Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3/18.9PTBRG.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: CRIME PREVISTO NO ART. 292 Nº 2 DO CÓDIGO PENAL
CONTRAORDENAÇÃO PREVISTA NA ALÍNEA M) DO ART. 146 DO CÓDIGO DA ESTRADA
CRITÉRIO DISTINTIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: VERIFICADO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. O que permite distinguir o crime de condução sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, previsto no art. 292 nº 2 do Código Penal, da contraordenação por condução sob influência de substâncias psicotrópicas, prevista na alínea m) do art. 146 do Código da Estrada, é a afirmação - integrante do elemento objetivo do crime - de que o agente que exerce a condução sob aquela influência, não está em condições de o fazer com segurança, por se encontrar perturbado na sua aptidão física, mental ou psicológica.

2. Não obstante decorra da Lei 18/2007 de 17.05 e da Portaria 902-B/2007 de 13.08 que a deteção de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas se deva iniciar com um exame de rastreio (em urina, suor, saliva ou sangue) - destinado a obter a informação sobre a existência de substâncias psicotrópicas - ao qual, em caso de resultado positivo, se seguirá um exame de confirmação em amostra de sangue - destinado a obter a identificação e quantificação das mesmas substâncias -, a inexistência de exame de rastreio não impede a validade do exame sanguíneo efetuado. Impede, contudo, que se use como referência de positividade os valores que constam do quadro 2 do anexo V da portaria 902-B/2007 de 13.08.

3. Não é indiferente dizer-se que um arguido conduz sob o efeito de 5,2 ng/ml de THC-COOH-Canabinoides ou de 5,2 ng/ml THC-Canabinoides.

4. Para que se avalie a justeza de uma pena imposta pela prática de um crime de condução sob a influência de estupefacientes, é necessário, além do mais, perceber o grau de ilicitude do facto projetado no concreto valor obtido no exame de toxicologia efetuado..
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I.
No processo comum com intervenção de tribunal singular que com o nº3/18.9PTBRG corre termos pelo Juízo Local Criminal de Braga foi decidido (transcrição):

a) Condenar o arguido A. F., como autor material de um crime de condução de veículo sob influência de substâncias psicotrópicas, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 2, do C.P., na pena de 75 (SETENTA E CINCO) dias de multa, a 06,00€ (SEIS EUROS) por dia, totalizando o montante de 450,00€ (QUATRO CENTOS E CINQUENTA EUROS);
b) Condenar o arguido A. F., na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do C.P., pelo período de 6 (SEIS) meses,
c) Condenar o arguido A. F. no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 02 (duas) Unidades de Conta, a qual é reduzida a metade por força do disposto no artigo 344.º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal.
(…)
*
Não conformado com a condenação, interpôs recurso o arguido concluindo-o do seguinte modo:

I. O Recorrente foi condenado pelo Tribunal a quo, como autor material de um crime de condução de veículo sob influência de substâncias psicotrópicas, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 2, do C.P.., na pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, a 06,00€ (seis euros) por dia, totalizando o montante de 450,00€ (quatrocentos e cinquenta euros); e ainda o condenou na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do C.P., pelo período de 6 (SEIS) meses; e também no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 02 (duas) Unidades de Conta, a qual é reduzida a metade por força do disposto no artigo 344.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.

II. O Recorrente entende, salvo melhor opinião, que a douta sentença do Tribunal a quo está enfermada de uma profunda injustiça e de uma inusitada insensibilidade.

III. Julga, salvo o devido respeito, que, a douta sentença faz uma incorrecta aplicação da lei.

IV. Conforme resulta provado na douta sentença o Recorrente confessou de forma livre, integral e sem reservas a prática do crime pelo qual foi condenado.

V. O Recorrente demonstrou arrependimento pela prática do referido crime, tendo inclusive mencionado em sede de audiência de discussão e julgamento que “serviu de exemplo” e foi um “abre olhos”.

VI. O Recorrente desde aquele fatídico dia a que aludem os presentes autos que nunca mais consumiu qualquer estupefaciente nem muito menos conduziu sobre efeito do mesmo e so efeito de álcool.

VII. O Recorrente mostrou-se arrependido e envergonhado com o sucedido.

VIII. O Recorrente não tem qualquer antecedente criminal, o que demonstra a conduta de vida irrepreensível pela qual o Recorrente se pauta.

IX. O Recorrente informou também o Tribunal que a carta de condução lhe faz muita falta, dado o facto de ser mecânico e como tal necessitar de conduzir veículos automóveis,

X. e ainda dado o facto de ter tido conhecimento há poucos dias que irá ser pai, e como tal a carta de condução lhe ser essencial para transportar a sua companheira ao Hospital.

XI. O Recorrente explicou ao Tribunal que do salário que aufere (690,00€) contribui com 250,00€ para as despesas do agregado familiar, ficando assim com apenas com 440,00€.

XII. Além disso, resulta das regras de experiencia comum que qualquer família quando toma conhecimento de que vão ser pais necessita de dinheiro para adquirir o enxoval do bebé e adquirir bens básicos para o normal crescimento de uma criança,

XIII. Pelo que, os 440,00€ sobrantes do rendimento do Recorrente são essencialíssimos para o enxoval do bebé, do qual o Recorrente em breve será pai, e para reunir as condições mínimas de vida ao normal crescimento do seu filho.

XIV. Sucede que, não obstante o supra exposto, o Tribunal a quo decidiu condenar o Recorrente numa pena de 75 (setenta e cinco) dias de multa, a 06,00€ (seis euros) por dia, totalizando o montante de 450,00€ (quatrocentos e cinquenta euros), e ainda o condenou na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados, nos termos do disposto no artigo 69.º, n.º 1, alínea a), do C.P., pelo período de 6 (SEIS) meses, e também no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 02 (duas) Unidades de Conta, a qual é reduzida a metade por força do disposto no artigo 344.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal.

XV. O crime em causa é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias (…), vide artigo 292º do C.P..

XVI. O Tribunal a quo decidiu aplicar ao Recorrente a pena de 75 dias de multa à taxa diária de 6,00€, o que perfaz a multa global de 450,00€.

XVII. A pena, a aplicar em cada caso concreto, será medida pela necessidade de evitar a produção de lesões futuras semelhantes por qualquer membro da comunidade ou, mais exactamente de acordo com as necessidades de estabilização das expectativas na validade do Direito por parte da comunidade em face da lesão de bens jurídicos.

XVIII. Nos termos do artigo 71.º do Código Penal, mais concretamente no seu n.º 1 estabelece que "A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos por lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção" Por seu turno o nº 2 do mesmo normativo legal, estabelece, que: "na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou, contra ele, considerando nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta licita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

XIX. Na determinação concreta da medida da pena, o julgador atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele (art. 71.º do C.P), ou seja, as circunstâncias do complexo integral do facto que relevam para a prevenção e para a culpa.

XX. Assim, no caso em apreço, para a determinação da medida concreta da pena de multa a aplicar ao crime em apreço, deveria o Tribunal a quo atender não somente à culpa do agente e às exigências de prevenção, bem como a todas as circunstâncias que, não fazendo parte dos tipos de crime, depusessem a favor do Recorrente.

XXI. Ora salvo devido respeito por opinião diversa, se atendermos ao caso em apreço, verificamos que, em concreto, foi aplicado ao Recorrente, para o crime em questão, uma pena muito afastada dos limites mínimos legalmente estabelecidos.

XXII. O Tribunal a quo, atenta a ausência de antecedentes criminais, a essencialidade do rendimento do Recorrente para o sustento da sua nova família e o arrependimento demonstrado, salvo melhor opinião, deveria de ter optado por uma pena de multa no limite mínimo, ou seja, de 10 dias de multa à taxa diária de 5,00 euros, no valor global de 50,00 euros, ao invés de aplicar ao Recorrente uma pena de 75 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros.

XXIII. Tal como supra se referiu o Tribunal a quo, decidiu ainda, aplicar ao Recorrente a sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 6 meses.

XXIV. É também convicção do Recorrente que o Tribunal a quo também errou na determinação da sanção acessória.

XXV. Estabelece o artigo 65º do C.P. que “A lei pode fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões.”

XXVI. Resulta ainda do artigo 69º, nº 1 aliena a) do C.P. que “ É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crime previsto no artigo 291º e 292º do CP..”

XXVII. O Tribunal a quo, tal como se mencionou decidiu determinar a proibição ao Recorrente, por um período de 6 meses, ou seja muito afastado do limite mínimo legalmente estabelecido.

XXVIII. Fundou a sua decisão no facto de, nomeadamente, existir elevada intensidade da culpa, atenta a modalidade de dolo direto que revestiu a conduta do Recorrente, e ainda no facto de existir elevado número de crimes desta natureza praticado nesta Comarca de Braga.

XXIX. Contudo, o que, salvo o devido respeito por opinião diversa, não o deveria ter feito.

XXX. Não é o facto de existir elevado número de crimes desta natureza na Comarca de Braga que evidencia o que quer que seja.

XXXI. O Recorrente mostrou-se absolutamente arrependido da sua conduta daquele fatídico dia 03 de setembro de 2017.

XXXII. O Recorrente nunca mais tocou em qualquer produto estupefaciente.

XXXIII. Por esse motivo, não deveria o Recorrente sofrer qualquer agravamento na pena e na sanção acessória que lhe seria determinada.

XXXIV. Mais acresce que, o Tribunal a quo, na determinação da sanção acessória a aplicar ao Recorrente ignorou por completo as condições sociais, familiares e profissionais do mesmo.

XXXV. Resulta do artigo 65º, nº 1 do Código Penal e 30º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa que: “Nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos.”

XXXVI. O ora Recorrente exerce a profissão de mecânico, sendo que no exercício da sua profissão necessita de conduzir e testar diversos veículos automóveis.

XXXVII. A proibição de condução de veículos motorizados por 6 meses impede o Recorrente de exercer a sua profissão, correndo o risco de ser despedido.

XXXVIII. Caso Recorrente seja despedido ficará sem o salário.

XXXIX. Como facilmente se pode constatar, o Recorrente, sem o seu salário, põe em risco a sua subsistência e a dos seus familiares.

XL. Além disso, tal como se disse supra o Recorrente em breve será pai e necessita do seu salário para sustentar o recém-nascido,

XLI. Sendo que caso venha a ser despedido por não ter a carta de condução que tanto precisa para desempenhar a sua função de mecânico, a sobrevivência do próprio recém nascido será posta em causa.

XLII. Atento o referido, apenas deveria ser aplicada ao Recorrente a sanção de inibição de condução de veículos motorizados, por um período de 3 meses.

XLIII. Ao aplicar ao Recorrente a proibição de condução de veículos motorizados por um período de 6 meses, atento o já exposto, fica comprometida a estabilidade da sua vida financeira e familiar.

XLIV. Atento o exposto, o Recorrente deverá ser condenado pelo crime de condução de veículo sob influência de substâncias psicotrópicas, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 2, do C.P., na pena de 10 dias de multa à taxa diária de 5,00€, o que perfaz a multa global de 50€, e na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses.

XLV. Pelo exposto, o Meritíssimo Juiz a quo, ao decidir como decidiu, fez uma fez uma incorrecta aplicação da lei e, por conseguinte, violou, entre outros, o disposto nos artigos 30.º nº 4 da Constituição da República Portuguesa, nos artigos 65º, 69º, nº1 alínea a), 71º, 72º, 73º, 75º e 292º do Código Penal, no artigo 344º do Código de Processo Penal.

TERMOS EM QUE,
Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão impugnada, sendo substituída por outra, em conformidade com a pretensão da Recorrente, fazendo, assim, V. Exªs. a habitual Justiça.
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Respondeu ao recurso o Ministério Público em 1ª instância pugnando pela manutenção da decisão.
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Idêntica posição veio a ser assumida pelo Ministério Público nesta Relação.
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Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº 2 do CPP.
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Após os vistos, foram os autos à conferência.

II.
Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (artigo 402º, 403º e 412º do CPP), sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios enumerados nas alíneas a) b) e c) do nº 2 o artigo 410º do CPP, quando resultem do texto da decisão recorrida só por si ou em conjugação com as regras de experiência comum (Ac. STJ 7/95 in DR, I Série de 28.12.1995) e bem assim das nulidades que não devam considerar-se sanadas.

Questão prévia:

As conclusões de um recurso não se destinam a reproduzir em parágrafos o texto da motivação que as precede.

Uma vez que é a partir delas que se aprecia a pretensão da recorrente, devem as conclusões ser objetivas, clara, sintéticas, até em menor número que os parágrafos das alegações, nelas se condensando o que antes se argumentou.

Repetir o texto da exposição do recurso traduz-se numa duplicação inútil, sem concisão, que afete o cumprimento do ónus de concluir e, no limite, o conhecimento do recurso.

As conclusões apresentadas pelo recorrente não respeitam a referida exigência, porque repetem quase na íntegra a motivação que as precede.

No entanto, como se percebe que a única questão que o recorrente pretende ver apreciada é a medida da pena, opta-se por não convidar ao aperfeiçoamento da síntese conclusiva, a fim de não retardar mais a tramitação dos autos, porque neste momento e em função da decisão que será tomada, se configura inútil.

É a seguinte a matéria de facto fixada em 1ª Instância (transcrição):
a) No dia .. de setembro de 2017, pelas 06 horas e 25 minutos, na Avenida …, em Braga, o arguido A. F. conduziu o veículo automóvel, de matrícula HF, encontrando-se influenciado por 5,2 nanogramas de THC – Canabinóides por mililitro de sangue;
b) Nas circunstâncias de tempo e lugar supra referidas, o arguido foi interveniente num acidente de viação;
c) O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com conhecimento da ilicitude da sua conduta, bem sabendo que se encontrava sob a influência de estupefaciente, não estando por isso em condições de conduzir veículos na via pública com segurança e que, nessas circunstâncias, lhe estava vedada por lei a condução de veículos automóveis;
d) O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
e) O arguido confessou de forma livre, integral e sem reservas;
f) O arguido é solteiro;
g) Aufere o vencimento mensal líquido de 690,00€;
h) Vive com os seus pais;
i) Por mês contribui com 250,00€ para as despesas do agregado familiar;
j) O arguido completou o 9.º ano de escolaridade;
k) Nada consta do certificado de registo criminal do arguido.
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2.2. Matéria de facto não provada

Não há factos não provados.
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2.3. Motivação da decisão sobre a matéria de facto

A convicção do Tribunal quanto à matéria de facto baseou-se na adequada ponderação de toda a prova documental junta aos autos, bem como da restante prova produzida em sede de audiência de julgamento.

Relativamente às alíneas a) a e) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou da confissão livre, integral e sem reservas do arguido em sede de audiência de julgamento.

Quanto às alíneas f) a j) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou da análise das declarações do arguido, as quais surgiram de forma coerente e espontânea. Foi igualmente relevante a análise da informação fornecida pela Segurança Social e junta aos autos a fls. 53, bem como do recibo de vencimento do arguido junto aos autos a fls. 62.

Relativamente à alínea k) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou da análise do teor do certificado de registo criminal do arguido junto aos autos a fls. 73.
*
Apreciação do recurso.

Antes de abordarmos a questão nuclear do recurso – dimensão da pena – impõe-se fazer o enquadramento jurídico que se entende adequado uma vez que terá influência na decisão final.

O arguido foi condenado pela prática de um crime de condução sob influência de substâncias psicotrópicas p.p. artigo 292º, nº 2 e 69º, nº 1, alínea a) do CP.

Dispõe a primeira das referidas normas que incorre na pena de prisão até 1 (um) ano ou de multa até 120 (cento e vinte) dias “quem, pelo menos com negligência, conduzir veículo com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob o efeito de estupefacientes, substâncias psicotrópicas, ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.

No Código da Estrada é punida como contraordenação muito grave (artigo 146º, alínea m)) a condução sob influência de substâncias psicotrópicas.

Como se percebe do confronto das duas disposições legais a referida contraordenação distingue-se do crime em apreço nestes autos, pelo elemento objetivo constitutivo deste, assim descrito: (…) não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes (…)ou produtos (…) perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.

Portanto, para que se esteja em presença de uma conduta ilícita tipificada como crime, não basta que o agente conduza sob a influência de produtos estupefacientes, é necessário que se possa fazer a afirmação de que, por estar assim influenciado, não está capaz de o fazer em segurança por se encontrar perturbado na sua aptidão física, mental ou psicológica.

A deteção de substâncias estupefacientes prevista atualmente na Lei 18/2007 de 17.05, à semelhança do que ocorria na vigência do Decreto Regulamentar 24/98 de 30.10, prevê um exame prévio de rastreio (artigo 11º) a realizar em amostra de urina, suor, saliva ou sangue e, em caso de resultado positivo, um exame de confirmação a realizar em amostra de sangue (artigo 12º).

À indicação da existência de qualquer uma das substâncias referidas nas alíneas a) a d) do nº 1 do artigo 8º da Lei 18/2007 chega-se, pois, pelo resultado do exame de rastreio. No caso dos exames de rastreio na urina (artigo 15º) se ele for superior aos valores previstos no Anexo V do quadro 2 da Portaria 902-B/2007 de 13.08 pode dizer-se que o condutor se encontra sob influência de substâncias psicotrópicas.

Note-se, contudo, que os valores de referência do quadro 2 do Anexo V respeitam apenas ao rastreio na urina. Nele consta como valor de concentração de canabinoides a partir do qual se considera haver influência da referida substância no agente que a consumiu, 50ng/ml (50 nanogramas por mililitro). Portanto, se o exame em urina indicar um valor de canabinoides superior a 50ng/ml - e só neste caso - o agente deve ser submetido a exame de confirmação, a realizar em amostra de sangue (artigo 19º).

O valor obtido nos autos resultou da análise sanguínea e não foi precedido de análise de rastreio em urina, pelo que não nos podemos socorrer dos valores de referência que constam do quadro 2 do Anexo V à Portaria 902-B/2007 de 13.08.

No entanto o facto de não ter sido precedido de exame de rastreio em urina, nem por isso o valor alcançado no exame de sangue, deixa de ser válido e analisável.

É que o exame de rastreio, já o dissemos, destina-se a obter a informação da existência de substâncias psicotrópicas; o exame de confirmação destina-se a obter a identificação e quantificação das substâncias psicotrópicas existentes (à semelhança do que ocorre com a deteção de álcool no sangue: o exame realizado em analisador “qualitativo” precede, normalmente, o exame realizado em analisador “quantitativo”).

Ora, no caso de no exame ao sangue ser identificada a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas constantes do quadro nº 1 do Anexo V, então o exame é positivo (Para além das substâncias aí identificadas pode ser considerada também qualquer “outra substância ou produto, com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor com segurança” – artigo 23º da Portaria 902-B/2007 de 13.08).

Se não for possível realizar colheita de sangue, inviabilizando a realização de exame, prevê ainda a lei a realização de exame médico (artigo 13º da Lei 18/2007 de 17.05).

As substâncias que constam do Anexo V – quadro 1 a analisar no caso de canabinoides são, abreviadamente: o THC e os seus metabolitos, 11-OH-THC e THC-COOH. O agente psicoativo maior é o THC, o 11-OH-THC é também psicoativo, mas em menor grau e ambos deixam rapidamente o sangue para se fixar em tecidos ricos em lípidos, v.g. o encéfalo, pelo que os valores de concentração sanguínea decrescem rapidamente após a ingestão. O THC é depois oxidado em THC-COOH que é o principal metabolito encontrado na urina, onde permanece vários dias após o consumo e que, aí, em valores pouco elevados pode indicar que o agente não estava sob influência de canabis no momento do exame. (Veja-se o que a propósito do metabolito THC-COOH é dito no acórdão da RL de 3.05.2018 proferido no processo 7907/16.1T8SNT.L1-2 e no acórdão da RC de 13.07.2016 proferido no processo 73/14.9GAPNL.C1, naquele citado, ambos em www.dgsi.pt).

A lei não define valores mínimos de concentração de substâncias estupefacientes nos exames de sangue, contrariamente ao que acontece nos exames de rastreio na urina.

Não fixa atualmente, mas já fixou. Efetivamente a Portaria 1006/98 de 30.11 (que veio a ser revogada pela Portaria 902-B/2007 de 13 de agosto) fixava como valores limite, abaixo dos quais se considerava que o examinado não estava influenciado por substâncias estupefacientes os que constavam do quadro 2 do anexo V. No que respeita às concentrações mínimas definidoras de positividade a substâncias de marijuana eram fixados valores de 50ng/ml em urina e 80 ng/ml em sangue. E se é certo que os 50 ng/ml em rastreio de urina se mantiverem no atual quadro 2 do anexo V, já o valor em sangue, como referência, desapareceu. Afigura-se que a tal desaparecimento não será alheia a evolução científica, uma vez que há atualmente evidência clínica de que valores de concentração de THC no sangue a partir de 1,6 ng/ml causam efeitos perturbadores no ato de conduzir. Dizemo-lo com base no estudo sobre as consequências negativas do consumo de marijuana na condução publicado em “Marijuana and the Cannabinoides” - cap. 12 da autoria de Barry K. Logan – Ed M. A Elsohly, . Phd – the School of Pharmacy, The University of Mississipi – Elsohly Laboratories Inc, Oxford, MS – Human Press Totowa, New Jersey.

De facto é hoje incontroverso que o THC é um vasodilatador periférico que provoca efeitos na visão e que perturba a perceção do tempo, da velocidade e da distância. Sendo a condução uma tarefa complexa que obriga a vários níveis de atenção no domínio cognitivo e psicomotor, ela é afetada significativamente após o consumo de canabis.

Por outro lado, de acordo com o mesmo estudo, os efeitos mais fortes fazem-se sentir quando a concentração no sangue depois de atingir um pico máximo (que ocorre cerca de 1 hora após o consumo fumado), começa a diminuir. Há nessa altura um aumento de risco. Considera-se que 2ng/ml de THC corresponde a um aumento de risco significativo e 5ng/ml um aumento de risco muito elevado.

Se o consumo de canabis for associado ao de álcool o risco de cometimento de erros na condução é ainda mais elevado.

Mas sob o ponto de vista científico, já o vimos, os valores de THC não são, ou podem não ser, analisáveis da mesmo forma que os valores do metabolito THC-COOH (embora, salvo o devido respeito, do estudo acima referido ( pg. 284 e 285) não se retire a conclusão de que o THC-COOH é um metabolito inativo, não exercendo os efeitos psicoactivos dos canabinoides, nos termos expostos nos acórdãos das Relações de Lisboa e Coimbra acima citados ).

Nos autos o arguido encontrava-se acusado de conduzir “sob efeito de estupefacientes THC-COOH – Canabinoides, designadamente com uma taxa da mencionada substancia no sangue de 5,2ng/ml.

Sem que fosse comunicada qualquer alteração de factos, veio a ser fixado na matéria de facto (alínea a)) um facto diferente, isto é, que o arguido conduziu (…) encontrando-se influenciado por 5,2 nanogramas de THC – Canabinoides por mililitro de sangue.

Portanto, na acusação referia-se um valor de concentração de THC-COOH e na sentença passa a referir-se um valor de THC, que são parâmetros diferentes na análise que se impõe fazer.
Ora, para análise de um qualquer valor revelador de consumo de estupefacientes e, portanto também do valor em causa nos autos, é necessário recorrer a diversas variáveis, v.g. ao tempo decorrido desde o consumo até à realização do exame (variável esta que não consta do relatório de toxicologia de fls 10), ao grau de dependência ou hábitos de consumo do agente, à sua compleição física, à quantidade de droga consumida e à modalidade de consumo…, uma vez que será da conjugação de todos estes fatores que poderá resultar, com o rigor possível, a afirmação sobre se a quantidade de estupefaciente detetada é significativa, ou não. Trata-se, pois, de uma análise que implica um juízo pericial ( e que, no caso em apreço deveria ter passado, por exemplo, pela inquirição da subscritora do relatório de fls. 10) sem o qual não é possível abordar, com rigor, a questão nuclear do recurso do arguido: a de saber se a pena de 75 dias de multa é excessiva e deveria ser reduzida v.g. ao mínimo legal, como pretende o recorrente.

E não o é porque, nos termos do artigo 71º do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando entre outras, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência(…).

Como ensina Faria Costa in Noções Fundamentais do Direito Penal, 4ª Edição, 329, a culpa tem de ser entendida não só como limite da pena, mas também como fundamento da pena. E esta, enquanto reflexo dos valores comunitários num certo tempo e espaço não pode estar afastada de uma ideia de retribuição. E se é certo que, como ensina o insigne Professor, as ideias de prevenção introduzem ou podem introduzir no ato de punir distorções ao princípio de igualdade, também é certo que factos iguais, merecem penas iguais porque todos e cada um têm de confiar, têm que acreditar que todos os seus atos e condutas, mas todos eles, são tratados pelo rasoiro da igualdade. Só deste modo a comunidade de homens e mulheres acredita no seu sentido comunitário. A quebra desta relação de confiança no tratamento igual do que é igual e no tratamento desigual do que é desigual é o passo para o princípio a desagregação social (…) É absurdo conceberem-se situações, isto é, comportamentos que sendo materialmente iguais possam sobre eles recair penas manifestamente diferentes em grau e qualidade. A igualdade potencia desta forma a certeza diacrónica e sincrónica. Certeza diacrónica porquanto a factos iguais, e dentro do mesmo quadro legal correspondem, no arco temporal, reações e consequências jurídico-penais idênticas ou iguais. Certeza sincrónica, porquanto a factos iguais, levados a cabo ao mesmo tempo, se seguem em linha de máxima consequências semelhantes ou iguais, independentemente do lugar em que tais factos tenham sido praticados (Faria Costa, ob cit. 354,355).

Assim sendo, antes de avaliar a justeza da pena, impõe-se perceber claramente do que estamos a falar quando afirmamos que o arguido conduz com o valor 5,2 ng/ml de THC-COOH ( ou, como é dito na sentença recorrida - e caso não se trate de mero lapso-, THC) no sangue. Em linguagem simples importa saber ( à semelhança do que ocorre quando se apreciam valores de alcoolemia no exercício da condução) qual a dimensão do concreto valor apresentado pelo arguido no exame toxicológico efetuado, para que a eventual graduação da pena venha a ser feita com justiça também relativa, isto é, quando comparado o valor apresentado, com outros semelhantes. Designadamente impõe-se saber, por exemplo, se no caso concreto é defensável o entendimento de que o THC-COOH é um metabolito inativo, incapaz de influenciar o ato de conduzir, como referido no relatório do INML citado nos acórdãos acima referidos, ou se, como resulta do estudo acima citado, a sua presença é reveladora de um consumo ainda com influência na condução, como confessado pelo arguido (o arguido confessou a totalidade da acusação, portanto, também que se encontrava influenciado no ato de conduzir pelo consumo de canabis) .

Para tanto, já o dissemos, há que analisar as variáveis que permitem tal conclusão, análise que a sentença recorrida omite, sendo certo que a confissão integral não afasta tal exigência.

III.
Enferma, portanto, o acórdão recorrido de insuficiência para a decisão ( na vertente da determinação da medida da pena) de matéria de facto, o que consubstancia o vício previsto no artigo 410º nº 2 alínea a) do CPP, o qual é de conhecimento oficioso.

O vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão ocorre quando os factos apurados e constantes da sentença impugnada são insuficientes para a aplicação do direito – segundo as várias soluções plausíveis para a decisão – apesar de terem sido alegados pela acusação, pela defesa ou resultarem da discussão da causa. Pode ocorrer ainda insuficiência da matéria de facto quando devesse o tribunal ter indagado em audiência factos necessários à decisão e o não tenha feito, o que ocorreu nos presentes autos, no respeitante à medida da pena.

Efetivamente, na decisão recorrida, para que se possa perceber a dimensão da pena, falta apurar a concreta dimensão do valor e influência da substância estupefaciente apresentada pelo arguido, nos termos sobreditos ( dimensão esta que implicará sempre um juízo pericial a partir do resultado de fls. 10), porque só assim se aferirá com o rigor possível, além do mais, do grau de ilicitude, falta esta que este tribunal ad quem não pode suprir, o que impede o conhecimento do mérito do recurso.

Nos termos do artigo 426º do CPP, sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do nº 2 do artigo 410º do CPP, não for possível decidir a causa, o Tribunal de recurso determina o reenvio do processo para o novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio.

Impõe-se, pois, decretar o reenvio do processo para realização de novo julgamento, relativamente às questões concretamente acima referidas.
*
IV.
DECISÃO.

Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar verificado, na decisão recorrida, o vício previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal e, em consequência, anulam o julgamento e determinam, nos termos do art. 426 do CPP, o reenvio do processo para novo julgamento que respeite o enunciado em II e III.

Sem custas.
Notifique.
Guimarães, 14/10/2019

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho