Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1012/15.5T8VRL-BC.G1
Relator: CONCEIÇÃO BUCHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
CONTRATO PROMESSA
RESOLUÇÃO
EFEITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I – Caso o contrato-promessa não tenha sido resolvido ou entrado na fase do incumprimento definitivo antes da declaração de insolvência, haverá que aplicar o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º4/2014 e colocar-se-á a questão de saber se o credor, no caso presente, pode ser considerado consumidor.

II – A opção do Administrador da insolvência pelo não cumprimento da promessa de venda feita pelo insolvente, dotada de eficácia meramente obrigacional, constitui um acto lícito e não culposo.

III- Assim sendo não deve aplicar-se o disposto no artigo 442º n.º 2 do Código Civil, já que a aplicação desse regime pressupõe o incumprimento definitivo, ilícito e culposo dos contraentes anteriormente à insolvência.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.

I - Nos autos principais, por sentença proferida em 10/07/2015 (ref. n.º 28225565), foi declarada a insolvência de (…), fixando-se o prazo de 30 dias para apresentação das reclamações de créditos.
*
Foi apresentada pelo Sr. Administrador de Insolvência a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos (ref. n.º 625549) – cfr. artigo 129.º, n.º 1, do C.I.R.E.
***
O Banco ... – Banco ..., S.A., apresentou impugnação à lista do artigo 129.º, n.º 1, do C.I.R.E., quanto ao crédito no montante de € 20.000,00, ali reconhecido e qualificado como garantido, por beneficiar de direito de retenção, reclamado por (..), referente à fracção autónoma designada pela letra “…”, integrante do prédio urbano sito na freguesia e concelho de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ….
***
(…) também apresentou impugnação à lista do artigo 129.º, n.º 1, do C.I.R.E., advogando que lhe deveria ter sido reconhecido o montante de € 80.000,00, acrescido de juros de mora, que entende beneficiar de direito de retenção relativamente ao mesmo imóvel, tendo o Banco ... exercido a faculdade prevista no artigo 131.º, n.º 1, do C.I.R.E., reafirmando a posição sustentada no articulado de impugnação que oferecera.
*
A posição processual do Banco ... – Banco ..., S.A., foi assumida pela X, S.A. e pelo Banco ..., S.A., nos termos melhor explanados no despacho de 16/10/2018, para o qual se remete, por economia processual.

Em face de todo o exposto, decide-se:

a) Julgar improcedente a impugnação suscitada pelo Banco ... – Banco ..., S.A. relativamente ao crédito reconhecido, sob o n.º 2, a A(…) , na lista da ref. n.º 625549 (cfr. artigo 129.º, n.º 1, do C.I.R.E.);
b) Julgar parcialmente procedente a impugnação aduzida por (…) quanto ao crédito por si reclamado e parcialmente reconhecido, sob o n.º 2, na lista da ref. n.º 625549 (cfr. artigo 129.º, n.º 1, do C.I.R.E.);

e, consequentemente,
c) Decide-se reconhecer o crédito reclamado por (…), no montante de € 80.000,00 (oitenta mil euros), acrescido de juros de mora vencidos desde 24/09/2015 e até 24/09/2018, calculados à taxa legal, o qual beneficia de direito de retenção, relativamente à fracção autónoma designada pela letra “…”, integrante do prédio urbano sito na freguesia e concelho de (…), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ….º;
d) Decide-se reconhecer a (…) o crédito correspondente aos juros de mora vencidos após 24/09/2018 e até integral e efectivo pagamento, calculados sobre o montante de € 80.000,00 (oitenta mil euros), o qual se qualifica como subordinado;
e) Absolver as credoras X, S.A. e Banco ..., S.A. do pedido de condenação como litigante de má fé relativo ao Banco ... – Banco ..., S.A;
*
Inconformada a credora X SA interpôs recurso, cujas alegações terminam com as seguintes conclusões:

A. Vem a aqui Recorrente interpor o presente recurso da sentença que reconhece o crédito reclamado pelo credor ..., pelo valor de € 80.0000,00 (oitenta mil euros), garantido por direito de retenção sobre a fracção autónoma designada pela letra “I”, integrante do prédio urbano sito na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 21, por não se conformar com a mesma.
B. A matéria de facto assente e dada como provada na douta sentença em apreço e relevante para a boa decisão da causa é a seguinte:

1. Por sentença de 10/07/2015, transitada em julgado, foi decretada a insolvência de “M. R., Lda.”.
2. Consta dos autos um documento denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, na qual intervieram M. R. (na qualidade de gerente da insolvente) e ..., datado de 31/03/2011, no qual foi declarado que a insolvente prometia vender, livre de quaisquer ónus e encargos, a ..., que por sua vez prometia comprar, «(…) a fracção autónoma tipo T3, situado no 3.º Andar, com 1 lugar de garagem na cave do edifício, situado no prédio urbano a construir em regime de propriedade horizontal, no lote n.º 17, inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ... sob o artigo 2520/2521/2522/2523/2524 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1641/... (…)” ajustando-se como preço o montante de € 148.000,00 (englobando € 40.000,00 “a título de sinal e princípio de pagamento (…) que pelo presente lhe dá quitação” e o montante de € 108.000,00,a pagar no acto da outorga do contrato prometido) estipulando-se que a marcação do negócio definitivo caberia à insolvente, e convencionando-se ainda que “(…) na data da conclusão da obra, poderá a primeira outorgante entregar ao segundo outorgante a chave da fracção ora prometida vender, desde que, esse último, apresente àquela, uma garantia bancária do pontual e integral cumprimento do presente contrato promessa, no valor correspondente ao preço em dívida”, bem como que “(…) no caso de incumprimento do presente contrato, por parte da Primeira Outorgante, assistirá ao Segundo Outorgante a faculdade de exigir àquele o dobro da quantia paga a título de sinal”, e nos demais termos apostos no documento, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
3. Em 15/09/2014 o prédio descrito sob o n.º 1644 foi penhorado no processo executivo n.º 414/14.9TBVRL, que correu termos no Juízo de Execução de Chaves.
4. Foram inscritos no registo relativo às fracções autónomas integrantes do prédio descrito sob o n.º ... os seguintes factos, com relevo para a boa decisão da causa:
– cfr. ap. n.º 1, de 09/12/1991.
existam ou venham a existir em nome da insolvente até ao limite de € 5.906.630,00, e emergentes de ou resultantes de operações de crédito que lhe tenham sido concedidas, ou venham a sê-lo pelo Banco ..., por contratos de empréstimo ou de abertura de crédito, por financiamentos por livranças, por descontos de papel comercial, por crédito por assinatura, por descoberto em conta de depósitos à ordem e por créditos documentários de importação. Taxa de juro anual de 4,135 %, acrescida de 4 % em caso de mora a título de cláusula penal e despesas € 184.000,00 – cfr. ap. n.º 3043, de 07/04/2009.
5. A insolvente possui como objecto social a exploração de construção civil.
6. Em 31/03/2011 A. J. entregou ao gerente da insolvente, em numerário, o montante de € 20.000,00.
7. Foi pago um cheque no montante de € 20.000,00, emitido a favor da insolvente, sacado por A. J., sobre a conta n.º 36714598001, do Banco ..., datado de 31/03/2011, de que aquele é titular.
8. Em 2014 o apartamento encontrava-se “em bruto”, não dispondo de portas nos compartimentos, de tijoleira, de mobiliário de cozinha e de loiças de casa-de-banho.
9. Em 06/10/2014 o Sr. Agente de Execução nomeado no processo n.º 414/14.9TBVRL procedeu ao arrombamento e mudança de fechaduras das portas de acesso aos edifícios implantados no prédio descrito sob o n.º 1644.
C. Não existe matéria de facto dada como não provada.
D. Ao contrário do entendimento do douto Tribunal a quo, não ficou provado o seguinte facto:

1. A fração destinava-se à sua habitação.
E. Em sede de audiência e discussão de julgamento e com o depoimento das várias testemunhas arroladas pelo Credor, ficou claro e tal como consta da douta sentença ora recorrida, que o mesmo não residia na fração, apenas a querendo utilizar para a sua habitação secundária, portanto, esta não era a sua residência habitual e permanente.
F. Ou seja, o Credor apenas foi ocupar o dito imóvel, anos depois da celebração do contrato-promessa e mesmo depois de entregue as chaves do mesmo, pois utiliza-o como habitação secundária e não principal.
G. Dir-se-á que andou mal o douto Tribunal ao considerar que o Credor habita o dito apartamento desde a entrega das chaves, ao mesmo tempo que afirma que o mesmo apenas o utiliza para fins de habitação secundária, não sendo esta a sua residência habitual e permanente.
H. Assim, padece o direito de retenção de três pressupostos, que são os seguintes: 1. A existência de um crédito emergente de promessa de transmissão ou constituição de um direito real, que pode não coincidir com o direito de propriedade;
2. A entrega ou tradição da coisa abrangida ou objecto da promessa;
3. O incumprimento definitivo da promessa imputável ao promitente, como fonte do crédito do retentor.
I. Por conseguinte, para existir traditio da coisa, tem que se confirmar a posse do bem a que respeita e, consequentemente, a coisa objeto do contrato-promessa tem que se encontrar apta a desempenhar a função a que se destina, no caso sub judice, à habitação (vide neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-12- 2013, consultável em http://www.dgsi.pt).
J. No caso em apreço, ficou provado que a fração objeto do contrato-promessa, não foi habitada de forma permanente pelo Credor que apenas a utilizava como habitação secundária e, assim, a fração não constituiu a sua residência habitual, própria e permanente.
K. Desta feita, conclui-se muito resumidamente de tudo o supra explanado que não estão preenchidos os pressupostos do direito de retenção, nos termos dos artigos 754.º e ss do CC, porquanto nunca houve traditio da coisa, nem posse do bem imóvel sub judice.
L. Chegados a esta parte não pode a aqui Recorrente concordar com o reconhecimento do sinal em dobro ao Credor, porquanto decorre da Jurisprudência que é pressuposto para a restituição do sinal em dobro que o contrato-promessa seja resolvido, o que não aconteceu no caso em apreço, porquanto o Credor nunca viveu no apartamento em questão de forma permanente e nunca houve da sua parte a vontade expressa de resolver o contrato-promessa.
M. Neste sentido, diz-nos o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-03-2012 (consultável em http://www.dgsi.pt), que: “(…) Se o contrato-promessa não estiver definitivamente incumprido à data da declaração da insolvência da promitentevendedora, o promitente-comprador não teria direito ao dobro do sinal que pagou (…)”.
N. Diz-nos, ainda, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-06-2017 (consultável em http://www.dgsi.pt), que: “(…) No caso de contrato-promessa, o promitente lesado fica (…) com a faculdade de o resolver ou de exigir a execução específica (artigo 830.º do Código Civil) (…)”.
O. Ora, o Credor nunca em tempo algum fez menção de resolver o contrato-promessa.
P. Destarte e atento tudo o supra exposto, não pode ser reconhecido o pagamento do sinal em dobro ao aqui Credor, porquanto não ficaram preenchidos os pressupostos para que esta a isso tenha direito.
Q. Por último, dá-nos a Lei n.º 24/96, no seu artigo 2.º, n.º 1, a definição de consumidor.
R. Tendo em conta tudo o supra exposto, denota-se claramente que ao aqui Credor não se lhe pode conferir a definição de consumidor, porquanto o mesmo à data da entrega das chaves e alegada traditio da coisa, nunca a utilizou como habitação permanente, apenas a utilizando como habitação secundária e, assim, a fração não constituiu a sua residência habitual, própria e permanente.
S. Destarte, resulta com meridiana clareza que o Credor não é detentor de um direito de retenção, muito menos pelo valor do sinal em dobro, pois não resulta provado que tenha existido a efetiva traditio da coisa, nem existiu a resolução ou a exigência da execução específica do contrato-promessa, pressupostos essenciais aos mesmos.

O recorrido apresentou contra-alegações nas quais pugna pela manutenção do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II – É pelas conclusões do recurso que se refere e delimita o objecto do mesmo, ressalvadas aquelas questões que sejam do conhecimento oficioso – artigos 635º e 639º Código de Processo Civil -.

Em 1ª instância foi dada como provada a seguinte matéria de facto:

1. Por sentença proferida em 10/07/2015, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de M. R., Lda.
2. Consta dos autos um documento denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, na qual intervieram M. R. (na qualidade de gerente da insolvente) e ..., datado de 31/03/2011, no qual foi declarado que a insolvente prometia vender, livre de quaisquer ónus e encargos, a ..., que por sua vez prometia comprar, «(…) a fracção autónoma tipo T3, situado no 3.º Andar, com 1 lugar de garagem na cave do edifício, situado no prédio urbano a construir em regime de propriedade horizontal, no lote n.º 17, inscrito na matriz predial urbana da freguesia da ... sob o artigo 2520/2521/2522/2523/2524 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 1641/... (…)” ajustando-se como preço o montante de € 148.000,00 (englobando € 40.000,00 “a título de sinal e princípio de pagamento (…) que pelo presente lhe dá quitação” e o montante de € 108.000,00, a pagar no acto da outorga do contrato prometido) estipulando-se que a marcação do negócio definitivo caberia à insolvente, e convencionando-se ainda que “(…) na data da conclusão da obra, poderá a primeira outorgante entregar ao segundo outorgante a chave da fracção ora prometida vender, desde que, esse último, apresente àquela, uma garantia bancária do pontual e integral cumprimento do presente contrato promessa, no valor correspondente ao preço em dívida”, bem como que “(…) no caso de incumprimento do presente contrato, por parte da Primeira Outorgante, assistirá ao Segundo Outorgante a faculdade de exigir àquele o dobro da quantia paga a título de sinal”, e nos demais termos apostos no documento, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido.
3. Em 15/10/2015 o Sr. Administrador da Insolvência outorgou título de constituição de propriedade horizontal na Conservatória do Registo Predial de ..., relativamente ao prédio urbano sito na freguesia e concelho de ..., descrito Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo 21.º, daí resultando a constituição das fracções autónomas A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, M, N, O e P, nos termos vertidos nesse acto (cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido).
4. Em 15/09/2014 o prédio descrito sob o n.º ... foi penhorado no processo executivo n.º 414/14.9TBVRL, que correu termos no Juízo de Execução de Chaves.
5. As fracções autónomas integrantes do prédio descrito sob o n.º ... foram apreendidas para a massa insolvente sob as verbas n.ºs 20 a 35.
6. Foram inscritos no registo relativo às fracções autónomas integrantes do prédio descrito sob o n.º ... os seguintes factos, com relevo para a boa decisão da causa:
aquisição do direito de propriedade a favor da insolvente – cfr. ap. n.º 1, de 09/12/1991.
hipoteca para garantia de todas e quaisquer obrigações ou responsabilidades, que existam ou venham a existir em nome da insolvente até ao limite de € 5.906.630,00, e emergentes de ou resultantes de operações de crédito que lhe tenham sido concedidas, ou venham a sê-lo pelo Banco ..., por contratos de empréstimo ou de abertura de crédito, por financiamentos por livranças, por descontos de papel comercial, por crédito por assinatura, por descoberto em conta de depósitos à ordem e por créditos documentários de importação. Taxa de juro anual de 4,135 %, acrescida de 4 % em caso de mora a título de cláusula penal e despesas € 184.000,00 – cfr. ap. n.º 3043, de 07/04/2009.
7. Em 23/09/2015 realizou-se assembleia de apreciação de relatório, decorrendo da acta respectiva que no decurso da diligência o Sr. Administrador da Insolvência declarou:
“(…) quanto à primeira questão, do cumprimento dos contratos o Sr. ,Administrador de Insolvência só cumpre contratos que estejam, de acordo com o artº 106 º do CIRE que demonstrem eficácia real; quanto à questão de direito de créditos com direito de retenção, só poderá fazê-lo depois de existir a propriedade horizontal do lote 17 em lote 18, e caso entenda que se verifiquem todos os pressupostos que fundamente a reclamação de crédito garantido por direito de retenção. Aquando a entrada no processo da relação definitiva de credores (…).”
8. A insolvente possui como objecto social a exploração de construção civil.
9. Em 31/03/2011 A. J. entregou ao gerente da insolvente, em numerário, o montante de € 20.000,00.
10. Foi pago um cheque no montante de € 20.000,00, emitido a favor da insolvente, sacado por A. J., sobre a conta n.º 36714598001, do Banco ..., datado de 31/03/2011, de que aquele é titular.
11. Após a outorga do contrato de 31/03/2011 A. J. solicitou à insolvente algumas alterações no apartamento, que os colaboradores da insolvente executaram.
12. Em data não concretamente apurada, mas que se determinou situar-se no primeiro semestre de 2014 as chaves de acesso ao edifício e ao apartamento correspondente à fracção autónoma designada pela letra “I”, integrante do prédio urbano sito na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... foram entregues pelo gerente da insolvente a A. J..
13. (…) tendo A. J. acordado com o gerente da insolvente que iria completar o apartamento, com a inerente revisão ulterior do preço.
14. Após a entrega das chaves A. J., com a ajuda das filhas, transportou materiais para o interior do apartamento, para aí serem aplicados, tendo também realizado preparativos para serem solicitados orçamentos para a execução dos trabalhos de acabamento do imóvel.
15. (…) deixando os colaboradores da insolvente de ter acesso ao apartamento.
16. Em 2014 o apartamento encontrava-se “em bruto”, não dispondo de portas nos compartimentos, de tijoleira, de mobiliário de cozinha e de loiças de casa-de-banho.
17. (…) apenas dispondo de uma ligação à electricidade de obra e a água de um poço utilizado pela insolvente no decurso das obras de construção dos edifícios implantados nos prédios descritos sob os n.ºs ... e 1644.
18. Com a celebração do contrato-promessa A. J. pretendeu a futura aquisição do imóvel, como habitação secundária do seu agregado familiar.
19. Em 06/10/2014 o Sr. Agente de Execução nomeado no processo n.º 414/14.9TBVRL procedeu ao arrombamento e mudança de fechaduras das portas de acesso aos edifícios implantados no prédio descrito sob o n.º 1644.
20. Os representantes do Banco ... iam acompanhando a execução da obra, lidando com os fornecedores, tendo também conhecimento do contrato de 31/03/2011.
*
Matéria de facto não provada:

1. Os representantes do Banco ... tinham conhecimento da realidade descrita nos factos provados n.ºs 12 a 15.
**
Como resulta dos autos a recorrente não impugna directamente a matéria de facto.
Apenas nas suas alegações e conclusões refere que “ao contrário do entendimento do douto Tribunal a quo não ficou provado o seguinte facto: 1- A fracção destinava-se à sua habitação”.

Refere ainda que em “sede de audiência e discussão de julgamento e com o depoimento das várias testemunhas arroladas pela Credora, ficou claro e tal como consta da douta sentença ora recorrida, que o mesmo não residia na fração, apenas a querendo utilizar para a sua habitação secundária, portanto, esta não era a sua residência habitual e permanente.

Ou seja, o Credor apenas foi ocupar o dito imóvel, anos depois da celebração do contrato promessa e mesmo depois de entregue as chaves do mesmo, pois utiliza-o como habitação secundária e não principal.
Dir-se-á que andou mal o douto Tribunal ao considerar que o Credor habita o dito apartamento desde a entrega das chaves, ao mesmo tempo que afirma que o mesmo apenas o utiliza para fins de habitação secundária, não sendo esta a sua residência habitual e permanente.

Dispõe o nº1 do artigo 662º do novo CPC: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, estabelecendo o seu nº 2:

“A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:

a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.

Por seu turno, o artigo 640º do mesmo diploma estabelece:

1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.

Da leitura das alegações apresentadas no recurso de apelação resulta claramente que o recorrente não identificou os pontos de facto que considera mal julgados, por referência aos factos da sentença, nem indicou os depoimentos das testemunhas que entende terem sido mal valorados, nem procedeu à transcrição das passagens dos depoimentos.
Deste modo mantém-se a matéria de facto como consta da sentença que é a supra referida.

A questão colocada no presente recurso é a da qualificação de um credor como consumidor para efeitos da eventual aplicação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, em cujo segmento uniformizador se pode ler que “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído na alínea f) do n.º 1 do artigo 755º do Código Civil”.

O artigo 102º do CIRE (e mormente o artigo 106º) pressupõe que o regime ai estabelecido é fundamentalmente um regime para contratos em curso ou em fase de execução, em que não há ainda cumprimento total do contrato por qualquer uma das partes. É essa execução que é suspensa e é o cumprimento, que ainda seria exigível ao devedor insolvente que o administrador pode recusar – quer essa recusa seja uma resolução ou antes deva ser concebida como uma reconfiguração contratual.

E daí que a doutrina tenha sublinhado que o regime dos artigos 102.º e seguintes do CIRE não se aplica a contratos que já foram resolvidos anteriormente à data da declaração de insolvência, encontrando-se agora em uma fase de liquidação.
Se o contrato-promessa tiver sido resolvido ou, de qualquer modo, tiver entrado na fase do incumprimento definitivo não há que aplicar o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014, devendo aplicar-se, estritamente, os preceitos do Código Civil, mais precisamente os artigos 755.º n.º 1 alínea f) e 442.º do Código Civil. A aplicação do artigo 755.º n.º 1 alínea f) não depende de o promitente-comprador ser ou não um consumidor e a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica a interpretação restritiva proposta por um sector da doutrina.

No entanto qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção.
Este direito de retenção, já existente e sendo garantia de um crédito não subordinado, não é afectado pela declaração de insolvência, como decorre do artigo 97.º do CIRE.
Caso o contrato-promessa não tenha sido resolvido ou entrado na fase do incumprimento definitivo antes da declaração de insolvência, então haverá que aplicar o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º4/2014 e colocar-se-á a questão de saber se o credor no caso presente pode ser considerado consumidor.

No caso, não consta que a compra da fracção se destinasse à instalação de qualquer actividade comercial ou industrial

Como se refere no Ac do STJ de 24/05/2016, disponível em www.dgsi.pt,cabe pôr em relevo que a inclusão do consumidor no texto do AUJ 4/2014 e, mais precisamente, no respectivo segmento uniformizador, assim restringindo a amplitude e o alcance do direito de retenção a que alude o artº 755º, nº 1, f), do CC apoiou-se claramente, como se infere da respectiva da fundamentação, no ensinamento do Prof. Pestana de Vasconcelos, que nos Cadernos de Direito Privado, nº 33, pág. 3 e segs, referindo-se à definição de consumidor, escreve na nota nº 25 (pág. 8), que a resultante dos artigos 10º, nº 1 e 11º, nº s 1 e 2 do Anteprojeto do Código do Consumidor, segundo a qual é “consumidor a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito da sua actividade profissional, através do estabelecimento de relações jurídicas com quem, pessoa singular ou colectiva, se apresenta como profissional”, se mostra “ponderada e equilibrada”, devendo “orientar o intérprete na concretização do consumidor para este efeito, dando inteiro cumprimento, no caso concreto, à ratio da disposição, o que vale dizer, só tutelando quem efectivamente é carente de tutela”.

Por outro lado, e como se refere n o acórdão do STJ de 29/5/14, que, depois de analisar a fundamentação do AUJ 4/2014 e os textos legais mais relevantes no domínio do direito do consumo, concluiu “... que do conceito de “consumidor” inserto no texto da uniformização só está excluído aquele que adquire o bem no exercício da sua atividade profissional de comerciante de imóveis”.

També e noutros acórdãos do STJ (nomeadamente o Ac de 16/2/16) se decidiu “que a noção de consumidor até agora adoptada no Supremo Tribunal acentua a qualidade de sujeito final na transacção do bem, excluindo apenas os comerciantes e aqueles que destinam o imóvel a revenda para obtenção de lucro”
Também tem vindo a ser consistentemente decidido pelo Supremo Tribunal que o mesmo se circunscreve às situações em que o credor promitente-comprador não obteve cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência pois que, o AUJ 4/2014 fez instituir um regime especial em sede insolvencial, por forma a que apenas os promitentes-compradores consumidores cujo contrato tenha sido resolvido após a declaração de insolvência, pudessem gozar de privilégio em relação à hipoteca, em sede de graduação de créditos de (neste sentido, Ac. do STJ de 11-05-2017, em www.dgsi.pt).

E é este o caso dos autos, uma vez que foram dadas as chaves da fracção, e o Sr. Administrador incluiu o crédito reclamado pelo recorrido, pelo que tal facto demonstra que o Adminstrador não vai realizar o contrato prometido.
Tendo em consideração que no caso dos autos o recorrido, promitente comprador, é pessoa singular que adquiriu a fracção fora do âmbito da sua actividade profissional; que não exerce com carácter profissional actividade económica lucrativa; e que ao prometer comprar a fracção à sociedade declarada insolvente não a destinou a uma actividade profissional nem, além disso, agiu no âmbito duma actividade dessa natureza, concluímos que é consumidor, na acepção que o AUJ 4/2014 teve em vista e, aparentemente, adoptou ao interpretar o artº 755º, nº 1, f), do CC nos termos em que o fez. E sendo inquestionável que na base da doutrina nele adoptada esteve o relevo e significado prático que se quis conferir ao princípio da protecção do consumidor como parte mais débil e desprotegida nos contratos promessa identificados naquele preceito legal.
A outra questão a considerar é a de saber se o crédito do recorrido deve ser constituído pelo sinal em singelo ou se deve ser constituído pelo dobro do sinal entregue pelo recorrido, aquando da celebração do contrato.
A declaração, expressa ou tácita, do administrador que revela a intenção de não celebrar o contrato prometido conduz à extinção do contrato promessa, ainda que a essa declaração (porque emitida num quadro legal específico) não sejam associáveis os efeitos típicos do incumprimento culposo (ou todos esses efeitos).
Como se refere no Ac. do STJ de 12 de Fevereiro de 2019 “na realidade, o administrador exerce um sui generis poder extintivo, que a lei lhe confere tendo em vista a solução que melhor serve os interesses polarizados no processo de insolvência que lhe cabe tutelar.
O direito do credor a ser indemnizado (pelo não cumprimento do contrato promessa vigente antes da declaração de insolvência) tem uma formação complexa (ou bifásica), pois a sua génese radica na declaração de insolvência (o que permitirá considera-lo como uma dívida da insolvência art.47º do CIRE), mas tal direito só se efectiva ou consolida na esfera jurídica deste sujeito quando se torna certo que o contrato não será cumprido”.
Até esse momento existe a possibilidade (pelo menos teórica) de o contrato-promessa ser cumprido. E, em tal hipótese, não existirá qualquer crédito a reclamar porque não haverá incumprimento”.
Se o administrador optar pela recusa do cumprimento, não se pode falar de resolução do contrato.

O artigo 106º do CIRE dispõe para os casos em que o insolvente seja o promitente vendedor e em que à data da declaração de insolvência, ainda não tenha havido resolução do contrato.

No caso que nos ocupa e quanto à recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência quando o insolvente é o promitente vendedor também o n.º 2 do artigo 106º suscita diversas interpretações.
Para uns a solução passa pela aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 442º do Código Civil, e assim, o promitente comprador teria direito ao dobro do sinal ou havendo tradição à indemnização pelo valor.
Outros, nesse caso entendem que não há incumprimento imputável a uma das partes, mas sim um acto lícito do administrador
Aderindo aos argumentos e considerações efectuadas no Ac. do STJ de 9/4/19 que passamos a citar entendemos que no caso não deve ser aplicado o disposto no artigo 442º do Código Civil e o crédito do recorrido não deverá corresponder ao dobro do sinal.

Com efeito, como se refere no citado Acórdão, “Na sequência do que se mostra decidido no Acórdão do STJ de 18-09-2018, desta 6ª Secção, proferido no Processo n.º 1210/11.0TYVNG-D.P1.S1, o direito do credor promissário deve ser encontrado exclusivamente no CIRE, nos termos das disposições conjugadas dos respetivos arts. 106.º, n.º 2, 104.º, n.º 5 e 102.º, n.º 3, al. c).

Nestas situações, o incumprimento do contrato promessa, determinado por opção do administrador da insolvencia (que pode cumprir ou não o negócio em curso), radica num direito ope legis (opção potestativa) e, como tal, é independente da actuação/conduta do insolvente, carecendo de sentido fazer apelo à aplicação de um regime legal que tem subjacente o dever de cumprimento.

Refere o citado Acórdão de 18-09-2018, reportado a situação com similitude à dos presentes autos:

-“Importa observar que a opção pelo não cumprimento da promessa de venda em causa (que tinha eficácia meramente obrigacional) por parte do Administrador da Insolvência constituiu um ato lícito e não culposo. Tratou-se de um ato praticado no exercício discricionário (em benefício dos interesses da massa) de um poder potestativo conferido por lei (sendo certo que ninguém veio invocar a ilicitude do ato, nomeadamente sob a alegação de ser abusivo).
Sendo assim, como é (e sendo também certo que não estamos perante uma promessa incumprida definitivamente em momento anterior à declaração da insolvência), não é adequado trazer à discussão o nº 2 do art. 442º do CCivil, seja por aplicação direta seja por aplicação indireta (por analogia). A atuação do regime do sinal, tal como previsto nesta última norma, pressupõe um incumprimento definitivo, ilícito e culposo dos próprios contratantes (anteriormente à declaração da insolvência), não se podendo fazer equivaler a opção lícita de não cumprimento do administrador da insolvência a esse incumprimento ilícito e culposo dos contraentes.
Na realidade, a solução do caso não se encontra no nº 2 do art. 442º do CCivil, mas sim e exclusivamente no CIRE, nos termos das disposições conjugadas dos respetivos art.s 106º, nº 2, 104.º, nº 5 e 102º, nº 3, alínea c).
(…)
Embora o que acaba de ser dito não se apresente incontroverso na doutrina - no sentido da aplicação do art. 442º, n.º 2 do C. Civil aos casos de recusa de cumprimento pelo administrador da insolvência pronunciam-se Pestana de Vasconcelos (Cadernos de Direito Privado, n.ºs 24 e 33, pp. 3 e seguintes e 43 e seguintes, respetivamente) e Gravato Morais (Cadernos de Direito Privado, n.º 29, pp. 3 e seguintes) -, corresponde, com maior ou menor detalhe, ao entendimento maioritário da doutrina (assim, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, pp. 234 a 238; Pinto Oliveira e Catarina Serra, Revista da Ordem dos Advogados, ano 70, pp. 399 e seguintes; Pinto Oliveira, Cadernos de Direito Privado, n.º 36, pp 3 e seguintes; Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª ed., pp. 472 e 473; Ana Prata et al., Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, p. 312 e 320; Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, 2ª ed., pp. 186 e 190; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed., p. 187, Gisela César, Os Efeitos da Declaração de Insolvência Sobre o Contrato-Promessa em Curso, p. 203).

No mesmo sentido decidiram entre outros, acórdão da Relação de Guimarães de 14 de Dezembro de 2010 e do STJ de 14 de Junho de 2011, citados no referido Acórdão.

Deste modo, e aderindo à jurisprudência e doutrina supra referidas, entendemos que o valor do crédito do recorrido deverá corresponder ao montante do sinal entregue no valor de € 40.000,00.
**

III – Pelo exposto acordam os Juízes desta Secção em julgar a apelação parcialmente procedente e em conformidade altera-se a sentença recorrida do seguinte modo:

Reconhece-se o crédito reclamado por ... no montante de € 40.000,00.
No mais mantém-se a sentença recorrida.
Custas na proporção do decaimento.
Guimarães, 19 de Junho de 2019.

Conceição Cruz Bucho
Maria Luísa Ramos
António Júlio Sobrinho