resulta da certidão que antecede, através de decisão singular proferida em 22/06/2022 e já transitada em julgado, no proc. nº1679/19.5T8BRG-B.G1 da 3ª Secção Cível deste Tribunal da Relação, foi julgado improcedente o recurso que a Autora havia interposto, na data 09/03/2022, relativamente a despacho proferido na data de 21/02/2022, o qual indeferiu a pretensão da mesma consistente em «a requerente requer/sugere a notificação do réu DD para que junte aos autos os documentos comprovativos e justificativos do efetivo recebimento das quantias de € 9.750,00 e de € 8.000,00, que refere terem sido recebidas pela sua esposa, por herança de seu pai, e pela venda de um veículo automóvel que era propriedade do seu sogro». Nesse recurso, a Autora/Recorrente peticiona que seja «revogado o despacho impugnado, ordenando-se a produção da prova requerida /sugerida pela recorrente».
Como expressamente se referiu no despacho proferido em 04/07/2022 (com a referência citius “...42”), a procedência daquele recurso relativamente conduziria a que os autos baixassem à 1ª instância para que fosse obtido o respectivo meio de prova, para que eventualmente fossem obtidos outros meios de prova que se tornem indispensáveis em virtude daquele outro, para que fosse retomado o julgamento já realizado (pelo menos, para novas alegações) e para que fosse proferida nova decisão final, o que, tudo prejudicaria a apreciação do recurso interposto da sentença, e que é aquele que aqui está em causa.
Logo, em vez de se avançar com qualquer decisão neste recurso interposto da sentença, deveria aguardar-se pelo resultado daquele primeiro recurso, e sustar-se a presente instância de recurso, o que, aliás, tinha sido requerido, em sede de alegações, pela Autora (cfr. conclusão 1ª).
Porém, a improcedência daquele recurso anterior, prejudicou e tornou desnecessária a referida suspensão da presente instância de recurso.
Face ao exposto e sem necessidade de outras considerações, para os devidos efeitos legais, declara-se cessada a causa (pendência de recurso anterior), invocada pela Autora, que justificaria suspensão da presente instância de recurso”.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Na sentença ora impugnada, o Tribunal a quo considerou como provados os seguintes factos:

A. A autora é filha de ..., falecido em .../.../2016.
B. A ré “D...” declarou vender o veículo automóvel da marca ..., com a matrícula ..-HH-.., ao réu CC.
C. Em novembro de 2018, o réu EE vendeu o referido automóvel ao réu FF.
D. Atualmente, a propriedade do veículo automóvel encontra-se registada a favor do réu FF.
E. Nem a “D...” quis vender o automóvel HH a CC, nem este o quis comprar.
F. Não houve, no negócio referido em B., o pagamento e correspondente recebimento de preço.
G. Nem se procedeu à entrega das respetivas chaves.
H. O réu CC mostrou-se interessado no veículo com a matrícula ..-HH-...
I. Na sequência, o sócio da ré D... acedeu em tratar da compra do veículo para o Réu CC.
J. A viatura da marca ..., com a matrícula ..-HH-.., foi comprada pelo único sócio da Ré D..., GG, em fevereiro de 2009, tendo o pedido de legalização da viatura sido feito em nome do Réu CC.
K. Quando o veículo estava legalizado e pronto a ser utilizado, o Réu CC disse que já não conseguia ficar com ele, mas que iria tentar ajudar o GG a arranjar um comprador para o mesmo.
L. O réu CC e o GG falaram ao ... do veículo e este mostrou-se interessado em adquirir o mesmo para a sua empresa C... – Climatizações, S.A., e, depois de ver o veículo, em 18 de março de 2009, o ... decidiu-se a adquiri-lo para a C..., por 40.000,00€.
M. O veículo foi apenas registado em nome do Réu CC uma vez que o pedido de legalização do veículo tinha sido feito em nome daquele, pelo que o registo inicial teria de ser em nome dele.
N. Foi a ... que foi entregue a chave do automóvel, como representante da empresa C....
O. Pelo menos a partir do dia 22/4/2009 e até 22/2/2013, o HH, como legal representante da “C...”, usou e circulou no veículo automóvel HH, tal como os seus antepossuidores o fizeram desde 2008.
P. Em qualquer hora e em qualquer lugar.
Q. De forma ininterrupta, à vista de todos e sem qualquer oposição.
R. No referido período de tempo, levou a sua filha à escola e deslocou-se para o respetivo trabalho.
S. E, nesse período de tempo, foi também o veículo usado em viagens de férias e fins de semana por toda a família.
T. Após .../.../2013 e até ao seu falecimento, o falecido HH, por si, usou a viatura quando se deslocava aos fins de semana a Portugal.
U. A ré C... foi declarada insolvente em 21/9/2012.
V. O veículo HH foi apreendido para a massa insolvente em 22/2/2013.
W. Em 05.03.2013, no âmbito do processo de insolvência da C..., o réu DD apresentou uma proposta de aquisição da viatura automóvel HH, que foi aceite pelo Administrador de Insolvência, em 28.03.2013.
X. O réu DD, em 01.04.2013, entregou um cheque no valor de €13.500,00 e o Administrador de Insolvência, após confirmar o pagamento do cheque, que foi sacado sobre conta da titularidade do réu DD, entregou ao réu DD a respetiva declaração de venda, assim como o veículo automóvel HH., acompanhado das suas chaves.
Y. O réu DD vendeu a viatura HH em 2016 pelo menos pelo valor de 12.000,00€.
Z. À data da venda da viatura pelo réu DD, a mesma tinha um valor de mercado de pelo menos 16.000,00€.

Na mesma sentença ora impugnada, o Tribunal a quo considerou como não provados os seguintes factos:
1. Em 22 de abril de 2009, ... comprou à ré “D...” um veículo automóvel da marca ..., com a matrícula ..-HH-.., em estado semi-novo, pelo preço de € 38 000,00, que pagou na íntegra.
2. Sucede que, nessa altura, ... estava numa situação financeira precária porque havia assumido a responsabilidade pessoal de suportar um conjunto de dívidas das empresas de que era sócio gerente.
3. Conhecedor da situação financeira precária das mesmas, receava, já naquela altura, que os credores sociais executassem o seu património pessoal para assegurarem o recebimento dos seus créditos.
4. Bem sabia, e receava, por isso, que o referido automóvel viesse a ser penhorado pelos credores perante os quais assumiu tais responsabilidades.
5. Este receio foi confidenciado ao gerente da “D...”, que disse aceitar declarar a venda a um terceiro que viesse a ser indicado por ....
6. De tudo isto deu conta ... ao réu CC.
7. Por essa razão, ... pediu ao réu CC para figurar como comprador fictício da viatura, pois só assim conseguiria enganar os credores e evitar a sua penhora, e pediu-lhe que transferisse a propriedade do veículo para ele ou para terceiro, assim que manifestasse tal vontade, tendo o CC acedido ao pedido formulado por ....
8. Quem pagou o preço pela aquisição do veículo foi ... e suportou o custo com o emolumento do registo.
9. Nesse mesmo dia, e após já se encontrar registada a propriedade do veículo em nome de CC, ... solicitou que este declarasse transmitir a mesma a favor da ré “C...”, o que o réu CC aceitou.
10. Quem suportou os custos com os emolumentos na conservatória do registo automóvel foi ....
11. O réu CC não quis vender o veículo HH à “C...”, que não o quis comprar.
12. A intenção de todas as partes envolvidas foi a de enganar os credores de ... que, assim, se viram dificultados em penhorar o automóvel.
13. Perante o estado financeiro cada vez mais deficitário da “C...”, começou ... a recear que os credores da sociedade viessem a penhorar o identificado veículo.
14. Por essa razão, expôs toda a situação anteriormente descrita ao réu DD e pediu-lhe o favor de, ficticiamente, declarar a compra daquela viatura, com o objetivo de evitar que a mesma fosse penhorada, tendo o réu DD aceitado declarar a compra do veículo automóvel.
15. Nem DD quis comprar o veículo, nem a “C...” o quis vender.
16. DD não pagou qualquer importância a título de preço, nem a “C...” a recebeu.
17. As chaves não foram entregues ao réu DD.
18. Quem suportou todos os custos com registos de transmissão de propriedade foi ....
19. Foi sempre o HH, conjuntamente com BB - esta apenas até ao divórcio - quem circulou, em exclusivo, na viatura automóvel HH desde 22/2/2013 e até .../.../2016.
20. E foi ele que sempre assegurou o pagamento do imposto de circulação e do seguro relativamente à mesma.
21. E também foi ele que sempre levou o carro às inspeções periódicas, abasteceu combustível, ordenou a realização dos consertos que tinha por necessários e/ou convenientes, pediu orçamentos e pagou os respetivos preços.
22. Tudo isto à vista e com o conhecimento de todos, inclusivamente dos réus CC e dos administradores da “C...”.
23. Em 14 de janeiro de 2017, o réu DD vendeu ao réu EE o veículo HH pelo preço de € 20 000,00, tendo o réu DD embolsado o respetivo valor.
24. A venda referida em C. ocorreu em 13/11/2018 e foi realizada pelo preço de 20.000,00€.
25. Os atos referidos de O. a T. ocorreram ininterruptamente entre abril de 2009 e .../.../2016, e aqueles referidos de O. a S. foram levados a cabo por ... e BB por si e ante possuidores, há mais de 3, 5, 8 e 10 anos.
26. Tudo isto com a convicção de que era o único e legítimo proprietário do referido veículo.
27. O valor de mercado do HH era e é de € 20.000,00.
28. ... pediu ao réu DD o favor de, ficticiamente, declarar a compra do veículo nos termos referidos em W. e X., o que este aceitou.
29. Porém, na realidade, o réu DD não quis comprar (para si) o referido veículo, apresentando-se como (aparente) comprador, apenas para ocultar o verdadeiro beneficiário do negócio - o pai da autora.
30. Não foi o réu DD quem suportou o valor de € 13 500,00 referido em X., que foi pago exclusivamente pelo falecido pai da autora.
31. E foi o falecido HH quem suportou todos os custos com os registos de transmissão de propriedade.
32. A formalização da venda em nome do réu DD foi uma estratégia do mesmo e do HH para impedir a penhora do veículo por credores deste.
* * *
4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Da Alteração da Matéria de Facto

Nos termos do art. 640º/1 do C.P.Civil de 2013: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
No que respeita à especificação dos meios probatórios, a alínea a) do nº2 do referido art. 640º, estatui que “Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Têm sido suscitadas dúvidas sobre se sobre se os requisitos do ónus impugnatório previsto neste art. 640º/1 devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também têm que integrar as próprias conclusões, sob pena do recurso ser rejeitado (cfr. art. 635º/2 e 639º/1 do C.P.Civil de 2013). Porém, tem vindo a constituir entendimento pacífico do Supremo Tribunal de Justiça que: 1) o Recorrente tem sempre que indicar os «concretos pontos de facto» que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; 2) o Recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos, mas não sendo necessário que tal especificação também conste das conclusões; 3) relativamente aos «pontos de facto» cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em «prova gravada», para além da supra referida especificação dos meios de prova, o Recorrente está obrigado a indicar, com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos, mas não sendo necessário que tal indicação conste das conclusões; e 4) na motivação, o Recorrente tem expressar a decisão que, no seu entendimento, deve ser proferida sobre os «concretos pontos de facto» que impugnou, tendo em atenção a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que se compreende em razão do reforço do ónus de alegação, com vista a evitar a interposição de recursos com conteúdo genérico ou inconsequente[3].
Com efeito, entre outros decidiu o Ac. do STJ de 29/10/2015[4], “1. Face aos regimes processuais que têm vigorado quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação - que tem subsistido sem alterações relevantes e consta actualmente do nº1 do art. 640º do CPC; e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado, no seu conteúdo prático, ao longo dos anos e das várias reformas - indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exacta das passagens da gravação relevantes (e que consta actualmente do art. 640º, nº2, al. a) do CPC). 2. Este ónus de indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, não sendo justificada a imediata e liminar rejeição do recurso quando - apesar de a indicação do recorrente não ser, porventura, totalmente exacta e precisa, não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento - como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da acta, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento complemente tal indicação com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objecto do recurso”.
E entendeu-se no Ac. do STJ de 01/10/2015[5] que “I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe. II - Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. III - Não existe fundamento legal para rejeitar o recurso de apelação, na parte da impugnação da decisão da matéria de facto, numa situação em que, tendo sido identificados nas conclusões os pontos de facto impugnados, assim como as respostas alternativas propostas pelo recorrente, não foram, contudo, enunciados os fundamentos da impugnação nem indicados os meios probatórios que sustentam uma decisão diferente da que foi proferida pela 1.ª instância, requisitos estes que foram devidamente expostos na motivação. IV - Com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640º, do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu nº1, constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação”[6]. Explica-se neste aresto que «as exigências que o legislador entendeu consagrar nesta matéria e que impõem ao Tribunal o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova, no actual art. 607º, nº 4, do CPC, encontra o seu contraponto na igual exigência imposta à parte Recorrente, que pretenda impugnar a decisão de facto, do respectivo ónus de impugnação, devendo o Recorrente expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo Tribunal “a quo” (…) recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus: Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento; Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas. Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da decisão (…)» (os sublinhados são nossos). E conclui: «O que verdadeiramente importa ao exercício do ónus de impugnação em sede de matéria de facto é que as alegações, na sua globalidade, e as conclusões, contenham todos os requisitos que constam do art. 640º do Novo CPC. A saber: - A concretização dos pontos de facto incorrectamente julgados; - A especificação dos meios probatórios que no entender do Recorrente imponham uma solução diversa; - E a decisão alternativa que é pretendida».
Ainda relevante se mostra o Ac. do STJ de 22/09/2015[7] que clarifica: “II – Na impugnação da decisão de facto, recai sobre o Recorrente “um especial ónus de alegação”, quer quanto à delimitação do objecto do recurso, quer no que respeita à respectiva fundamentação. III – Na delimitação do objecto do recurso, deve especificar os pontos de facto impugnados; na fundamentação, deve especificar os concretos meios probatórios que, na sua perspectiva, impunham decisão diversa da recorrida (art. 640.º, n.º 1, do NCPC) e, sendo caso disso (prova gravada), indicando com exactidão as passagens da gravação em que se funda (art. 640.º, n.º 2, al. a), do NCPC). IV – A inobservância do referido em III é sancionada com a rejeição imediata do recurso na parte afectada. V - Se essa cominação se afigura indiscutível relativamente aos requisitos previstos no n.º1, dada a sua indispensabilidade, já quanto ao requisito previsto no n.º2, al. a), justifica-se alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão. VI - Se a falta de indicação exacta das passagens da gravação não dificulta, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, nem o exame pelo tribunal, a rejeição do recurso, com este fundamento, afigura-se uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável” (o sublinhado é nosso).
A análise do cumprimento destes ónus (exigências legais) deve ser realizada, como explica António Abrantes Geraldes[8], à luz de um critério de rigor. Trata-se afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo. Exigências que, afinal, devem ser o contraponto dos esforços que todos quantos, durante décadas, reclamaram a atenuação do princípio da oralidade pura e a atribuição à Relação de efetivos poderes de sindicância da decisão da matéria de facto como instrumento da realização da justiça” (o sublinhado é nosso).
É um dado objectivo que, nas alegações de recurso, existe uma forte tendência para “combinar” e “misturar” a impugnação de facto com a impugnação de direito, sendo que muitas vezes são invocadas meras “opiniões” sobre o que foi dado como provado e/ou não provado, afirmando-se um entendimento distinto mas, mesmo assim, há conformação com uma parte da decisão que foi tomada, havendo efectiva impugnação relativamente a outra parte. Logo, e como resulta da alínea a) do nº1 do referido art. 640º, impõe-se que o recorrente, nas respetivas conclusões, indique concretamente quais são os pontos da matéria de facto que impugna e o que entende que deve ser dado como «assente» e/ou como «não assente», relevando e apresentando a sua pretensão de uma forma inequívoca e que permita separar a mera exposição da sua apreciação sobre a prova da pretensão fundamentada quanto à alteração da matéria de facto.
 O incumprimento de qualquer dos ónus supra indicados conduz à imediata rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto (rejeição que será total ou parcial, consoante o incumprimento seja relativo a todo o âmbito da impugnação ou seja relativo apenas a uma parte da impugnação), não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões. Como resulta do disposto na alínea a) do nº1 do art. 652º do C.P.Civil de 2013, os poderes do relator, em matéria de convite ao aperfeiçoamento, estão inequivocamente limitados às situações previstas no nº3 do art. 639º do mesmo diploma legal , que não incluem incumprimento dos referidos ónus. Entre outros, refere-se aqui o Ac. do STJ de 25/03/2021[9], no qual se decidiu que “III - Omitindo o recorrente o cumprimento do ónus processual fixado na alínea a) e c) do nº 1 do art. 640º do CPCivil, impõe-se a imediata rejeição da impugnação da matéria de facto, não sendo legalmente admissível a prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento das conclusões”[10].
Perante este entendimento, que se acolhe e se segue, analisando o conteúdo quer da respectiva motivação/fundamentação quer das respectivas conclusões, afigura-se-nos que as alegações da Autora/Recorrente não cumprem todos os requisitos formais que a Lei prescreve: embora se indiquem os «concretos pontos de facto» considerados incorrectamente julgados (na motivação e nas conclusões), é inquestionável que se verifica uma ausência absoluta de especificação dos meios de prova que (no seu entender) determinam uma decisão diversa e de transcrição dos excertos da prova gravada considerados relevantes; e mais se verifica que apenas se indicou a decisão alternativa a tomar em relação a parte dos «concretos pontos de facto» impugnados e que inexiste uma integral falta de «concretização e apreciação crítica dos meios probatórios».
Concretizando.
Como decorre da conclusão 9º (a qual está em conformidade com o teor da motivação exposta no «corpo alegatório»), a Autora/Recorrente entende que «da matéria de facto dada por assente não deveriam ter ficado a constar as referências à “C... -..” nos pontos L, N, O» e que «deveriam ter ficado a constar do elenco dos factos provados os pontos 19, 25 e 26 dados como não provados».
Porém, percorrendo a motivação do recurso, não se encontra uma única alegação na qual a Autora/Recorrente proceda à individualização/especificação de um ou mais meios de prova que justificam, fundam e determinam uma alteração da decisão de facto quanto aos identificados pontos de facto (provados e não provados), pelo que este Tribunal ad quem desconhece quais os concretos meios probatórios em que aquela alicerça a pretensão recursiva de modificação da decisão de facto.
Com efeito, em sede de motivação, aquela limita-se a alegar, que «Contra isso não releva o facto de os funcionários da “C... -..” referirem que a viatura constava do imobilizado da empresa ou ser a empresa que procedia ao pagamento dos respetivos impostos: tal sempre teria que ser assim considerando o registo formal de propriedade», mas sem identificar (concretizar) quais são as testemunhas inquiridas nestes autos que correspondem a tais “funcionários”, e muito menos se transcreveu quaisquer excertos relevantes dos seus depoimentos que se encontram gravados. Logo, esta alegação é completamente inócua e até ininteligível (porque genérica e abstracta), sendo insusceptível de traduzir a concreta individualização de meios de prova legalmente exigida.  
Acresce que não se vislumbra em toda a motivação uma única alegação na qual se aluda ao concreto depoimento de uma das várias testemunhas inquiridas em audiência, e/ou se aluda a um qualquer dos vários documentos constantes dos autos e/ou a qualquer outro meio de prova produzido nos autos (nomeadamente, nenhum conteúdo do «corpo alegatório» se reporta a algum dos depoimentos de parte, ou declarações de parte, prestados em audiência, nem à prova pericial realizada nos autos).
Perante a falta absoluta de especificação de meios de prova, então, óbvia e necessariamente, a Autora/Recorrente também não produziu, na motivação, qualquer análise crítica dos respectivos meios de prova (da mesma forma que se impõe ao Tribunal a respectiva análise crítica), não existindo em todas as suas alegações um mínimo de concretização e de explicação das razões pelas quais o(s) depoimento(s) testemunhal(ais) “x”, “y”, “z”, e/ou o(s) documento(s) “a”, “b”, “c”, e/ou os depoimentos/declarações de parte “m”, “n”, “o”, justificam e determinam a demonstração probatória da matéria que integra os factos não provados nºs. 19, 25 e 26 e/ou justificam e determinam a não demonstração probatória da matéria relativamente à sociedade “C...” que integra os factos provados L, N, e O (isto é, não foram expostos os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos concretos meios de prova produzidos nos autos, determinam, no seu entendimento, um resultado diverso do decidido pelo Tribunal “a quo” quanto a tais prontos de facto). Logo, este Tribunal ad quem também desconhece quais as concretas razões probatórias em que se alicerça a pretensão recursiva de modificação da decisão de facto.
Frise-se que, embora na motivação a Autora/Recorrente tenha produziu várias alegações que mostram discordância com a decisão de facto no que concerne aos «pontos de facto» que se pretendem impugnar, é absolutamente evidente que tais alegações nunca incidem sobre concretos meios de prova nem integram uma efectiva apreciação crítica dos mesmos, pelo que tais alegações mais não configuram do que um conjunto de manifestações genéricas de discordância. Como se decidiu no Ac. desta RG de 02/11/2017[11], “II. O recorrente que pretenda contrariar a apreciação crítica da prova feita pelo Tribunal a quo terá de apresentar razões objectivas para contrariar a prevalência dada a um meio de prova sobre outro de sinal oposto, ou o maior crédito dado a um depoimento sobre outro contrário, não sendo suficiente para o efeito a mera transcrição de excertos de alguns dos depoimentos prestados, já antes ouvidos pelo julgador sindicado e ponderados na sua decisão recorrida (art. 640º do C.P.C.)” (o sublinhado é nosso).
E no que se reporta à impugnação da matéria relativa à sociedade “C...” que integra os factos provados L, N, e O, impõe assinalar-se que, na motivação, a Autora/Recorrente também não concretiza qual é a decisão alternativa que (no seu entendimento) devia ser proferida: limita-se a alegar que tal matéria não deve constar de tais factos provados, mas omite se deve passar para a matéria de facto não provada e/ou se deve ser, tão só, eliminada da decisão de facto.
Embora tais “obrigações” devessem ser cumpridas no «corpo alegatório» (motivação), importa deixar claro que também não foram (naturalmente) cumpridos nas conclusões formuladas.
Neste “quadro”, a motivação do presente recurso não dá cumprimento aos requisitos legais consistentes nos ónus impostos nas alíneas b) e c) do nº1 e na alínea a) do nº2, todos do art. 640º/1 do C.P.Civil de 2013.
Nestas circunstâncias, porque não está cumprido o mínimo legalmente exigível para a regular e válida estruturação da impugnação da matéria de facto, conclui-se que se deve rejeitar o recurso no que respeita à impugnação das referências à “C...” nos factos provados L, N, O» e dos factos não provados nºs. 19, 25 e 26, o que impede a reapreciação da matéria de facto que integra a decisão recorrida.
Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, terá que improceder, de forma integral, este fundamento do recurso interposto pela Autora/Recorrente relativo à alteração da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida.
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4.2. Da Simulação do Contrato de Compra e Venda entre o Réu DD e a Massa Insolvente da C...

A declaração da vontade negocial é o comportamento que, exteriormente observado, cria a aparência de exteriorização de um certo conteúdo de vontade negocial, caracterizando-se como a intenção de realizar certos efeitos práticos com ânimo de que sejam juridicamente tutelados e vinculantes[12].
Numa declaração negocial podem distinguir-se normalmente os seguintes elementos: a declaração propriamente dita (elemento externo), que consiste no comportamento declarativo; e a vontade (elemento interno), que consiste no querer, na realidade volitiva[13]. Habitualmente o elemento interno (vontade) e o elemento externo da declaração negocial (declaração propriamente dita) coincidem, havendo uma efectiva autodeterminação de efeitos jurídicos pelo autor da declaração, se a vontade se formou sobre uma motivação conforme coma a realidade e com liberdade[14].
Por vezes verificam-se, por causas diversas, uma divergência entre esses dois elementos da declaração negocial, estando-se perante um vício na formulação da vontade, sendo que essa divergência entre a vontade real e a declaração (isto é, entre o «querido» e o «declarado») pode ser intencional (quando o declarante emite, consciente e livremente, uma declaração com um sentido objectivo diverso da sua vontade real – divergência voluntária) ou não intencional (o declarante não se apercebe da divergência ou porque é forçado irresistivelmente a emitir uma declaração divergente do seu real intento).
Entre outras formas e tendo em consideração o caso em apreço, interessa-nos a divergência intencional que se apresenta sob a forma de simulação, prevista no art. 240º do C.Civil: “1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. 2. O negócio simulado é nulo”.
Decorre deste normativo que a simulação ocorre quando o declarante emite uma declaração não coincidente com a sua vontade real, por força de um conluio com o declaratário, com a intenção de enganar terceiros.
Como se explica no Ac. do STJ de 24/02/2022[15], “Esta norma tem em vista caracterizar um vício negocial que assenta na intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, traduzida na consciência, por parte do declarante, de que emite uma declaração que não corresponde à sua vontade real: o mesmo não só sabe que a declaração emitida é diversa da sua vontade real, mas quer ainda emiti-la nestes termos. Esta noção é correspondente à dada por Manuel de Andrade (…) e aceite pela generalidade da Doutrina (…). Estamos perante uma divergência entre a vontade e a declaração que é livre (…), querida e propositadamente realizada tanto da parte do declarante como do declaratário. Trata-se, como tal, de uma operação complexa que postula três acordos: um acordo simulatório, um acordo dissimulado e um acordo simulado. O acordo simulatório visa a montagem da operação e dá corpo à intenção de enganar terceira. O acordo dissimulado exprime a vontade real de ambas as partes e visa: ou o negócio verdadeiramente pretendido por elas ou um puro e simples retirar de efeitos ao negócio simulado. Por último, o acordo simulado traduz a aparência do contrato, destinado a enganar a comunidade jurídica”.
Relativamente à importância do acordo simulatório, refere Pedro Pais de Vasconcelos[16]: “na simulação é de crucial importância o pacto simulatório. Trata-se de um acordo, de um pacto, que tem como conteúdo a estipulação entre as partes da criação de uma aparência negocial, da exteriorização de um negócio falso e a regulação do relacionamento entre o negócio aparente assim exteriorizado e o negócio real. A esta aparência negocial assim criado pode corresponder um negócio verdadeiro que as partes mantém oculto ou pode também não corresponder qualquer negócio”: naquele caso estamos perante um simulação relativa, que tem consagração legal no art. 241º do C.Civil (“1.Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar…”),  enquanto neste segundo ocorre uma simulação absoluta, sendo que a distinção entre ambas resulta de, na simulação absoluta, só existe o negócio simulado, mas já na relativa, além do negócio simulado (que Manuel de Andrade denominava de «palente, ostensivo, decorativo, aparente ou fictício»[17]), existe um negócio oculto («latente, disfarçado, real») que é o dissimulado.
A verificação da simulação depende da verificação cumulativa dos seguintes requisitos: 1) o pacto (acordo) simulatório entre o declarante e o declaratário; 2) a divergência intencional entre o sentido da declaração e os efeitos do negócio jurídico simuladamente celebrado; e 3) o intuito de enganar terceiros[18]. Neste último requisito pode distinguir-se o mero intuito de enganar, mas sem prejudicar (“animus decipiendi”) que faz apodar a simulação de inocente e o “animus nocendi” (de prejudicar terceiros ou de violar norma legal) geradora da simulação fraudulenta[19].
Estes requisitos devem ser alegados e provados por quem pretenda prevalecer-se da simulação ou de aspectos do seu regime, o que, aliás, está em total conformidade com as regras de repartição quer do ónus de alegação (cfr. art. 5º/1 do C.P.Civil de 2013), quer do ónus da prova (art. 342º/1 e 2 do C.Civil), uma vez que configuram requisitos que têm uma natureza constitutiva do direito invocado. Neste sentido tem-se pronunciado, de forma uniforme, o STJ: “O ónus da prova de tais requisitos, porque constitutivos do respectivo direito, cabe, segundo as regras gerais nesta matéria, a quem invoca a simulação”[20].
Revertendo ao caso em apreço, em sede de recurso, a Autora/Recorrente impugna a sentença recorrida na parte em que considerou inexistir simulação do contrato de compra e venda celebrado entre o Réu DD e a Massa Insolvente da C... (não impugnando o entendimento do Tribunal a quo quanto aos restantes contratos de compra e venda objecto da acção), defendendo, essencialmente, que: «não concorda com a decisão por da sua motivação referir o Tribunal a quo ter ficado convencido de que o recorrido adquiriu e quis efetivamente, por si e para si, adquirir a propriedade da viatura automóvel; discorda do Tribunal a quo que assim concluiu por considerar ter existido prova do pagamento do preço acordado nesse “negócio”; estamos no domínio da simulação e, como tal, mais importante do que apurar se houve pagamento formal do preço pela “aquisição” da viatura, importaria apurar quem é que efetivamente suportou esse pagamento; não foi provado quem é que efetivamente suportou esse preço; recaindo sobre o recorrido DD a prova de que suportou o preço declarado a expensas suas sem que tivesse cumprido tal ónus, e tendo sido produzida prova que permite duvidar da sua capacidade financeira para custear esse pagamento, o Tribunal a quo não deveria ter concluído pela validade do negócio; o Tribunal a quo deu por provado um conjunto de outros indícios que permitem concluir pela simulação desse negócio, como é exemplo o facto de ter ficado assente que o pai da recorrente continuou a servir-se da viatura mesmo após esse “negócio” e de não ter resultado provado que o recorrido DD também se servisse dela após constar no respetivo registo como seu proprietário» - cfr. conclusões 2ª a 5ª.
Cumpre, desde já, afirmar que lhe não assiste qualquer razão, como em seguida se passa a explicar.
Importa assinalar que a Autora/Recorrente olvida (em absoluto) que, na presente acção, é ela própria quem alega a existência de simulação na transmissão de propriedade do veículo entre a massa insolvente da sociedade C... - Climatizações, S.A e o Réu DD e peticiona a declaração de nulidade do respectivo contrato com base nesse vício da formulação da vontade (alteração de causa de pedir e de pedido deduzidas em sede de articulado superveniente) e, por via disso, incumbe-lhe exclusivamente (para além do ónus de alegação) o ónus de prova dos requisitos legais de que depende a verificação e existência do negócio simulado.
Percorrendo o manancial factual provado e o manancial factual não provado, é de clareza meridiana que a Autora/Recorrente não logrou provar nenhum dos factos que invocou para configurar como simulado o negócio jurídico celebrado entre a Massa Insolvente e o Réu DD (cfr. arts. 10º a 22º do articulado superveniente), designadamente não demonstrou que «... pediu ao réu DD o favor de, ficticiamente, declarar a compra do veículo nos termos referidos em W. e X., o que este aceitou», nem que «Porém, na realidade, o réu DD não quis comprar (para si) o referido veículo, apresentando-se como (aparente) comprador, apenas para ocultar o verdadeiro beneficiário do negócio - o pai da autora», nem que «Não foi o réu DD quem suportou o valor de € 13 500,00 referido em X., que foi pago exclusivamente pelo falecido pai da autora, e foi o falecido HH quem suportou todos os custos com os registos de transmissão de propriedade», e nem que «A formalização da venda em nome do réu DD foi uma estratégia do mesmo e do HH para impedir a penhora do veículo por credores deste» (cfr. factos não provados nºs. 28 a 32). Portanto, aquela não alcançou comprovar a verificaçãode uma realidade factual susceptível de preencher os três aludidos requisitos legais da simulação, acompanhando-se, nesta parte, a sentença recorrida quando afirma “…não se tendo, quanto aos demais alegados negócios de venda, sequer apurado a existência de qualquer divergência de vontades, pelo que são de todo infundadas as sucessivas simulações invocadas…”.
Acresce que a matéria de facto que ficou probatoriamente demonstrada relativamente a este contrato de compra e venda mostra-se totalmente “incapaz” de consubstanciar a existência de um pacto simulatório, de uma divergência intencional, e/ou de um intuito de enganar terceiros. Com efeito, resultou provado, apenas e tão só, que «a ré C... foi declarada insolvente em 21/9/2012», que «o veículo HH foi apreendido para a massa insolvente em 22/2/2013», que «em 05.03.2013, no âmbito do processo de insolvência da C..., o réu DD apresentou uma proposta de aquisição da viatura automóvel HH, que foi aceite pelo Administrador de Insolvência, em 28.03.2013» e que «o réu DD, em 01.04.2013, entregou um cheque no valor de €13.500,00 e o Administrador de Insolvência, após confirmar o pagamento do cheque, que foi sacado sobre conta da titularidade do réu DD, entregou ao réu DD a respetiva declaração de venda, assim como o veículo automóvel HH., acompanhado das suas chaves» [cfr. factos provados U a X], o que traduz consonância e conformidade entre dois elementos (o externo e o interno) da declaração negocial (e não a existência de uma divergência).
Por conseguinte, porque são factos constitutivos do direito que invocou (declaração de nulidade em virtude de simulação) mas Autora/Recorrente não cumpriu o ónus de prova dos requisitos legais de que depende a verificação do vício na formulação da vontade sob a forma de simulação, tal constitui razão jurídica bastante e suficiente para o Tribunal jamais poder concluir que o contrato de compra e venda de veículo celebrado entre o Réu DD e a Massa Insolvente da C... foi simulado (e, por via disso, poder declará-lo nulo).
E assinale-se que as alegações/conclusões que produziu, no âmbito desta questão no recurso, carecerem de relevância factual e jurídica para colocar em causa o supra referido entendimento.
Por um lado, embora nas conclusões (tal como nas alegações) afirme a sua «não concordância» com a decisão do Tribunal a quo quer por «ter ficado convencido de que o recorrido adquiriu e quis efetivamente, por si e para si, adquirir a propriedade da viatura», quer por «considerar ter existido prova do pagamento do preço acordado nesse “negócio”», quer «importar apurar quem é que efetivamente suportou esse pagamento e não foi provado quem é que efetivamente suportou esse preço», certo é que, nesta parte, a Autora/Recorrente não impugnou a decisão de facto que integra a sentença recorrida, nomeadamente, não pugnou pela incorreção do julgamento dos «concretos ponto de facto» contidos nos factos não provados nºs. 29 e 30 [«o réu DD não quis comprar (para si) o referido veículo, apresentando-se como (aparente) comprador, apenas para ocultar o verdadeiro beneficiário do negócio - o pai da autora», e «não foi o réu DD quem suportou o valor de € 13 500,00 referido em X., que foi pago exclusivamente pelo falecido pai da autora»] e nos factos provados W e X [«a ré C... foi declarada insolvente em 21/9/2012», que «o veículo HH foi apreendido para a massa insolvente em 22/2/2013», que «em 05.03.2013, no âmbito do processo de insolvência da C..., o réu DD apresentou uma proposta de aquisição da viatura automóvel HH, que foi aceite pelo Administrador de Insolvência, em 28.03.2013» e que «o réu DD, em 01.04.2013, entregou um cheque no valor de €13.500,00 e o Administrador de Insolvência, após confirmar o pagamento do cheque, que foi sacado sobre conta da titularidade do réu DD, entregou ao réu DD a respetiva declaração de venda, assim como o veículo automóvel HH., acompanhado das suas chaves»].
Ora, sem que estas matérias (por via da impugnação da decisão de facto que, nesta parte, inexistiu) fossem, respectivamente, eliminada da factualidade não provada e integrada factualidade provada [cfr. nºs. 29 e 30] e eliminada da factualidade provada e integrada na factualidade não provada [cfr. alíneas W e X], jamais se podem ter como preenchidos todos requisitos legais da simulação. Acresce que a conjugação entre tais factos não provados e tais factos provados permite atestar, de forma inequívoca, que, ao contrário do que a Autora/Recorrente pretende fazer crer em sede de recurso, que foi efectivamente o Réu DD quem suportou o pagamento do preço e não o falecido pai da Autora, como esta sempre alegou quer na petição inicial quer no articulado superveniente (assinalando-se aqui que, nestes articulados, jamais foi suscitada qualquer questão relativa a «pagamentos formais»).
Logo, não encerrando o presente recurso uma concreta impugnação da decisão de facto nesta parte, as conclusões 2ª e 3ª apresentam-se infundadas e destituídas de qualquer relevância jurídica (mais não constituem do que mera discordância, sem qualquer efeito jurídico concreto), porque não alteram (nem podem alterar) a decisão de facto do Tribunal a quo na parte em considerou como não demonstrada a matéria que integra os aludidos factos não provados nºs. 29 e 30 e na parte em que considerou demonstrada a matéria que integra os aludidos factos provados W e X.
Por outro lado, nas conclusões (na sequência do aduzido no «corpo alegatório»), invoca-se, agora (e apenas agora), que «recai sobre o DD a prova de que suportou o preço declarado a expensas suas sem que tivesse cumprido tal ónus, e tendo sido produzida prova que permite duvidar da sua capacidade financeira para custear esse pagamento». É manifesto que a Autora/Recorrente elabora completamente em erro: em primeiro lugar, como supra já se explicou, para além do mais, não foi impugnada a decisão de facto relativamente ao facto provado X e ao facto não provado nº29, cuja conjugação comprova que foi efectivamente o Réu DD quem suportou o pagamento do preço e não o falecido pai da Autora, pelo que se mostra absolutamente infundada e irrelevante a alegação no sentido de que «este Réu não provou que foi ele quem suportou o preço» e de que «a prova produzida permite duvidar da sua capacidade financeira para custear esse pagamento»; e, em segundo lugar, como anteriormente já supra se expôs, o ónus de prova do preenchimento dos requisitos de que depende a simulação incumbia exclusivamente à Autora/Recorrente, incluindo-se aqui, portanto, o encargo de demonstrar que foi o seu falecido pai quem pagou o preço do veículo e não o Réu DD (o que não logrou satisfazer), pelo que se mostra totalmente infundada a alegação que tal ónus incumbia a este Réu.
Por fim, nas conclusões (em conformidade com o aduzido na motivação), a Autora/Recorrente alega que «o Tribunal a quo deu por provado um conjunto de outros indícios que permitem concluir pela simulação desse negócio, como é exemplo o facto de ter ficado assente que o pai da recorrente continuou a servir-se da viatura mesmo após esse “negócio” e de não ter resultado provado que o recorrido DD também se servisse dela após constar no respetivo registo como seu proprietário». Tal alegação carece integralmente de fundamento: na verdade, embora se esteja a reportar à matéria que integra o facto provado O [«Pelo menos a partir do dia 22/4/2009 e até 22/2/2013, o HH, como legal representante da “C...”, usou e circulou no veículo automóvel HH, tal como os seus antepossuidores o fizeram desde 2008»], certo é que aquela omite, de forma incompreensível e inadmissível (conduta que, aliás, roça a litigância de má fé), que tal «servir-se da viatura» era realizado como legal representante da “C...”, e não a título pessoal, acrescendo que este uso do veículo após a compra e venda aqui em causa e a falta de uso do mesmo pelo Réu DD é, por si só, absolutamente insuficiente para consubstanciar, pelo menos, os requisitos legais da simulação consistentes na «existência de um pacto simulatório e de uma divergência intencional». 
Nestas circunstâncias e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que o contrato de compra e venda do veículo automóvel entre o Réu DD e Massa Insolvente da C... não foi simulado e, por via disso, o recurso tem que improceder quanto a esta questão.
*
4.3. Da Aquisição do Direito de Propriedade por Via de Usucapião

Nos termos do disposto nos arts. 1302º/1 e 1305º do C.Civil, as coisas móveis podem ser objeto do direito de propriedade, sendo que o titular desse direito (proprietário) “goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso e fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”.
No que concerne aos modos de aquisição do direito de propriedade, estatui o art. 1306º do C.Civil que ser “por contrato, sucessão por morte, usucapião, ocupação, acessão e demais modos previstos na lei”.
O modo mais corrente de aquisição deste direito real, é o contrato de compra e venda (negócio real quod effectum), dado o efeito translativo operar por mero efeito do contrato, independentemente da entrega da coisa (cfr. arts. 408º/1 e 879º/a) do C.Civil)
A compra e venda constitui uma forma de aquisição derivada mas mostrando-se a mesma inscrita a favor do comprador no registo predial, por força do disposto no art. 7º do C.R.Predial, este beneficia da presunção legal de que o direito de propriedade existe e lhe pertence, nos precisos termos em que o registo o define (configura apenas uma presunção juris tantum, pelo que é ilidível mediante prova em contrário – cfr. art. 350º/ do C. Civil).
O referido art. 7º do C.R.Predial é subsidiariamente aplicável ao registo de veículos automóveis.
Com efeito, estatui o art. 29º do Dec. Lei nº54/75, de 12/02, que são aplicáveis, com as necessárias adaptações, ao registo de automóveis as disposições relativas ao registo predial, mas apenas na medida indispensável ao suprimento das lacunas de regulamentação própria e compatível com a natureza de veículos automóveis e das disposições contidas neste diploma e respectivo regulamento” (os sublinhados são nossos).
Inexistindo norma especifica no referido Dec.-Lei nº54/75, que regule directamente a matéria, então terão que se aplicar, ao registo de automóvel, os normativos do Código Registo Predial, por via de “integração de uma lacuna que o próprio referido art. 29º do Dec.-Lei nº54/75 resolve quando estabelece que serão aplicadas ao registo de automóveis as normas do registo de propriedade. Ocorre, neste caso, uma aplicação subsidiária ou remissivo/integradora de uma situação jurídica lacunosa, não regulada num diploma específico, que o legislador pretendeu colmatar com recurso a uma remissão para o regime geral. Neste caso, o legislador não terá entendido que o registo automóvel merecia um tratamento em diploma especifico, certamente por estimar que tratando de um móvel sujeito a registo se deveria aplicar o regime geral consagrado no diploma que rege para os demais móveis sujeitos a registo, bem como para os imóveis”[21].
Logo, por via da conjugação dos arts. 7º do C.R.Predial e 29º do Dec.-Lei 54/75, também o registo de veículo automóvel cria uma presunção de que o direito registado, na amplitude e com o conteúdo em que o foi, existe na titularidade do sujeito em nome de quem se encontra registado (presunção que é igualmente juris tantum, pelo que o valor do facto inscrito no registo automóvel também pode ser infirmado e elidido mediante prova em contrário)[22].
Para além da supra indicada fonte negocial, a aquisição do direito de propriedade pode advir da usucapião, que constitui um modo de aquisição originária deste direito, que se funda na posse reiterada e exercida durante certo lapso de tempo do direito real correspondente (cfr. art. 1287º do C.Civil), ou seja, a aquisição deste direito (mas também de outros direitos reias de gozo) por esta via “depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo, que varia em função da natureza do bem (móvel ou imóvel) sobre que incide e de acordo com os caracteres da mesma posse”[23].
A noção de posse está legalmente consagrada no art. 1251º do C.Civil: “é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real”. Este poder traduz-se na prática de actos que o exteriorizam, no exercício de poderes de facto (corpus) reveladores da aparência do direito e que exprimem ou fazem presumir a vontade de quem os pratica, na relação material que mantém com coisa, de agir como titular do direito real correspondente (animus possidendi). Como se decidiu no Ac. do STJ de 21/02/2019[24], “III. A posse é integrada por dois elementos: o corpus e o animus. IV. O corpus, elemento material, corresponde aos atos materiais praticados sobre a coisa com o exercício de certos poderes sobre a mesma, enquanto o animus, elemento psicológico, equivale à intenção de agir como titular do direito a que o exercício do poder de facto se refere”.
Mas nem toda a posse é idónea à constituição de direitos reais por usucapião (incluindo o direito de propriedade): como decorre do disposto no art. 1297º do C.Civil, só a posse pública (a que se exerce de modo a poder ser conhecida pelos interessados) e pacífica (a que foi adquirida sem violência), é apta para a aquisição, ou seja, é susceptível de conduzir à constituição do direito real de propriedade por usucapião. Assim, “revestindo a posse essas características - pública e pacífica – e sendo exercida por certo lapso de tempo, pode o possuidor exercer, com base nela, o direito potestativo que o artigo 1287º do Código Civil lhe confere, posto que a usucapião não é de verificação automática, muito embora a sua invocação determine a aquisição originária do direito real, o qual nasce ex novo na data do início da posse, como decorre do estatuído no artigo 1288º do Código Civil”[25].
Já quanto ao prazo exigido para a mesma operar, no que concerne a direitos reais sobre coisas móveis sujeitas a registo, havendo título de aquisição e registo deste, varia consoante a posse seja de boa ou má fé: sendo de boa fé, é de 2 anos, mas sendo de má fé, esse prazo será de 4 anos. Mas não havendo registo, o prazo de 10 anos independentemente da boa fé do possuidor e da existência de título (cfr. art. 1298º do C.Civil).
Como um dos meios de defesa do direito de propriedade, o legislador consagrou a acção de reivindicação (rei vindicatio) no art. 1311º do C.Civil: “O proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence” (nº1).
Esta acção de reivindicação caracteriza-se por dois pedidos: o reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa (pronuntiatio) e o pedido de condenação do réu na restituição da mesma (condemnatio), sendo que o primeiro pode estar implícito no segundo. Já a sua causa de pedir é constituída pelo direito de propriedade do reivindicante sobre a coisa (aquisição originária ou derivada) e pela “lesão” que desse direito provocada pela pessoa que detém ou possui a coisa indevidamente, sendo essencial que o reivindicante tenha um título legítimo de aquisição do seu direito de propriedade, e que se apresente como não tendo dúvidas acerca deste seu direito sobre a coisa e respectivos limites[26].
Revertendo ao caso em apreço, em sede de recurso, a Autora/Recorrente impugna também a sentença recorrida na parte em que não reconheceu a aquisição originária do direito de propriedade sobre o veículo a favor do seu pai, defendendo, essencialmente, que: «da matéria de facto dada por provada resultam factos que só poderiam permitir pela atuação daquele, pelo menos desde 2009 e até à data da sua morte, mas antes disso já pelos seus antepossuidores, com corpus e animus - vd. factos dados por provados elencados sob os pontos, Q, R, S e T; não se poderia concluir que o seu pai atuou como mero detentor, mas antes como verdadeiro possuidor da viatura e assim sucedeu mesmo após o recorrido DD ter registado a aquisição de propriedade (formal) a seu favor e sem que se fizesse prova de que o próprio recorrido utilizasse essa viatura» - cfr. conclusões 6ª a 8ª.
Também aqui não lhe assiste qualquer razão. Concretizando.
Na sentença recorrida, o Tribunal a quo considerou que:
“Da matéria de facto assente retira-se que, pelo menos a partir do dia .../.../2009 e até .../.../2013, o falecido HH, como legal representante da “C...”, usou e circulou no veículo automóvel HH, tal como os seus antepossuidores o fizeram desde 2008, em qualquer hora e em qualquer lugar, de forma ininterrupta, à vista de todos e sem qualquer oposição, tendo, no referido período de tempo, levado a sua filha à escola e tendo-se deslocado para o respetivo trabalho e usado o veículo em viagens de férias e fins de semana.
Ora, considerando que os atos de posse que foram levados a cabo pelo falecido HH não foram praticados por direito próprio, mas como representante legal da sociedade C..., há que considerá-lo como mero detentor da viatura no período compreendido entre 22/4/2009 e até 22/2/2013, nos termos do art. 1253.º, alin. c), do Código Civil, e como efetiva possuidora da viatura a sua representada, a sociedade C..., nos termos do art. 1252.º, n.º1, do Código Civil, não podendo, por isso, tal período de tempo aproveitar-lhe para a pretendida aquisição do direito de propriedade com fundamento em usucapião.
E também não pode considerar-se possuidor da viatura no período após a realização da compra à massa insolvente da ré II uma vez que não só os atos de uso quinzenal que praticou sobre a viatura (únicos que se apurou terem sido por si praticados), após tal data, não demonstram o inequívoco exercício, sobre a viatura, de um poder de facto em termos de direito de propriedade, como há que considerar que, em atenção ao negócio que foi celebrado entre a massa insolvente e o réu DD, e a entrega da chave da viatura que ocorreu ao mesmo, foi este quem efetivamente sucedeu na posse daquela sociedade insolvente (cfr. arts. 1256.º, n.º 1, e 1263.º, alin. b), do Código Civil), não havendo como, em face de tal, considerar-se o falecido como verdadeiro possuidor da viatura pois que quedou por demonstrar um qualquer ato de inversão do título da posse (cfr. art. 1265.º do Código Civil), sendo certo que, a eventual “posse” que o mesmo pudesse ter exercido após a venda ocorrida no processo de insolvência nunca teria tido a duração necessária para poder usucapir, dado que foi inferior a três anos, e, não dispondo o mesmo de título nem de registo, mostrava-se necessário um período de 10 anos de posse (cfr art. 1298.º, alin. b), do Código Civil)”.
Perante o manancial factual que resultou efectivamente provado e não provado nos autos, esta fundamentação merece, no seu sentido global, a concordância deste Tribunal ad quem, sendo que as conclusões formuladas pela Autora/Recorrente (e que supra se indicaram) não encerram argumentação jurídica susceptível de a colocar em causa.
Em primeiro lugar, embora se reporte expressamente aos factos provados Q, R, e S [«De forma ininterrupta, à vista de todos e sem qualquer oposição; No referido período de tempo, levou a sua filha à escola e deslocou-se para o respetivo trabalho, e, nesse período de tempo, foi também o veículo usado em viagens de férias e fins de semana por toda a família»], numa conduta que roça a litigância de má fé, a Autora/Recorrente omite que tais factos são sequências e complementam os factos provados L a P e omite que, de tais factos, resulta (para além do mais) inequivocamente que «em 18/03/2009, o ... decidiu-se a adquirir o veículo para a C...», que «lhe foi entregue a chave do automóvel, como representante da empresa C...» e que «a partir do dia .../.../2009 e até 22/02/2013, o HH, como legal representante da “C...”, usou e circulou no veículo automóvel HH, tal como os seus antepossuidores o fizeram desde 2008».
Neste quadro, a utilização do veículo que o falecido pai da Autora/Recorrente fez entre .../.../2009 e .../.../2013, mais não consubstancia do que uma simples detenção, já que a utilização era feita como legal representante da empresa C...: “São havidos como detentores ou possuidores precários: (…) de um modo geral, todos os que possuem em nome de outrem” - cfr. art. 1253º/c) do C.Civil.
Acresce que esta situação de mera detenção mais é reforçada e comprovada em razão da Autora/Recorrente também não ter logrado provar (ónus que lhe incumbia em exclusivo – cfr. art. 342º/1 do C.Civil) que «Foi sempre o HH, conjuntamente com BB - esta apenas até ao divórcio - quem circulou, em exclusivo, na viatura automóvel HH desde 22/2/2013 e até .../.../2016, e foi ele que sempre assegurou o pagamento do imposto de circulação e do seguro relativamente à mesma, e também foi ele que sempre levou o carro às inspeções periódicas, abasteceu combustível, ordenou a realização dos consertos que tinha por necessários e/ou convenientes, pediu orçamentos e pagou os respetivos preços, tudo isto à vista e com o conhecimento de todos, inclusivamente dos réus CC e dos administradores da “C...”» (cfr. factos não provados nºs. 19 a 22), nem que «Os atos referidos de O. a T. ocorreram ininterruptamente entre abril de 2009 e .../.../2016, e aqueles referidos de O. a S. foram levados a cabo por ... e BB por si e ante possuidores, há mais de 3, 5, 8 e 10 anos, tudo isto com a convicção de que era o único e legítimo proprietário do referido veículo» (cfr. factos não provados nºs. 25 e 26). Ora, toda esta falta de demonstração probatória (cuja verificação também foi completamente omitida na motivação e nas conclusões do recurso), impede a existência de concretos actos de posse praticados pelo falecido, em nome próprio, sobre o veículo.  
Aliás, a Autora/Recorrente também olvida que, embora não tenha cumprido os ónus legais de impugnação e, por isso, tenha sido rejeitada, impugnou a decisão de facto precisamente com vista a que «da matéria de facto dada por assente não deveriam ter ficado a constar as referências à “C... -..” nos pontos L, N, O», ou seja, aquela reconhece que, perante o integral conteúdo destes factos provados, está atestado que a sua utilização era em nome da referida sociedade, e não em nome próprio. Refira-se que o titular do direito de propriedade de determinado bem pode exercer a posse do mesmo por intermédio de terceiro - cfr. art. 1252º/1 do C.Civil -, podendo conceder o uso e utilização do mesmo a terceiro sem que isso signifique uma transferência ou perda da posse.
Deste modo, ao contrário do que a Autora/Recorrente pretendeu fazer crer em sede de recurso, no período compreendido entre .../.../2009 a .../.../2013, o seu falecido pai não teve a posse do veículo objecto da presente acção.
Em segundo lugar, embora se reporte expressamente ao facto provado T, a Autora/Recorrente esquece que a matéria contida no mesmo comprova que, após o contrato de compra e venda celebrado entre o Réu DD e a Massa Insolvente em .../.../2013, o seu falecido pai apenas fazia uma utilização esporádica do veículo: «Após .../.../2013 e até ao seu falecimento, o falecido HH, por si, usou a viatura quando se deslocava aos fins de semana a Portugal». E também esquece que também não logrou provar (ónus que lhe incumbia em exclusivo – cfr. art. 342º/1 do C.Civil) que tal utilização ocorria «com a convicção de que era o único e legítimo proprietário do referido veículo» (cfr. factos não provados nºs. 25 e 26).
Deste modo, e independentemente do veículo ser utilizado ou não pelo Réu DD após aquele contrato de compra e venda, facto provado T é absolutamente insuficiente para consubstanciar uma situação de verdadeira posse por parte do seu falecido pai sobre veículo a partir de Abrl de 2013.
Nestas circunstâncias, conclui-se que, desde .../.../2009 e até ao seu falecimento, o falecido pai da Autora/Recorrente não teve a posse do veículo automóvel em causa, o que, por si só impede, a verificação da usucapião (a qual se funda na posse reiterada e exercida durante certo lapso de tempo do direito real correspondente).
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que o falecido pai da Autora não adquiriu, por usucapião, o direito de propriedade sobre o veículo automóvel e, por via disso, o recurso tem que improceder também quanto a esta questão.
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4.4. Do Mérito do Recurso

Perante as respostas alcançadas quanto às questões que se impunham decidir, deverá julgar-se totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Autora/Recorrente, devendo ser mantida a decisão recorrida.
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4.5. Da Responsabilidade quanto a Custas
Improcedendo o recurso, porque ficou vencida, deverá a Autora/Recorrente suportar as respectivas custas - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
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5. DECISÃO

Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação interposto pela Autora/Recorrente e, em consequência, confirmar e manter a sentença recorrida.
Custas do recurso de apelação pela Autora/Recorrente.
* * *
Guimarães, 27 de Abril de 2023.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
 
Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício;
1ºAdjunto - José Carlos Pereira Duarte;
2ºAdjunto - Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais.


[1]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139.
[2]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[3]Cfr. Abrantes Geraldes, in obra referida, p. 196 e 197.
[4]Juiz Conselheiro Lopes do Rego, proc. nº233/09.4TBVNC.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[5]Juíza Conselheira Ana Luísa Geraldes, proc. nº824/11.3TTLRS.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[6]No mesmo sentido, entre outros, Acs. STJ de 31/05/2016, Juiz Conselheiro Garcia Calejo, proc. nº1572/12.2TBABT.E1.S1, de 19/02/2015, Juiz Conselheiro Tomé Gomes, proc. nº299/05.6TBMGD.P2.S1, e de 28/04/2016, Juiz Conselheiro Abrantes Geraldes, proc. nº1006/12.2TBPRD.P1.S1, disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj.
[7]Juiz Conselheiro Pinto de Almeida, proc. nº29/12.6TBFAF.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj, citado no Ac. STJ 03/03/2016, Juíza Conselheira Ana Luísa Geraldes, proc. nº861/13.3TTVIS.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[8]In obra referida, p. 200.
[9]Juiz Conselheiro Bernardo Domingos, proc. nº756/14.3TBPTM.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[10]Ver também o mais recente Ac. STJ 02/02/2022, Juiz Conselheiro Fernando Augusto Samões, proc. nº1786/17.9T8PVZ.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[11]Juíza Desembargadora Maria João Matos, proc. nº501/12.8TBCBC.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.
[12]Cfr. Mota Pinto, in Teoria Geral do Direito Civil, 3ª edição, p. 416.
[13]Cfr. Mota Pinto, in obra referida, p. 422.
[14]Cfr. Mota Pinto, in obra referida, p. 462.
[15]Juiz Conselheiro Fernando Baptista, proc. nº17697/18.8T8LSB.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[16]In Teoria Geral do Direito Civil, 8ª edição, 2015, p. 598.
[17]In Teoria Geral da Relação Jurídica, volume II, p. 171 e ss.
[18]Cfr. Mota Pinto, in obra referida, p. 471 e cfr. Ac. STJ 09/03/2022, Juiz Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves, proc. nº1857/11.5TBMAI.P2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[19]cfr. Ac. STJ 07/02/2017, Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas, proc. nº3071/13.6TJVNF.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[20]Ac. STJ 14/02/2008, Juiz Conselheiro Oliveira Rocha, proc. nº08B180, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. No mesmo sentido, entre outros, Ac. STJ 14/09/2021, Juiz Conselheiro Ilídio Sacarrão Martins, proc. nº1307/16.0T8BRG.G1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj e o citado Ac. STJ 07/02/2017, Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas, proc. nº3071/13.6TJVNF.G1.S1.
[21]Ac. STJ 10/07/2012, Juiz Conselheiro Gabriel Catarino, proc. nº115/03.3TBCCH.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. No mesmo sentido, Ac. STJ 19/02/2004, Juiz Conselheiro Ferreira de Almeida, proc. nº03B4369, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[22]Cfr. o citado STJ 10/07/2012, Juiz Conselheiro Gabriel Catarino, proc. nº115/03.3TBCCH.E1.S1.
[23]Ac. do STJ de 06/04/2017, Juiz Conselheiro Nunes Ribeiro, proc. nº1578/11.9TBVNG.P1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[24]Juiz Conselheiro Olindo Geraldes, proc. nº423/11.0TBHRT.L2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[25]Cfr. Ac. do STJ de 08/10/2015, Juíza Conselheira Fernanda Isabel, proc. nº1143/06.2TBCLD.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj.
[26]Cfr. Ac. desta RG de 28/01/2021, Juíza Desembargadora Margarida Almeida Fernandes, proc. nº138/18.8T8MGD.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg.