Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
882/18.0PBVCT.G1
Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA
Descritores: PROCESSO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL
VALOR DA CAUSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: INDEFERIR A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - A recorribilidade da decisão de primeira instância, relativa ao pedido de indemnização civil deduzido no âmbito do processo penal, depende da verificação cumulativa de duas condições: que o pedido formulado seja superior a € 5.000,00 e que o decaimento para o recorrente seja superior a € 2.500,00.
II - O limite temporal, inultrapassável, para que o juiz possa intervir na fixação do valor da causa, é o momento em que o mesmo profere o despacho previsto no Artº 414º, nº 1, do C.P.Penal.
III -Efectivamente, é nesse momento que o juiz analisa e decide se estão ou não verificados todos os pressupostos para a interposição do recurso, designadamente o atinente à recorribilidade da decisão por virtude da “alçada do tribunal”.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

1. No âmbito do Processo Comum Singular nº 882/18.0PBVCT, do Juízo Local Criminal de Viana do Castelo, Juiz 2, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, foi submetido a julgamento o arguido:

A. D., solteiro, pintor da construção civil, filho de M. C. e de M. L., nascido a - de Fevereiro de 1986, natural de …, Viana do Castelo, residente em Largo …, nº …, Viana do Castelo, titular do CC nº ………….
*
2. Em 14/07/2020 foi proferida sentença, depositada no mesmo dia, da qual consta o seguinte dispositivo (transcrição (1)):

Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal decide:

a) Absolver o arguido A. D. da acusação da prática de um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo 153º nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal;
b) Condenar o arguido A. D. pela prática de um crime de injúria, p. e p. pelo artigo 181º, do C.Penal na pena de 30 (trinta) dias de multa à taxa diária de 5,00€ o que perfaz montante total de 150,00 €.
c) Condenar o arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º nº1 do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 (um) ano.
d) Condenar o demandado A. D. a pagar ao demandante a quantia de 2500,00 € (dois mil e quinhentos euros) a título de compensação pelos danos não patrimoniais presentes, acrescidos de juros desde a data de notificação do pedido até integral;
e) Condenar o demandado a pagar ao demandante a quantia de 253,06€, relativamente aos danos patrimoniais já liquidados, acrescidos de juros desde a data de notificação do pedido até integral.
f) Condenar o demandado no pagamento ao demandante, no que vier a liquidar, dos danos não patrimoniais futuros, bem como nos danos patrimoniais presentes e futuros.
(...)”.
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3. Inconformado com tal decisão, dela veio o arguido interpor o recurso que consta de fls. 250/256 Vº, restrito à parte em que o tribunal a quo o condenou no pagamento ao demandante, no que se vier a liquidar, dos danos não patrimoniais futuros, bem como nos danos patrimoniais presentes e futuros, cuja motivação rematou com as seguintes conclusões e petitório (transcrição):

“1ª O Mmo Juiz a quo deu como provado no ponto 14º dos factos provados que “Durante o período que esteve de baixa médica o demandante deixou de auferir rendimentos provenientes do seu salário, em montante não concretamente apurado”.
Para se poder concluir, como concluiu o Mmo Juiz a quo, que o Demandante deixou de auferir rendimentos provenientes do seu trabalho durante o período em que esteve de baixa médica era, como é, necessário que o Demandante tivesse alegado e logrado provar quanto ganhava no exercício da sua actividade profissional, prova que o Demandante não logrou fazer, como lhe competia.
Conforme consta e resulta da alínea f) da matéria de facto dada como não provada, o Mmo Juiz a quo considerou que o Demandante não logrou provar que «À data dos factos (…) auferia a título de vencimento a quantia de 2.400,00 €».
4ª Não se tendo provado nos autos o valor do salário auferido pelo Demandante, não se pode dar como provado que durante o período em que esteve de baixa médica o Demandante deixou de auferir, ou não, algum rendimento, até porque não se sabe quanto é que o Demandante ganharia!
5ª Considera, assim, o Arguido/Recorrente que foi incorrectamente julgada e decidida a matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida sob o ponto 14º, devendo tal matéria de facto ser dada como NÃO PROVADA.
6ª Na alínea f) da parte decisória da douta sentença recorrida, o Demandado foi condenado “no pagamento ao demandante, no que vier a liquidar, dos danos não patrimoniais futuros, bem como nos danos patrimoniais presentes e futuros”.
Da matéria de facto dada como provada não consta, nem resulta, que o Demandante venha a sofrer no futuro quaisquer danos, quer patrimoniais, quer não patrimoniais.
8ª Assim, a douta sentença recorrida não podia, nem devia, ter condenado o demandado no pagamento ao demandante, no que vier a liquidar, dos danos não patrimoniais futuros, bem como nos danos patrimoniais futuros, por tais danos futuros não existirem!
9ª O único valor a apurar/liquidar respeita à despesa que o Demandante suportou nas sessões de fisioterapia a que foi sujeito mas cujo valor não foi possível determinar até à data em que foi proferida a douta sentença recorrida (dano presente), conforme consta dos pontos 15 de 17 os factos provados.
10ª Pelo que, a douta decisão recorrida deve ser revogada e substituída por uma outra que, relativamente ao pedido de indemnização civil, mais concretamente ao dano a liquidar, contemplado na alínea f) da parte decisória da douta sentença recorrida, absolva o demandado do pagamento ao demandante, no que vier a liquidar, dos danos patrimoniais e não patrimoniais futuros.
11ª Ao condenar o demandado no pagamento, do que se vier a liquidar, relativamente a danos (patrimoniais e não patrimoniais) futuros que o demandante não sofreu, a parte decisória da douta sentença recorrida encontra-se em clara e manifesta contradição com os factos dados como provados na douta sentença recorrida, concretamente com a matéria de facto dada como provada nos pontos 13º, 14º, 15º, 16º e 17º, o que acarreta a nulidade da douta sentença recorrida, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil.
12ª A douta decisão recorrida violou e viola, por errada interpretação e aplicação, para além do mais, o disposto nos artigos 483º, nº 1, 496º, nº 1, do Código Civil e artigo 615º, nº 1, alínea c), do Código de Processo Civil.

NESTES TERMOS e mais de direito que V. Exªs melhor e doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao recurso interposto pelo Arguido/Demandado e, em consequência, deve revogar-se a douta decisão recorrida, substituindo-a por uma outra que:

a) altere a matéria de facto dada como provada na douta sentença recorrida sob o ponto 14º, dando tal matéria de facto como não provada;
b) absolva o Arguido/Demandado do pagamento ao demandante, no que vier a liquidar, dos danos não patrimoniais e patrimoniais futuros, em que foi condenado na alínea f) da parte decisória da douta sentença recorrida, mantendo-se o demais constante na douta sentença recorrida.
Como é de inteira JUSTIÇA!”.
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4. Nessa sequência, em 16/10/2020 o Mmº Juiz a quo proferiu o seguinte despacho (transcrição):

“(...)
Por ser legalmente admissível e tempestivo e ter sido interposto por quem para tal tem legitimidade, admito o recurso interposto pelo arguido/demandado, subindo imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo do processo (cfr. o disposto nos artigos 399º, 401º, nº 1, al. b), 400º, nº 2, 403º, nº 2, alínea b), 406º, nº 1, 407º, nº 2, alínea a), 408º, nº 1, alínea a), 411º, n.ºs 1 e 3, e 414º, n.ºs 1 e 2, todos do Código do Processo Penal).
Notifique nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 411.º, n.º 6, e 413.º, n.º 1, do C.P.Penal.”.
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5. Cumprido o disposto no Artº 413º, nº 3, 2, do C.P.Penal (2), apresentou-se a responder o assistente/demandante P. J., nos termos da peça processual que consta de fls. 257/268, apresentada no dia 23/11/2020, a qual termina com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):

“1 – A título de questão prévia importa analisar a questão da admissibilidade do recurso uma vez que o Recorrente centrou a sua discordância apenas na parte do pedido de indemnização civil;
2 - Dispõe o artigo 400º, nº 2 do CPP que “… o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido…”;
3 – In casu, o Demandante atribuiu ao pedido de indemnização civil que apresentou o valor de € 3.662,06 e a condenação fixou-se nos € 2.753,06, sendo que o pedido de indemnização civil foi contestado pelo Recorrente que não colocou em causa o valor atribuído.
4 – Diremos com o acórdão STJ de 21.02.2019 que «II - Se o Sr. Juiz, na sentença, resolveu não alterar o valor da causa que anteriormente fixara ou nada disse sobre o valor inicialmente indicado e nenhuma das partes entendeu necessária tal alteração, nem arguiu a nulidade da sentença por omitir tal alteração, considera-se sanado o eventual vício de omissão de actualização do valor da causa e para todos os efeitos legais, subsiste como valor da causa o anteriormente fixado (se tal tiver ocorrido) ou na falta de fixação em concreto o valor inicialmente indicado pelo autor
5 – Com o mesmo âmbito do que aqui se discute decidiu o acórdão da Relação de Coimbra de 16.01.2013 que “Na ausência de qualquer incidente relativo a esse valor, o “valor do pedido” a considerar, nos termos e para os efeitos do art.º 400º, n.º 2, do C. Proc. Penal (admissibilidade do recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil), deve ser o inicialmente atribuído pelo demandante.» - realces em todos os casos, nossos.
6 - Assim sendo é nossa convicção que a decisão em causa, não admite recurso, o que se deixa invocado para os devidos e legais efeitos.
7 – Quanto ao objecto propriamente dito, começamos por afirmar que a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo não merece qualquer reparo, pois mostra-se adequadamente fundamentada e que sopesou, de forma rigorosa, todos os factores em causa.
8 - Permitimo-nos recordar que o Arguido assumiu a agressão física perpetrada na pessoa do Assistente, com recurso a um pau com que atacou o assistente na cabeça, tendo-lhe provocado imediata fractura na região parietal esquerda e a queda desamparada sobre o cotovelo direito;
9 - Recordamos que ninguém questionou que o ofendido trabalhava à data dos factos e que esteve privado de exercer o seu trabalho em resultado da agressão de que foi vítima, razão pela qual muito bem esteve o Tribunal a quo ao julgar provada a matéria inscrita no ponto 14º e no ponto 6º (este a salvo do ataque do Recorrente) onde se lê: «6 – Em consequência do comportamento do arguido (…), o ofendido (…) sofreu as seguintes lesões, que estão descritas no relatório médico-legal (…), que demandaram 85 dias para a cura, com igual período de afectação da capacidade de trabalho geral e profissional. Resultaram, ainda, as seguintes consequências permanentes, nomeadamente uma cicatriz na região frontal (em área coberta pelo cabelo) e limitação ligeira na mobilidade do cotovelo direito, que não desfigura gravemente o examinando e não afecta a sua capacidade de trabalho geral ou profissional de forma importante.” – sublinhado nosso.
10 – O Tribunal a quo teve o cuidado de especificar que alicerçou a sua convicção “na análise critica e ponderada dos meios de prova produzidos e/ou examinados em audiência de julgamento, devidamente concatenados com os documentos juntos aos autos e, uns e outros, com as regras da experiência” e precisou que o depoimento do assistente e da sua esposa foram prestados “com foros de seriedade” e mereceram credibilidade: nenhum destes pontos foi objecto de repúdio ou de rebate por parte do recorrente que, assim, com eles se conformou.
11 - Em nossa óptica, uma coisa é saber se durante a baixa médica o Demandante deixou de auferir rendimento e outra é apurar do valor concreto do salário que deixou de auferir. Uma coisa é saber se da conduta perpetrada pelo arguido resultou a impossibilidade de trabalhar e outra é apurar o quanto!
12 - O quanto é apenas o resultado de um apuramento matemático a que só chegaremos porque em resultado da agressão o lesado deixou de auferir rendimentos.
13 - A circunstância de ainda não ter sido apurado o quanto do salário, ou da perda (por exemplo, por necessidade de apresentação de mais documentos, ou porque se revela necessário esclarecer o valor dos pagamentos efectuados pela Segurança Social de estado estrangeiro), não significa que não tenha havido perda!
14 - O Tribunal a quo não teve qualquer dúvida de que o ofendido trabalhava (vide designadamente o documento junto na sessão de 3/03/2020) e ficou privado de o fazer (vide facto 6º), mas não teve “certeza” quanto ao valor concreto e foi essa questão que foi relegada para liquidação de sentença, tal como, aliás, foi requerido e está previsto na lei.
15 - Em resultado da grave agressão que sofreu, o ofendido esteve, pelo menos, 85 dias impossibilitado de trabalhar – assim reza o relatório do IML que escapou à crítica do arguido neste recurso;
16 - A questão de saber qual o montante concreto do vencimento e qual o montante preciso que, em resultado da agressão, o ofendido deixou de receber é diferente de saber se houve perda de rendimento: a perda, o valor concreto depende da análise de documentos que o Tribunal a quo entendeu ainda não ter totalmente disponíveis e, por essa razão, relegou para liquidação de sentença a sua quantificação.
17 - Afigura-se-nos, modestamente, coerente e juridicamente sustentado tanto o raciocínio como a solução técnica adoptada pelo Tribunal a quo ao deixar essa quantificação para posterior liquidação, na medida em que se trata de uma situação em que não havendo dúvidas de que existiram prejuízos resultantes da privação da prestação de trabalho em resultado do esforço de recuperação (que importou a frequência de sessão de fisioterapia que até ao arguido assume e aceita – vide conclusão 9ª), não se conseguiu apurar no julgamento penal o seu concreto valor;
18 - É absolutamente cristalino que o facto de não se ter apurado com a necessária certeza o valor do salário, não tem, nem pode ter, como consequência, a conclusão de que não teve prejuízos, razão pela qual não vislumbramos fundamento para alterar o facto 14º.
19 – Relativamente à alegada inexistência de danos futuros, permitimo-nos notar que com o pedido de indemnização civil foram juntos vários documentos e, entre eles, uma declaração emitida pela Comissão de Valorização da Caixa Andorrana de Segurança Social (vide Doc. 18), na qual foi provisoriamente atribuída ao ofendido, em Abril de 2019, uma perda de capacidade de ganho de 20%!
20 – Demonstrou-se, igualmente, que as consequências da agressão ainda não estavam totalmente apuradas (vide Doc. 19), entendimento que mereceu e muito bem a concordância do Tribunal a quo.
21 – Independentemente de saber se a limitação resultante da agressão foi “ligeira” (como resulta do facto 6º não atacado) ou significativa a ponto de justificar a atribuição de uma incapacidade de 20% (cfr. Doc. 18), o que queremos aqui ressaltar é que resultaram danos!
22 - Ao contrário daquilo que o Recorrente quer fazer crer, o ofendido sofreu e sofre presentemente as consequências da agressão perpetrada pelo arguido e, malogradamente, continuará a sofrer no futuro.
23 – Insistimos que ficou provado no ponto 6º que resultou limitação ligeira da mobilidade do cotovelo direito e além disso, o Tribunal a quo levou em consideração toda a descrição feita pelo ofendido não só da profissão que desempenha, como da circunstância de depender muitíssimo do seu braço direito para o seu dia-a-dia por ser destro.
24 - Recordamos que o depoimento do Demandante (tal como o da sua esposa), foi considerado credível e mereceu justamente o acolhimento do Tribunal a quo, pois respondeu a todas as perguntas que lhe foram feitas acerca do tempo de imobilização, do período de recuperação com sessões constantes de fisioterapia, da mediação e constante acompanhamento médico e também das dificuldades que tem vindo a sentir para desempenhar o seu trabalho, concluindo que, infelizmente, ainda não conhece totalmente a amplitude das limitações com que ficará no futuro.
25 - O Demandante tem sido sujeito a várias avaliações pelo departamento específico da Segurança Social Andorrana (vide Docs. 18 e 19) e ainda não tem dados definitivos, razão pela qual formulou pedido de indemnização civil com apelo ao artigo 82.º do CPP.
26 - Dispõe o nº 1 do artigo 82º do CPP que “Se não dispuser de elementos bastantes para fixar a indemnização, o tribunal condena no que se liquidar em execução de sentença. Neste caso, a execução corre perante o tribunal civil, servindo de título executivo a sentença penal.”
27 - Foi precisamente isto que aconteceu nos presentes autos: o Tribunal a quo não teve quaisquer dúvidas não só acerca da existência de uma perda de rendimento por parte do ofendido em resultado da agressão (vide factos 6º e com maior evidencia o 14º), mas também da existência/subsistência de danos patrimoniais presentes e danos não patrimoniais e patrimoniais futuros a quantificar em concreto em liquidação de sentença.
28 - O Código do Processo Penal português prevê que em situações em que o Tribunal não tenha à sua mão a totalidade dos elementos necessários (ou no caso, não tenha a certeza face aos escassos elementos juntos) para a fixação da indemnização, possa relegar esse juízo para incidente especifico,
29 - E o Recorrente não tem nada a temer, pois terá todas as condições para contraditar e para discutir da veracidade, amplitude e montante dos danos que nessa altura o Demandante venha a peticionar!
30 - Os danos futuros tanto podem ser danos emergentes - como as lesões corporais a determinar ou as despesas com tratamentos - como lucros cessantes - como a incapacidade permanente parcial – que não são, obviamente, possíveis de quantificar na data da prolação da sentença. Por isso se dizem “futuros”.
31 - Demonstrou – vide facto provado 6º – que a agressão protagonizada pelo arguido provocou uma alteração/perda da capacidade de trabalho geral e profissional do ofendido e também se provou que ditos danos ainda não eram completamente quantificáveis na presente data, razão pela qual o Tribunal a quo decidiu, muito bem, que esses danos sejam quantificados no que se “vier a liquidar”.
32 - Salvo o mais iluminado entendimento não vislumbramos contradição alguma entre o decidido na alínea f) e os pontos 6º, 13º, 14º, 15º, 16º e 17º da douta sentença, pois cremos que o Tribunal a quo fez uma interpretação acertada dos factos que foram levados a juízo e, bem assim, uma interpretação coerente e conjugada de cada um dos factos com os depoimentos prestados e com os documentos juntos aos autos, os quais (referimo-nos aos depoimentos e aos documentos) não mereceram censura por parte do Recorrente.
33 – De todo o exposto, afigura-se-nos que a decisão recorrida se encontra totalmente correcta e muito bem fundamentada, pelo que, salvo mais douto entendimento, não existe qualquer fundamento para o Tribunal ad quem proceda à alteração da decisão proferida, razão pela qual deverá improceder o presente recurso.

Termos em que se requer a V. Exas. se dignem recusar provimento a este Recurso, julgando-se o mesmo totalmente improcedente, e, em consequência, seja mantida, nos seus precisos termos, a douta Sentença.
Fazendo-se dessa forma Inteira e Sã
Justiça!”.
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6. E aberta conclusão ao Mmº Juiz a quo, em 30/11/2020 o mesmo proferiu o seguinte despacho (transcrição):

“Uma vez que no despacho por nós proferido sob a referência electrónica nº 45881028, através do qual o tribunal admitiu o recurso interposto, foi omitido o comando do artigo 306º, nº 3, do C.P.Civil, impondo-se assim fixar o valor da causa cível enxertada, notifique as parte para, querendo, se pronunciarem sobre a matéria no prazo de 5 dias.”.
*
7. Quer o arguido/demandado, quer o assistente/demandante, vieram pronunciar-se acerca de tal questão.

7.1. O arguido/demandado através do requerimento de 04/12/2020, sustentando, em síntese, que o valor a fixar ao pedido de indemnização civil formulado deve corresponde à soma de todos os valores peticionados pelo demandante, no montante global de € 8.662,06, sendo € 3.662,06 a título de danos patrimoniais, e € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais.
7.2. E o assistente/demandante através do requerimento de 14/12/2020, reiterando, em síntese, a tese a esse propósito já explanada na resposta às contra-alegações de recurso.
*
8. E em 20/12/2020 o Mmº Juiz a quo proferiu o seguinte despacho (transcrição):

“Do valor do pedido de indeminização civil:
Na determinação do valor da acção deve, antes de mais, atender-se não só ao pedido como também à causa de pedir, que o explica (ao pedido) e o delimita.
O artº 306, nº 1, do CPC se limita a explicitar o critério geral, de fixação do valor da causa, competindo ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes.
Ora, o valor da causa afere-se pela sua utilidade económica.
Em concreto, o demandante peticionou a condenação do demandado no valor de 3662,06 €, a título de danos patrimoniais emergentes; 5000,00 €, a título de danos não patrimoniais; e no que vier a liquidar-se a título de danos patrimoniais e não patrimoniais.
Assim sendo, o valor da causa corresponderá ao valor já liquidado pelo demandante, saber, 8662,06 €, acrescido do valor do pedido ilíquido, o qual, por não ser em concreto determinável, deverá ser aferido com recurso a critérios de equidade para a fixação do valor da causa.
Atendendo aos critérios supra enunciados, fixa-se ao pedido de indemnização o valor de 10 000,00€.
Notifique.
(...)”.
*
9. O Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste tribunal, no momento processual a que alude o Artº 416º, nº 1, exarou a informação que consta de fls. 271, que ora se transcreve:

“Inconformado com o decidido, o arguido/demandado A. D. veio interpor recurso da sentença, nele peticionando que este Tribunal absolva o Arguido/Demandado do pagamento ao demandante, no que vier a liquidar, dos danos não patrimoniais e patrimoniais futuros, em que foi condenado na alínea f) da parte decisória da douta sentença recorrida, ou seja, conformando-se com a sua condenação pelo crime de que vinha acusado, cinge o recorrente a sua discordância apenas à parte cível da decisão.

Em tal contexto, o Ministério Publico não tem interesse em agir, escapando-lhe legitimidade para tal, como se colhe do referido na conjugação dos arts. 401.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 e 413.º, n.º 1, ambos do CPP a contrario, na medida em que nesse concreto não é parte, nem representa nenhuma delas.

Assim, nada se oferece dizer ao signatário no que concerne ao mérito do recurso.”.
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10. Por decisão sumária de 24/02/2021, constante de fls. 272/280 foi o recurso, assim interposto, rejeitado, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs. 414º, nº 3, 417º, nº 6, al. b), e 420º, nº 1, al. b), em virtude de, em síntese, o valor do pedido (de indemnização civil) ser inferior ao valor da alçada do tribunal da 1ª instância, ou seja, ser inferior a € 5.000,00.
*
11. Nessa sequência veio o recorrente A. D. reclamar para a conferência, apresentando para o efeito o requerimento que consta de fls. 281/283 Vº, o qual se transcreve integralmente, na parte que ora interessa considerar:
“(...)
A douta Decisão Sumária proferida decidiu rejeitar o recurso interposto pelo Arguido/Demandado da douta sentença proferida em 1ª Instância relativamente ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Assistente/Demandante por entender que, tendo o Demandante atribuído ao pedido de indemnização civil que formulou o valor de 3.662,06 €, a parte cível enxertada no processo penal não tem valor de recurso.
Com o devido e merecido respeito, o Arguido/Demandado não concorda com tal entendimento.
É certo que o Demandante “atribuiu” ao pedido de indemnização civil que deduziu o valor de 3.662,06 €.
Acontece que, tal valor foi indicado por lapso uma vez que, apesar de se ter pedido a condenação do Arguido/Demandado no pagamento da quantia de 5.000,00 € a título de danos não patrimoniais e da quantia de 3.662,06 € a título de danos patrimoniais, o que tudo perfaz o montante de 8.662,06 €, acabou por se atribuir ao pedido de indemnização civil apenas o valor peticionado a título de danos patrimoniais, no indicando montante de 3.662,06 €, não se tendo contabilizado, como devia, o valor dos danos não patrimoniais também peticionados.

De facto, conforme consta do pedido de indemnização civil (pic) de fls…, o Demandante pediu a condenação do Arguido/Demandado a pagar-lhe, para além do mais:
a) a quantia de 3.662,06 €, a título de danos patrimoniais; e
b) a quantia de 5.000,00 € a título de danos não patrimoniais.

De harmonia com o preceituado no nº 1 do artigo 297º do Código de Processo Civil (aplicável ao pedido de indemnização civil enxertado no processo penal), se pela acção se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa.
Sendo que, nos termos dos disposto no nº 2 do mesmo preceito legal, cumulando-se na mesma acção vários pedidos, o valor da causa é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles.
Assim, do disposto nos nºs 1 e 2 do citado artigo 297º do Código de Processo Civil resulta que o valor da causa, in casu, do pedido de indemnização civil formulado corresponde à totalidade da quantia em dinheiro que o Assistente/Demandante pretende obter do Arguido/Demandado.
Ora, a quantia em dinheiro que o Assistente/Demandante pretendia obter do Arguido/Demandado com a dedução do pedido de indemnização civil de fls… ascende ao montante global de 8.662,06 € e não de apenas 3.662,06 €!
Pelo que, atento o preceituado nos nºs 1 e 2 do citado artigo 297º do Código de Processo Civil, o valor do pedido de indemnização civil formulado deve corresponde à soma de todos os valores peticionados, no indicado montante de 8.662,06 € e não apenas ao valor que o Demandante, certamente por lapso, indicou de 3.662,06 €.
Com efeito, o valor do pedido de indemnização civil deduzido deve corresponder ao valor efectivamente pedido pelo Demandante e não ao valor que este, no final do articulado, “indicou” como sendo o valor do pedido, ainda que tal valor se encontre errado!
O Demandado não pode ver prejudicados os seus direitos, concretamente o direito de recorrer da decisão proferida quanto ao pedido de indemnização civil em que foi condenado, pelo facto do Demandado ter atribuído a tal pedido um valor incorrecto.
Da mesma forma que o Demandante também não devia ser prejudicado no caso de deduzir um pedido de indemnização civil de valor superior à alçada do Tribunal de 1ª Instância (5.000,00 €) mas, por lapso ou erro, tivesse atribuído ao pedido que formulou um valor inferior a tal montante e a decisão proferida lhe tivesse sido desfavorável em montante superior a metade do valor da alçada do tribunal que proferiu a decisão.
O que releva é o valor do pedido de indemnização civil efectivamente deduzido e não o valor que o Demandante lhe atribuiu ou indicou.
Entende, por isso, modestamente o Arguido/Demandado que o valor a considerar para efeitos de admissibilidade, ou não, do recurso que interpôs relativamente ao pedido de indemnização civil em que foi condenado é o valor do pedido efectivamente formulado de 8.662,06 €, por ser este o valor monetário que o Demandante pretendia receber do Arguido/Demandado.
Sendo que, conforme consta dos autos, o Demandado/Recorrente foi condenado a pagar ao Demandante/Recorrido a quantia de 2.500,00 € a título de danos não patrimoniais e a quantia de 253,06 € a título de danos patrimoniais, o que tudo perfaz o montante de 2.753,06 €.
Pelo que, tendo efectiva e realmente o pedido de indemnização civil valor superior ao da alçada do tribunal recorrido (5.000,01 €) e sendo a decisão recorrida desfavorável para o Recorrente (Demandado) em valor superior a metade desta alçada, ou seja, em mais de 2.500,00 €, como sucede uma vez que o Recorrente foi condenado a pagar 2.753,06 €, o recurso interposto pelo Arguido/Demandado relativamente ao pedido de indemnização civil devia, como deve, salvo melhor opinião, ser admitido, apreciado e decidido.
Ao decidir rejeitar o recurso interposto, por alegada inadmissibilidade legal quanto ao valor, entende modestamente o Recorrente que a douta decisão sumária violou e viola, por errada interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 400º, nº 2, do Código de Processo Penal e 297º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Por estas considerações é que o Arguido/Recorrente vem reclamar junto de V.s Exªs para que se conheça do objecto do recurso interposto para este Altíssimo Tribunal, como é da mais elementar Justiça.

TERMOS EM QUE se espera que a presente reclamação seja deferida e o recurso interposto pelo Arguido/Demandado seja admitido, apreciado e decidido, com as legais consequências.”.
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12. Notificados para se pronunciarem sobre a reclamação em causa, o Ministério Público e o assistente/demandante P. J. nada disseram.
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13. Colhidos os vistos foram os autos submetidos à conferência, dela procedendo o presente acórdão.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

1. A decisão sumária

A decisão sumária de rejeição do recurso interposto pelo arguido/demandado A. D. da sentença proferida em 14/07/2020 pela 1ª instância, restrito à parte em que o tribunal a quo o condenou no pagamento ao demandante, no que se vier a liquidar, dos danos não patrimoniais futuros, bem como nos danos patrimoniais presentes e futuros, por inadmissibilidade legal, assenta nos seguintes fundamentos, que se transcrevem ipsis verbis, na parte que ora interessa considerar:

“Como supra se referiu, o arguido/demandado restringe o seu recurso à parte em que o tribunal a quo o condenou no pagamento ao demandante, no que se vier a liquidar, dos danos não patrimoniais futuros, bem como nos danos patrimoniais presentes e futuros.

Defendendo o assistente/demandante que, tendo em conta que, no pedido de indemnização civil que apresentou indicou como valor a importância de € 3.662,06, que a condenação fixou-se nos € 2.753,06, que o pedido de indemnização civil foi contestado pelo Recorrente [que não colocou em causa o valor atribuído], e que, na sentença proferida, o Sr. Juiz nada disse sobre o valor inicialmente indicado e nenhuma das partes entendeu necessária tal alteração, nem arguiu a nulidade da sentença por omitir tal alteração, considera-se sanado o eventual vício de omissão de actualização do valor da causa, para todos os efeitos legais, subsistindo como valor da causa o valor inicialmente indicado pelo demandante, então, face ao estatuído no Artº 400º, nº 2, o recurso não é admissível.
Cremos que assiste razão ao assistente/demandante.

Vejamos.

Compulsando os autos, constata-se que, efectivamente, a fls. 150/179, o assistente P. J. deduziu oportunamente contra o arguido A. D. pedido de indemnização cível, cujo teor, na sua parte final, é o seguinte (transcrição):

“Pelo exposto, e de acordo com os termos legais aplicáveis, que V. Exa. mui doutamente suprirá, requer-se que se digne:

(...)
b) Admitir o pedido de indemnização civil formulado pelo Demandante contra o Demandado e, por provado, julgá-lo totalmente procedente, com a consequente condenação do mesmo:

i No pagamento àquele, a título de danos patrimoniais conhecidos na presente data [31/10/2019] no montante de € 3.662,06 (Três mil seiscentos e sessenta e dois euros e seis cêntimos)
ii No pagamento àquele, a título de danos não patrimoniais quantificados na presente data [31/10/2019] em quantia nunca inferior a € 5.000,00 (Cinco mil euros), acrescida do valor que o Distinto Tribunal, segundo o seu prudente arbítrio, vier a julgar adequado a sopesar os prejuízos decorrentes das deslocações e tempo despendido pelo Demandante com este processo - designadamente a viagem a Portugal para a perícia médico-legal -, tudo devidamente aditado de juros de mora, à taxa legal, contados desde a notificação do presente até efectivo e integral pagamento;
iii No pagamento àquele, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais futuros, uma vez que ainda não são totalmente conhecidos nesta data todos os pressupostos / amplitude da sua atribuição (designadamente desconhece-se o coeficiente de incapacidade permanente que será fixado ao Demandante), no que se vier a liquidar em execução de sentença.”.

Mais se constata que, na parte final dessa sua peça processual, o assistente indicou como valor do pedido a quantia de € 3.662,06 (Três mil seiscentos e sessenta e dois euros e seis cêntimos).

Recordando-se, também, que na sentença recorrida, quanto a este aspecto, o tribunal a quo decidiu:

“d) Condenar o demandado A. D. a pagar ao demandante a quantia de 2500,00 € (dois mil e quinhentos euros) a título de compensação pelos danos não patrimoniais presentes, acrescidos de juros desde a data de notificação do pedido até integral;
e) Condenar o demandado a pagar ao demandante a quantia de 253,06€, relativamente aos danos patrimoniais já liquidados, acrescidos de juros desde a data de notificação do pedido até integral.
f) Condenar o demandado no pagamento ao demandante, no que vier a liquidar, dos danos não patrimoniais futuros, bem como nos danos patrimoniais presentes e futuros.”.

E que, pelo despacho de 16/10/2020 o presente recurso foi considerado legal, tempestivo, interposto por quem para tal tem legitimidade, e por isso admitido para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo do processo, tudo nos termos dos Artºs. 399º, 401º, nº 1, al. b), 400º, nº 2, 403º, nº 2, alínea b), 406º, nº 1, 407º, nº 2, alínea a), 408º, nº 1, alínea a), 411º, n.ºs 1 e 3, e 414º, n.ºs 1 e 2, todos do Código do Processo Penal.
Porém, como se extrai do Artº 414º, nº 3, a decisão que admita um recurso, tal como a que lhe fixa o regime de subida e o efeito, não faz caso julgado e não vincula o tribunal superior, razão pela qual se impõe que se conheça de tal questão.
Ora, de acordo com o disposto no Artº 402º, nº 1, o recurso interposto de uma sentença abrange toda a decisão, ressalvando, no entanto, o preceituado no artigo seguinte, segundo o qual o recorrente pode limitar o recurso a uma parte da decisão, desde que ela possa ser separada da parte não recorrida, por forma a tornar possível uma apreciação e uma decisão autónomas, como sucede, nomeadamente, com a parte da decisão que se referir a matéria penal e a matéria civil.
E foi isso que, como se viu, sucedeu na situação em apreço, em que o arguido/demandado restringiu o seu recurso a uma parte da condenação no pedido de indemnização civil [cfr. Artº 403º, nºs. 1 e 2, al. b)].
Sucede que, nessa matéria, o Artº 400º, nº 2, estabelece regras idênticas às do processo civil, estipulando que, sem prejuízo do disposto nos Artºs. 427º e 432º (inaplicáveis ao caso em análise), o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível se o valor do pedido for superior ao da alçada do tribunal recorrido e se a decisão impugnada for desfavorável para o recorrente em valor superior a metade desta alçada.
Sendo certo que o Artº 44º, nº 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto), em matéria cível, fixou a alçada dos tribunais da relação em € 30.000,00 e a dos tribunais de primeira instância em € 5.000,00.
Por conseguinte, a recorribilidade da decisão de primeira instância, relativa ao pedido de indemnização civil deduzido no âmbito do processo penal, depende da verificação cumulativa de duas condições: que o pedido formulado seja superior a € 5.000,00 e que o decaimento para o recorrente seja superior a € 2.500,00.
In casu, como se viu, o valor do pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente/demandante é de € 3.662,06 (três mil seiscentos e sessenta e dois euros e seis cêntimos), tendo o demandado sido condenado no pagamento àquele da quantia de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) a título de compensação pelos danos não patrimoniais presentes, acrescidos de juros desde a data de notificação do pedido até integral, da quantia de € 253,06 (duzentos e cinquenta e três euros e seis cêntimos) relativamente aos danos patrimoniais já liquidados, acrescidos de juros desde a data de notificação do pedido até integral, e da quantia que se vier liquidar, respeitante aos danos não patrimoniais futuros e aos danos patrimoniais presentes e futuros.
Assim, face a estes elementos objectivos, quando o Mmº Juiz a quo proferiu o supra referido despacho de 16/10/2020, admitindo o presente recurso, estribando-se expressamente, para além do mais, no disposto no Artº 400º, nº 2, tornava-se manifesto e evidente que não se verificavam as aludidas condições de recorribilidade, pois que, mau grado o valor da sucumbência ser superior a € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), o valor do pedido era (e é) inferior ao da alçada do tribunal recorrido.
Acontece que, como emerge do antecedente relatório, o tribunal a quo, após a prolação daquele despacho, e após a apresentação da resposta ao recurso por banda do assistente/demandante, entendeu por bem suscitar oficiosamente a questão do valor da causa, o que fez através dos despachos de 30/11/2020 e de 20/12/2020, vindo a fixar ao pedido de indemnização o valor de € 10.000,00 (dez mil euros).
Porém, salvo o devido respeito, afigura-se-nos que o fez incorrectamente, sem o devido suporte legal.

Em termos genéricos, e sinteticamente, há que sublinhar e que recordar que, no âmbito do processo civil:

- Sobre o autor impende a obrigação de, na petição inicial, declarar o valor da causa [Artº 552º, nº 1, al. f), do C.P.Civil];
- A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido, o qual também determina a relação da causa com a alçada do tribunal [Artº 296º, nºs. 1 e 2, do C.P.Civil];
- A falta de impugnação do valor por banda do réu significa que aceita o valor atribuído à causa pelo autor [Artº 305º, nº 4, do C.P.Civil];
- Mesmo estando as partes de acordo quanto ao mesmo, o valor acordado não vincula o juiz, pois que lhe compete a respectiva fixação, o que deverá ocorrer no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o nº 4 do Artº 299º do C.P.Civil e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença ou, se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa (pelo juiz), no despacho referido no Artº 641º do C.P.Civil [Artº 306º, do C.P.Civil];

Ora, admitindo-se que os aludidos princípios e normativos possam aplicar-se analogicamente, com as devidas adaptações, ao processo penal, ex-vi Artº 4º deste compêndio legal, então podemos afirmar e concluir que, nesta sede, o limite temporal, inultrapassável, para que o juiz possa intervir na fixação do valor da causa, é o momento em que o mesmo profere o despacho previsto no Artº 414º, nº 1.
O que bem se compreende.
Pois, como se afigura claro e evidente, é nesse momento que o juiz analisa e decide se estão ou não verificados todos os pressupostos para a interposição do recurso, designadamente o atinente à recorribilidade da decisão por virtude da “alçada do tribunal”.
Na verdade, como assertivamente se refere Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22/07/2017, proferido no âmbito do Proc. nº 586/14.2T8PNF-K1-A.S1, relatado pelo Exmo. Conselheiro Silva Gonçalves, disponível in www.dgsi.pt, “(...) competindo ao juiz fixar o valor da causa, é sempre delineado no valor da acção, jurisdicionalmente decretado, que se há-de atender para a confirmação do valor da alçada do tribunal de que se recorre, impondo-se ao juiz que, se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa, tenha de fixá-lo no despacho que ordena a sua subida (nº 3 do artº 306º do C.P.Civil).”, o que significa que “(...) o valor da alçada há-de ser encontrado, inexoravelmente, através do valor da acção fixado no momento em que é interposto o recurso”, não tendo acolhimento “jurídico-processualmente (...) qualquer outro ditame que se distancie deste consagrado princípio legal (...)”.
Ora, na situação em apreço, na sentença que proferiu, ora impugnada pelo arguido/demandado, o Mmº Juiz a quo nada disse acerca “do valor da causa cível enxertada”.
Daí que, como bem sustenta o recorrido/demandante, trazendo à colação o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/02/2019, proferido no âmbito do Proc. nº 6645/11.6TBCSC-A.L1-A.S1, relatado pelo Exmo. Conselheiro Bernardo Domingos, disponível in www.dgsi.pt, “Se o Sr. Juiz, na sentença, resolveu não alterar o valor da causa que anteriormente fixara ou nada disse sobre o valor inicialmente indicado e nenhuma das partes entendeu necessária tal alteração, nem arguiu a nulidade da sentença por omitir tal alteração, considera-se sanado o eventual vício de omissão de actualização do valor da causa e para todos os efeitos legais, subsiste como valor da causa o anteriormente fixado (se tal tiver ocorrido) ou na falta de fixação em concreto o valor inicialmente indicado pelo autor.”.
É certo que, em última análise, e como supra se referiu, o Mmº Juiz poderia eventualmente tê-lo feito aquando da prolação do despacho de 16/10/2020, o que não sucedeu.
Por isso, tendo admitido [bem ou mal], por via desse despacho, o recurso interposto pelo arguido/demandado [esgotando, aliás, nesse preciso momento, o seu poder jurisdicional sobre o assunto], então já não lhe era lícito fazê-lo posteriormente, através do aludido despacho de 20/12/2020, sendo legítimo questionar que atitude tomaria se, por hipótese, em tal despacho viesse a fixar à causa um valor inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros).
Nestas circunstâncias, entendemos que deve considerar-se definitivamente assente, como “valor da causa cível enxerta”, o valor do pedido inicialmente atribuído pelo assistente/demandante, ou seja, o valor de € 3.662,06 (três mil seiscentos e sessenta e dois euros e seis cêntimos).
Pelo que, em face dos requisitos a que alude o Artº 400º, nº 2, supra analisados, o recurso é inadmissível, devendo ser rejeitado, nos termos das disposições conjugadas dos Artºs. 414º, nº 3, 417º, nº 6, al. b), e 420º, nº 1, al. b).”.
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2. A reclamação para a Conferência

O Artº 417º, nº 6, atribuiu ao relator poderes de decisão sumária sobre o recurso, tendo-se já reconhecido que esta competência (do relator) é compatível com o direito ao recurso do arguido, o direito do ofendido de participação no processo e de acesso aos tribunais e os direitos das partes civis e dos outros participantes processuais de acesso aos tribunais e, designadamente, de acesso aos tribunais de recurso previstos nos Artºs. 20º, nº 1, e 32º, nºs. 1 e 7, da Constituição da República Portuguesa - cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, no seu “Comentário do Código de Processo Penal”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica, 2011, pág. 1157.
Ora, os poderes do relator de decisão sumária sobre o recurso incluem o conhecimento dos fundamentos de rejeição do recurso, ou seja, os previstos no Artº 420º, nº 1, do C.P.Penal, como decorre da alínea b) do nº 6 do Artº 417º.
E da decisão sumária do relator cabe reclamação para a conferência, conforme prescreve o Artº 417º, nº 8, sendo, então, o recurso julgado em conferência.
Pois, como claramente dispõe o Artº 419º, nº 3, al. a), o recurso é julgado em conferência quando tenha sido apresentada reclamação da decisão sumária prevista no n.º 6 do artigo 417º
Assim, como sublinha Paulo Pinto de Albuquerque (3) “o poder de cognição da conferência tem uma natureza originária e não derivada. Isto é, a conferência não está vinculada nem à decisão do relator nem à reclamação do sujeito ou participante afectado pela decisão do relator”.

Posto isto, e apreciando a reclamação, constata-se que o recorrente, ora reclamante, manifesta a sua discordância quanto à decisão sumária reclamada, sustentando, em síntese, que:

- O valor de € 3.662,06 atribuído pelo Demandante ao pedido de indemnização civil foi indicado por lapso, uma vez que, apesar de se ter pedido a condenação do Arguido/Demandado no pagamento da quantia de € 5.000,00 a título de danos não patrimoniais, e da quantia de € 3.662,06 a título de danos patrimoniais, o que tudo perfaz o montante de € 8.662,06, acabou por se atribuir ao pedido de indemnização civil apenas o valor peticionado a título de danos patrimoniais, no indicando montante de € 3.662,06, não se tendo contabilizado, como devia, o valor dos danos não patrimoniais também peticionados;
- De harmonia com o preceituado no Artº 297º, nº 1, do C.P.Civil (aplicável ao pedido de indemnização civil enxertado no processo penal), se pela acção se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, sendo que, nos termos dos disposto no nº 2 do mesmo preceito legal, cumulando-se na mesma acção vários pedidos, o valor da causa é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles;
- Assim, do disposto nos nºs 1 e 2 do citado Artº 297º do C.P.Civil resulta que o valor da causa, in casu, do pedido de indemnização civil formulado corresponde à totalidade da quantia em dinheiro que o Assistente/Demandante pretende obter do Arguido/Demandado, que ascende ao montante global de € 8.662,06 e não de apenas € 3.662,06;
- O Demandado não pode ver prejudicados os seus direitos, concretamente o direito de recorrer da decisão proferida quanto ao pedido de indemnização civil em que foi condenado, pelo facto do Demandado ter atribuído a tal pedido um valor incorrecto;
- Da mesma forma que o Demandante também não devia ser prejudicado no caso de deduzir um pedido de indemnização civil de valor superior à alçada do Tribunal de 1ª Instância (5.000,00 €) mas, por lapso ou erro, tivesse atribuído ao pedido que formulou um valor inferior a tal montante e a decisão proferida lhe tivesse sido desfavorável em montante superior a metade do valor da alçada do tribunal que proferiu a decisão;
- O que releva é o valor do pedido de indemnização civil efectivamente deduzido e não o valor que o Demandante lhe atribuiu ou indicou;
- Por isso, o valor a considerar para efeitos de admissibilidade, ou não, do recurso que interpôs relativamente ao pedido de indemnização civil em que foi condenado é o valor do pedido efectivamente formulado de € 8.662,06€, por ser este o valor monetário que o Demandante pretendia receber do Arguido/Demandado.
Salvo o devido respeito, a argumentação esgrimida pelo reclamante não tem a virtualidade de, minimamente, infirmar os fundamentos em que assentou a decisão sumária proferida pelo relator, olvidando por completo o arguido o que ali se referiu acerca da matéria (do valor da causa), e que ora se relembra:
“Em termos genéricos, e sinteticamente, há que sublinhar e que recordar que, no âmbito do processo civil:
- Sobre o autor impende a obrigação de, na petição inicial, declarar o valor da causa [Artº 552º, nº 1, al. f), do C.P.Civil];
- A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido, o qual também determina a relação da causa com a alçada do tribunal [Artº 296º, nºs. 1 e 2, do C.P.Civil];
- A falta de impugnação do valor por banda do réu significa que aceita o valor atribuído à causa pelo autor [Artº 305º, nº 4, do C.P.Civil];
- Mesmo estando as partes de acordo quanto ao mesmo, o valor acordado não vincula o juiz, pois que lhe compete a respectiva fixação, o que deverá ocorrer no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o nº 4 do Artº 299º do C.P.Civil e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença ou, se for interposto recurso antes da fixação do valor da causa (pelo juiz), no despacho referido no Artº 641º do C.P.Civil [Artº 306º, do C.P.Civil];

Ora, admitindo-se que os aludidos princípios e normativos possam aplicar-se analogicamente, com as devidas adaptações, ao processo penal, ex-vi Artº 4º deste compêndio legal, então podemos afirmar e concluir que, nesta sede, o limite temporal, inultrapassável, para que o juiz possa intervir na fixação do valor da causa, é o momento em que o mesmo profere o despacho previsto no Artº 414º, nº 1.

O que bem se compreende.

Pois, como se afigura claro e evidente, é nesse momento que o juiz analisa e decide se estão ou não verificados todos os pressupostos para a interposição do recurso, designadamente o atinente à recorribilidade da decisão por virtude da “alçada do tribunal”.
Reafirmados, pois, estes princípios jurídicos, não faz qualquer sentido a invocação ora trazida à liça pelo reclamante, segundo a qual a atribuição daquele valor - € 3.662,06 - pelo demandante ao pedido de indemnização civil ficou a dever-se a lapso do mesmo Demandante.
Além do mais, cumpre sublinhar que o arguido, quando contestou tal pedido de indemnização civil, nos termos da peça processual que consta de fls. 199/201 Vº, apresentada no dia 14/02/2020, teve a oportunidade de corrigir (ou de tentar corrigir) tal “lapso” do demandante, lançando mão do expediente processual previsto no Artº 305º, nº 1, do C.P.Civil.
Porém, o ora reclamante nada disse ou nada fez a esse propósito naquele momento processual, apenas se tendo pronunciado acerca de tal questão na sequência do despacho do Mmº Juiz a quo de 30/11/2020, quando, após ter admitido o recurso interposto pelo arguido para este tribunal da Relação, ex officio decidiu socorrer-se “do comando do artigo 306º, nº 3, do C.P.Civl”, acabando por fixar em € 10.000,00 o valor do pedido de indemnização civil, o que fez através do despacho de 20/12/2020.
Iniciativa essa (do tribunal a quo) que, como se referiu na decisão sumária, não tinha cobertura legal, dado que, como ali se explicou de forma clara, apenas poderia ter ocorrido até ao momento, inultrapassável, em que proferiu o despacho previsto no Artº 414º, nº 1.
Consequentemente, e reiterando-se que o valor a considerar para efeitos de recurso é aquele que foi inicialmente atribuído ao pedido de indemnização civil pelo assistente/demandante, ou seja, o valor de € 3.662,06, definitivamente assente, deixa de ter sustentação jurídica a alegação do reclamante quando aduz que sente “prejudicados os seus direitos, concretamente o direito de recorrer da decisão proferida quanto ao pedido de indemnização civil em que foi condenado, pelo facto do Demandado ter atribuído a tal pedido um valor incorrecto”.
Pois, como é evidente, apenas está em causa o normal funcionamento da básica “regra das alçadas” que sempre existiu no nosso ordenamento jurídico, e que actualmente, no que a esta particular matéria tange, se encontra consagrada no Artº 44º da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto), e no Artº 400º, nº 2, do C.P.Penal.
E como o Tribunal Constitucional já teve a oportunidade de se pronunciar várias vezes, designadamente no Acórdão nº 239/97, de 12/03/1997 (4), “A existência de limitações de recorribilidade, designadamente através do estabelecimento de alçadas (de limites de valor até ao qual um determinado tribunal decide sem recurso), funciona como mecanismo de racionalização do sistema judiciário, permitindo que o acesso à justiça não seja, na prática, posto em causa pelo colapso do sistema, decorrente da chegada de todas (ou da esmagadora maioria) das acções aos diversos "patamares" de recurso.”.
Em suma, não se vislumbra que, na decisão sumária proferida, ao rejeitar-se o recurso do arguido, por inadmissibilidade legal, nos aludidos termos, tenha havido qualquer violação, por errada interpretação e aplicação, dos dispositivos ínsitos nos Artºs. 400º, nº 2, do C.P.Penal, e 297º, nºs. 1 e 2, do C.P.Civil.
Pelo que, sem necessidade de outras considerações, por despiciendas, reafirmam-se e corroboram-se as razões de facto e de direito explicitadas na decisão sumária que fundamentaram a rejeição do recurso, que se confirma e mantém, indeferindo-se a reclamação.

III. DISPOSITIVO

Por tudo o exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em indeferir a reclamação apresentada pelo arguido A. D., confirmando-se a decisão sumária.

Custas pelo arguido/recorrente, fixando-se em 4 (quatro) UC a taxa de justiça (Artºs. 513º e 514º do C.P.Penal, 1º, 2º, 3º, 8º, nº 9, do Reg. Custas Processuais, e Tabela III anexa ao mesmo).

(Acórdão elaborado pelo relator, e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos - Artº 94º, nº 2, do C.P.Penal)
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Guimarães, 12 de Abril de 2021

António Teixeira (Juiz Desembargador Relator)
Paulo Correia Serafim (Juiz Desembargador Adjunto)



1. Todas as transcrições a seguir efectuadas estão em conformidade com o texto original, ressalvando-se a correcção de erros ou lapsos de escrita manifestos, da formatação do texto e da ortografia utilizada, da responsabilidade do relator.
2. Ao qual se reportam todas as disposições legais a seguir citadas, sem menção da respectiva origem.
3. Ibidem, pág. 1160.
4. In http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/19970239.html