Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1361/16.5T9GMR.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: CRIMES DE AMEAÇA E INJÚRIA
ELEMENTOS TÍPICOS DOS ILÍCITOS
VÍCIOS DO ARTº 410º
Nº 2
DO CPP
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

II. Assacando o recorrente à sentença os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável desta e erro notório na apreciação da prova, ao abrigo do nº. 2 do art. 410º do CPP, esses vícios, enquanto tais, só se verificam quando, perscrutando o teor da decisão recorrida, por si só considerado, for de concluir, de acordo com um raciocínio lógico, que nela emerge uma errónea construção do silogismo judiciário, necessariamente patenteada no respectivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, mas sem que para tal constatação seja admissível o recurso a elementos estranhos à simples leitura daquele teor.

III. Sendo de verificação, praticamente, impossível a produção de prova sem discrepâncias ou contradições, ou, mesmo, sem divergência inconciliável, a sua existência não impede o tribunal de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de acordo com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos.

IV. O crime de ameaça, previsto no art. 153º, n.º 1, do C. Penal, enquadra-se tipologicamente no campo tutelar dos direitos de liberdade da pessoa humana e decompõe-se no anúncio ou promessa de um mal futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente e que constitua, em si mesmo, um dos factos ilícitos típicos elencados no próprio corpo do artigo, e não um qualquer crime, e deve ter a importância ou a gravidade adequadamente susceptíveis, tendo em conta as circunstâncias concretas, de coarctar a liberdade de decisão ou de acção do ameaçado, devendo a ameaça, por isso, revestir seriedade, acompanhada da consciência e da vontade do agente de que o prenúncio é adequado a provocar medo ou intranquilidade ao ofendido, no enquadramento da aparência externa de o agente estar resolvido a praticar o facto.

V. O tipo legal do crime de injúria p. e p. pelos art. 181º n.º 1, do C. Penal adopta uma concepção do bem jurídico honra que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. Embora o direito penal tutele os valores essenciais da vida em sociedade, segundo os princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade, imanentes ao Estado de Direito, também se sabe, segundo a normalidade da vida e as regras da experiência, que «existem expressões, comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que, objectivamente, atingem a honra do visado, a não ser que se demonstre que este as emprega usualmente e aceita sempre receber a carga de ofensividade que é inerente a elas».
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

No identificado processo comum singular, do Juízo Local Criminal de Guimarães, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, o arguido José, foi condenado, como autor de um crime de ameaça agravado p. e p. pelos arts. 153º, nº 1, 155º, nº 1, al. a), e de um crime de injúria p. e p. pelos arts. 181º, nº 1, do C. Penal, nas penas de multa de 110 (cento e dez) dias e de 40 (quarenta) dias de à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos) e, em cúmulo jurídico de tais penas, na pena única de 130 (cento e trinta) dias de multa à mesma taxa, bem como a pagar ao demandante J. M. o montante de € 300 (trezentos euros) para indemnização dos danos não patrimoniais advindos da sua conduta, acrescida dos juros de mora à taxa legal, desde a data da sentença até integral pagamento.

Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso, cuja motivação rematou com as seguintes conclusões:

1.ª Vem o presente recurso interposto da sentença de fls. que condenou o arguido José nos crimes de ameaça agravada e injúrias que vinha acusado, e, não pode perante a violência que foi alvo, o mesmo caiar a sua indignação, perante a decisão do Tribunal apelando a que seja feita justiça que entende ser merecida, enquanto cidadão livre e respeitador.
2.ª Fundamentalmente é entendimento do recorrente que foi incorretamente condenado quer criminalmente, quer civilmente, porquanto não se fez prova dos crimes pelos quais foi condenado estando a matéria de facto incorretamente julgada, e a sentença recorrida encontra-se deficientemente fundamentada.
3.ª O tribunal a quo desprezou as testemunhas arroladas e as declarações do arguido que uníssono afirmaram que o arguido não esteve no local, ou seja, não tendo nessa medida, o aqui recorrente qualquer domínio do facto e compulsados os factos dados como provados existem circunstâncias factuais que não foram, salvo o devido respeito, ponderadas.
4.ª Ora, o recorrente não pode, de forma alguma concordar com a sentença, sendo atacado, por depoimentos interessados, por parte do assistente, sendo vítima de uma denúncia caluniosa, e quer que seja feita justiça.
5.ª Daí, que este recurso, seja, numa primeira linha, sobre a matéria de facto e pelos “concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados” são aqueles que foram dado como provados, o recorrente atrás transcreveu: 1, 2, 3, 4, 5, 6, e 7.
6.ª As “provas que impõem decisão diversa” “a serem renovadas” são: As declarações do arguido/recorrente; As declarações das testemunhas Nelson e Jorge;
7.ª Com base nelas “as provas a serem renovadas”; O depoimento do ofendido e a prova testemunhal das testemunhas G. A. e Luís.
8ª. Deveria ter sido dado como provado que, nas circunstâncias de tempo e de lugar, o referido no Facto Provado 1 não deveria ter sido dado como provado, porque segundo os depoimentos das testemunhas Nelson e Jorge, o arguido não se encontrava a conduzir o veículo automóvel, e não pode o tribunal fundamentar que os funcionários Nelson e Jorge, que “prestaram um depoimento incoerente e titubeante si e entre si e quando conjugado com ademais prova, relatando, em suma, costuma trabalhar ao sábado e o arguido também está lá quase sempre” quando estes depoimentos foram totalmente coerentes e credíveis”.
9.ª A restante prova testemunhal, das indicadas como testemunhas, foram lacunosas, cheias de contradições, parciais e com falta total de coincidência, isto porque as testemunhas G. A. e Luís foram totalmente tendenciosas e parciais.
10.ª A testemunha G. A.: “relatou em suma, que estava com ofendido na viatura, e apareceu (uma carrinha Peugeot branca), conduzido pelo arguido, que lhe disse ‘já vais ver meu filho da puta, ainda te dou um tiro nos cornos”.
11.ª Já o Luís relatou — que “seguia pé e viu o assistente a entrar no seu carro, e parou um carro ao lado dele, e ouviu “já vais bêbado, oh filho da puta” e não percebeu mais nada.”
Acrescentando depois, a sentença que a testemunha Luís, ficou o tribunal convencido que nem sequer assistiu aos factos, porquanto prestou um depoimento titubeante querendo relatar só a versão ensaiada, soube relatar injúria (‘acrescentando o “bêbado” que mais ninguém relatou), mas já não ameaça. Ora, se firam ditas na mesma frase não se compreende que tenha ouvido apenas parte dela.”
12.ª Ora, se o tribunal como refere duvidou da versão ensaiada da testemunha Luís, por maioria de razão, também deveria duvidar a versão da testemunha G. A., porque não foi sequer coincidente com versão ensaiada pelo arguido e testemunhas, para além de serem ambas as testemunhas empregados do aqui assistente.
l3.ª Não pode haver qualquer dúvida do tom encenado e falso do assistente.
14. Por conseguinte, temos 3 versões ensaiadas e nada coincidentes.
a) Versão do assistente: “Já vais ver meu filho da puta, ainda te vou dar um tiro nos cornos”.
b) Versão do G. A.: “Já vais ver meu filho da puta, ainda te dou um tiro nos cornos”.
c) Versão do Luís: “Já vais bêbado, ó filho da puta”.
15. O tribunal fabricou ainda uma quarta expressão e fixou na fundamentação facto 1 “Ainda te vou espetar um tiro nos cornos”, e por tal motivo a sentença nula ao abrigo do artigo 379ª. N.1 c) do Código de Processo Penal.
16.ª Se as coisas tivessem ocorrido como o assistente refere, o que não aconteceu, então as mesmas testemunhas, em Tribunal, conseguiriam ser perentórias nos seus depoimentos e, na parte em que tentaram ser, foram descredibilizados.
17.ª O sentença produzida em tribunal refere que ficou convencido que o Luís “nem sequer assistiu aos factos, porquanto prestou um depoimento titubeante, querendo relatar só a versão ensaiada, e só soube relatar a injúria (acrescentando o “bêbado” que mais ninguém relatou), mas já não a ameaça.
Repare-se, no que, ainda, constatou o Tribunal a quo, “Ora se foram ditas na mesma frase não se compreende que tenha ouvido apenas parte dela.
Adianta ainda a sentença “Por um lado o assistente disse que já tinha saído do estacionamento e esta testemunha disse que ainda estava estacionado.” Assim não mereceu credibilidade.
18.ª O tribunal deveria ter em consideração todo o contexto dos excertos dos depoimentos porque, em si, revelam várias mentiras que, salvo devido respeito escaparam ao Tribunal.
19.ª Porque é certo, que a testemunha Luís veio inventar expressões, ao passo que o assistente e a testemunha G. A. omitem as expressões proferidas pela testemunha Luís.
20.ª A conclusão que se deve retirar é no sentido e com juízos de normalidade, de forma que foi produzida prova segura e coerente que estamos claramente perante uma versão objectivamente ensaiada e que é apurada pelo confronto de toda a matéria de facto impugnada.
21.ª Ou seja, o Tribunal não acredita que o arguido não estivesse no local, sendo induzido por uma versão completamente fabricada e para além disso aceita a versão só do assistente, e mal andou este tribunal em condenar o arguido.
22.ª Entende, o recorrente, que a matéria de facto que subjaz à douta sentença recorrida é profundamente insuficiente para condenar o arguido pela prática dos crimes de ameaça e injúria.
23.ª Não pode o tribunal, para além da dúvida razoável, firmar a convicção de que os factos se passaram nos termos da acusação pública.
24.ª É manifesta a falta de fundamentação quanto aos motivos do crime.
25.ª Foi feito um insuficiente exame crítico da prova produzida, sendo nula a sentença nos termos do artigo 379º n.º 1 alínea e) C.P.P., porquanto:

a) Não se provou qualquer relação dos alegados direitos de propriedade narrados pelo assistente;
b) O aqui arguido não é proprietário de qualquer terreno contíguo superior à cota do alegado pelo assistente.
Por isso, do ponto de vista do recorrente é insuficiente esse exame crítico da prova, na medida que não basta somente o depoimento do assistente, porque deveria o assistente juntar, aos autos, toda a matéria cível que alegadamente tem com referência à queda do muro e apresentar certidão do processo que diz ter instaurado, o que não o fez.
26.ª Não pode o tribunal substituir a vontade das partes, com a fundamentação produzida “vendo o assistente a circular, logo quis “tirar de esforço “, e ameaçou-o e injuriou nos termos dados como provados, eventualmente, para o fazer desistir do processo cível. É isto que nos dizem os juízos de experiência comum e normal acontecer. “(sublinhado nosso).
27.ª Ora, o tribunal não teve acesso ao processo que foi referido ter sido instaurado contra o dono do muro, como tal não pode eventualmente condenar o aqui arguido, agarrando-se à historieta inventada pelo assistente, sendo nula a sentença quanto à motivação.
28.ª Foi feito um insuficiente exame crítico da prova produzida, sendo nula a sentença nos termos do artigo 379.º n.º 1 alínea c) C.P.P., o arguido foi após a queixa falar com o assistente apenas por entender ter se tratado de algum “mal entendido”, e dessa conversa não se fez qualquer prova, e ainda que assim não fosse resulta claramente do texto da decisão recorrida uma contradição insanável entre o que foi fundamentado e entre a fundamentação e a decisão e um erro notório na apreciação da prova.
29.ª Os factos narrados na sentença no que tange ao crime de ameaça não preenchem o tipo legal, por falta de adequação.
30.ª Porém o arguido ao dirigir-se ao assistente proferindo a expressão ‘ainda te vou espetar um tiro nos cornos”, poderia questionar-se que tal frase do presente do indicativo se poderia falar de um mal futuro, mas o arguido (segundo testemunhas e assistente) não avançou para o assistente pretendendo consumar a ameaça. Deve-se entender que tal ameaça era para o futuro.
31.ª De facto, a ameaça acompanhada pela injúria “filho da puta”, tem; de se atender à forma como é dita, às circunstâncias de tempo e lugar, das condições pessoais do ameaçante e ameaçado, e gestos com que acompanha as expressões.
32.ª Por outro lado, a ameaça deve ser séria e credível, sob o ponto de vista quer do emissário quer do destinatário, ou seja, se é concretizável no momento- ninguém referiu nos autos que o arguido possuía consigo alguma arma de fogo!!!
33.ª Deveria ter-se concluído que o mal anunciado não é iminente, pois essa expressão quando proferida - o que não foi o caso (como já se expos) - tem de ser traduzido de forma adequada a intimidar, traduzindo-se em anúncio de matar, prejudicando a sua liberdade pessoal, que está desacompanhada de ausência dos elementos constitutivos de natureza objetiva do crime de ameaça, vez que o mal ameaçado não é futuro, mas iminente.
34.ª A expressão porque não acompanhada da prática de actos de execução do crime de homicídio não preenche o arguido o crime de ameaça, segundo o fundamento do recente Acórdão da Relação do Porto, relatado por Neto de Moura, datado de 28/06/2017, publicado em WWW.dgsi.com que refere que: “Afirmações como “limpo-te o sebo “, “é hoje que te vou matar “, “enfio-te um tiro nos cornos “, “vou-te acabar com a vida filho da puta” e outras dos mesmo jaez, tanto podem ser entendidas como anúncio de mal futuro como manifestação de violência que está prestes a concretizar-se “.
35.ª Assim, falta o elemento adequação por erro notório na apreciação da prova e contradição insanável da fundamentação, porque não se apurou o propósito de tirar a vida ao assistente ao contrário o que fundamenta a decisão no facto 2 O arguido atuou com o propósito de provocar receio e insegurança no assistente, sendo que o mesmo em consequência da expressão proferida sentiu-se atemorizado e perturbado”.
36.ª Também não se deveria ter dado como provado por erro notório na apreciação da prova, o crime de injúria porque segundo os critérios lógico racionais da decisão o objectivo do arguido era atemorizar e perturbar e a expressão “filho da puta” que consubstancia o crime de injúria, sendo o bem protegido com esta incriminação a honra e a consideração pessoal, não poderia o Tribunal fixar no facto 5. “... dirigiu-lhe as expressões que atenta a honra, bom nome, imagem, dignidade pessoal, consideração social e sensibilidade”.
37.ª Não podia autonomizar o facto 4 como o seguinte teor: “Aquando do aludido em 1), o arguido disse também ao assistente “Filho da puta”.
38.ª Não se entende o contexto da expressão injuriosa, e tenha alegadamente sido produzida, ou seja, antes da mesma expressão injuriosa ou depois da ameaça, ou até no meio.
39.ª Com efeito, se afirmação fosse proferida — o que não foi — ela em si, deveria ser incluída, não como injúria mas antes como num contexto da expressão (segundo o sentido da decisão, não podendo a injúria assumir autonomia face à expressão da ameaça que só pode ser normal no contexto de ameaçar.
40.ª A expressão nesse contexto, não poderia ter outro sentido que a não manifestação de desagrado, não assumindo caracter injurioso.
41.ª O direito penal não se destina a tutelar o excesso de sensibilidade de determinadas pessoas perante as afirmações que lhe são dirigidas, mas pretende punir factos que sejam objectivamente graves e geradores de ofensas a bens juridicamente protegidos.
42.ª Com efeito, a expressão “filho da puta” não contextualizada, não é suficiente para abalar moralmente o assistente, reduzindo, como fundamentado no facto 5 — “bom nome, imagem, dignidade pessoal e sensibilidade”, pelo que não se encontra preenchida, objectivamente, a previsão do artigo 18l.° n.° 1 do Código Penal,
43.ª Por fim, outro não pode ser o convencimento do recorrente, no que concerne à decisão da matéria de facto e direito na vertente do Principio in dubio pro reo, e a sentença a mesma ferida de nulidade por violação dos artigos 127°, 374° n.° 2 e 379º n.° 1 ai. a) e c) do Código de Processo Penal, e de insuficiência para a decisão da matéria de facto, nos termos do disposto no art° 410° n°2 al. a) Código de Processo Penal, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação ou entre a fundamentação, art° 410º n.° 2 ai. b) do Código de Processo Penal e por erro notório na apreciação da prova conforme o art° 410° n.° 2 ai. c) e impunha decisão diversa (artigo 412 n.°3 a), b) e c) do Código de Processo Penal, por total ausência de prova directa.
44.ª A sentença recorrida violou ou fez errada aplicação do disposto nos art°s 40° n.° 2, 47°, 70°, 71° n.° 2, 153° n° 1, 155° n.° 1 ai. a), 181 n.° 1 do Código Penal, não podendo pois, manter-se.

O recurso foi admitido por despacho proferido a fls. 160.

O demandante cível não respondeu ao recurso deduzido pelo arguido e o Ministério Público em 1ª instância fê-lo, pugnando pela sua total improcedência, por entender que os depoimentos produzidos em audiência e que serviram para formar a convicção do tribunal foram congruentes e credíveis, sustentando cabalmente todos os factos que ficaram a constar da sentença recorrida, que se mostra devidamente fundamentada, não tendo havido violação de qualquer preceito legal, designadamente do princípio in dubio pro reo, e, por isso, não merece qualquer censura.

E, neste Tribunal, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu fundamentado parecer, sustentando que a decisão de 1ª instância sobre a matéria de facto contém um exame crítico das provas, devidamente explicitado, que permite avaliar cabalmente o processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, designadamente quanto ao núcleo essencial em que se baseia o arguido – a omissão do motivo para a sua conduta. Também quanto à impugnação da matéria de facto por erro de julgamento e pelos vícios do artigo 410º do CPP, aduz, no essencial, que a mesma deve ser julgada improcedente, na medida em que se fundamenta apenas na visão interessada do arguido. Por fim, sustenta que se encontram preenchidos todos os pressupostos dos crimes pelos quais o arguido acabou por ser condenado.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP.
Efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, nos termos do art. 419º, nº 3, al. c), do CPP.
*
II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo de questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, no recurso suscitam-se as seguintes questões (organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência):

1. – a nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova;
2. – a impugnação da matéria de facto, fundamentada nos vícios do art. 410º do CPP e em erro de julgamento, com violação do princípio in dubio pro reo;
3. – o preenchimento dos tipos legais dos crimes de ameaça agravada e de injuria.
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Importa decidir, para o que deve considerar-se como pertinentes os factos considerados provados e não provados na decisão recorrida (sic):

«1. O arguido, no dia 4 de Junho de 2016, entre as 15h30 e as 16h00, na Rua (…), área desta instância local de Guimarães, por motivos não concretamente apurados, mas relacionados com a queda de um muro, dirigindo-se ao assistente J. M., em tom sério, disse: “Ainda te vou espetar um tiro nos cornos”.
2. O arguido atuou com o propósito de provocar receio e insegurança no assistente, sendo que o mesmo, em consequência da expressão proferida, sentiu-se atemorizado e perturbado.
3. O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei penal.
4. Aquando do aludido em 1), o arguido disse também ao assistente “Filho da puta”.
5. Com a conduta supra descrita o arguido agiu com o propósito concretizado de ofender o assistente, o que efectivamente logrou conseguir, dirigindo-lhe expressões que atentam contra a sua honra, bom nome, imagem, dignidade pessoal, consideração social e sensibilidade.
6. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
7. O demandante sentiu-se ofendido, vexado e revoltado com tais expressões.
8. O arguido é gerente e aufere cerca de €800,00 mensais.
9. Vive com a esposa que trabalha como operária têxtil e aufere o salário mínimo nacional, e um filho estudante.
10. Vive em casa própria, e paga ao banco €400,00 de renda mensal.
11. Frequentou a escola até à 4ª classe.
12. O arguido não tem antecedentes criminais.

Factos Não Provados

- a. O arguido aquando do aludido em 1), disse “Põe-te fino”.
b. A expressão aludida em 1) e 4), foi proferida em tom alto de forma a poder ser ouvida, como o foi, por todas as pessoas que naquele exacto momento se encontravam nas imediações daquele café ou por lá passavam.
c. Aquando do aludido em 1) e 4), o arguido chamou “bêbado” ao assistente. Que o arguido F. no dia hora e local referido em 1. dos factos provados deu pontapés nos membros inferiores mais precisamente na perna direito do ofendido João e que lhe provocou as lesões referidos em 4. supra dos factos dados com provados.».

A Motivação da decisão de facto (sic):

«O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, designadamente:

- nas declarações do arguido, o qual, em suma, relatou não se encontrou com o assistente nas circunstancias de tempo e lugar relatadas na acusação.

Só o conhece porque foi ao seu estabelecimento comercial comprar plantas.

Não teve conversa com o assistente por causa de qualquer muro. Mas efectivamente caiu um muro porque choveu muito nos seus terrenos, e a água acabava nos prédios inferiores, onde se inclui o do ofendido.

- nas declarações do assistente, o qual, em suma, relatou que foi à sua quinta com um empregado, e na vinda parou no café, e logo quando arrancou, e uma viatura (uma carrinha Peugeot branca) conduzida pelo arguido, colocou-se ao seu lado (em contramão), e este disse-lhe “já vais ver meu filho da puta ainda te vou dar um tiro nos cornos”. E depois continuou a marcha. Não se recorda se foi dito “põe-te fino”.

Depois de ter apresentado a queixa, o arguido foi ter consigo, e disse-lhe que não tinha dito nada que seria confusão.

Acha que tudo aconteceu porque tem uma quinta arrendada, onde tem muitas plantas, a qual faz estrema com outro prédio, que por sua vez faz estrema com o prédio do arguido. Este, como choveu muito, abriu um rego para deitar a água para o campo do vizinho, o que fez cair um muro, o qual lhe partiu as plantas. Por isso, instaurou um processo ao dono do prédio vizinho com vista a pagar-lhe as plantas. E também falou com o arguido para lhe pagar as plantas.

Ficou mal disposto e transtornado com a situação porque não gosta de ser ameaçado e injuriado.

- nos depoimentos das testemunhas:
- G. A., empregado do assistente, a qual prestou um depoimento coerente e verosímil por si e entre si e quando conjugado com a demais prova, relatando, em suma, que estava com o ofendido na viatura, e apareceu um veículo (uma carrinha Peugeot branca), conduzido pelo arguido, que lhe disse “já vais ver meu filho da puta, ainda te dou um tiro nos cornos”, e depois seguiu em contramão.

O ofendido ficou incrédulo e transtornado.

-Luís, presta serviços ao assistente, a qual prestou um depoimento incoerente e titubeante por si e entre si e quando conjugado com a demais prova, relatando, em suma, que seguia pé, e viu o assistente a entrar no seu carro, e parou um carro ao lado dele, e ouviu “já vais bêbado, oh filho da puta” e não percebeu mais nada.
-Nelson, funcionário do arguido, a qual prestou um depoimento incoerente e titubeante por si e entre si e quando conjugado com a demais prova, relatando, em suma, costuma trabalhar ao sábado e o arguido também está lá quase sempre.

Confirma que o arguido circula com uma carrinha Peugeot branca.

-Jorge, funcionário do arguido, a qual prestou um depoimento incoerente e titubeante por si e entre si e quando conjugado com a demais prova, relatando, em suma, costuma trabalhar ao sábado e o arguido também está lá quase sempre.
Confirma que o arguido circula com uma carrinha Peugeot branca.
*
Feita esta breve súmula da prova produzida, tem que se concluir no sentido de que os factos dados como provados efectivamente aconteceram e o arguido foi o seu agente.

Na verdade, embora o arguido negue os factos, e não tenha explicação para a queixa, o certo é que foi adiantando que existiu a situação das águas e do muro.

Acresce que o assistente, soube esclarecer com verosimilhança que o arguido fez um rego e dirigiu as suas águas para os terrenos que ficam em nível inferior, o que fez um muro cair em cima das suas plantas, causando-lhe prejuízo. E por isso falou com o arguido e até instaurou um processo contra o dono do muro. Aqui está a motivação para o crime.

Ademais o assistente prestou umas declarações verosímeis e coerentes (é que não foi adiantada nenhuma inimizade entre eles, e este mostrou-se indignado e perplexo com a conduta inesperada do arguido), as quais conjugadas com o depoimento da primeira testemunha, também coerentes, que convenceram o tribunal que efectivamente o arguido vendo o assistente a circular, logo quis “tirar de esforço”, e ameaçou-o e injuriou nos termos dados como provados, eventualmente, para o fazer desistir do processo cível. É isto que nos dizem os juízos de experiência comum e normal acontecer.

Mas mais, o assistente, ainda, acrescentou que o arguido após a queixa, ainda, foi falar com ele, tentando desculpar-se, o que também indicia que a factualidade dada como provada efectivamente aconteceu.

Já no que concerne ao depoimento da testemunha Luís, ficou o tribunal convencido que nem sequer assistiu aos factos, porquanto prestou um depoimento titubeante, querendo relatar só a versão ensaiada, e só soube relatar a injúria (acrescentando o “bêbado” que mais ninguém relatou), mas já não ameaça. Ora, se foram ditas na mesma frase não se compreende que tenha ouvido apenas parte dela.
Por outro lado, o assistente disse que já tinha saído do estacionamento, e esta testemunha disse que ainda estava estacionado. Assim não mereceu credibilidade.

Assim, conjugada toda a prova aludida,

Já no que concerne ao aspecto subjectivo da conduta, ponderou-se o iter criminis do arguido, ou seja a acção objectiva apurada, apreciada à luz de critérios de razoabilidade e bom senso e das regras de experiência da qual se extrai a sua intenção, sendo certo que não foi produzida qualquer prova susceptível de contrariar tal entendimento.

Quanto à factualidade dada como provada quanto aos P.I.Cs., mereceu resposta, positiva, porque as consequências da conduta do demandado, resultam desde logo da conjugação das declarações do assistente e depoimentos da primeira testemunha com juízos de normalidade.

No que se refere aos factos não provados nenhuma prova verosímil, segura e coerente foi produzida em sede de audiência de julgamento, quer pelo já explanado, quer porque as testemunhas Nelson e Jorge apenas se limitaram a referir que trabalham ao sábado com o arguido e por isso ele deveria estar no local de trabalho. Todavia, não passaram de relatos genéricos e conclusivos, pelo que nada demonstraram em concreto sobre a factualidade em causa.
As condições pessoais e económicas do arguido, resultaram das suas declarações.
A inexistência de antecedentes criminais, resultaram do CRC junto aos autos.».
*
III- O Direito.

1. A nulidade da sentença por falta de exame crítico da prova.

Sustenta o recorrente que a sentença é nula por padecer de um insuficiente exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal a quo na medida em que não explicita o motivo que esteve na origem dos factos, designadamente por não se ter sido feita prova de que fosse proprietário de qualquer terreno contíguo ou confinante com o do assistente.

Vejamos.

A fundamentação da sentença, princípio com assento constitucional em que se inscreve a legitimidade do exercício do poder judicial (art. 205º da CRP), traduz-se na obrigatoriedade de o tribunal especificar os motivos de facto e de direito da decisão, cominando a lei a sua omissão ou grave deficiência com a nulidade (1). Por isso, todas as decisões proferidas no processo – que não sejam de mero expediente, isto é, que decidam qualquer questão que se suscite ou seja controvertida – devem ser sempre fundamentadas (2) e o seu alcance deve ser perceptível para os respectivos destinatários e demais cidadãos (3). A garantia de fundamentação é, assim, indispensável para que se assegure o real respeito pelo princípio da legalidade da decisão judicial, o dever de o juiz respeitar e aplicar correctamente a lei seria afectado se fosse deixado à consciência individual e insindicável do próprio juiz.

A fundamentação adequada da decisão constitui uma exigência do moderno processo penal e realiza uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), a exigência de fundamentação está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos – para reapreciar uma decisão o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e que determinou o sentido da decisão para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio juízo.

E é compreensível que a lei determine, taxativamente, os requisitos gerais a que, especialmente, a sentença se encontra sujeita, por ser o acto decisório por excelência, o que conhece, a final, do objecto do processo e, por isso, se reveste de crucial importância porque é através dele que, particularmente, o arguido mas também os demais sujeitos processuais ficam a saber se foi proferida uma decisão absolutória ou condenatória e, neste caso, qual a medida concreta da pena.

Assim é que o art. 374º, sobre a epígrafe “Requisitos da sentença”, estabelece a estrutura a que deve obedecer a sentença – relatório, fundamentação e dispositivo – e o seu nº 2, quanto à respectiva fundamentação, especifica o seu concreto conteúdo, impondo que dele conste «uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».

O exame crítico das provas consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (4).

É ponto assente que na fundamentação da matéria de facto se hão-de indicar as razões porque se atribui credibilidade a certos meios de prova, incluindo naturalmente os depoimentos prestados, e a explicação das razões porque se não confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário. O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor. Sabendo-se que as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º CPP), é necessário que o processo de formação dessa convicção, porque assente, necessariamente, numa racionalidade prática, seja explicado com suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos, esclarecendo-se, nomeadamente, porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência. Isto significa que não basta afirmar que certo depoimento, onde se abordaram determinados pontos, é credível porque foi prestado com uma “postura calma” ou com “um raciocínio coerente” e “está de acordo com as regras da experiência”; é preciso, dar o passo seguinte que consiste exactamente em esclarecer de forma raciocinada a compatibilidade do seu teor com as tais regras da experiência. Tanto mais detalhadamente quanto a decisão esteja em aparente desconformidade com essas regras (5).

«A fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal e do seu exame crítico, destina-se a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência.

A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” facto envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.» (6).

«A operação de fundamentação decisória é complexa, já que, nos termos do n.º 2 do art. 374.º do CPP, não prescinde da enumeração dos factos provados e não provados, constando, ainda, de uma exposição tanto possível completa, mas concisa dos motivos de facto e de direito que legitimam a decisão, com a indicação e o exame crítico das provas. É imperativo, em exame crítico das provas, que o tribunal explicite os motivos determinantes da credibilidade dos depoimentos, do valor dos documentos e exames, por que as privilegiou em detrimento de outras, em ordem a que os destinatários e um homem médio fique ciente de que as razões de convicção procedem da lógica de raciocínio, da transparência e do bem senso. Se não é necessário explicitar facto a facto as razões que levaram ao rumo decisório, o que se tornaria uma tarefa quase ciclópica, sem utilidade e mais propiciadora de reparos, não se dispensa que da fundamentação figure, de forma simples, clara e suficiente, o processo encadeado que, em resultado da lógica e da razão nela impressas, levou a tomar-se o sentido decisório expresso, enquanto sua consequência inelutável, à margem da dúvida.» (7).

Também como se anota no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 573/98 (8) a decisão, sobre a matéria de facto tem de «estar substancialmente fundamentada ou motivada – não através de uma mera indicação ou arrolamento dos meios probatórios, mas de uma verdadeira reconstituição e análise crítica do iter que conduziu a considerar cada facto como provado ou não provado».

Temos assim como certo que a não enumeração na sentença de algumas das provas produzidas e a consequente falta de exame crítico de todas ou de cada uma delas, explicitando as razões que levaram o Tribunal a dar crédito a umas e a descredibilizar outras, gera a nulidade da sentença, por insuficiente fundamentação da mesma (9). Não sendo adequado dizer que não tendo determinado meio de prova influenciado o tribunal no sentido conducente à confirmação ou infirmação dos factos em julgamento, o mesmo não está obrigado a indicá-la e a expor o exame crítico que dela implicitamente fez, pois que, nesse caso, sendo certa prova irrelevante para a formação da convicção do julgador, tanto no sentido da afirmação como da negação da realidade dos factos em julgamento, há que dizê-lo, pois só assim se revela que a prova foi efectivamente apreciada.

Afigura-se-nos evidente que na situação em apreço, em face da concreta argumentação do recorrente, o que o mesmo pretende demonstrar é, sim, a carência de prova para considerar como provados os factos que levaram à sua condenação e não a omissão de exame crítico da prova.

Efectivamente, o teor da decisão criticada permite inferir, à luz do acima exposto, que o Senhor Juiz ficou convencido da realidade dos factos que arrolou como assentes e indicou o percurso ou o raciocínio lógico que o conduziu a essa convicção, de modo bastante a este Tribunal de recurso poder aferir da sua adequação (substancial), possibilidade que se estende, inevitavelmente, a qualquer destinatário directo e aos demais cidadãos: o Senhor Juiz esclareceu, no essencial, as razões do seu convencimento para dar como provado que o arguido no circunstancialismo descrito no ponto 1 proferiu as expressões que ficaram a constar do rol dos factos provados, as quais se prendem com a circunstância de, por um lado, o arguido ter negado a prática dos factos e, por outro, o depoimento do assistente, no segmento em que asseverou terem sido proferidas pelo arguido as ditas expressões, lhe ter merecido credibilidade, conjugado com o depoimento prestado pela testemunha G. A..

Também não colhe o argumento com que o recorrente pretexta a suposta falta de indicação na decisão da motivação da actuação que lhe é assacada, aludindo, afinal, à ausência de prova dessa motivação por não ter sido junta aos autos documentação comprovativa de que o mesmo seria proprietário de qualquer terreno confinante com o do assistente e, ainda, da queda do muro, para a qual não bastaria o depoimento deste. Ora, consta efectivamente da censurada motivação o exame crítico da prova produzida sobre o visado contexto motivacional do ocorrido, sendo nela referido, aliás, que foi o próprio recorrente a mencionar a situação dos prédios, a queda de um muro por ter chovido muito nos seus terrenos e o subsequente encaminhamento das águas para os prédios inferiores, entre os quais o do ofendido.

Tudo isto para concluir que estamos perante uma “motivação” apta ao fim a que se destina, porquanto a expressão nela contida do exame crítico das provas indicadas permite alcançar o processo formativo da convicção do Tribunal, relacionando-se a discordância do recorrente com razões de diferente índole, conexas com a impugnação ampla da matéria de facto por erro de julgamento deduzida pelo mesmo.
Assim, improcede, neste segmento, o recurso interposto pelo arguido.

2. A impugnação da matéria de facto.

Como vem sendo entendido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: pelo âmbito, mais restrito, dos vícios formais previstos no art. 410º, nº 2, do CPP; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que o art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma se refere.

2.1. Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável desta e erro notório na apreciação da prova.

O arguido/recorrente imputa à decisão recorrida tais vícios formais, mas não só não os concretiza como as conclusões e a motivação do seu recurso logo denunciam que o seu real inconformismo, com o apelo que faz às declarações dele próprio e ao depoimento do assistente e demais testemunhas, se dirige ao modo como o Tribunal de 1ª instância apreciou e valorou os meios de prova produzidos em audiência de julgamento.

Realmente, quanto a esses vícios, a que alude o art. 410º, nº 2, do CPP, seria suposto que a impugnação deduzida incidisse no eventual erro na construção do silogismo judiciário, não no chamado erro de julgamento, a injustiça ou a desadequação da decisão proferida ou a sua não conformidade com o direito substantivo aplicável (10). Tratar-se-ia, nessa vertente, de saber se na decisão recorrida se reconhece qualquer desses vícios, necessariamente resultantes do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O que significa que só assumem tal natureza os erros constatáveis pela simples leitura do teor da própria decisão da matéria de facto, não sendo admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (11). Apenas será de admitir a conveniência ou a cautela de, ainda assim, sindicar a fundamentação que haja sido feita sobre os factos provados e não provados, para se fazer uma avaliação correcta e poder concluir se, afinal, para um facto em aparente contradição com a lógica mais elementar e as regras da experiência comum, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, não foi fornecida naquela fundamentação um qualquer esclarecimento que torne compreensível o julgamento efectuado: por exemplo, se um facto dado como provado (ou não provado) contraria o senso comum, ou seja, a normal e corrente compreensão e interpretação das situações da vida, só a clara explicitação do percurso trilhado para a formação da respectiva convicção e a razoabilidade desta poderão legitimar a sua aquisição processual.

Assim, o vício atinente à insuficiência para a decisão da matéria de facto provada só ocorrerá quando da factualidade vertida na decisão se colher faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição. Trata-se da formulação incorrecta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada (12).

No fundo, este vício consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma.

Porém, este vício também não deve ser confundido com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida, enquanto questão do âmbito da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP) (13).

Também o vício da contradição insanável de fundamentação, segundo tem esclarecido o Supremo Tribunal «só se verifica quando, de acordo com um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação, não só não justifica como impõe uma decisão contrária ou, quando, segundo o mesmo tipo de raciocínio, se concluir que a decisão não resulta suficientemente esclarecida, dada a colisão entre os fundamentos invocados» (14).

Ou, como se asseverou, ainda, no acórdão do mesmo Tribunal de 20/04/2006 (15), «O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão ocorre quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão».

Este vício, como resulta da letra da alínea b) do art. 410º, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, ou seja, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é susceptível de o integrar, mas apenas a que incida sobre elementos relevantes do caso e se mostre insanável ou irredutível, isto é, que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência.

Identicamente, a jurisprudência tem considerado o vício contemplado na alínea c) de tal preceito apenas como os erros que, ponderados os factos provados e não provados, advêm de o tribunal ter retirado uma conclusão ilógica ou arbitrária, à margem duma análise racional ou em violação das regras de experiência comum, e que, por isso, não escapa à análise do homem médio (16). Assim, apenas existe o vício do erro notório na apreciação da prova quando, de acordo com o texto da sentença, o tribunal a valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (17). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, traduzido, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (18) ou dar-se como não provado o que não pode ter deixado de ter acontecido.

Como linearmente se extrai, no caso em apreço, não se constata pela simples leitura do teor da decisão recorrida os vícios (formais) que o recorrente lhe assaca, pois, para além de os factos considerados provados sustentarem cabalmente a sua condenação, também não são contraditórios em si mesmos ou com aqueles que foram dados como não provados ou com a fundamentação que sobre eles incidiu, assim como também não se vislumbra que a apreciação dos meios de prova tivesse afrontado qualquer principio jurídico ou as regras da experiência comum.

Em suma, nesses e nos demais aspectos versados no recurso, o que está verdadeira e unicamente em causa é que o recorrente não se conforma com a circunstância de a sua versão sobre a matéria de facto não ter sido acolhida no julgamento proferido pela 1ª instância, aí fazendo radicar os aludidos vícios que aponta à decisão recorrida e que expressamente apoda, concomitantemente, de contradição, de erro notório na apreciação da prova e de insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito.

Destarte, é forçoso concluir, face à concreta argumentação expendida nas conclusões do recurso, complementadas com a respectiva motivação, que o recorrente invoca a existência destes vícios fora das analisadas condições legais, pois que se limita a extrair as ilações que tem por pertinentes da prova produzida, que contrapõe às do julgador, sem que logre demonstrar, através da análise estribada apenas na leitura do próprio texto do acórdão recorrido, a existência de qualquer ilogismo de percurso ou conclusão contrária à lógica das coisas, ao alcance, pela sua evidência, do homem comum. Por conseguinte e sem necessidade de maiores desenvolvimentos, improcede a deduzida invocação de vícios formais.

2.2. O erro de julgamento e o princípio in dubio pro reo.

Como se disse, a verdadeira pretensão do recorrente dirige-se à impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, defendendo que não teve qualquer intervenção nos factos, tendo sido incorrectamente condenado, por não terem sido devidamente valoradas as suas declarações, bem como as das testemunhas que indicou.

Para correctamente se impugnar a decisão com fundamento em erro de julgamento, é preciso que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.

É certo que a possibilidade de a Relação modificar a decisão da 1ª instância, sem que se imponha qualquer limitação relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada – ainda que, quanto à prova gravada, com a consciência dos condicionamentos postos pela limitação da acção do princípio da imediação –, é inteiramente congruente com o objectivo de garantir um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, claramente prosseguido pela lei de processo (19). Todavia, uma vez invocado o erro de julgamento, embora a sua apreciação se alargue à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, a mesma é balizada pelos concretos pontos impugnados e meios de prova indicados, ou seja pelos limites fornecidos pelo recorrente, a quem se impõe o estrito cumprimento dos ónus de especificação previstos no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP (20). É esta a doutrina recomendada pelo STJ, p. ex., nos sumários dos seus Acs. de 10-01-2007 e 15-10-2008 (21).

O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como tendo sido incorrectamente julgados, na sua perspectiva, a fim de poder obviar a eventuais erros ou incorrecções na forma como foi apreciada a prova.

Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objecto do recurso, cabendo ao tribunal da relação confrontar o juízo que sobre eles foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.

Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.

Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (impugnação ampla), o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.

Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do nº 3 do citado art. 412º. A referida especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. E a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.

Note-se que o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afecta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law.

Daí a necessidade e importância da impugnação especificada, por permitir a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, devendo tais especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, nº 3). Face ao nosso regime processual quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, actualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do nº 4 do citado art. 412º.

É também por isso que se reconhece não existir fundamento bastante para rejeitar a impugnação da decisão numa situação em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do recurso, tenha sido devidamente cumprido o ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados e as propostas de decisão alternativa sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal alternativa, já podendo – e até devendo – o cumprimento do ónus secundário ser satisfeito na motivação (corpo das alegações), para aí sendo relegadas a valoração dos concretos meios de prova indicados nas conclusões e a determinação da sua relevância para a distinta decisão proposta, bem como a indicação concreta das passagens da gravação (22).

E, nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que devia ser provada.

Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.

Contudo, no âmbito penal, o princípio in dubio pro reo – a que o recorrente também aludiu – estabelece a imposição de que, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido, perante a persistência de uma dúvida razoável: exige-se uma pronúncia favorável ao arguido quando o tribunal não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Neste conspecto, esse princípio constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos. Ora, como resulta do exposto, a violação desse princípio só se pode verificar quando o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.

Normalmente, a imputação de uma alegada violação desse princípio suscita a necessidade de ser demonstrado o erro na apreciação da prova produzida, com vista a evidenciar no recurso a carência de prova de que os factos imputados ao arguido foram por este protagonizados ou de que se verificou qualquer circunstância que a lei faz depender a punibilidade do mesmo.

É certo que a prova não pressupõe uma certeza absoluta, mas, por outro lado, também não se pode quedar na mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (23). Trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» (24).

É por isso que nos casos em que o julgador não logra decidir com segurança com base nas mesmas e permanecendo uma dúvida consistente e razoável não pode desfavorecer a posição do arguido, só lhe restando concluir pela absolvição do mesmo por apelo do princípio in dubio pro reo (25), pois convém não esquecer que «o arguido beneficia da presunção de inocência: a prova para condenação tem de ser plena (...). Desde que a prova suscite (…) a possibilidade de diferente hipótese que não pode ser afastada, prevalece, por força da lei, a presunção de inocência».

Assim é, porque «a condenação de um inocente afecta muito mais gravemente a justiça, e por isso também o próprio interesse social, do que a não punição de um culpado» (26).

E, como é evidente, é segundo esta perspectiva que hão-de ser apreciados os factos provados e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles, ou seja, o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma errada apreciação da prova produzida. Em suma, neste processo, a violação do invocado princípio deve ser defrontada ou apreciada também nesta vertente da adequação da decisão proferida à prova produzida.

Realmente, num sistema como o nosso em que a prova não é tarifada, não podemos olvidar que, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta, nem das declarações de uma única testemunha (27), seja ou não vítima (ofendido), desde que credíveis e coerentes, as quais, ainda que opostas, em maior ou menor medida, ao depoimento do arguido, podem fundamentar uma sentença condenatória, se depois de examinadas e valoradas as versões contraditórias apresentadas se considerar verdadeira a contida naquelas declarações, em função de todas as circunstâncias que concorrem no caso.

Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos.

Analisemos, então, o sentido dos elementos de prova invocados na decisão impugnada e nas conclusões de recurso sobre os pontos factuais da impugnação deduzida.

À luz do que acima expendemos, o recorrente cumpriu o apontado ónus de especificação legalmente exigido para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que formulou: tendo identificado os concretos pontos de facto impugnados [1 a 7], dizendo que o Tribunal os não poderia ter dado como provados, remetendo para os depoimentos produzidos em audiência e indicando as respectivas passagens concretas da gravação, para além de transcrever pequenos excertos de tais depoimentos.

Após exame do resultado da audição dos aludidos depoimentos, incluindo a das partes não referenciadas pelo recorrente, podemos, desde já, adiantar que a decisão impugnada não merece, na sua globalidade, qualquer censura, pois procedeu a uma correcta e devida ponderação de todos os meios de prova produzidos.

Como se disse, sendo de verificação, praticamente, impossível a produção de prova sem discrepâncias ou contradições, ou, mesmo, sem divergência inconciliável, a sua existência não pode impedir o tribunal de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de acordo, como se deixou expresso, com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos.

Concretizando, muito sumariamente.

O arguido/recorrente negou categoricamente a prática dos factos que lhe eram imputados, dizendo que não se encontrou com o assistente, que apenas o conhece por se ter dirigido à sua loja para comprar plantas. Esclareceu que no dia em causa, num sábado, esteve a trabalhar das 14 às 19 horas, ininterruptamente, reconhecendo que o veículo a que se alude nos factos é da sua esposa.

As testemunhas Nelson e Jorge, ambos funcionários do arguido, procuraram evidenciar a habitualidade de o arguido trabalhar todos os sábados, mantendo-se no local de trabalho das 14 às 19 horas, ininterruptamente. Aludiram ainda ao veículo automóvel em que o arguido se costuma transportar, dizendo que o mesmo está habitualmente estacionado no local de trabalho.

Ao invés, o assistente asseverou que o arguido, no circunstancialismo descrito nos factos, parou o veículo em que se fazia transportar ao lado do seu, abriu o vidro do lado do passageiro, proferindo a expressão «Já vais ver meu filho da puta, ainda te vou dar um tiro nos cornos». Instado a explicar o motivo de tal atitude, disse ser esta devida ao facto de existir um problema relacionado com o escoamento de águas pluviais e de ter interpelado o arguido para que lhe pagasse o prejuízo resultante dessa queda de água. Referiu também que ficou «mal disposto, muito mal, a minha mãe tem 91 anos» e, instado a esclarecer se se sentiu ameaçado, respondeu «ameaçado não, só me disse aquilo e segui o meu caminho», tendo, ainda, informado que, após os factos, o arguido foi ter consigo tentando convencê-lo a desistir da queixa que havia apresentado.

Igualmente a testemunha G. A., funcionário do assistente que, no momento, o acompanhava no veículo, esclareceu o modo como o arguido interpelou o assistente e o teor da expressão que na altura proferiu «Já vais ver meu filho da puta, ainda te dou um tiro nos cornos», com que o ofendido ficou «incrédulo, pálido e meio parado».
A testemunha Luís, topógrafo, que, por vezes, presta serviços ao assistente, esclareceu que o arguido proferiu a seguinte expressão «já vais ver meu filho da puta».

A testemunha G. A. e o assistente fizeram relatos dos factos que, independentemente da subtil nuance entre ambos, são de molde a não suscitar dúvidas de que o arguido, no mencionado contexto, proferiu a expressão «Já vais ver meu filho da puta, ainda te vou dar um tiro nos cornos». O que também se deve reconhecer quanto às repercussões sentidas pelo ofendido com a alusão (indirecta) contida em tal expressão a sua mãe (com 91 anos): embora não se se sentisse propriamente ameaçado, o mesmo ficou ofendido (mal disposto, incrédulo, pálido e meio parado).

Ao invés, as testemunhas Nelson e Jorge tentaram corroborar a versão do arguido/recorrente, transmitindo a ideia de que o mesmo no dia em questão, à semelhança do que sucede em todos os sábados da semana, se encontrava a trabalhar, estando o veículo também estacionado no mesmo local. Contudo, os seus depoimentos, pelo respectivo teor e, essencialmente, pela forma como foram prestados não ofereceram garantias suficientes para que o tribunal lhe pudesse ter conferido qualquer credibilidade, pelo que bem andou o Senhor Juiz ao expressar a formação da respectiva convicção, neste ponto.

Assim, pese embora a negação peremptória do arguido, o certo é que os enunciados elementos, devidamente ponderados segundo as regras da lógica e da experiência comum, permitem, com o averbado desconto, que se retire a conclusão que o Tribunal a quo acolheu.

Realmente, não pode deixar de se assinalar que o arguido logrou obter um reexame da prova apenas assente na sua própria convicção e visão sobre os factos, sem que, para tal, existam fundamentos bastantes, uma vez que se limitou a recorrer a pequenos excertos dos depoimentos destas testemunhas que são inócuos para a aquisição sobre a realidade dos factos, já que as mesmas, tendo-se referido apenas ao que era habitual, nunca afirmaram, peremptoriamente, que o arguido naquela concreta circunstância temporal estivesse a trabalhar.

Assim, perante tais declarações e depoimentos, a discordância do recorrente quanto à redacção conferida aos pontos 1 a 7 da matéria de facto tida por provada apenas tem razão de ser em relação ao emprego da expressão «espetar» inserta no item 1 – constante da acusação pública, mas sem qualquer sustentação na prova produzida – bem como ao facto de o ofendido se ter sentido atemorizado, na realização do propósito com que o arguido teria actuado, também sem apoio bastante na prova produzida.

Quanto ao demais, extrai-se cristalinamente da motivação, acima transcrita, da decisão sobre os factos constantes da sentença recorrida que o Senhor Juiz indicou cabalmente os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção e as razões pelas quais relevaram os meios de prova de que se socorreu e obtiveram credibilidade no seu espírito. Para tanto, não se limitando a indicar os concretos meios de prova geradores do seu convencimento, revelou as razões pelas quais, apoiando-se nas regras de experiência comum, adquiriu, com apoio na imediação e na oralidade da produção de tais meios, a convicção sobre a realidade dos factos. Como escreveu nessa motivação, para a formação da sua convicção quanto aos factos ora impugnados, foram determinantes, não obstante a negação do arguido, as declarações do assistente, que soube esclarecer com verosimilhança que aquele fizera um rego com que dirigiu as suas águas para os terrenos que ficam em nível inferior, o que fez cair um muro em cima das suas plantas, causando-lhe prejuízo. Acresce que tais declarações foram corroboradas pela sua conjugação com o depoimento da primeira testemunha, também coerente, do que adveio a convicção do tribunal de que efectivamente o arguido, vendo o assistente a circular, logo quis tirar desforço, nos termos agora dados como provados, eventualmente, para o fazer desistir do processo cível, como «nos dizem os juízos de experiência comum e normal acontecer».

Dito por outras palavras, com as apontadas ressalvas, o Senhor Juiz fez um exame cuidado, efectuando um juízo crítico sobre a prova produzida que permite compreender a opção pelos meios probatórios e os motivos pelos quais os elegeu em detrimento de outros.

Ao recorrente assistia, evidentemente, o direito de apresentar a versão que lhe aprouvesse e que tivesse por mais adequada à sua defesa. Porém, o mesmo limitou-se a alegar que, em julgamento, não foi feita a prova dessa sua versão dos factos, mas sem apontar argumentos ou provas suficientemente válidas que imporiam uma decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal.

De facto, não basta pretender o reexame da convicção alcançada pelo tribunal de 1ª instância apenas por via de argumentos que apontem para a possibilidade de uma outra convicção, antes é necessário demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, ou, dito de outro modo, é indispensável a demonstração que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, por violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais.

Por fim, dir-se-á que é certo que, se existisse a possibilidade razoável de uma solução alternativa ou de uma explicação racional e plausível diferente, dever-se-ia assentar a decisão na que se mostrasse mais favorável ao arguido, de acordo com o aludido princípio in dubio pro reo. Contudo, o apelo a este princípio, fundamentalmente como corolário da apreciação que a recorrente fez da prova, não colhe no caso em apreço, porquanto não se demonstra que o tribunal de 1ª instância se tivesse defrontado com qualquer dúvida na formação da convicção, contra ela resolvida. Efectivamente, atentando na motivação da decisão de facto, logo se constata que o Senhor Juiz não ficou em estado de dúvida: fica-se a conhecer, claramente, o processo de formação da sua convicção, através do enunciado sobre o exame crítico da prova, com a justificação das razões pelas quais foram tidos em consideração e valorados os depoimentos do assistente e da testemunha, em detrimento das declarações prestadas pelo arguido, como acima se deixou explicito.

E, conforme já exposto, a este Tribunal de recurso também não sobreveio dúvida da prática pelo arguido/recorrente dos factos nos termos agora dados como provados. Consequentemente, concluímos que, nesta parte, foi acertada a avaliação feita em 1ª instância da prova produzida em audiência. Na verdade, perante a prova produzida, pensamos que não se detecta qualquer outro pontual e concreto erro de julgamento ou patente irrazoabilidade na convicção probatória formada pelo julgador (com imediação (28)): todos os aduzidos elementos, conjugados entre si, analisados criticamente, segundo o indicado critério de probabilidade lógica prevalecente, facultam as expostas ilações quanto à matéria em apreço, incompatíveis com o acolhimento do sentido por que pugnou o recorrente quanto aos demais pontos referidos no recurso.

Assim, altera-se a decisão proferida sobre a matéria de facto, de modo que passa a ser a seguinte a redacção conferida aos itens 1 a 7 da mesma:

«O arguido, no dia 4/6/2016, entre as 15h30 e as 16h00, na Rua (…), área desta instância local de Guimarães, por motivos não concretamente apurados mas relacionados com a queda de um muro, dirigindo-se ao assistente J. M., em tom sério, disse: “Já vais ver meu filho da puta, ainda te vou dar um tiro nos cornos”.
Com essa conduta, o arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, com o propósito de atentar contra a honra, bom nome, imagem, dignidade pessoal, consideração social e sensibilidade do assistente, o que efectivamente logrou conseguir, pois este sentiu-se vexado e perturbado com tal expressão.».

Consequentemente, o teor do ponto 2, de tal factualidade transita para os factos arrolados como não provados.

Por conseguinte, apenas procede a impugnação nos particulares pontos assinalados.

3. O preenchimento dos elementos típicos dos crimes.

O inconformismo do recorrente também se estende à matéria de direito, pois considera a matéria de facto tida por provada como insuficiente para o preenchimento da tipicidade dos ilícitos que lhe foram assacados, o que imporia forçosamente a sua absolvição.

3.1. O crime de ameaça agravado.

O crime de ameaça, pelo qual o arguido foi condenado, vem previsto no art. 153º, nº 1, do C. Penal, que prescreve: «Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias». Porém, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias se os factos previstos naquele preceito forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos [cf. art. 155º nº 1 a)].

O bem jurídico protegido pelo crime de ameaça é a liberdade pessoal, a liberdade de decisão e de acção. «A tutela penal da liberdade é, por excelência, uma tutela negativa e pluridimensional: negativa, na medida em que visa impedir as acções de terceiros que afectem a liberdade de decisão e de acção individual; pluridimensional, uma vez que assume as diversas manifestações da liberdade pessoal (liberdades de autodeterminação, de movimento, de acção, sexual) como autónomos objectos de protecção penal» (29).

O mencionado crime de ameaça enquadra-se assim tipologicamente no campo tutelar dos direitos de liberdade da pessoa humana.

Como diz Nelson Hungria (30), «os chamados direitos de liberdade constituem uma unidade substancial e não já uma série indefinida de direitos individuais. As diversas liberdades asseguradas ao homem e cidadão não são mais do que faces de um mesmo poliedro: a liberdade individual. A primeira e mais genérica expressão desta é a liberdade pessoal, assim chamada porque diz mais directamente com a afirmação da personalidade humana. Compreende o interesse jurídico do indivíduo à imperturbada formação e actuação da sua vontade, à sua tranquila possibilidade de ir e vir, à livre disposição de si mesmo ou ao seu status libertatis, nos limites traçados pela lei.

Trata-se, em suma, do direito à independência de injusto poder estranho sobre a nossa pessoa.».

O crime de ameaça decompõe-se no anúncio ou promessa de um mal futuro e cuja ocorrência dependa da vontade do agente (31).

O mal ameaçado tem de constituir em si mesmo um crime, um facto ilícito típico, e, após a revisão do Código Penal de 1995, tem de se tratar de um dos crimes elencados no próprio corpo do artigo e não um qualquer crime. Assim, terá que ser um crime «contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor».
Esse mal deve ser importante, entendendo-se como tal aquele que é, nas circunstâncias do caso concreto, susceptível ou adequado a vencer a vontade do ameaçado. Há, portanto, que relacionar a importância ou a gravidade do mal ameaçado com a exigência típica da adequação (imputação objectiva) deste a constranger o ameaçado. Mal adequado é aquele que, tendo em conta as circunstâncias concretas, é susceptível de coarctar a liberdade de decisão ou de acção do ameaçado (32). Trata-se, assim, de um critério objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevâncias das sub-capacidades do ameaçado) (33).

Ou, por outras palavras, a ameaça tem de revestir carácter de seriedade acompanhada da intenção de causar medo ou inquietação no ofendido no enquadramento da aparência externa de o agente estar resolvido a praticar o facto. Assim sendo, afigura-se-nos que o critério para medir e averiguar da seriedade da ameaça era exactamente o resultado que eventualmente produziu na pessoa visada. «Não se determinando no caso qualquer sentimento de inquietação ou temor e não ocorrendo receio ou medo, não se verifica que se tivesse atingido a tranquilidade ou liberdade de determinação e o atinente crime de ameaças» (34).

Actualmente, trata-se de um crime de perigo concreto, cuja tipicidade prescinde da produção de um resultado material, bastando-se com a adequação a produzi-lo. Para aferir da aptidão da conduta deve ser utilizado o critério, segundo o qual «(...) a ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado, (...) independentemente de o [seu] destinatário ficar, ou não, intimidado» (35).

Com efeito não se exige hoje a ocorrência do dano (efectiva perturbação da tranquilidade do ameaçado). Mas também não basta a simples ameaça da prática do crime, exigindo-se ainda, na situação concreta, que a ameaça seja adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da vítima. Trata-se da necessidade de o concreto acto ser genérica e abstractamente idóneo a causar medo ou inquietação.

O tipo de ilícito objectivo exige, que o mal seja futuro, o que significa que o mal não pode ser iminente, caso em que configurará uma eventual tentativa do crime em causa ou, até, a própria concretização sequencial do mal prometido. Escreveu o Prof. Taipa de Carvalho (36): «O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção contra ameaça e violência. Assim por exemplo haverá ameaça quando alguém afirma: “hei-de-te matar”, já se trata de violência, quando alguém afirma “vou-te matar já”».

A propósito do mesmo conceito, afirmou-se, no Ac. da RP de 25.1.2006, que para se ter «por preenchido o tipo objectivo do crime de ameaça, é necessário, desde logo, que o mal ameaçado seja futuro. O mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal.» (37). «[E]sta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex., haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de-te matar”; já se tratará de violência, quando alguém afirma: ”vou-te matar já”. Que o agente refira, ou não, o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo, eis o que é irrelevante. Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa [cf. Art. 22.º-2 c)]» (38). «[S]eja qual for a qualidade do mal ameaçado exigida pelo tipo legal, poder-se-á dizer que, após o processo de desmaterialização do conceito de violência – processo este que conduziu a um alargamento deste conceito – a distinção principal entre o conceito de violência e o conceito de ameaça reside na actualidade ou na futuridade do mal.» (39) (40).

Subjectivamente, o agente deve actuar da forma descrita, conformando a sua consciência e vontade de que o prenúncio é adequado a provocar medo ou intranquilidade à vítima.

Posto isto, poderemos então facilmente constatar que os factos apurados não permitem subsumir a conduta do recorrente ao crime de ameaça por que foi condenado: não só não se provou a ocorrência do dano, consistente na efectiva perturbação da tranquilidade do visado pela ameaça, como da factualidade assente não se retiram quaisquer elementos para poder concluir que, na situação concreta, a expressão «ainda te vou dar um tiro nos cornos» constituísse, adequadamente, a ameaça da prática do crime, ou, por outras palavras, que essa “ameaça” fosse genérica e abstractamente idónea a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação do visado.

Por conseguinte, o recorrente deve ser absolvido da acusação na parte respeitante a tal crime.

3.2. O crime de injúria.

O recorrente, que foi condenado na pena de multa de 40 dias à taxa diária de € 6,50 como autor de um crime de injúria p. e p. pelos art. 181º nº 1, do C. Penal, também sustenta que a expressão “filho da puta”, não contextualizada, não configuraria uma ofensa marcadamente inadmissível à honra ou consideração do assistente e, por isso, não integraria aquele tipo de crime porquanto não seria suficiente para abalar moralmente o mesmo, não se destinando o direito penal a tutelar o excesso de sensibilidade de determinadas pessoas perante as afirmações que lhe são dirigidas, mas, sim, a punir factos que sejam objectivamente graves e geradores de ofensas a bens juridicamente protegidos.

A questão suscitada no recurso está, pois, em saber se a expressão «já vais ver meu filho da puta, ainda te vou dar um tiro nos cornos», endereçada pelo recorrente ao assistente, ofende, de modo penalmente relevante, a honra deste.

O tipo legal em apreciação assegura o direito ao “bom-nome” e a “reputação”, constitucionalmente garantidos (art. 26º, nº 1 da CRP), devendo reconhecer-se, como em tese defende o recorrente, que a relevância penal das ofensas cometidas a tais bens jurídicos será aferida em função do contexto em que as mesmas ocorram: «Estando em causa crime de injúria (art. 181º, nº1, do CP) é indispensável à formulação do juízo sobre a tipicidade a contextualização das expressões proferidas, apreciando se, nas circunstâncias em que o foram, atingiram a pessoa visada num quadro merecedor de tutela penal. A honra e o bom nome são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade.» (sumário do Ac. da RE de 10-05-2016 (41)). «Nos crimes contra a honra, tal como acontece em muito outros, há um patamar mínimo exigível de carga ofensiva, abaixo do qual não se justifica a tutela penal» (sumário do Ac. desta Relação de 23-02-2015 (42).

No entanto, adianta-se já, não é de considerar incorrecta a integração jurídica dos factos a que se procedeu na sentença. Vejamos.

O tipo legal em apreciação adopta uma concepção do bem jurídico honra que inclui quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. Recorda-se no evocado Ac. de 10-05-2016 que «a “honra” é a essência da personalidade humana, referindo-se à probidade, rectidão, carácter. A “consideração” é o valor atribuído por alguém ao juízo do público, isto é, do apreço ou, pelo menos, da não desconsideração que os outros tenham por ele (Beleza dos Santos, RLJ 3152-142).».

É sabido que o direito penal tutela os valores essenciais da vida em sociedade, segundo os princípios de intervenção mínima e de proporcionalidade, imanentes ao Estado de Direito, assumindo a natureza «de tutela subsidiária (ou de última ratio) de bens jurídicos dotados de dignidade penal, ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revele digna de pena» (43). Nessa linha, prossegue o mesmo Ac. de 10-05-2016:

«Assim, e no que respeita à “injúria”, nem tudo o que causa contrariedade e se apresenta como desagradável, grosseiro e pouco educado, mesmo até quando formalmente pareça integrar o tipo de crime, será relevante para esse núcleo de interesses penalmente protegidos. A lei tutela a dignidade e o bom-nome do visado, e não a sua susceptibilidade ou melindre. A valoração deve fazer-se de acordo com o que se entenda por ofensa da honra num determinado contexto temporal, local, social e cultural. Na lição antiga, mas actual, de Beleza dos Santos, “nem tudo aquilo que alguém considera ofensa à dignidade ou uma desconsideração deverá considerar-se difamação ou injúria puníveis” (Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação ou de Injúria, RLJ 92, p.167).

Também Oliveira Mendes alerta para que “nem todo o facto que envergonha e perturba ou humilha cabe na previsão das normas dos arts. 180º e 181º, tudo dependendo da intensidade ou perigo da ofensa” (O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, p. 37).

A contextualização das expressões proferidas é indispensável ao juízo sobre a tipicidade. Impõe-se, assim, olhar a expressão em apreciação, não isoladamente, mas no contexto e circunstâncias em que foi proferida, e apreciar se, nesse contexto, atingiu a visada num quadro merecedor de tutela penal. Pois à semelhança do que acontece com a realização dos tipos penais em geral, mas particularmente com o tipo em presença, utilizando agora palavras de Cavaleiro de Ferreira, “os crimes contra o pudor, a honra, a honestidade, são conceitos que só se compreendem após uma prévia valoração da realidade”.».

Todavia, tem sido jurisprudência desta Relação de Guimarães, tal como se informa na fundamentação do citado Ac. de 23-02-2015 (44), que «existem expressões, comunitariamente tidas como obscenas ou soezes, que, objectivamente, atingem a honra do visado, a não ser que se demonstre que este as emprega usualmente e aceita sempre receber a carga de ofensividade que é inerente a elas». E, retira-se, ainda desse aresto:

«É certo que o atentado à honra não se confunde com a simples indelicadeza, com a falta de polidez ou mesmo com a grosseria (…) é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente incomodada por outra “pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”».

Ora, parece seguro, segundo a normalidade da vida e as regras da experiência, que a expressão que o recorrente utilizou não pode deixar de ser tida como susceptível de ofender a honra e a consideração do visado. É uma ilação lógica e absolutamente natural e plausível para «a sã opinião da generalidade das pessoas de bem» – na expressão do Ac. do STJ de 30-04-2008 (45) – que a sobredita expressão, no concreto circunstancialismo, designadamente o da reacção do assistente à actuação do arguido no âmbito do relacionamento conflitual desencadeado entre ambos pela queda de um muro, seja tida como susceptível de ofender a honra e consideração daquele, porque visa nitidamente a esfera da sua dignidade pessoal, para mais acarretando uma alusão implícita à mãe do mesmo.
*
IV. Decisão:

Nos termos expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder parcial provimento ao recurso e, por consequência, em:

a) alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos sobreditos;
b) absolver o arguido José da acusação pelo crime de ameaça agravado p. e p. pelos arts. 153.º, nº 1, 155.º, n.º 1, al. a), do C. Penal;
c) manter no demais a decisão recorrida.
Sem custas.
Guimarães, 24/09/2018

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado


1 cfr. art. 379º, nºs 1, al) a) e 2: «É nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º».
2 Cfr. art. 97º nº 5 do CPP.
3 Segundo o Ac. do STJ de 17-09-2014 (1015/07.3PULSB.L4.S1 - Armindo Monteiro), a «A fundamentação das sentenças judiciais é a forma que o legislador se serve para a sua explicação aos sujeitos processuais e aos cidadãos: através dela o julgador presta conta a ambos, proclama as razões de facto e de direito, por que optou por certa solução, ao fixar os factos e ao assentar neles o direito». Também Perfecto Ibañez, no estudo “Sobre a formação racional da convicção judicial”, publicado na Revista do CEJ, 1.º semestre, 2008, p. 167, citado no Ac. do STJ de 8-01-2014 (7/10.0TELSB.L1.S1 - Armindo Monteiro), considera que «motivar uma decisão é justificar a decisão por que se optou para que possa ser controlada tanto pelos seus destinatários directos como pelos demais cidadãos, apresentar de forma inteligível, lógica, coerente e racional, o “iter“ seguido no tratamento valorativo da prova». No mesmo sentido salienta Germano Marques da Silva, In Curso de Processo Penal, III Vol, pág. 289, “As decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz”.
4 Cfr. também acórdãos do STJ de 11-07-2007 (07P1416) e 29-03-2006 (06P478), ambos relatados por Armindo Monteiro) e de 16-03-2005 (05P662) relatado por Henriques Gaspar.
5 A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
6 Sumário do Ac. do STJ de 3-10-2007 (07P1779 - Henriques Gaspar).
7 Sumário do já citado Ac. do STJ de 8-01-2014, em cujo texto se acrescenta: «(…) a exigência de um exame crítico, não definido por lei, das provas que serviram para formar a convicção probatória, de valoração livre, porém racional, à margem do capricho do julgador, mas objectivada e apoiada num processo lógico que inteligencia o material recolhido, atentando nas regras da lógica, da experiência comum, ou seja daquilo que comummente sucede, e que, como ser socialmente integrado, aquele deve ter presente, sopesando a valia das provas e opondo – lhe o seu desvalor, face ao que fará a opção final, (…), para não se quedar a um estádio puramente subjectivo, pessoal, emocional, imotivável, tutelado pelo arbítrio, mas antes evidencie o processo lógico-racional proporcionando fácil compreensão aos destinatários directos e à comunidade de cidadãos, que espera dos tribunais decisões credíveis, desde que justas, concorrendo ainda para a celeridade processual na decisão, desse modo fornecida aos tribunais de recurso. E nesse sentido se pronunciam, além do mais, Rosa Vieira Neves, in Livre Apreciação da Prova e Obrigação de Fundamentação, Coimbra Ed., 2011, 151 e segs, elucidativos, entre tantos, os Acs deste STJ, 23.2.2011 e de 7.4.2010, P.º n.º 3621.7.6TBLRA. O exame crítico funciona como limite ao princípio da livre convicção probatória que emerge da oralidade e acautela a discricionariedade do julgador, legitimando o poder judicial, acautelando os interesses a prosseguir em processo penal, tão indispensável como ar que se respira, na expressão do Prof. Alberto dos Reis; IV, 566 e segs, na esteira de Chiovenda.».
8 Publicado no DR. 2ª Série de 13 de Novembro de 1998.
9 Neste sentido, Ac. da R.L. de 18/01/2011, proc. 1670/07.4TAFUN-A.L1-5, Ac. da R.E. de 06/11/2012, proc. 220/09.2GAGLG.E1, Ac. da R.G. de 08/02/2016, proc. 285/13.2TAMDL.G1.
10 Nada tem a ver com qualquer destes vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar o objecto em apreço. Poder-se-á discordar da decisão, como, aliás, o recorrente também demonstra ser o caso, mas não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados. A arguição de tais vícios não procede quando fundada em divergências com o decidido, sendo distintos do erro de julgamento.
11 Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2.ª ed., p. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 8ª Edição, pp. 73 e ss.
12 Como assinalam os já mencionados autores Simas Santos e Leal Henriques, (ob. cit., p. 74) este vício existe quando a factualidade dada como provada na sentença é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final ou, por outras palavras, quando a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito (cf. também Germano Marques da Silva, ob. cit., p. 340).
Também o Supremo Tribunal de Justiça vem considerando que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem – absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena e circunstâncias relevantes para a determinação desta -, e isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, vista a sua importância para a decisão (entre outros, cfr. Acs sumariados em Sumários de Acórdãos do STJ - Secções Criminais de: 4/10/2006, Proc. n.º 06P2678, em www.dgsi.pt; de 5/9/2007, Proc. n.º 2078/07; e de 14/11/2007, Proc. n.º3249/07).
13 Cfr. Acs. do STJ de 7/1/2004, P. n.º 3213/03, e de 29/4/1992, P. n.º 42535.
14 Ac. do STJ de 17-12-2014 (p. 937/12.4JAPRT.P1.S1 - Isabel São Marcos). No mesmo sentido, os Acs. do STJ de 14-03-2013 [(p. 1759/07.0TALRA.C1.S1 - Raul Borges): «Há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, (…) se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados»], de 11/5/1994 [(p. 045987 - Amado Gomes): «verifica-se quando, segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou quando, segundo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a colisão entre os fundamentos invocados»] e de 12/2/1997 [(p. 047001 - Joaquim Dias): «A contradição insanável de fundamentação é um vício ao nível das premissas, determinando a formação defeituosa da conclusão; se as premissas se contradizem, a conclusão logicamente correcta é impossível, não passa de mera falácia. Este vício pode ocorrer por contradição entre factos provados, contradição entre factos provados e não provados, contradição entre factos provados e motivos de facto, contradição entre a indicação das provas e os factos provados e contradição entre a indicação das provas e os factos não provados.»].
15 P. 06P363 - Rodrigues da Costa.
16 Cfr. v. g., o Ac. STJ de 2/2/2011 (p. 308/08.7ECLSB.S1 - Maia Costa): «O erro notório na apreciação da prova, vício da decisão previsto no art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Porém, o vício, terá de constar do teor da própria decisão de facto, não da motivação dessa decisão, ou da fundamentação de direito».
17 Cfr. Germano Marques da Silva, loc. e p. cit..
18 Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, loc. cit., p. p. 80.
19 O legislador pretendeu um grau de recurso que atentasse e procedesse – dentro dos limites que uma gravação, despida dos factores possibilitados pela imediação consentisse – uma verdadeira e conscienciosa reapreciação da decisão de facto.
20 Como se expendeu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/2012, relatado pelo conselheiro Cura Mariano «…o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efetuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, face às provas produzidas, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando conforme já se decidiu no Acórdão n.º 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se escreveu: “Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…».
21 Processos nºs 06P3518 e 08P2894, respectivamente, ambos relatados pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
22 É, aliás, no cumprimento deste último requisito que, segundo parece ser consensual, se deve estabelecer alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão, uma vez que se considere que a insuficiência de tal indicação não dificulta de forma substancial e relevante o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal.
23 Como dizia Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 191.
24 Rev. Min. Pub. 19º, 40.
25 Com efeito, como ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. I, Verbo, 1993, pág. 41, «a dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado». Neste sentido se pronuncia, também, a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam, v.g., o Ac. da RP, de 21/04/2004, in www.dgsi.pt, no qual se refere: «O princípio “in dubio pro reo” é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Ou seja, e dito de outro modo, quando o juiz não consiga ultrapassar a dúvida razoável de modo a considerar o facto como provado, com a certeza que se exige para tal, e porque não pode haver um “non liquet”, tem de valorar o facto a favor do arguido. a favor do arguido é consequente do princípio da presunção de inocência».
26 Cfr. Manuel Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. 2º, 1986, Editora Danúbio, pág. 259.
27 O provérbio “testis unus testis nullus” não tem, pois, definitiva relevância, apesar de muito ancestral. É hoje consensual que um único testemunho, pode ser suficiente para desvirtuar a presunção de inocência desde que ocorram: a) ausência de incredibilidade subjectiva derivada das relações arguido/vítima ou denunciante que possam conduzir à dedução da existência de um móbil de ressentimento, ou inimizade; b) verosimilhança – o testemunho há-de estar rodeado de certas corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória; c) persistência na incriminação, prolongada no tempo e reiteradamente expressa e exposta sem ambiguidades ou contradições (Nesse sentido, cfr., entre outros, António Pablo Rives Seva, La Prueba en el Processo Penal-Doctrina de la Sala Segunda del Tribunal Supremo, Pamplona, 1996, pp.181-187).
28 Devendo anotar-se que a falta dessa imediação, sempre imporia a este Tribunal de recurso alguma cautela na afirmação de tal irrazoabilidade. Como se sabe, apesar de as palavras serem importantes, só uma percentagem da nossa comunicação é feita verbalmente. Ora o simples registo audiofónico da prova não permite interpretar, na sua plenitude, as emoções reflectidas nos sinais não-verbais (movimentos corporais ou expressões faciais), designadamente os involuntários e inconscientes, dos depoentes e demais intervenientes. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in “Princípios Gerais do Processo Penal”, p. 160, só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por um lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada deverá ter como pressuposto a existência de elemento que pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo princípio da imediação.
29 Américo Taipa de Carvalho, no “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo I, p. 341.
30 Citado por Leal Henriques e Simas Santos in Código Penal anotado, II vol., p. 159.
31 V., neste sentido, Leal-Henriques e Simas Santos, ibidem, e Taipa de Carvalho, ibidem, p. 343.
32 Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 1995, p. 608.
33 Taipa de Carvalho, loc. cit., p. 358.
34 Ac. RE de 4/11/1986 in BMJ 363º-613. V. igualmente o Ac. RP de 20/1/1993 in Proc. nº 9220904.
35 V. Taipa de Carvalho, in Comentário, cit., p. 348.
36 In anotação ao artigo 153º, loc. cit.
37 No mesmo sentido, vide os seguintes arestos, também da RP: Ac. de 27.11.2004, processo n.º 0414654; Ac. de 20.12.2006, processo n.º 0645320; Ac. de 28.11.2007, processo n.º 0712156; Ac. de 28.05.2008, processo n.º 0841544; todos disponíveis em www.dgsi.pt.
38 Taipa de Carvalho, loc. cit., p. 348.
39 O mesmo autor loc. cit., p. 355 – 356.
40 Nesse sentido, também ponderou o Ac. da RP de 17.11.2004: «tal não acontece se a “ameaça” for de um mal a consumar no momento “eu mato-te”, pegando e vibrando no ar o cabo de uma enxada que transportava porque ou a ameaça entra no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objecto da ameaça ou, não entrando, logo se esgota na não consumação do mal anunciado, do que resulta não ter ficado o visado condicionado nas sua decisões e movimentos dali por diante».
41 P. 163/13.5GBELV.E1 - Ana Brito.
42 P. 218/12.3TAPRG.G1 - Fernando Monterroso.
43 Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 2001, p. 43.
44 Cf., nessa linha, o mais recente acórdão desta mesma Conferência, de 22/01/2018 (p. 154/15.1GAPCR.G1), que aqui seguimos de perto.
45 P. 07P4817 - Rodrigues da Costa.