Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1717/07.4TJPRT-A.G1
Relator: HELENA MELO
Descritores: INVENTÁRIO
CABEÇA DE CASAL
CUMPRIMENTO DOS DEVERES
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/24/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

. As cópias fotográficas/fotocópias de documentos estranhos aos arquivos de repartições notariais ou doutras repartições públicas têm o valor de pública-forma, se a sua conformidade for atestada por notário ou por qualquer das pessoas a que alude o artº 1º, nº 3 do DL 28/2000, de 13 de Março, aplicando-se o disposto no art. 386º do Código Civil.

.Até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 28/2000, os notários tinham a competência exclusiva da conferência de fotocópias e da atribuição de pública-forma aos documentos que lhe eram apresentados para o efeito. O referido Decreto-Lei veio conferir competência para a conferência e certificação de fotocópias também às Juntas de Freguesia, aos Correios, S. A., às câmaras de comércio e de indústria, aos advogados e aos solicitadores.

. E o nº 5 do art. 1º desse Decreto-Lei, veio expressamente determinar, para que dúvidas não subsistissem, que “As fotocópias conferidas nos termos dos números anteriores têm o valor probatório dos originais”.

. As públicas-formas têm a força probatória do respectivo original se a parte contra a qual forem apresentadas não requerer a exibição desse original; requerida a exibição, a pública-forma não tem a força probatória do original se este não for apresentado ou, sendo-o, se se não mostrar conforme com ele (artigos 387.º e 386.º do Código Civil).

.O cabeça de casal tem um dever acrescido de colaboração que os demais interessados não têm, embora todos devam colaborar nos termos do artº 417º, nºs 1 e 2 do CPC. Ao cabeça de casal incumbe fornecer os elementos necessários para o prosseguimento do inventário (o que está hoje consagrado no artº 23º da Lei 23/2013, de 5 de Março que aprovou o Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário).

.Ao cabeça de casal incumbe prestar declarações – iniciais e complementares – apresentar a relação de bens, indicar o valor a atribuir aos mesmos e constituir-se fiel depositário dos bens arrolados.

.O cabeça de casal para além de relacionar os bens, deve acompanhar a relação de bens de todos os elementos necessários à sua identificação e ao apuramento da situação jurídica e são estes elementos necessários que a apelante não pretende juntar.

.Tendo a cabeça de casal sem causa justificativa se recusado a juntar aos autos os originais dos documentos dos quais tinha junto cópias com o valor de públicas formas, apesar de notificada duas vezes para os juntar, mostram-se violados com gravidade os deveres aos quais, enquanto cabeça de casal está adstrita, justificando-se a sua remoção.
Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

Procedeu-se a inventário, em cumulação, por óbito de (…) e (…) e onde são interessadas, as filhas de ambos, (…), nomeada cabeça de casal e (…).

A cabeça de casal veio interpor recurso do despacho que determinou a sua remoção do cargo de cabeça-de-casal, designando para o exercício de tais funções, em sua substituição, a interessada (…).

Conclui as suas alegações do seguinte modo:

1) Porque, a cabeça de casal sempre cumpriu com tudo o que lhe foi ordenado no presente Processo de Inventário;
2) Porque a interessada, (…), tem mantido através dos 11 anos do Processo, uma animosidade manifesta contra a cabeça de casal;
3) Porque a razão apresentada pela Maria perante a primeira apresentação dos documentos comprovativos das entregas feitas pelos inventariados a Si própria e às Suas Filhas, foi a de “Não Eram Legíveis”;
4) Porque perante a segunda apresentação dos documentos, devidamente certificada, já DEIXOU DE DIZER QUE ERAM INELIGIVEIS;
5) Porque, desde o início do Processo, a Maria pede a remoção da cabeça de casal, embora declare expressamente que NÃO QUER ASSUMIR TAL CARGO;
6) Porque, a cabeça de casal apresentou os documentos, devidamente certificados, em papel;
7) Porque NUNCA houve Despacho a dizer que Originais eram iguais a livros de cheques;
8) Porque os livros de cheques, em número de várias dezenas, são impossíveis de transmitir para o Processo de forma digital;
9) Porque tais livros de cheques retratam toda a vida Económica do inventariado, quer na sua vertente pessoal, quer na sua vertente profissional de advogado;
10) Porque, esta parte profissional, por respeitar à vida de terceiros, seus clientes, está protegida por sigilo profissional;
11) Porque, a maior parte dos livros de cheques Não têm qualquer interesse para os presentes autos;
12) Porque, a Recorrente exerce as funções de cabeça de casal e administradora dos bens de seu falecido Pai, desde a VIDA DESTE;
13) Porque, o inventariado meses antes de falecer entregou a administração das suas propriedades à Recorrente, sua Filha mais velha;
14) Porque a Recorrente tem exercido o cargo para cumprir a PALAVRA DADA A SEU PAI, que lhe solicitou que o fizesse e preservasse o património como ele o fez, mesmo contra a vontade da sua mulher, ora inventariada e da Filha mais nova;
15) Porque, na perspectiva da Recorrente, a posição da sua Irmã consubstancia uma “Revanche” pela animosidade que lhe vota há muitos, muitos anos;
16) Porque os documentos apresentados pela Recorrente/ cabeça de casal, cumprem o disposto nos artº171 e 171-A do Cod. De Notariado;
17) Porque, a lei atribuí a força probatória dos artºs 383; 384; 386 e 387 do CC, às cópias de documentos devidamente certificadas como as que a cabeça de casal juntou aos autos por 2 vezes;
18)Porque, a Jurisprudência e a doutrina indicam que a remoção do cabeça de casal SÓ pode OCORRER quando há um grave prejuízo para o Processo;
19) Porque o Douto Despacho causa um GRAVE PREJUIZO para o PROCESSO, com todos os atrasos daí derivados para a Herança e os respectivos Herdeiros;
20) Porque, a Maria já disse nos autos que NÃO QUER SER CABEÇA DE CASAL;
21) Porque o Ilustre Magistrado a quo podia e devia, IN EXTREMIS, ordenar que a Secretaria tirasse as cópias necessárias a expensas da Recorrente;
22) Porque NUNCA a Recorrente quis, ou quer, condicionar o exame dos documentos pela sua Irmã;
23) Porque, a prolação do despacho sub judice atrasa o Processo que já tem 11 anos e que a cabeça de casal deseja terminar o mais rápido possível para não deixar “problemas” aos seus Filhos;
24) Porque, o Despacho em Recurso traz um enorme prejuízo moral e profissional para a cabeça de casal;
25) Porque, a lei e a Jurisprudência mandam aplicar esta sanção quando existe um Grave Prejuízo para o Processo;
26) Porque, a colaboração da cabeça de casal com o Tribunal SEMPRE FOI E É TOTAL;
27) Porque os documentos juntos aos autos, EM PAPEL, são ORIGINAIS e têm essa força probatória;
28) Porque o Douto Despacho em Recurso violou, frontalmente o disposto nos artºs 2.086 do CC; os artºs 171 e 171-A, do Cod. de Notariado; os artºs 383;384;386 e 387, do CC; e o artº 144 do actual CPC,

E, por tudo o mais que V. Exªs Doutamente suprirão, deve o presente Recurso ser julgado PROCEDENTE e PROVADO, e o Douto Despacho em análise SER REVOGADO, e, por consequência, a Recorrente ser mantida como Cabeça de Casal nestes autos.

Não foram oferecidas contra-alegações.

II – Objeto do recurso

Considerando que:

. o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações dos recorrentes, estando vedado a este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso; e,
. os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu acto, em princípio delimitado pelo conteúdo do acto recorrido,

a questão a decidir é a seguinte:

. se a cabeça de casal, ao reiteradamente recusar-se a juntar aos autos os originais dos documentos, mas disponibilizando-se para os exibir em dia e hora marcada, não cumpriu os deveres a que está adstrita, devendo ser removida.

III – Fundamentação

Com base nos documentos juntos aos autos, mostram-se apurados os seguintes factos com relevo para a decisão:

.1. O presente inventário foi requerido pela interessada Maria (…) que indicou para o cargo de cabeça de casal, a sua irmã, a co-interessada, Maria (…), “uma vez que é herdeira legitimária mais velha (artº 2080º, nº 4 do Código Civil, sem prejuízo de vir a ser requerida oportunamente a sua remoção”.
.2. Em 26 de Janeiro de 2009 a interessada M. J. prestou compromisso de honra de bem desempenhar as suas funções, prestou declarações, identificando o nome dos herdeiros, estado civil e morada e requereu a suspensão do processo por existirem desde Janeiro de 2006 três processos em tribunal que identificou com reflexo no inventário e arguiu a incompetência territorial do tribunal.
.3.A fls 1350 a 1384-A (fls 174 e ss do apenso de recurso) foi junta pela apelante a relação de bens rectificada.
.4.As netas dos inventariados, Maria (..) (fls 200 a 202 do apenso) e (…) (fls 203 a 205) vieram deduzir impugnação e requerer, respectivamente, que a cabeça de casal fosse notificada para juntar os cheques alegadamente passados pelo inventariado a seu favor e os documentos comprovativos dos pagamentos e depósitos alegadamente feitos pelo inventariado a favor das impugnantes.
.5.A interessada Maria veio apresentar reclamação à relação de bens (fls 1392 a 1425 do p.p. e 207 a 240 do apenso de recurso) e requerer, nomeadamente, que a cabeça de casal seja notificada “para vir juntar aos autos o “arquivo” dos inventariados a que alude a relação de bens e ainda todos os documentos comprovativos das pretensas doações/legados à aqui requerente e netos dos inventariados bem como ao genro e ex genro, todos melhor identificados no requerimento de relação de bens apresentada pelo cabeça de casal para prova do alegado na presente reclamação”.
.6.A cabeça de casal respondeu à reclamação (fls 1455 a 1457 do processo principal e fls 241 a 243 do apenso)
.7.Por despacho de 31.08.2017 (fls 1521 do p.o. e 249 do apenso) foi ordenada a notificação da cabeça de casal para no prazo de 10 dias juntar aos autos os documentos requeridos a fls 1384-C (pela impugnante M. M.) , 1390 (pela impugnante J. M.) e 1414 - Ponto V (pela interessada M. P. ), “por serem relevantes para a descoberta da verdade”.
.8.Por requerimento de 18 de Setembro de 2017 ( fsl 1526 e 1527 do p.p. e 251 e 252 do apenso) veio a cabeça de casal, invocando a complexidade da digitalização dos documentos cuja junção lhe foi ordenada e os seus afazeres profissionais de advogada – intervenção num mega julgamento –solicitar a prorrogação do prazo de 10 dias por mais 15 dias, a qual foi deferida por despacho de 25.09.2017 (fls 1528 e 253 do apenso).
.9.Por requerimento de 17 de Outubro de 2017 a c.c. veio requerer a prorrogação do prazo por mais 30 dias (fls 1529 e 1530 e fls 254-255 do apenso), a qual foi deferida por despacho de 19.10.2017, por se ter entendido que a prorrogação requerida não acarretava demora acrescida nos presentes anos, por haver ainda necessidade de se proceder à realização de prova testemunhal.
.10.Em 21.11.2017, a cabeça de casal veio juntar cópia dos documentos e requerimento onde discriminava cada cheque, indicando valor, data e a quem se destinava e para que fim (fls 1547-1693 e fls 258-405).
.11.Em resposta a interessada Maria veio invocar, nomeadamente, que os mesmos eram ilegíveis e requerer a junção dos originais (fls 1710-1711/466-467).
.12.Em 07.12.2017 foi proferido despacho concedendo as partes dez dias para juntar os originais e onde se consignou “efectivamente, grande parte dos documentos juntos pela cabeça de casal são ilegíveis, correspondem apenas a partes de documentos ou contêm rasuras, tudo prejudicando a sua leitura e interpretação pelas restantes partes e o tribunal.”
.13.Por requerimento de 8 de Janeiro de 2018 (fls 1715-1716 e 410-411) a cabeça de casal veio dizer que “os originais em papel são documentos em poder da cabeça de casal que não podem sair da sua mão, mas que sempre estiveram à disposição do tribunal para serem exibidos” e que iria tentar juntar uma versão mais legível dos mesmos, requerendo a concessão de um prazo não inferior a 20 dias para o efeito.
.14.A interessada Maria veio opor-se, requerendo que fosse ordenada a notificação da cabeça de casal para dar cumprimento ao que já lhe tinha sido ordenado – junção dos originais – porquanto a concessão de prazo para a junção de nova digitalização apenas servia para protelar o andamento dos autos (fls 1717-1720; 413-514).
.15.Por requerimento de 28.01.2018, a cabeça de casal veio juntar de novo os documentos, dizendo fazê-lo em obediência a douto despacho, fls 1721-1873 /416-564)., tendo junto 253 documentos certificados pelo Dr. ..., advogado, que atestou a sua conformidade com os originais.
.16.Em 8.12.2018 foi proferido o seguinte despacho (fls 1875/565) – “Fls 1715 – As digitalizações agora juntas não suprem todas as insuficiências assinaladas no despacho de fls 1415, já que são reproduções parciais e contém rasuras.
Por outro lado, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 386º e 387º, nº 2 do Código Civil, a parte contra quem são apresentadas as cópias, pode requerer a exibição dos originais.”
.17.A cabeça de casal veio dizer (Fls 1875/1876 e 566-567 que pese embora tenha verificado que os documentos são bem legíveis no Citius e que a interessada Maria anda a levantar injustificadamente obstáculos, “para que não haja lugar a dúvidas e caso a interessada Maria o deseje a signatária dispõe-se a exibir-lhe nesse Tribunal, em dia e hora que V.Exa. marcar e que desde já se sugere que seja, por motivos da agenda profissional, 26, 28 de Fevereiro; 2, 5, 7, 9 e 14 de Março”.
.18.Em 21.02.2018, foi proferido o seguinte despacho: “Fls 1875 – Após ter sido determinado por duas vezes – fls 1713-1874 – a junção dos originais dos documentos cujas cópias vem juntados aos autos, a Cabeça de casal persiste em não cumprir o determinado.
Face ao exposto, determino que sejam notificados a Cabeça de Casal e os Interessados para que se pronunciem, no prazo de 10 dias, sobre a eventual destituição da Cabeça de Casa, nos termos do artº 2086º, nº1, al. c), do Código Civil”.
.19.A interessada Maria vem pugnar pela junção dos originais e pedir a confiança do processo, após a junção dos originais (fls 1877).
.20. A cabeça de casal veio opor-se à remoção do cargo de cabeça de casal, porque sempre cumpriu o que lhe foi determinado e veio dizer que “porque não pode desfazer-se dos manuscritos pelas razões acima apontadas no n 6 deste articulado, a signatária vai anexar em papel a este requerimento 174 fotocópias certificadas dos “canhões de cheques” de seu pai .”
(…)
As cópias certificadas, que têm o mesmo valor dos manuscritos, os quais não podem correr o risco de se extraviarem, seguirão em papel por Correios Expresso para esse tribunal, conforme comprovativo junto, para que possam ser consultadas por todos os que nelas tiverem interesse, disponibilizando-se desde já a signatária, caso a sua irmã o pretenda, a enviar-lhe as cópias para a sua Ilustre Mandatária, a fim de lhe poupar uma viagem de ida e volta de Lisboa a Vila Verde.
Confia a cabeça de casal que desta vez tenha dado fiel cumprimento ao Douto Despacho de V.Exa., disponibilizando-se para completar o mesmo, caso assim se entenda necessário” (fls 1884-1886/fls 21-23)”.
.21.A interessada Maria veio defender a remoção do cargo da cabeça de casal, requerendo a nomeação de pessoa idónea que não seja herdeiro e seja adequadamente remunerada (fls 2152-2153(152-153).
.22.A cabeça de casal, em 13 de Março de 2018, em resposta a um requerimento da interessada Maria, veio dizer que sempre cumpriu o que lhe foi determinado e opor-se à nomeação de cabeça de casal exterior à herança, até porque a herança não tem rendimentos e sugerir que o tribunal, providencie uma conferência “para que a cabeça de casal exiba as dezenas de livrinhos de cheques de seus pais para que a Maria veja a conformidade das cópias certificadas apresentadas com a relação de bens feita inicialmente.”(fls 2155-2156 e fls 569-570).

Vejamos:

A remoção do cabeça de casal constitui um incidente do processo de inventário, encontrando-se subordinado às regras gerais dos incidentes, conforme expressamente resulta do disposto no artº 1339º, nº 3, do Código de Processo Civil, aplicável aos presentes autos.

Em primeiro há que salientar que a apelante nunca interpôs recurso dos despachos que ordenaram a junção dos originais, em 07.12.2017 e 08.02.2018, pelo que transitaram em julgado:

Em 07.12.2017 foi proferido despacho concedendo as partes dez dias para juntar os originais e onde se consignou “efectivamente, grande parte dos documentos juntos pela cabeça de casal são ilegíveis, correspondem apenas a partes de documentos ou contêm rasuras, tudo prejudicando a sua leitura e interpretação pelas restantes partes e o tribunal.”(fls 1713)

E, em 8.02.2018, foi proferido o seguinte despacho (fls 1875/565):

“Fls 1715 – As digitalizações (1) agora juntas não suprem todas as insuficiências assinaladas no despacho de fls 1415, já que são reproduções parciais e contém rasuras e ordenou a notificação da cabeça de casal para juntar os originais, com as cominações previstas nos artigos 417º, nº 2 do Código de processo Civil, e 2086º, nº1, alínea c) do Código Civil, caso não seja cumprido o determinado, no prazo de 10 dias”.

No seguimento do despacho de 21.02.2018 (fls 1883-568) que ordenou a notificação dos interessados e da cabeça de casal para se pronunciarem sobre a eventual destituição da cabeça de casal, veio esta referir que não pode desfazer-se dos manuscritos pelo perigo de extravio bem real porque foi pedida a confiança do processo até Lisboa, “sujeito a hipotéticas vicissitudes de sinistro, roubo, etc, na viagem que ninguém pode dizer que não existam”, pelo que vai anexar em papel a este requerimento 174 fotocópias certificadas dos “canhões de cheques” de seu pai e ainda que “as cópias certificadas, que têm o mesmo valor dos manuscritos, os quais não podem correr o risco de se extraviarem”.

A cabeça de casal invocou, assim, como motivo para não junção dos originais:

. no seguimento do despacho de 07.12.2017, por requerimento de 8 de Janeiro de 2018 (fls 1715-1716 e 410-411) veio dizer que “os originais em papel são documentos em poder da cabeça de casal que não podem sair da sua mão, mas que sempre estiveram à disposição do tribunal para serem exibidos” e que iria tentar juntar uma versão mais legível dos mesmos;
. e no seguimento do despacho de 21.02.2018 (fls 1883-568) que ordenou a notificação dos interessados e da cabeça de casal para se pronunciarem sobre a eventual destituição da cabeça de casal, por não ter procedido à junção dos originais conforme lhe foi ordenado, veio esta referir que, porque não pode desfazer-se dos manuscritos pelas razões acima apontadas no n 6 deste articulado (2), a signatária vai anexar em papel a este requerimento 174 fotocópias certificadas dos “canhões de cheques” de seu pai e ainda que “as cópias certificadas, que têm o mesmo valor dos manuscritos, os quais não podem correr o risco de se extraviarem” (fls 1884-1886/21-23).

A cabeça de casal recusou-se a juntar os originais porque:

. entendeu que os documentos não podiam sair da sua mão;
. havia o risco dos documentos originais se extraviarem.

O que está em causa é se a conduta da cabeça de casal recusando a junção dos originais ao processo, invocando o receio do seu extravio e não poder desfazer-se deles, embora se disponibilizando a apresentá-los no dia e hora que lhe for designado pelo tribunal, para nessa ocasião os exibir, mas sem permitir que os mesmos fiquem nos autos, constitui causa justificadora da sua remoção.

Dispõe a alínea c) do nº 1 do artº 2086º do CC que o cabeça-de-casal pode ser removido, sem prejuízo das demais sanções que no caso couberem, se não cumprir no inventário os deveres que a lei lhe impuser.

O Mmo Juiz fundamentou a decisão de remoção da cabeça de casal nomeadamente no seguinte:

“Dado o número e dimensão dos documentos em causa, é indispensável a sua junção, pois que o seu exame será necessariamente demorado, não competindo à Cabeça-de-casal condicionar o como, o onde e o quando de tal exame - que, necessariamente, será efectuado pelas partes nos prazos fixados para o exercício do contraditório, poderá passar pelo confronto de testemunhas com tais documentos no momento em que estas prestem depoimento e precederá, no que concerne ao Tribunal, a decisão a proferir quanto ao incidente de reclamação contra a relação de bens.

Por outro lado, não se afiguram legítimas as razões invocadas pela Cabeça-de-Casal para, sistematicamente, recusar a junção de tais documentos:

posto que em causa está a partilha do património dos Inventariados, não cabe invocar a tutela da respectiva privacidade, a respeito de movimentos em contas bancárias; por outro lado, sendo juntos a processo que corre termos em tribunal, com as cautelas de integridade e autenticidade dos autos que tal implica, não se vê fundamento objectivo para o receio de extravio invocado pela Cabeça-de- Casal.

Assim, no caso sub judice afigura-se existir uma manifesta e injustificada recusa por parte da Cabeça-de-Casal no cumprimento do que lhe foi determinado e, consequentemente, dos deveres processuais inerentes ao cargo que lhe foi confiado.

Impõe-se, por isso, a sua remoção.”

Estando em causa, como está, a exibição dos originais de mais de duas centenas de documentos, com múltiplas datas e valores, não se vê como é que numa conferência, como é sugerido pela apelante, seja possível que a interessada Maria, as impugnantes e o Tribunal que também tem de apreciar os documentos, possa aferir da sua conformidade com os originais, tarefa que pode exigir vários dias e que carece de tranquilidade que uma conferência com a participação de várias pessoas não permite.

Não se desconhece a doutrina citada no Ac. do TRC, de 12.04.2018, proc. nº62/18.4YRCBR, da autoria de Lopes Cardoso, em “Partilhas Judiciais “, Volume III, pag. 7 a 8: “ Atente-se, porém, em que se não está perante uma norma taxativa ( o artigo 2086º do Código Civil ), como facilmente resulta dos seus dizeres e da própria interpretação jurisprudencial. Mas daqui não se concluirá que deva generalizar-se o seu conteúdo e por forma a dar-lhe interpretação extensiva. São graves as consequências da remoção, e a situação em que moralmente se coloca aquele que prevaricou e foi removido é de molde a impressionar o julgador e diminuir, consequentemente, o prestígio e bom nome do que até então desempenhava o respectivo cargo.

Por isso mesmo a pena só terá aplicação quando a falta cometida revista gravidade e raras vezes resultará em consequência da involuntária omissão ou demora no cumprimento dos deveres. A lei exemplifica os casos em que a pena de remoção pode ser imposta e na apreciação deles e na interpretação dos fundamentos legais, ainda fica margem para um grande arbítrio do julgador.
O prejuízo causado à herança ou a potencialidade desse prejuízo são factores primaciais a atender na aplicação da referida pena “.

E a conduta da apelante não reveste gravidade?

As razões que a cabeça de casal aponta para a não junção dos documentos - que os documentos não podem sair da sua mão, mas que sempre estiveram à disposição do tribunal para serem exibidos e que não pode correr o risco dos mesmos se extraviarem -, carecem de causa justificativa. Desconhece-se o que a apelante quis dizer quando afirma que os documentos não podem sair da sua mão. Relativamente à possibilidade do extravio dos documentos, não é comum o extravio de documentos nos tribunais. Todos os dias transitam processos da 1ª instância para os Tribunais da Relação e destes para o Supremo Tribunal de Justiça e também para o Tribunal Constitucional e destes para a 1ª ou 2ª instância, e não é usual o extravio. Os Tribunais adotam práticas seguras no trânsito dos processos, pelo que o seu extravio é uma ocorrência excepcional.

A conduta da apelante muito contribuiu para o retardar dos presentes autos, os quais já foram instaurados em 2007, e que apesar de só ter duas interessadas, ainda nem chegaram à fase da conferência de interessados.
Ao cabeça de casal incumbe nomeadamente prestar declarações, juntar determinados documentos (v. g. testamento do inventariado, escrituras de doação, certidões de matriz, etc.) e outros que o tribunal determinar. Ao cabeça de casal é exigido colaboração com o tribunal. A circunstância da cabeça de casal ter junto cópias certificadas dos documentos, não impede que a parte contrária, requeira a junção dos originais e que o tribunal ordene a sua junção.

De acordo com o Código do Notariado (arts. 171º, nº 1, e 166º, nº 1), a pública forma de documentos apresentados é extraída pelo notário por meio de fotocópia ou outro modo autorizado de reprodução fotográfica. Assim, as cópias fotográficas/fotocópias) de documentos estranhos aos arquivos de repartições notariais ou doutras repartições públicas) têm o valor de pública-forma, se a sua conformidade for atestada por notário ou por qualquer das pessoas a que alude o artº 1º, nº 3 do DL 28/2000, de 13 de março, aplicando-se o disposto no art. 386º do CC.

Até à entrada em vigor do Decreto-Lei nº 28/2000, os notários tinham a competência exclusiva da conferência de fotocópias e da atribuição de pública-forma aos documentos que lhe eram apresentados para o efeito. O referido Decreto-Lei veio conferir competência para a conferência e certificação de fotocópias também às Juntas de Freguesia, aos Correios, S. A., às câmaras de comércio e de indústria, aos advogados e aos solicitadores.

E o nº 5 do art. 1º desse Decreto-Lei, veio expressamente determinar, para que dúvidas não subsistissem, que “As fotocópias conferidas nos termos dos números anteriores têm o valor probatório dos originais”. As públicas-formas têm a força probatória do respectivo original se a parte contra a qual forem apresentadas não requerer a exibição desse original; requerida a exibição, a pública-forma não tem a força probatória do original se este não for apresentado ou, sendo-o, se se não mostrar conforme com ele (artigos 387.º e 386.º do Código Civil).

O cabeça de casal tem um dever acrescido que os demais interessados não têm, embora todos devam colaborar nos termos do artº 417º, nºs 1 e 2 do CPC. Ao cabeça de casal incumbe fornecer os elementos necessários para o prosseguimento do inventário (o que está hoje consagrado no artº 23º da Lei 23/2013, de 5 de Março que aprovou o Novo Regime Jurídico do Processo de Inventário).

Ao cabeça de casal incumbe prestar declarações – iniciais e complementares – apresentar a relação de bens e indicar o valor a atribuir aos mesmos, constituir-se fiel depositário dos bens arrolados.

O cabeça de casal para além de relacionar os bens, deve acompanhar a relação de bens de todos os elementos necessários à sua identificação e ao apuramento da situação jurídica e são estes elementos necessários que a apelante não pretende juntar.
E como salienta o Mmo Juiz a quo grande parte dos documentos juntos pela cabeça de casal correspondem apenas a partes de documentos ou contêm rasuras, tudo prejudicando a sua leitura e interpretação pelas restantes interveniente e pelo tribunal.
A cabeça de casal apenas juntou os documentos relativos as alegadas doações à interessada Maria, netos e genro e ex. genro, não juntando o documento na sua integralidade, por entender que os livros de cheques, cuja junção integral é requerida, retratam toda a vida económica do inventariado, quer na sua vertente pessoal, quer na sua vertente profissional de advogado, pelo que na parte que respeita a pagamentos efectuados por terceiros seus clientes, está protegida por sigilo profissional.

O artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados (doravante designado EOA) aprovado pela Lei 145/2015, de 26/1 dispõe:

- O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo em infração disciplinar a violação daquele dever.

O segredo profissional está em estreita conexão com a lealdade e confiança devidas ao cliente, sendo considerado um direito e um dever fundamental do advogado. A obrigação do advogado de guardar segredo profissional tem como fim não só a protecção do cliente do advogado, visando a defesa dos seus interesses, mas tem ainda um âmbito mais vasto, estendendo-se a outros intervenientes, como a parte contrária (alínea e) do nº 1 do artº 92º , tendo como fim garantir razões de interesse público.

O segredo profissional abrange também documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo – art. 92.º, n.º 3 do EOA.
Considerar-se-ão, igualmente, abrangidos pelo sigilo profissional os factos contidos em comunicações, dirigidas por advogado a outro colega, nas quais se manifeste clara e equivocamente, aquando da sua expedição, o seu carácter confidencial e tais comunicações não podem constituir meio de prova (nºs 1 e 2 do art 113º do EOA).
A obrigação de guardar segredo profissional não está limitada no tempo, e existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, directa ou indirectamente, tenham tido qualquer intervenção no serviço (nº 2 do artº 92º do EOA).
O segredo profissional goza da protecção do Estado, estando salvaguardado no art. 208.º (patrocínio forense) da Constituição da Republica Portuguesa, na lei processual civil e penal, penal e em diversos outros artigos do EOA, além dos já citados.
Ora, desde logo, não se nos afigura que esteja a coberto do sigilo profissional, os pagamentos que os clientes do falecido lhe tenham feito, como contrapartida do trabalho realizado.

Quanto ao conhecimento da vida económica do inventariado:

Fazem parte da reserva à intimidade da vida privada – direito fundamental constitucionalmente consagrado e tutelado (nº 1 do artº 26º da CRP) – os dados relativos às operações passivas e activas resultantes do movimento da conta bancária de cada cidadão.
O direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (n° 1, in fine, e n° 2)que se analisa-se principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem (cfr. art. 80° do CC), co-existem com outros bens / interesses constitucionalmente protegidos, designadamente, o acesso ao direito e o direito a uma tutela jurisdicional efectiva – cfr. artº 20º da CRP, a boa e célere administração da justiça criminal, face ao dispõem os artºs 20º, 29º, 32º e 205º e segs da CRP, que justificam a divulgação desses dados, no âmbito de um processo de inventário, onde estão em causa deslocações patrimoniais do inventariado.

A actuação da apelante, de desrespeito pelo que lhe tem sido ordenado judicialmente, não é uma omissão involuntária e tem contribuído para o atraso de um processo que se pretende ágil. Não cumprindo deliberadamente e sem causa justificativa o que lhe foi determinado pelo tribunal, o seu comportamento não pode deixar de ser considerado grave, pelo que a decisão recorrida que a removeu do cargo, não merece censura.

IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
Guimarães, 24 de abril de 2019

Helena Maria Carvalho Gomes Melo
Maria João Marques Pinto Matos
Pedro Alexandre Damião e Cunha

Este acórdão tem voto de conformidade do 1º Adjunto que só assina por não estar presente (artº 153º, nº 1 do CPC).


1 - Na sequência da junção de cópias certificadas por advogado.
2 - Perigo de extravio bem real porque foi pedida a confiança do processo até Lisboa “sujeito a hipotéticas vicissitudes de sinistro, roubo, etc. na viagem que ninguém pode dizer que não existam”.