Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1531/19.4T9BRG.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: ACUSAÇÃO PARTICULAR
REJEIÇÃO
PODERES JUIZ JULGAMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/17/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Da estrutura acusatória do processo penal decorre que impende sobre o acusador a exposição total dos factos e do crime que imputa ao arguido, cabendo-lhe, assim, a iniciativa de definir o objeto do processo. E, nesta tarefa, não pode ser ajudado nem corrigido pelo juiz, enquanto terceiro imparcial e supra partes, sob pena de violação do modelo acusatório estruturante do processo penal.
II) Assim, os poderes do juiz sobre a acusação, antes do julgamento, são limitadíssimos, confinando-se à valoração jurídica dos factos tidos como suficientemente indiciados pelo acusador, mas, ainda assim, com uma margem de atuação bastante restrita, uma vez que apenas a pode rejeitar quando for manifestamente infundada, ou seja, quando for inequívoco e incontroverso que os factos nela descritos não constituem crime.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de juiz singular, com o NUIPC 1531/19.4T9BRG, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, no Juízo Local Criminal de Braga - Juiz 3, foi proferido despacho, ao abrigo do art. 311º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal, a rejeitar a acusação particular deduzida pela sociedade assistente, “X, Lda.", contra o arguido, J. C., imputando-lhe a prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punido pelos arts. 187º, n.ºs 1 e 2, al. a), e 183º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal.
2. Inconformados com essa decisão, dela recorreram a assistente e o Ministério Público.
2.1 - A assistente motivou o recurso com as conclusões que a seguir se transcrevem[1]:
«CONCLUSÕES:

1. Não pode a Recorrente concordar com o teor do despacho do tribunal a quo que determinou o arquivamento do presente processo, pois que, tal decisão é completamente infundada de razão, de prova bastante e sobretudo de discernimento das consequências que da prática dos factos imputados aos Arguido podem advir para a aqui Recorrente.
2. Nos termos do disposto no art.º 187.º, n.º 1, do CP, são elementos do tipo objetivo do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva: a) a afirmação ou propalação de factos inverídicos; b) não ter o agente fundamento para, em boa fé, reputar inverídicos esses factos; c) a idoneidade de tais factos para ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que se mostrem devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação.
3. O tipo objetivo do art.º 187.º, n.º 1, do CP pressupõe que os factos inverídicos afirmados ou propalados pelo agente sejam capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que se mostrem devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, bem como a pessoa coletiva, instituição ou corporação.
4. De acordo com os ensinamentos de RENATO LOPES MILITÃO, “para o preenchimento do tipo objetivo do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva não basta que os factos inverídicos afirmados ou propalados pelo agente sejam potencialmente lesivos da credibilidade, prestígio ou confiança da entidade coletiva visada. O segmento da honra objetiva ou exterior dessa entidade capaz de ser agredido por tais factos tem de ser-lhe devido. Ou seja, tal entidade tem de possuir efetivamente esse segmento da honra objetiva ou exterior” [A este propósito, MILITÃO, Renato Lopes, “Sobre a tutela penal da honra das entidades coletivas”, Revista Julgar, março 2016, p. 38.] (sublinhado nosso).
5. Pode, por isso, dizer-se que uma entidade coletiva é credível quando, por virtude da atuação dos seus órgãos ou membros, se mostra cumpridora, diligente e séria. Tem prestígio se, pelo comportamento dos seus órgãos ou membros, adquire notoriedade no domínio da respetiva atividade e obtém o respeito das suas congéneres, bem como, consequentemente, da comunidade em que se insere. É merecedora de confiança quando, pelo seu historial, é tida na comunidade envolvente como fidedigna [Nesta senda, COSTA, José de Faria, “Comentário ao artigo 187.º do Código Penal”, Comentário Conimbricense do Código Penal, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, I, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 681.].
6. No que tange a pessoas coletivas, existe crime quando alguém afirme ou propale factos inverídicos sem ter razões para, em boa fé, os reputar verdadeiros.
7. Já no que concerne ao tipo subjetivo do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, o mesmo basta-se com o dolo genérico, em qualquer das modalidades deste (art. 14º do CP). Não se exigindo, pois, que o agente tenha uma especial intenção de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da entidade coletiva visada.
8. Deveremos pois, atender se os impropérios perpetrados no post partilhado no perfil da rede social Facebook “J. C.”, no passado dia 16 de janeiro de 2019, pelas 11h16, poderão, eventualmente, sequer lograr ser discutido em sede de audiência e discussão de julgamento, ou, por outro lado, se merece ser vítima de rejeição e posterior arquivamento, conforme decidiu o tribunal a quo.
9. No que concerne ao primeiro elemento do tipo objetivo (afirmação ou propalação de factos inverídicos) e, contrariamente ao que sucede nos crimes de difamação e de injúria, o crime que ora nos ocupa apenas contempla a afirmação ou prolação de factos inverídicos, ou seja, apenas releva a imputação de factos.
10. Para o preenchimento do tipo objetivo de ilícito, necessário se torna, desde logo, que os factos afirmados e ou propalados sejam inverídicos, ficando de fora “a afirmação ou propalação de factos verídicos, suscetíveis de ofenderem a credibilidade, o prestígio ou a confiança” [MENDES, António Oliveira, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, Coimbra, Almedina, 1996, p. 115.].
11. No caso em apreço, o Recorrido, no passado dia 16 de janeiro de 2019, escreveu no seu perfil de Facebook: “Que bela memória, 3 anos de roubalheira e um grande pesadelo mas todos somos peritos na hora de cobrar e eu n vou fugir à regra. não se metam com essa escumalha. ”.
12. Em primeiro lugar, sempre se dirá que, atendendo a todo o historial mantido entre a sociedade Recorrente e o aqui Recorrido, certamente que o último com a publicação supra mencionada pretendia referir-se a toda a factualidade decorrida durante a longa relação comercial mantida com a sociedade Recorrente.
13. A verdade é que JAMAIS em tempo algum, a Recorrente, ou até mesmos os seus sócios e gerentes, “roubaram” o Recorrido, conforme o mesmo o incita, nem tampouco foram condenados pela prática de tal ilícito, seja contra o último, seja contra terceiros, nunca o tendo feito, seja há 1, 2 ou 3 anos, ou até mesmo mais.
14. O Certificado de Registo Criminal da sociedade Recorrente e dos seus sócios e gerentes encontra-se totalmente “limpo”, razão pela qual, sempre se alegará que a sociedade Recorrente não pode deixar de se sentir lesada e ofendida pela conduta do Recorrido.
15. Por outro lado, a sociedade RECORRENTE, é apelidada de “ESCUMALHA”, sendo que, mais uma vez, nem a RECORRENTE, nem os beneficiários da sociedade, se consideram membros de um grupo considerado de baixa condição moral, cultural e social ["escumalha", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2020, https://dicionario.priberam.org/escumalha [consultado em 01-03-2020]].
16. Como tal, dúvidas não podem subsistir quanto ao preenchimento do primeiro elemento do tipo objetivo (afirmação ou propalação de factos inverídicos).
17. O segundo elemento que compõe o tipo objetivo de ilícito impõe que os factos inverídicos sejam idóneos a ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança da pessoa coletiva, importando salientar que o tipo de ilícito não exige a ofensa do bom-nome da entidade, sendo suficiente o perigo dessa ofensa ocorrer, em virtude de uma conduta do agente com a potencialidade adequada para causar esse dano.
18. A credibilidade de uma instituição afere-se pelo comportamento cumpridor, diligente e pontual, mas sobretudo pela sua conduta séria e parcial revelada na atuação dos seus órgãos e membros; sendo o prestígio demonstrado pela imposição da pessoa coletiva no seu domínio específico da sua atuação, perante instituições congéneres e, por isso mesmo, perante a própria comunidade que serve e que a envolve; mostrando-se uma instituição digna de confiança “quando pela sua génese e atuações posteriores se apresenta, paradigmaticamente, como entidade depositária daquele mínimo de solidez de uma moral social que faz com que a comunidade a veja como entidade em quem se pode confiar” [COSTA, José de Faria, Idem, p. 681.].
19. Salvo douto entendimento por opinião diversa, sendo o estabelecimento explorado pela Recorrente na cidade de Braga um dos principais pontos turísticos/atrações da cidade de Braga –, já com quase nove anos de exercício de funções [Para mais informações, consulte http://www.S.cupcakes.com/about.php], sendo constantemente avaliada e reavaliada através de todas as plataformas digitais para o efeito e, sobretudo, passando com distinção, dúvidas não podem subsistir que a Recorrente revela, tanto na sua atuação como nos seus órgãos e membros, uma enorme credibilidade, prestígio e confiança, não só para os bracarenses, como para os portuenses, como para os restantes que diariamente procuram os seus serviços.
20. A Recorrente é uma sociedade comercial por quotas, com sede em Braga, que se dedica com intuitos evidentemente lucrativos à produção, distribuição e exploração de espaços de venda de bebidas, pastelaria e gelados, bem como exploração e gestão de conceitos de franchising e ainda formação e consultoria em pastelaria, gelataria, bebidas, café, franchising e negócios, sendo exploradora do SISTEMA S., bem como de todos os respetivos direitos imateriais que compõem este sistema, onde se inclui a marca registada S. – CUPCAKES & COFFEE.
21. O Sistema S. Cupcakes & Coffee é comummente reconhecido por todos os amantes de fabrico de bolos, de gelados artesanais e de bebidas à base de café, tendo, desde a data da sua abertura a público, excedido TODAS as espectativas, não merecendo, de todo, os ataques perpetrados pelo Recorrido à sua credibilidade, prestígio e confiança, depositadas pelos seus clientes.
22. Dúvidas não poderão subsistir quanto ao preenchimento do segundo elemento do tipo objetivo.
23. Não subsistem dúvidas quanto à falta de fundamentos legais para que o Recorrido tenha partilhado na rede social Facebook o post do dia 16 de janeiro de 2019, até porque, conforme se poderá depreender do próprio conteúdo da publicação, por um lado o Arguido visava vexar e humilhar em “praça pública” a Recorrente e, por outro lado, afastar potenciais clientes e/ou parceiros da mesma.
24. No que se refere ao seu elemento subjetivo, deixamos desde já claro que não procederemos a uma mais aprofundada análise, tanto do direito em si, como das questões que se relacionam, por motivos de estruturação e economia de trabalho, como tal, facilmente depreendemos que este tipo de crime é essencialmente doloso, bastando, para uma plena imputação subjetiva, o mero dolo eventual, como resulta da conjugação do artigo 14.º com o artigo 187.º n.º 1, ambos do Código Penal.
25. Tendo por referência a letra da lei no seu art.º 14.º do CP, facilmente poderemos concluir que, neste caso em concreto, até resulta cristalina a prática de dolo direto, uma vez que o Arguido agiu com a intenção clara e concreta de publicar o referido post no dia 16.01.2019.
26. Isto dito, verifica-se, por um lado, que em causa está uma publicação dirigida pelo Arguido à sociedade Assistente e, por outro lado, as expressões utilizadas pelo arguido consubstanciam, desde logo, a imputação factos concretos, pelo que se mostram, desde logo, preenchidos todos os elementos objetivos e subjetivos do crime previsto e punido no artigo 187º do Código Penal imputado ao arguido.
27. Cumpre, agora, desenhar a essência e, sobretudo, as consequências nefastas que a publicação em causa teve e ainda tem para com a sociedade Recorrente, verificando-se, desde já, a necessidade de caracterizar, da melhor forma possível, a marca portuguesa “S. - CUPCAKES & COFFEE”, ainda que a mesma não necessite de quaisquer aprestações.
28. A marca “S. - CUPCAKES & COFFEE”, encontra-se registada no Instituto Nacional da Propriedade Industrial, sob o n.º …, desde 2011, sob a classe n.º 43 da classificação de Nice.
29. Em primeiro lugar, a receita de todo o seu sucesso se deveu ao trabalho árduo dos representantes da Recorrente que sempre foram tidos como cidadãos justos, sinceros, honestos, educados e, sobretudo, trabalhadores, o que sempre se refletiu na forma como exerceram e ainda exercem as suas funções e, consequentemente, toda a imagem da sua sociedade. Sendo que, escusado será dizer que, hoje, encontra-se já pacificamente aceite, quer pela doutrina e pela jurisprudência, que pese embora a Recorrente seja uma pessoa coletiva também poderá ser vítima da violação do seu bom nome, reputação, imagem, prestígio e credibilidade.
30. Em segundo lugar e na sequência de todo o trabalho da Recorrente e dos seus representantes, podemos também afirmar que um grande fruto de todo o seu sucesso se deveu, claramente, às inúmeras entrevistas dadas para diversas publicações nacionais que, certamente, contribuíram para a publicidade da sociedade Recorrente e sobretudo para a divulgação do Sistema S..
31. Contudo, para se entender a dimensão da marca S. - CUPCAKES & COFFEE, obrigatório é perceber a dimensão digital da marca, contando na página oficial de Facebook [Vide https://www.facebook.com/S.cupcakes/] com mais de 743 392 (setecentos e quarenta e três mil trezentos e noventa e dois) likes e na página oficial de Instagram [Vide https://www.instagram.com/S.cupcakes/?hl=pt] com 21 243 (vinte e um mil duzentos e quarenta e três) followers.
32. Dúvidas não podem subsistir quanto à presença e sobretudo aposta da sociedade Recorrente, no sistema S. - CUPCAKES & COFFEE, seja a título de objeto do negócio, seja a título de conteúdos digitais [Entendido como o processo social por meio do qual pessoas e grupos de pessoas satisfazem desejos e necessidades com a criação, oferta e livre negociação de produtos e serviços de valor com outros].
33. Hoje, evidentemente, que ninguém poderá ficar alheado a todo o sucesso da sociedade Recorrente, principalmente constatado nas principais plataformas digitais e, como tal, salvo o devido respeito, que é muito, entendemos nós que andou mal o Tribunal a quo quando julgou que, “em parte alguma é feita qualquer imputação à sociedade assistente, designadamente com a sua designação”.
34. Argumentou ainda o tribunal a quo que “(…) o conceito de ofensa não pode ser um conjunto puramente subjetivo, isto é, não basta que alguém se considere injuriado ou difamado para que a ofensa exista. Determinar se uma expressão é ou não injuriosa/difamatória é uma questão que tem de ser aferida em função do contexto em que foi proferida, bem como do meio social a que pertencem ofendido e arguido, os valores do meio social em que ambos se inserem (…)”.
35. Como certamente o tribunal ad quem saberá e reconhecerá, bem como qualquer indivíduo com os mínimos conhecimentos do alcance das plataformas digitais de hoje em dia, evidentemente, que escusado será dizer que qualquer publicação numa rede social é facilmente propagada, espalhada, publicitada e divulgada, com vista a que seja mesmo conhecida pelo público em geral.
36. Salvo melhor entendimento, não deveria o tribunal a quo ter rejeitado a acusação, até porque, face à argumentação pelo qual sustentou a sua decisão, chega mesmo a ser contraditório afirmar que, por um lado, “(…)Determinar se uma expressão é ou não injuriosa/difamatória é uma questão que tem de ser aferida em função do contexto em que foi proferida (…)” e, posteriormente, rejeitar uma acusação cuja sua fundamentação prende-se essencialmente com uma publicação de Facebook, ALTAMENTE OFENSIVA DA CREDIBILIDADE DA RECORRENTE E CUJO PRINCIPAL OBJETIVO É A SUA DIVULGAÇÃO PARA TODOS OS UTILIZADORES DA REFERIDA REDE SOCIAL, E NÃO SÓ…
37. É de relembrar o tribunal ad quem que, não obstante a publicação em causa ter sido publicada no perfil de Facebook “J. C.” e, em princípio, disponível apenas aos seus amigos [Sempre se dirá que no conceito de “amigos” do Facebook cabem não só os amigos mais próximos, como também outros amigos, simples conhecidos ou até pessoas que não se conhece pessoalmente, apenas se estabelecendo alguma afinidade de interesses no âmbito da comunicação na rede social que leva a aceitá-los como “amigos”.], uma vez que se trata de um perfil e não de uma página, o certo é que a publicação em causa se encontrava (e ainda encontra) pública e, por isso, disponível a qualquer utilizador da internet, seja seu amigo na referida rede social, seja amigo de amigo (o que certamente será do conhecimento do Recorrido e seria, por certo devidamente apurado em sede própria…), escusado seria dizer que, a partir do momento em que é feita uma publicação na Internet pode ser replicado online um número infinito de vezes, além de poder ser copiado para papel e exportado para outros sítios na internet ou para correios eletrónicos privados e de se manter online por um período indeterminado de tempo [A este propósito, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.09.2014, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/ecca98e591fa824780257d66004b4283?OpenDocument].
38. Quanto à publicação feita pelo Arguido, não podem subsistir dúvidas para o tribunal ad quem que a entidade para a qual era dirigida a publicação era única e simplesmente a sociedade aqui Recorrente, até porque, conforme foi mencionado na queixa crime que deu origem a este processo, junto com o publicação datada de 16 de janeiro de 2019, foi anexado uma imagem do espaço S. Porto e uma vez que “uma imagem vale mais do que mil palavras”, os argumentos gladiados no despacho de arquivamento certamente terão que naufragar face à factualidade agora descrita.
39. Por último, deverá ainda entender-se que julgou mal o tribunal a quo quando decidiu que “(…) a referência ao espaço S. Porto não tem qualquer conexão direta com a sociedade assistente X, LDA., mas sim, quando muito, com a sociedade ou pessoa individual – cuja identidade se desconhece - que abriu e explora o espaço S. Porto em resultado do contrato de franchising subscrito com a sociedade assistente.”.
40. Mais uma vez, andou mal o tribunal a quo ao afirmar que não existe qualquer conexão direta entre a sociedade que explorou o espaço S. Porto e a sociedade aqui Recorrente… Conforme resulta dos autos, foi celebrado entre a sociedade Recorrente e a sociedade que explorou a S. Porto um contrato de franquia / franquiamento que é o contrato através do qual uma empresa obtém um direito exclusivo de fornecer um serviço ao público e em contrapartida aceita partilhar os seus ganhos com o franquiador que lhe forneceu o conhecimento do mercado e os métodos de trabalho que vai utilizar.
41. A ideia kafkiana segundo o qual, a título de exemplo, o espaço Braga não tem conexão direta com a sociedade mãe sediada nos EUA é só incoerente, impensável e, sobretudo, incompreensível. Resulta cristalina, até mesmo pela génese do próprio contrato de franquia, que todos os franquiados têm conexão direta com o franquiador, até porque é este último que concede a outro (franquiado) todo o know-how relativo ao direito de exploração da sua marca…
42. Assim, tais factos não poderão deixar de ser considerados como elementos nucleares para o despacho de acusação e, nesta medida, ao não assim decidir, o despacho do tribunal a quo que determinou pela não constituição de qualquer ilícito jurídico-penal de natureza particular contra a sociedade Recorrente e, consequentemente, pelo arquivamento do presente processo, efetuou uma incorreta valoração e aplicação do disposto nos arts.º 26.º da Constituição da República Portuguesa, 14.º, 183.º, 186.º e 187.º do CP e 311.º do CPP.

TERMOS EM QUE,
deve conceder-se provimento ao presente recurso, pois que revogando a douta decisão impugnada, farão Vossas Excelências a habitual,
JUSTIÇA!»
2.2 - Por seu turno, a Exma. Magistrada do Ministério Público extraiu da motivação do seu recurso as seguintes conclusões (transcrição):
«III – Conclusões

1. A rejeição da acusação nos termos e para os efeitos do artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d) do Código de Processo Penal implica que os factos imputados ao arguido não sejam de forma evidente e incontestável integradores do crime que lhe é imputado.
2. No despacho de que se recorre, o mmº Juiz a quo limita-se a concluir que as expressões alegadamente utilizadas pelo arguido e descritas na acusação particular da assistente não carregam consigo qualquer desvalor objetivamente ofensivo da credibilidade, do prestígio ou da confiança devidos à sociedade assistente X, Lda.
3. Pratica o crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelo art.º 187.º, “quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação”.
4. No caso concreto a expressão utilizada “…3 anos de roubalheira e um grande pesadelo mas somos todos peritos na hora de cobrar e eu não vou fugir à regra…” consubstancia a imputação de um facto à sociedade assistente.
5. Tal expressão, aliada à partilha, de forma pública, num perfil do facebook, de uma fotografia de um estabelecimento, em regime de franchising, com o logotipo da marca S. registada pela sociedade assistente, levam qualquer pessoa que visualize a publicação a formular um juízo negativo relativo ao detentor da marca.
6. Além disso, partilhou a “memória” no mural do seu perfil do facebook, que é um meio propiciador à divulgação, em modo público, pelo que a mesma esteve/está acessível a qualquer pessoa a não apenas ao seu grupo de “amigos”.
7. Alguém que se refere à S., está a referir-se a pessoa coletiva que detém a marca – a sociedade assistente “X, Lda.” – e não concretamente apenas a um determinado estabelecimento da cadeia.
8. Assim, o arguido extravasou o direito de liberdade de expressão constitucionalmente consagrado, ao imputar à assistente a prática de facto ofensivo que sabia ser falso e capaz de lesar a credibilidade e prestígio merecido, ao afirmar que a mesma se locupletou-se com bens, direitos que não lhe pertenciam.
9. A acusação particular deduzida contém todos os factos necessários à subsunção do crime p. e p. pelo artigo 187.º, n.º 1, do Código Penal.
10. Foram violados pelo despacho recorrido os artigos 311.º, n.º 2, alínea a), n.º 3, alínea d) do Código de Processo Penal e 187.º, do Código Penal.

Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser concedido provimento ao presente recurso e, em consequência, revogado o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que receba a acusação particular deduzida pela assistente, acompanhada pelo Ministério Público, contra o arguido e o submeta a julgamento pela prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, p. e p. pelos artigos 187.º, n.os 1 e 2 e 183.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, assim se fazendo a
INTEIRA E ACOSTUMADA JUSTIÇA!»

3. Não foi apresentada qualquer resposta a nenhum dos recursos.
4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, no parecer que emitiu, conclui que «não possui fundamento legal o despacho judicial que não recebeu a acusação deduzida pela sociedade assistente e acompanhada pelo MºPº contra o arguido a quem imputam a autoria de um crime de ofensa a organismo, serviço o pessoa coletiva, p. e p. pelos artigos 187º, n.ºs 1 e 2, al. a) e 183º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, porque ela não é manifestamente infundada já que os factos imputados ao arguido revestem dignidade penal por veicularem factos ofensivos da credibilidade e prestígio da assistente. Então, os recursos deverão ser julgados procedentes.»
5. No âmbito do disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não houve qualquer resposta a esse parecer.
6. Após exame preliminar, o processo foi presente à conferência, em conformidade com o disposto no art. 419º, n.º 3, al. c), do citado código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Sendo entendimento pacífico que o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso[2], no caso presente, atentas as conclusões extraídas por ambos os recorrentes da respetiva motivação, a questão a decidir consiste em saber se a acusação particular, rejeitada pelo despacho recorrido, é manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime, o que é pressuposto da sua rejeição ao abrigo do art. 311º, n.º 2, al. a), e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os demais preceitos citados sem qualquer menção.

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor (transcrição):
«-------- O Tribunal é competente. -----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
*
QUESTÃO PRÉVIA -------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
Nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – adiante designado pela sigla C.P.P. -, “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: --------------
-------- a) de rejeitar a acusação se a considerar manifestamente infundada”. ---------------------------------------------------------------
-------- O n.º 3 do artigo 311.º do C.P.P., estatui que “para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada: ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
a) (...) ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
b) (...) ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
c) (...) ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
d) Se os factos não constituírem crime”. -------------------------------------------------------------------------------------------
-------- A fls. 70 a 74, a assistente X, LDA., nos termos do disposto no artigo 285.º, n.º 1, do C.P.P., deduziu acusação particular, para julgamento em processo comum e perante Tribunal singular, contra: ---------------------------
J. C.;--------------------------------------------------------------------------------------------------------
-------- imputando-lhe a prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punido pelos artigos 187.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), e 183.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal – adiante designado pela sigla C.P.; --------
-------- nos seguintes termos: -----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
“1. No dia 16 de janeiro de 2019, pelas 11h16, rede sociel Facebook, o Arguido, que se dá pelo nome “J. C.”, partilhou publicamente uma “memória” por meio da qual divulgou uma fotografia do espaço S. Porto e com o seguinte teor: “Que bela memória, 3 anos de roubalheira e um grande pesadelo, mas todos somos peritos na hora de cobrar e eu n vou fugir à regra. Não se metam com esta escumalha”.--------------------------------------------------------------------------------------------
2. O Arguido, bem sabia que as imputações efetuadas não correspondiam, como não correspondem à verdade, -------
3. tendo sido proferidas com intenção e a consciência de ofender o bom nome da sociedade Assistente que, há data dos factos, contava com mais de 730000 “likes” na sua página oficial de Facebook e, na presente data, com mais de 740000.---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
4. sendo este o seu principal meio difusor de publicidade, através da qual procede à publicação diária dos seus produtos, como gelados e cupcakes, promoções e eventos. -------------------------------------------------------------------------------------
5. Com o referido comportamento, o Arguido ofendeu a Assistente, imputando-lhe factos e dirigindo-lhe palavras que atentaram contra a sua honra e consideração, em circunstâncias que não só facilitaram como efetivaram a sua divulgação. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
6. Conforme melhor resulta da queixa-crime que antecede, por muito que o referido posta tenha sido partilhado pelo utilizador de Facebook “J. C.”, o supra mencionado comentário ainda permanece disponível publicamente no seu perfil (por opção deste último), sendo acessível a um número indiscriminado de pessoas, ----------------------------------------
7. sejam os seus amigos, amigos de amigos, ou qualquer internauta que simplesmente venha a aceder ao perfil de Facebook “J. C.” e pesquise a referida publicação. ----------------------------------------------------------------------------------------
8. Entram aqui considerações sobre a forma como foi levada a cabo a publicação em causa, o lugar escolhido para a mesma e a circunstância, assaz relevante, de ainda se encontrar disponível para qualquer pessoa com acesso ao Facebook, que é, como se sabe, a rede social com mais utilizadores no nosso país e em todo o mundo, que assenta na publicação e partilha de comentários, fotos, links, etc e que é utilizada precisamente com esse intuído, de divulgação exponencial desses mesmo conteúdos. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
9. Com efeito, a Assistente é uma sociedade conhecida e respeitada tanto na cidade de Braga, como em todo o país, tendo aberto o seu primeiro estabelecimento há sete anos no centro histórico de Braga e, desde então, excedido todas as expectativas. --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
10. O sucesso estonteante do conceito de fabrico de bolos, de gelados artesanais e de bebidas à base de café, aliado ao profissionalismo dos sócios gerentes, impulsionou o lançamento da marca em Guimarães e no Porto, em regime de franchising, ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
11. sendo inúmeros os pedidos de abertura de nova loja em Lisboa. -----------------------------------------------------------------
12. Por outro lado, o aqui Arguido, sabia que estava a imputar factos à Assistente que não correspondiam à verdade,
13. tendo agido de forma livre, deliberada e conscientemente, bem ciente de que a sua conduta era proibida e punida por lei. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
14. O Arguido agiu com nítido propósito de afastar clientes do estabelecimento comercial da Assistente, pondo em causa o profissionalismo e honestidade comercial dos seus proprietários, apelidando-os de “ESCUMALHA”, afirmando que fora vítima de 3 anos de roubalheira. ------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
15. A Internet, meio que o Arguido utilizou para divulgar a referida publicação acompanhada com a supra mencionada afirmação, é um meio de divulgação completamente distinto dos outros meios de comunicação, pois é mais livre e com uma velocidade de difusão de mensagens muito superior à dos restantes meios. ------------------------------------------
16. A Internet é uma “tribuna planetária, acessível por toda a gente e em condições tecnicamente iguais”. --------------
17. O arguido ao elaborar a publicação em causa, com acessibilidade livre a qualquer utilizador no mural do seu perfil do Facebook, fê-lo através de meio propulsor de facilitar a sua divulgação por forma a agravar a sua conduta, ao abrigo do disposto no artigo 183.º, n.º 1, alínea a), do C.P.. -------------------------------------------------------------------------------------------
19. Pelo exposto, dúvidas não podem subsistir que o Arguido cometeu, em autoria material na forma consumada um crime de ofensa a pessoa coletiva p. e p. pelo art.º 187.º, do Código Penal, em circunstâncias que facilitaram a sua divulgação, sabendo que os factos que imputava à Assistente eram falsos, pelo que deve ser punido nos termos agravados do art.º 183.º, n.º 1, al. a), ex vi 187.º n.º 2 al. a) do Código Penal.”. ---------------------------------------------------------------------------
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-------- A fls. 76 e 77 a Digna Magistrada do Ministério Público titular do processo de inquérito acompanhou a acusação particular nos seus precisos termos. --------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
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-------- O crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva encontra-se previsto no artigo 187.º, n.º 1, do C.P., o qual estatui que: ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
-------- “1 - Quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa coletiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias.”. ----------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
-------- Importa agora saber se as expressões imputadas ao arguido e em causa nos presentes autos integram desde logo os elementos do tipo objetivo do crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva. -----------------------------------------------
-------- Ora, a todos é reconhecido o direito ao bom nome e reputação (cfr. o artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa), o qual “consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra e consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação. Neste sentido, este direito constitui um limite para outros direitos (cfr. o Professor Gomes Canotilho e o Professor Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4.ª edição, 2007, página 180. -- ------------------------------
-------- Utilizando uma expressão do Professor Jorge Miranda, in Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2005, página 289, “o direito ao bom nome e à reputação tem um alcance jurídico amplíssimo, situando-se no cerne da ideia de dignidade da pessoa.”. ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------------
-------- O Professor Beleza dos Santos define a honra como “aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente consideradas essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e vale” e a consideração como “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público” (cfr. Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e injúrias, in Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3512, páginas 167 e 168). -------------------------------------------------------------------------------------------
-------- E, prossegue o mesmo autor, “a honra refere-se ao apreço de cada um por si, à autoavaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos de o não julgar um valor negativo”. --------------------
-------- No entanto, o conceito de ofensa não pode ser um conjunto puramente subjetivo, isto é, não basta que alguém se considere injuriado ou difamado para que a ofensa exista. Determinar se uma expressão é ou não injuriosa/difamatória é uma questão que tem de ser aferida em função do contexto em que foi proferida, bem como do meio social a que pertencem ofendido e arguido, os valores do meio social em que ambos se inserem, etc. (cfr., neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07 de abril de 2008, relatado pela Senhora Desembargadora Maria Augusta Fernandes no âmbito do processo n.º 71/08 – 1.ª secção, ainda inédito). --------------------------------------------------------------------
-------- O Professor Beleza dos Santos, citando o Professor Jannitti Piromallo (obra citada, página 167), escreve que “os crimes contra a honra ofendem um sujeito, mas não devem ter-se em conta os sentimentos meramente pessoais, senão na medida em que serão objetivamente merecedores de tutela.”. -------------------------------------------------------------------------------
-------- E prossegue concluindo que “não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem tudo aquilo que o queixoso entenda que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais”. -------------------------
-------- O Professor José de Faria Costa escreve, a propósito, que “o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional, e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidade bem diversa, no momento em que apreciamos o significado”, o que não quer dizer, prossegue o mesmo autor, “que não haja palavras cujo sentido primeiro e último seja tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração” (cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal – Parte Especial, tomo I, página 630).-----------------------------------------------------------------------------------------------------------
-------- Isto posto, passemos à análise do escrito dos autos e descrito na acusação particular. ------------------------------------------
-------- A sociedade assistente X, LDA., entende que o escrito - “Que bela memória, 3 anos de roubalheira e um grande pesadelo, mas todos somos peritos na hora de cobrar e eu n vou fugir à regra. Não se metam com esta escumalha”, acompanhado de uma fotografia do espaço S. Porto – coloca em causa a sua credibilidade, prestígio e confiança devidas. -------------------------------------------------------------------------------------------
-------- É nosso entendimento que as expressões alegadamente utilizadas pelo arguido e descritas na acusação particular da assistente não carregam consigo qualquer desvalor objetivamente ofensivo da credibilidade, do prestígio ou da confiança devidos à sociedade assistente X, LDA.. ----------------------------------------------------------------------------------
-------- Com efeito, em parte alguma é feita qualquer imputação à sociedade assistente, designadamente com a sua designação. -------------------------------------------------------------------------------------------
-------- Por outro lado, a própria sociedade assistente refere na acusação particular que o lançamento da marca no Porto foi em regime de franchising, pelo que a referência ao espaço S. Porto não tem qualquer conexão direta com a sociedade assistente X, LDA., mas sim, quando muito, com a sociedade ou pessoa individual – cuja identidade se desconhece - que abriu e explora o espaço S. Porto em resultado do contrato de franchising subscrito com a sociedade assistente. -------------------------------------------------------------------------------------------
-------- Assim, as expressões alegadamente utilizadas pelo arguido e em apreciação nos presentes autos não têm relevância jurídico-penal contra a sociedade assistente. -------------------------------------------------------------------------------------------
-------- Em estilo de conclusão, tendo em conta as razões de facto e de Direito supra enunciadas, a conduta do arguido J. C. descrita na acusação particular não constitui a prática de qualquer ilícito jurídico-penal de natureza particular contra a sociedade assistente X, LDA., pelo que rejeito a acusação por ser manifestamente infundada, nos termos do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do C.P.P., e determino o arquivamento do presente processo. -------------------------------------------------------------------------------------------
-------- Condeno a sociedade assistente no pagamento da taxa de justiça, a qual fixo em 02 (duas) Unidades de Conta, bem como no pagamento dos encargos a que a sua atividade houver dado lugar, nos termos do disposto nos artigos 515.º, n.º 1, alínea f), e 518.º, ambos do C.P.P.. -------------------------------------------------------------------------------------------
-------- Notifique, cumprindo o legal formalismo. ------------------------------------------------------------------------------------------»

3. Atentas as conclusões extraídas por ambos os recorrentes, há apenas que apreciar se a acusação particular deduzida pela assistente, acompanhada pelo Ministério Público, imputando ao arguido um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punido pelos arts. 187º, n.ºs 1 e 2, al. a), e 183º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, deve ser considerada manifestamente infundada, por os factos nela descritos não constituírem crime, enquadrando-se, pois, na previsão da al. d) do n.º 3 do art. 311º, permitindo a sua rejeição ao abrigo da al. a) do n.º 2 do mesmo preceito, conforme foi determinado no despacho recorrido.
3.1 - A acusação, sendo formalmente a manifestação da pretensão de que o arguido seja submetido a julgamento pela prática de determinado crime e por ele condenado, constitui o pressuposto indispensável da fase de julgamento, por ela se definindo e fixando o objeto deste último[3].
Dispõe o art. 283º, n.º 3, al. b), que a acusação contém, sob pena de nulidade, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, …”.
Trata-se de uma imposição decorrente do princípio do acusatório e que surge como forma de assegurar ao arguido todas as garantias de defesa, em respeito pelo art. 32º, n.ºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa.
O atual modelo, vigente desde o Código de Processo Penal de 1987, aprovado pelo DL n.º 78/87, de 17 de fevereiro, estrutura-se no referido princípio do acusatório, embora mitigado com uma vertente investigatória, tendo, nessa parte, a respetiva autorização legislativa sido concedida com o sentido e extensão de estabelecimento da máxima acusatoriedade do processo penal, temperada com o princípio da investigação judicial[4].
Um dos traços estruturais do princípio acusatório consiste na clara distinção entre, por um lado, a entidade que tem a seu cargo uma fase investigatória e, se for o caso, sustenta uma acusação, e, por outro lado, uma entidade distinta que julga, em audiência pública e contraditória, os factos objeto dessa acusação.
A reforma operada pela Lei n.º 59/98 de 25 de agosto, introduziu determinadas alterações que vieram reforçar esse modelo, nomeadamente explicitando as funções dos vários sujeitos processuais, afastando várias dúvidas e divergências jurisprudenciais, como sucedeu com o aditamento do n.º 3 do art. 311º, segundo o qual:
“…
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.
…”.
Com esta alteração, prevendo, de modo claro e taxativo, as quatro situações que podem levar à conclusão de se estar perante uma acusação manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição, impediu-se que o juiz, ao proferir o despacho de saneamento do processo, previsto no art. 311º, tenha um papel equivalente ao do sujeito processual que deduziu a acusação, fazendo um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que a sustentam.
Tal alteração fez caducar a jurisprudência anteriormente fixada pelo assento n.º 4/93[5], segundo a qual “[a] alínea a) do n.º 2 do artigo 311.º do Código de Processo Penal inclui a rejeição da acusação por manifesta insuficiência de prova indiciária.”
É hoje incontroverso que, no momento processual a que se refere o art. 311º, o juiz não pode decidir do mérito da acusação por via da sindicância da avaliação da suficiência dos indícios efetuada pelo Ministério Público ou pelo assistente.
Da referida estrutura acusatória do processo penal decorre que impende sobre o acusador a exposição total dos factos e do crime que imputa ao arguido, cabendo-lhe, assim, a iniciativa de definir o objeto do processo. E, nesta tarefa, não pode ser ajudado nem corrigido pelo juiz, enquanto terceiro imparcial e supra partes, sob pena de violação do modelo acusatório estruturante do processo penal.
Assim, os poderes do juiz sobre a acusação, antes do julgamento, são limitadíssimos, confinando-se à valoração jurídica dos factos tidos como suficientemente indiciados pelo acusador, mas, ainda assim, com uma margem de atuação bastante restrita, uma vez que apenas a pode rejeitar quando for manifestamente infundada, ou seja, quando for inequívoco e incontroverso que os factos nela descritos não constituem crime.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013[6] veio restringir mais os poderes do juiz sobre a acusação antes do julgamento, ao uniformizar a jurisprudência no sentido de “[a] alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.os 1 e 3 do CPP”, referindo na sua fundamentação que o momento para o juiz decidir sobre a qualificação jurídica, sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, é quando se encontra já a julgar o mérito do caso concreto.
3.2 - Na situação em apreço, remetido o processo para julgamento, sem ter havido instrução, o Exmo. Juiz a quo, ao proferir o despacho a que alude o art. 311º, rejeitou a acusação particular em que a assistente, "X, Lda.", imputa ao arguido, J. C., a prática de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva, previsto e punido pelos arts. 187º, n.ºs 1 e 2, al. a), e 183º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, considerando-a manifestamente infundada, por entender, em conclusão, que a conduta do arguido não constitui a prática de qualquer ilícito jurídico-penal de natureza particular contra a sociedade assistente, pois as expressões alegadamente utilizadas por aquele não têm relevância jurídico-penal contra esta.
Em causa está, pois, a previsão da al. d) do n.º 3 do art. 311º, ou seja, os factos descritos na acusação não constituírem crime, o que se traduz numa das quatro situações em que a mesma é manifestamente infundada e, por isso, o juiz pode rejeitá-la sem violar o princípio do acusatório.
Trata-se, pois, de saber se a acusação não merece ser discutida, ou seja, se não há razões para a sujeitar a um debate público e contraditório em julgamento, o que, como vimos, implica a feitura de um juízo inequívoco e incontroverso sobre a própria atipicidade da conduta nela imputada ao arguido.
Em causa está a conduta do arguido ao partilhar publicamente na rede social facebook uma "memória", divulgando uma fotografia do espaço "S. Porto" e com o seguinte teor: "Que bela memória, 3 anos de roubalheira e um grande pesadelo, mas todos somos peritos na hora de cobrar e eu n vou fugir à regra. Não se metam com esta escumalha."
O Mmº. Juiz considerou que estas expressões não são suscetíveis de revelar qualquer desvalor objetivamente ofensivo da credibilidade, do prestígio ou da confiança devidos à sociedade assistente, "X, Lda.", porque em parte alguma é feita qualquer imputação a esta, designadamente com a sua designação social, acrescentando que a mesma refere na acusação particular que o lançamento da marca no Porto foi em regime de franchising, pelo que a referência ao espaço "S. Porto" não tem qualquer conexão direta com a sociedade assistente, mas sim, quando muito, com a sociedade ou pessoa individual – cuja identidade se desconhece - que abriu e explora o espaço "S. Porto" em resultado do contrato de franchising subscrito com aquela.
Nessa sequência, concluiu que as expressões utilizadas pelo arguido não têm relevância jurídico-penal contra a sociedade assistente, não constituindo a prática de qualquer ilícito jurídico-penal contra a mesma.
Vejamos se assim é.
Como se pode constatar pela leitura da acusação particular, integralmente reproduzida no despacho recorrido, supra transcrito, não se pode deixar de lhe apontar alguma falta de concretização ou explicitação acerca do relacionamento existente entre o arguido e a assistente, com importância para aferir, em termos inequívocos, se o primeiro, com as expressões que utilizou no conteúdo publicado no facebook, se estava a referir à segunda.
Note-se que é alegado na acusação que a sociedade assistente, "X, Lda.", impulsionou o lançamento da marca dos seus produtos ["S."] em Guimarães e no Porto, em regime de franchising (ponto 10º).
No contrato de franquia (franchising), o franquiador (o detentor da marca) concede ao franquiado (o autorizado a explorar a marca) o direito de uso da sua marca, patente, infraestrutura, know-how e o direito de distribuição exclusiva ou semi-exclusiva de produtos ou serviços, mediante determinadas contrapartidas (e desde logo o direito de entrada no mercado), comprometendo-se frequentemente a fornecer-lhe a sua assistência e conhecimentos do mercado.
Ora, o teor do comentário escrito publicado pelo arguido no facebook não contém qualquer menção à referida marca, sendo apenas acompanhado de uma fotografia do interior do espaço "S. Porto", ou seja, de acordo com a acusação, do estabelecimento do franquiado.
Daí que não seja necessariamente correta a afirmação, feita nomeadamente na conclusão 7ª do recurso do Ministério Público, que «alguém que se refere à S., está a referir-se à pessoa coletiva que detém a marca - a sociedade assistente "X, Lda." - e não concretamente apenas a um determinado estabelecimento da cadeia».
Com efeito, no caso concreto, basta pensar na hipótese de o arguido ser ou ter sido empregado ou ter ou ter tido qualquer relação comercial com o franquiado, pretendendo com o escrito em apreço nos autos denegrir a sua imagem.
Todavia, se atentarmos no teor da publicação em causa, reproduzida por cópia a fls. 8-vº, constatamos que a memória partilhada pelo arguido, acompanhada das expressões em causa, consiste num comentário feito, a 16 de janeiro de 2016, por um amigo seu, de nome D. T., com o seguinte teor: «De visita ao estabelecimento dos amigos D. A., C. M. e J. S.. Casa Cheia! Parabéns.», comentário este acompanhado da dita fotografia do interior do espaço "S. Porto".
Foi a memória desse comentário que, passados precisamente três anos, ou seja, no dia 16 de janeiro de 2019, o arguido partilhou, juntamente com as expressões "Que bela memória, 3 anos de roubalheira e um grande pesadelo, mas todos somos peritos na hora de cobrar e eu n vou fugir à regra. Não se metam com esta escumalha”.
Donde se retira, conjugadamente com o demais alegado na acusação, que aquele espaço comercial estava a ser explorado pelo arguido J. S. ou certamente por alguma sociedade de que ele fazia parte, sendo, por conseguinte, o franquiado e estando a reportar-se à assistente, enquanto franquiador, imputando-lhe um comportamento desonesto (caracterizando-o como "roubalheira") e praticado por pessoas que apelida de "escumalha", durante os três anos subsequentes ao referido comentário.
Refira-se que a apontada falta de concretização ou explicitação na acusação não deparará com qualquer impedimento de ser suprida em julgamento, por não afetar os elementos típicos do crime imputado ao arguido.
Como já referimos, face ao princípio do acusatório, no momento processual regulado no art. 311º, o tribunal só pode rejeitar a acusação com o fundamento invocado no despacho recorrido quando a factualidade nela descrita não consubstancia de forma inequívoca qualquer conduta criminalmente tipificada.
É entendimento jurisprudencial pacífico[7que esse juízo tem de assentar numa constatação objetivamente inequívoca, evidente e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efetuada.
O que não é o caso, pelas razões expostas.

Impõe-se, pois, conceder provimento aos recursos.

III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em, concedendo provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pela assistente, "X, Lda.", revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que, não ocorrendo outro motivo de rejeição da acusação particular, designe data para julgamento.

Sem tributação em custas.
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(Elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do Código de Processo Penal)
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Guimarães, 17 de dezembro de 2020

Os Juízes Desembargadores
Jorge Bispo (relator)
Pedro Miguel Cunha Lopes (adjunto)
(data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)

1. Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo gralhas evidentes e a ortografia utilizada, sendo a formatação da responsabilidade do relator.
2. Como sucede, nomeadamente, nos casos previstos nos art.s 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal, e resulta do acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série-A, de 28-12-1995.
3. Vd. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, III, 2ª Edição, Revista e atualizada, pág. 113.
4. Cf. art. 2º, n.º 2, 4), da Lei n.º 43/86, de 26 de setembro (autorização legislativa em matéria de processo penal).
5. De 27-02-1993, publicado no Diário da República - I Série-A, N.º 72 - 26-03-1993.
6. De 12-06-2013, publicado no Diário da República - 1.ª série — N.º 138 — 19 de julho de 2013.
7. Cf., entre outros, os acórdãos do TRP de 21-10-2015 (processo n.º 658/14.3GAVFR.P1) e de 11-07-2012 (processo n.º 1087/11.6PCMTS.P1), do TRE de 15-10-2013 (processo n.º 321/12.0TDEVR.E1) e do TRL de 07-12-2010 (processo n.º 475/08.0TAAGH.L1-59, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.