Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
336/18.4T8VPA.G2
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: DESCRIÇÕES MATRICIAIS E REGISTRAIS
POSSE
PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
LOGRADOURO
EXERCÍCIO ABUSIVO DO DIREITO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I - As descrições matriciais ou registrais em nada influem com a demonstração da posse e propriedade sobre um determinado bem, sendo, apenas, relevante o exercício dos poderes de facto, sobre aquela concreta realidade (física) predial, independentemente, da forma como a retrata/descreve a matriz predial ou o registo predial.
II - Verificando-se os requisitos da usucapião, os autores lograram demonstrar os factos constitutivos do direito de propriedade, a que se arrogam, sobre o logradouro em causa como fazendo parte integrante do prédio urbano registado.
III- O exercício do direito dos AA e ainda que constitua reação contra uma situação ilícita, é manifestamente abusivo, atenta a sua postura absolutamente passiva e de não oposição desde a realização das obras pela arrendatária sem autorização do senhorio, e durante décadas, podendo falar-se da figura conhecida na doutrina por supressio, ou « neutralização » , configurada quando o titular do direito deixa passar um longo período de tempo sem o exercer, o que, aliado a uma particular conduta desse titular ou a outras circunstâncias, cria na contraparte a expectativa ou convicção fundada e justificada de que o direito já não será exercido, em termos tais que a leva a adotar medidas ou «programas de ação que, doutro modo, não adotaria; o exercício do direito em tais condições ( decorrido tão longo lapso de tempo) contraria a boa fé.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
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I- RELATÓRIO ( que se transcreve):

Os Autores M. C., NIF ........., casada, residente em …, Inglaterra, M. M., NIF ………, residente em …, Inglaterra, C. A., NIF ………, residente em …, Inglaterra, E. M., NIF ………, residente em …, Inglaterra, D. M., NIF ………, residente em …, França, e M. L., NIF ………, residente em …, INGLATERRA., intentaram a vertente acção de processo comum contra E. E., residente na Rua …, ..., peticionando a condenação da Ré a:

a) Reconhecer os AA como donos e legítimos proprietários do imóvel urbano identificado em 1º com as alterações constantes do artigo 8º desta p.i., assim sendo declarados;
b) Restituir aos AA, livre de pessoas e bens, o identificado prédio no estado em que o mesmo se encontrava;
c) Proceder à demolição das construções mencionadas em 19º e 20º da p.i. no prazo de 30 dias e a abster-se de praticar quaisquer atos que possam, direta ou indiretamente, ofender o direito de propriedade dos AA;
d) A deixar livre e desimpedido o logradouro bem como o acesso à propriedade rústica dos AA através desse mesmo logradouro da casa de habitação;
e) Pagar aos AA o valor de 1.150,00 € correspondente aos das rendas não pagas, a que acrescerão as que se vencerem até efetiva entrega do imóvel;
f) Pagar aos AA, a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos a quantia de 3.000,00 €, acrescida dos juros de mora que à taxa legal se vencerem desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
g) Pagar as custas, justa procuradoria e demais encargos com o processo.

Alegam, sinteticamente, que:

(i) Os AA. são donos e legítimos proprietários, na proporção de 1/6 para cada um, do prédio urbano sito no lugar ..., ..., composto de casa térrea para habitação, a confrontar de Norte com A. M. (atual S. C.), do Sul com caminho (atual Rua de ...), do nascente com M. A. e do Poente com Rua (atual Rua ...), inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ...º, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...;
(ii) Uma parte deste prédio, assim configurado, e do qual fazia parte integrante a casa conhecida como “casa do cego”, foi dada de arrendamento, por contrato meramente verbal, e há pelo menos 40 anos, à Ré e ao seu falecido marido J. B., ainda pelos anteriores proprietários, A. B. e A. J.;
(iii) No Verão do ano de 2016, os AA M. C. e C. A., encontrando-se em gozo de férias em Portugal, deslocaram-se ao imóvel acima referido, arrendado à R, e reclamaram a esta o pagamento das rendas por saberem que as mesmas já não eram pagas desde o mês de janeiro do ano de 2009;
(iv) Aí aperceberam-se de que o espaço, propriedade dos AA, se encontrava todo ocupado na quase sua totalidade por construções que a Ré ali implantou sendo, também, visíveis alterações no exterior da habitação arrendada.
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A Ré E. E. aduziu contestação com reconvenção, impugnando as alegações dos Autores e invocando, sumariamente, o direito de propriedade com referência às parcelas litigadas.
Concluiu, propugnando a improcedência da ação e impetrando ser a Reconvinte declarada dona e legítima proprietária das duas casas de habitação, inscritas sob os artigos ... e … na matriz predial urbana da Freguesia de ... e do logradouro ou pátio, conforme atrás foram identificados.
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Proferiu-se despacho saneador, o qual absolveu os Autores da instância reconvencional, bem como o despacho com enunciação do objeto do litígio e dos temas da prova.
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Efetivou-se a audiência final com observância do formalismo processual, e tendo sido proferida sentença, foi esta alvo de recurso e pelo acórdão proferido pelo TRG datado de 10.09.2020 foi anulada a decisão e ordenada a realização de perícia, a qual foi feita e logo após, e sem reabrir a audiência de julgamento, foi proferida nova sentença.
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Esta sentença foi proferida nos seguintes termos: “A) Condenar a Ré E. E. a reconhecer que os Autores M. C., M. M., C. A., E. M., D. M. e M. L. titulam o direito de propriedade com referência ao prédio urbano descrito em 1) e 3) dos factos provados;
B) Condenar a Ré E. E. a restituir aos Autores M. C., M. M., C. A., E. M., D. M. e M. L. o sobredito prédio no estado em que o mesmo se encontrava;
C) Condenar a Ré E. E. a proceder à demolição das construções referenciadas em 9) dos factos provados, no prazo de 30 dias, a abster-se de praticar quaisquer atos que possam, direta ou indiretamente, ofender o direito de propriedade dos Autores e a deixar livre e desimpedido o logradouro bem como o acesso ao prédio rústico enunciado em 3) através do antedito logradouro;
D) Condenar a Ré E. E. a pagar aos Autores M. C., M. M., C. A., E. M., D. M. e M. L. a quantia de 1.150,00€ (mil, cento e cinquenta euros) e as quantias que se vencerem a título de rendas vincendas até efetiva entrega do referenciado prédio;
E) Absolver a Ré E. E. do demais peticionado;
F) Condenar a Ré E. E. e os Autores M. C., M. M., C. A., E. M., D. M. e M. L. no pagamento das custas processuais em função do respetivo decaimento”.
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É desta decisão que vem interposto recurso pela R, a qual terminou o seu recurso formulando as seguintes conclusões:

“1- O presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito, Cfr. Artigos 639º e 640º do CPC, com recurso à prova gravada.
2- Nos termos e para os efeitos do artigo 640º, nº 1, al. a), do Código de Processo Civil, a Apelante indica quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados: I - Os factos dados como provados, por referência à sentença: 3., 4., 5., 9. (alínea a e b) e 13.; II - Os factos dados como não provados, por referência à sentença: 18 e 19., que aqui não se transcrevem por uma questão de economia processual.
3- Nos termos e para os efeitos do artigo 640º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil, a Apelante indica quais os meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos supra indicados: A – O relatório pericial e as cadernetas prediais de fls. 15 e 29-30, a certidão registal de fls. 16 e as escrituras públicas de fls. 17-23 e 53- 54, as fotografias 48- verso a 50 e 52, a guia/requerimento de fls. 51 e das notas de liquidação de fls. 54-verso a 55.; B – Os testemunhos de J. T., M. E., L. R., A. F. e A. C. (que se pretendem contraditar) e as declarações de parte da ré E. E..; C - As regras da experiência comum.
4- O Tribunal “a quo” devia ter dado como provada a matéria sob os pontos 18. e 19. da sentença (matéria de facto não provada), dando por não provada a matéria dos pontos 3., 4., 5., 9. e 13. da sentença (matéria de facto provada), sendo que a esta parte se circunscreve o âmbito do recurso quanto às questões de facto, estando tal parcela ou segmento da decisão proferida viciada por erro de julgamento, existindo uma nítida contradição entre a matéria de facto provada e não provada.
5- Com efeito, o Tribunal “a quo” alterou a sua análise crítica da prova produzida, o que não se concede, visto que não foram ouvidas novas testemunhas ou as partes envolvidas, pelo que analisando a prova dos autos, não se produziu prova suficiente para alterar a decisão inicial e para condenar a ré nos termos supra mencionados.
6- Da análise das cadernetas prediais, da certidão registral, das escrituras públicas, da guia/requerimento de fls. 51 e das notas de liquidação juntas aos autos, cuja força probatória é reconhecida pela lei, verifica-se que não está adstrito qualquer logradouro à casa de habitação dos autores, como, aliás, deixou o Tribunal “a quo” de constatar em sede de sentença, ao contrário das conclusões que havia obtido anteriormente.
7- Quanto às notas de liquidação, verifica-se que a ré, na qualidade de legítima possuidora e proprietária, requereu a inscrição matricial da sua habitação, em 1994, ou seja, há mais de 25 anos, pagando os impostos, sem a oposição de quem quer que fosse.
8- O relatório pericial, assim como o levantamento topográfico junto aos autos, é inócuo e insuficiente para atestar a historicidade dos prédios em discussão nos autos, apenas referindo e descrevendo o que se encontra, atualmente, no local, nada de novo trazendo aos autos que pudesse levar a uma alteração da decisão do Tribunal “a quo”, como acabou por resultar.
9- Como havia sido referido pelo Tribunal “a quo” na sua primeira sentença, a área descoberta que os autores dizem ser proprietário não se encontra corroborada por qualquer outra prova indubitável que pudesse indiciar ou certificar a prova do uso e fruição pelos autores e seus antepossuidores daquele espaço.
10- O relatório pericial efetivamente não carreou para os autos qualquer prova da propriedade dos prédios e do logradouro em questão, ademais, o Tribunal “a quo” não achou relevante a sua realização, numa fase inicial, como se veio a verificar, agora, com a resposta aos quesitos pelo Sr. Perito, que se limitou a descrever os prédios que se encontram implantados no local.
11- Quanto às fotografias juntas aos autos não se consegue alcançar a existência de qualquer logradouro, assim como não se consegue, com as mesmas, fazer prova da propriedade daquele pedaço de terreno, nem da sua afetação à habitação dos autores.
12- Não pode a ora recorrente aceitar a nova análise da prova testemunhal por parte do Tribunal “a quo”, que, numa primeira instância não valorizou a prova, tendo achado a mesma insuficiente e incapaz de provar a propriedade dos autores do logradouro e da casa de habitação da ré.
13- Quanto às declarações da autora, o Tribunal “a quo” considera as mesmas, agora, plausíveis, desvalorizando a caderneta predial de fls. 15 e a certidão registal de fls.
16, com força probatória plena em relação àquelas declarações, que, anteriormente, considerava que não contemplavam qualquer logradouro adstrito à casa dos autores.
14- As declarações de parte da autora são inócuas para a prova dos factos alegados pela mesma na petição inicial, nomeadamente, da propriedade do logradouro, pois, para além de pouco consistentes, são contraditórias com os demais documentos registrais juntos, que não contêm nenhum logradouro.
15- As declarações de parte da autora teriam sempre de ser credenciadas por outros meios de prova, devendo ser confirmadas, e não o foram, por outros dados que demonstrem a veracidade da declaração, sendo certo que o relatório pericial, não atestando a historicidade arquitetónica do logradouro e das habitações existentes, é insuficiente para corroborar a versão daquela.
16- A prova dos factos favoráveis à autora e cuja prova lhe incumbe, como é o caso, não se pode basear apenas na simples declaração da mesma, é necessária a corroboração de algum outro elemento de prova, o que não se verifica no caso em apreço, pelo contrário com os demais dados e circunstâncias, sob pena de se desvirtuarem as regras elementares sobre o ónus probatório e das ações serem decididas apenas com as declarações das próprias partes.
17- Confrontando as declarações da autora com os documentos de fls. 15 e 16, com força probatória plena, atesta-se, aliás, o contrário do referido pela mesma, quanto à existência e propriedade do logradouro.
18- Depoimento da ré, ora recorrida, quando inquirida sobre a mesma temática (Início da gravação: 18/11/2019, pelas 15:33:11)
[03:52] Ré: Depois eu fiz, também, um barraco cá fora. Adv: Esse barraco foi feito só pela senhora ou foi também feito com a ajuda do seu marido? Ré: Não. Era o meu marido quando ele estava lá em casa. O meu marido nunca foi puxado assim para fazer nada. Adv: Certo, mas ainda foi feito em vida do seu marido esse barraco? Ou já foi só a senhora que o fez? Ré: Foi. Em vida do meu marido. Ainda foi feito na vida do meu marido. Em madeira, era de um bocado era madeira, de outro bocado era chapas, de outro… mas era, pronto, fizemos lá assim um, porque eu ainda tive em horta.
Tive em horta, tive em galinheiro, e depois é que fiz o barraco com o meu filho, a minha casa… Adv:
Onde fez o barraco tinha uma horta e tinha galinheiro, era? Ré: Tive, era. Fiz a horta primeiro, e só pôs um… Como a casa era pequenina fiz um barraco para por as brasas, que eu usava as brasas, e a carqueja para acender a braseira. E a bacia da roupa… Adv: Mas olhe E. E.. Esse barraco foi feito em terreno que pertencia à Dona A. R., a quem a senhora… (impercetível) Ré: Não.
Esse terreno era camarário. Era camarário (…) [05:02] /// [10:35] Adv: Aquilo que a Senhora diz tudo era baldio, era aquilo que a Senhora há pouco dizia que era camarário, era? Ré: Era. Adv: Ali à frente? Ré: Era, e era. Adv: Era uma coisa pública que a Senhora foi ocupando, é isso? Ré: Era público, só (…) [10:44]
19- A ré, ora recorrente, enuncia e evidencia o seu uso e fruição do seu barraco, implantado em terreno do domínio público, e não em logradouro privado que, depois, evoluiu para uma casa de habitação, cuja inscrição matricial requereu em 1994, sem a oposição de ninguém e com o conhecimento de todos.
20- O depoimento da ré é claro e objetivo quanto à prova da sua posse e da propriedade da sua habitação, aliás, referindo as construções, obras e a utilização que foi fazendo aquele prédio, ao longo de mais de 25 anos, à vista de todos e sem oposição de quem quer que fosse, convicta do seu direito de propriedade sobre a sua habitação.
21- Quanto aos depoimentos das testemunhas J. T., M. E., L. R., A. F. e A. C., os mesmos não permitem aferir a prova do direito de propriedade sobre o logradouro por parte dos autores, como os mesmos articulam na petição inicial.
22- A testemunha J. T. refere apenas que o referido logradouro “era ocupado pelas pessoas que moravam lá, punham lá lenha, punham lá coisas do género” (minuto 23:07), sendo um espaço em aberto (minutos 02:01, 06:44 e 24:55), desconhecendo a propriedade do mesmo como refere de concreto, fazendo apenas considerações pessoais (minuto 10:44)
(Início da gravação: 08/10/2019, pelas 16:20:10) [02:01] Test: Eram três casas, penso eu, eram três casas, quem sobe ficavam ao lado direito e em frente tinham um pátio, logradouro onde punham lenha… espaço aberto em frente a essas casas. /// [06:42] Adv: Aquilo era um espaço aberto como o senhor disse à pouco? Test: Era, era um espaço aberto. /// [10:42] Adv: Que o Senhor disse que pertencia à casa? Test: Penso que sim, que pertencia à casa, as pessoas utilizavam aquilo, certamente que... /// [23:00] Adv: E esse logradouro onde foi feita essa construção, outrora era ocupado por alguém? Test: Era ocupado pelas pessoas que moravam lá, punham lá lenha, punham lá coisas do género…/// [24:50] Adv: O Senhor disse que este espaço à frente das casas era um espaço aberto, ainda agora me confirmou que não havia ali muros, não é? Test: Era um espaço aberto.
23- A testemunha M. E., apenas e tão somente, tece considerações pessoais sobre a propriedade do referido logradouro, sendo que não conhece em concreto quem detém a propriedade do referido terreno (minutos 23:25, 23:38 e 26:19).
(Início da gravação: 08/10/2019, pelas 15:49:04.) [23:24] Adv: Porque é que o Senhor diz isso, pertencia aos patrões? Test: Digo porque se eles estavam a servir daquilo, se eles estavam a botar lá o esterco, a ter lá os frangos, a ter a lenha, ninguém reclamava, de quem era oh Senhor Doutor? Adv: Estou a perguntar eu ao Senhor. Test: Não, não, mas digo eu se eles tinham as coisas lá assim…/// [26:08] Juiz: E nessa parte onde estavam o esterco e os barraquitos para a lenha quem é que o Senhor via lá a manusear o esterco, a manusear a lenha, quem é que o Senhor via lá, se chegou a ver alguém. Test: Eu, eu, é como eu digo, quando cheguei lá a ver aquilo foi as primeiras vezes que eu fui lá, ainda lá estava a tia A. B., ela depois foi lá para cima para a Lixa ela e o velhote, mais o marido lá para casa da filha eu quando os via lá ainda eram eles que estavam a coisar aquilo. Depois quando é que foi que eles foram para lá, as pessoas que andavam lá, o direito devia ser o mesmo que tinham os velhotes porque ficaram lá eles a olhar por aquilo e o terreno lá estava, aquela parte do logradouro dos frangos e do coiso devia ser deles também.
24 - A testemunha L. R. nada de relevante trouxe aos autos para a decisão da matéria controvertida, nomeadamente sobre a propriedade do logradouro e da casa de habitação da ré, assim como da historicidade arquitetónica do local, em que se encontra implantado o prédio da ré.
25- A testemunha A. F. tece, igualmente, considerações de cariz pessoal, sendo certo que refere que se passava pelo logradouro a pé para ir para as diversas casas que por ali existiam, não só os moradores, mas também os demais habitantes (minutos 06:57, 07:01, 07:13 e 07:27), não sendo de uso e fruição exclusiva dos autores, como, aliás, é corroborado pela ré no seu depoimento.
(Início da gravação: 18/11/2019, pelas 15:12:22.) [06:55] Adv: E esse carreiro só dava para passar a pé ou … Test: Só nós a pé, as pessoas passavam… Adv: Só para passar a pé? Test: Sim, sim. Adv: Passavam por aí carros de bois por exemplo? Test: Não. Adv: Antigamente ou veículos automóveis? Test: Passavam na estrada ao lado, mas dentro dali onde estava o pocinho e aquelas coisa, não. Adv: Só se passava a pé? Test: Só passavam a pé. Adv: E então quem passava a pé? Quais eram as pessoas, nessa altura quantos moradores havia ali que passavam a pé e utilizavam esse carreiro? Test: Passávamos nós, passava a família da Senhora C. que era os que passavam mais por ali que era para ir para ela que morava em cima… Adv: Sim. Test: E quem quisesse ir à tia MC., como a gente lhe chamava, passavam por ali por aquele caminhinho.
26- A testemunha A. C. nada refere quanto à propriedade do logradouro, fazendo apenas referência a quem utilizava aquele espaço.
27- É de salientar e enfatizar que os autores em momento algum da ação invocaram a aquisição do logradouro por usucapião, sendo certo que, sem outra prova documental que sustente o direito por si alegado, terá de ser improcedente o pedido por estes apresentado, alterando-se a decisão do Tribunal “a quo”.
28- Estranho é que o Tribunal “a quo”, quanto à questão da propriedade do logradouro, numa primeira fase, nomeadamente aquando da primeira sentença por si proferida, ter referido que “as testemunhas afloraram a existência de um pátio/quinteiro junto da casa, que seria utilizado como estrumeira e local de colocação da lenha, porém, afiguraram-se incapazes quer de concretizar a área do mesmo, quer de especificar circunstanciadamente a sua localização com referência aos anexos construídos pela Ré e pelo seu marido, sendo que tampouco foram carreados para os autos elementos documentais passíveis de indiciar a topografia do alardeado logradouro da casa dos Autores”.
29- Sucede que, em sede de nova sentença, o Tribunal “a quo” faz uma nova análise crítica da prova por si já analisada, que, nesta fase, já lhe parece plausível e fluente, em contradição plena com a sua primeira análise, o que não se pode aceitar.
30- Analisando a matéria vertida nos autos pelas regras da experiência comum, apenas se poderá concluir que os autores não iriam permitir a edificação de uma casa de habitação no seu logradouro e que a mesma fosse inscrita matricialmente a favor da ré, sem qualquer oposição por sua parte durante mais de 20 anos.
31- Bastaria assim analisar a matéria dada como provada e não provada com base nas regras da experiência para concluir que deveriam ter sido julgados provados os pontos 18. e 19. da sentença (matéria de facto não provada), dando por não provada a matéria dos pontos 3., 4., 5., 9. e 13. da sentença (matéria de facto provada).
32- Competia aos autores o ónus da prova dos factos que invocaram a seu favor, tendo contra si o risco de não serem adquiridos no processo os factos positivos ou negativos que, segundo a lei material, tal como ocorreu, ficando, assim, os autores sujeitos à improcedência da sua pretensão por insuficiência da aquisição processual dos factos fundamentadores da situação jurídica invocada, ou seja, da propriedade do logradouro.
33- Assim, eram os autores que necessariamente tinham de fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado, nos termos do artigo 342º, nº 1, do Código Civil.
34- Não fazendo prova os ora recorridos da propriedade do logradouro através da caderneta predial e da certidão de registo predial, os mesmos só poderiam adquirir a propriedade do referido logradouro por usucapião, que, em momento algum, invocaram.
35- Além do mais, os autores não possuíam, nem provaram, a existência de factos materiais (corpus) que consubstanciassem o direito de propriedade que invocaram, assim como não demonstraram perante o Tribunal a quo o animus possidendi, ou seja, não manifestaram a intenção de exercer o seu alegado direito real como se fossem seu titular, não detendo a posse do logradouro, naufragando a aquisição da propriedade por usucapião.
36- Assim, os autores não produziram qualquer prova que atestasse a sua propriedade do logradouro, tal como peticionaram, sendo certo que a ré atestou, através da inscrição matricial e do seu depoimento, a propriedade da sua casa de habitação edificada, há mais de vinte anos, sobre aquele logradouro do mínio público.
37- Com essa determinação, o Tribunal “a quo” violou o direito de propriedade da ré, sendo certo que, com a presente sentença, está o património daquela a ser esbulhado, o que viola os princípios constitucionais, nomeadamente do artigo 62º da CRP, sem que qualquer prova se tenha feito nesse sentido.
38- Com base nos factos articulados, na prova testemunhal, nas declarações de parte, na prova documental, no relatório pericial e nas regras da experiência comum, deveria o Tribunal “a quo” ter decidido contrariamente e julgado improcedentes os pedidos principais dos autores, aliás, como havia decidido inicialmente, na primeira sentença.
39- A sentença recorrida tem de ser substituída por outra que declare a improcedência da ação, dado que há nítida contradição entre a prova produzida pelos Apelantes e a decisão final, pelo que a sentença violou o disposto nos artigos 1251º e seguintes, 1287º e seguintes, e 1302º e seguintes do Código Civil, no artigo 62º da CRP, nos artigos 5º, 413º, 574º, 596º, 609º e 615º do Código de Processo Civil, e seus basilares princípios, ou, se assim se não entender, deve, nos termos do nº 2 do artigo 662º do Código de Processo Civil, proceder-se à repetição do julgamento, a fim de se eliminarem as contradições e falta de fundamentação da matéria de facto dada como não provada.”
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Os AA apresentaram contra-alegações, tendo concluído (reproduzindo toda a alegação) pela manutenção da sentença recorrida.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO

As questões a decidir no presente recurso, em função das conclusões recursivas e segundo a sua sequência lógica, são as seguintes:


I - saber se a matéria de facto deve ser alterada e caso o seja, se contende com o mérito da causa e em que medida.
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Para a apreciação das questões elencadas, é importante atentar na matéria que resultou provada e não provada, que o tribunal recorrido descreveu nos termos seguintes:

A) Factos provados


Com relevância para a apreciação do mérito da causa, o Tribunal considera provados os seguintes factos:

1. Por escritura pública com a epígrafe “Habilitação e Partilha” outorgada no dia 25 de Agosto de 2009, no Cartório Notarial de ..., constante do Livro de notas para escrituras diversas com o número …, de folhas .. a folhas .., consignou-se, designadamente, a adjudicação a M. C., NIF ........., M. M., C. A., E. M., D. M. e M. L., na qualidade de únicos herdeiros de A. J., e na proporção de 1/6 a cada um, do prédio urbano sito no lugar ..., ..., composto de casa térrea para habitação, a confrontar de Norte com A. M. (atual S. C.), do Sul com caminho (atual Rua de ...), do nascente com M. A. e do Poente com Rua (atual Rua ...), inscrito na matriz predial urbana da freguesia de ... sob o artigo ...º e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº .../19990617.
2. Pela ap. 900 de 2009/09/16, afigura-se registada a aquisição descrita em 1) a favor de M. C., NIF ........., M. M., C. A., E. M., D. M. e M. L..
3. O prédio urbano referenciado em 1) é composto de casa de habitação com a superfície coberta de 117 m2, anexo com 78,00 m2 e logradouro com 135 m2, e situa-se a poente/sul de um prédio rústico inscrito na matriz predial da freguesia de ... sob o artigo … e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ….
4. Há mais de 20, 30, 40 anos, os Autores e antecessores têm dado de arrendamento o prédio urbano indicado em 1) e pagam os respetivos impostos, à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de qualquer pessoa, com a convicção de serem os seus legítimos proprietários.
5. Há mais de 20, 30, 40 anos, os Autores e antecessores têm dado de arrendamento o prédio rústico mencionado em 3), à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de qualquer pessoa, com a convicção de serem os seus legítimos proprietários.
6. Em 1966, A. B. e A. J. declararam dar de arrendamento à Ré E. E. e ao seu marido J. B. uma cozinha com lareira, e um quarto do prédio mencionado em 1), declarando os mesmos que pagariam 80$00 (oitenta escudos) de renda.
7. Em 1970, A. B. e A. J. e a Ré E. E. e ao seu marido J. B. declararam acordar que os mesmos passariam também a habitar mais duas divisões do sobredito prédio, com o pagamento da renda de 600$00 (seiscentos escudos).
8. Em data não concretamente apurada, posterior ao referido em 6), a Ré E. E. e o seu marido J. B. efetuaram obras na casa enunciada em 1) com a aplicação de uma marquise, em prolongamento da construção então existente, mantendo no seu interior a parede primitiva em granito, a aplicação de duas portas envidraçadas na marquise bem como uma terceira porta de entrada e a cobertura desse espaço (marquise) com telha e implantação de uma casa de banho.
9. Em data não concretamente apurada, posterior ao referido em 7), a Ré E. E. e o seu marido J. B. construíram no logradouro do prédio urbano indicado em 1):
a) dois anexos, de pequenas dimensões, em tijolo e cimento e com cobertura em fibra de plástico, um destinado a lagar e o outro a arrumos, sem qualquer porta, com as áreas de 8,60 m2 e 4,50 m2
b) um anexo, mais a norte, coberto a telha, com paredes em tijolo e revestimento em cimento, com a área aproximada de 40,75 m2.
10. Em -.8.1994, faleceu J. B..
11. Em 1994, a Ré E. E. requereu a inscrição matricial em seu nome de casa de habitação indicada em 9, al. b), a qual foi inscrita na matriz sob o artigo ….
12. Em 1994, a Ré E. E. requereu a inscrição matricial em seu nome de uma casa de habitação sita em Barreiras, a qual foi inscrita na matriz sob o artigo ....
13. O descrito em 9) impede os Autores de aceder ao prédio rústico enunciado em 3).
14. Após 1994, a Ré E. E. declarou acordar pagar a renda mensal de 10,00€ com referência ao mencionado em 5) e 6).
15. A Ré E. E. pagou a renda indicada em 7) e 14) até dezembro de 2008.
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B) Factos não provados

16. Após a partilha referida em 1), a Ré E. E. passou a pagar a renda mensal de 10,00€ (dez euros) a qualquer um dos Autores, anualmente, em Julho ou Agosto.
17. Em consequência do referido em 7), 8) e 10), os Autores sentem-se tristes e humilhados.
18. Em meados do ano de 2009, os herdeiros de A. B. e AR. declararam doar à Ré E. E. a habitação descrita em 10).
19. A Ré E. E., desde Junho de 2009, passou a habitar a cada indicada em 10) com a convicção de ser proprietária da mesma, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém.
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III – Da Alteração da matéria de facto

Como resulta da identificação das questões que acaba de se efetuar, no essencial, no recurso vem impugnada a decisão sobre a matéria de facto.
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Sem embargo, e antes de mais há que dizer que, pese embora de forma nada expressa, pode entender-se que a apelante, na sua conclusão 39ª invoca uma nulidade da sentença, por estarem os fundamentos em oposição com a decisão (cfr.art. 615º nº 1 al c) do CPC), pelo que dir-se-á o seguinte.

A fundamentação da sentença tem regulamentação específica na norma do artigo 607º do CPC, que dispõe: (…)
2. A sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, fixando as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
3. Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
4. Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
Dispõe o Artigo 615º, nº1, alínea c), que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição – cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 11.1.94, Cardoso Albuquerque, BMJ nº 433, p. 633, do STJ de 13.2.97, Nascimento Costa, BMJ nº 464, p. 524 e de 22.6.99, Ferreira Ramos, CJ 1999 – II, p. 160.
Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos – cfr. Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, 2000, pg. 298.
Por outras palavras, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.3.2001, acessível em www.dgsi.jstj/pt.
Vistas as alegações da recorrente, bem como a sentença recorrida, resulta que não ocorre a nulidade prevista nesta al. c) do nº 1 do art. 615º do CPC, com o fundamento invocado pela apelante.
Com efeito, não se verifica a existência de qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, pois que na fundamentação da sentença, a Mma. Sr. Juiz a quo, segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, decide nesse sentido.
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Como se vê das alegações de recurso, desde logo, e além do mais, a recorrente questiona basicamente a decisão da matéria de facto proferida pelo tribunal recorrido no que respeita aos factos dados como provados nos pontos 3º,4º,5º, 9 e 13º, propondo que se sejam considerados não provados e que os factos ali dados como não provados nº 18 e 19 sejam dados como factos provados.
Indica os meios probatórios que impunham decisão diversa sobre os pontos supra indicados: A – O relatório pericial e as cadernetas prediais de fls. 15 e 29-30, a certidão registal de fls. 16 e as escrituras públicas de fls. 17-23 e 53- 54, as fotografias 48- verso a 50 e 52, a guia/requerimento de fls. 51 e das notas de liquidação de fls. 54-verso a 55.; B – Os testemunhos de J. T., M. E., L. R., A. F. e A. C. (que se pretendem contraditar) e as declarações de parte da ré E. E..; C - As regras da experiência comum.
Assim sendo, considera-se que a recorrente especificou os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados, especificou os motivos pelos quais não deve ser atribuído valor probatório decisivo aos meios de prova considerados pelo julgador e os meios de prova que no seu entendimento justificam decisão diversa, indicou, com transcrição dos mesmos, os depoimentos que constituem tais meios de prova e concretizou ainda o sentido da decisão que deve ser proferida quanto a tais pontos da matéria de facto.
Assim, mostram-se preenchidos todos os requisitos de que depende a impugnação da matéria de facto, sendo certo que constam dos autos todos os elementos de prova que serviram de base à decisão e, como tal, a decisão sobre a matéria de facto pode ser modificada por este tribunal da Relação (artigos 640.º e 662.º do Código de Processo Civil).
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Posto isto, em tese geral, convém, desde já, deixar algumas notas acerca da produção de prova e definir os contornos em que a mesma deve ser apreciada em 2ª instância.
Preceitua o artigo 662.º, n.º 1 do CPC, que tem por epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».

Os recursos da matéria de facto podem envolver objetivos diversificados:
- Alteração da decisão da matéria de facto, considerando provados factos que o tribunal a quo considerou não provados, e vice-versa, a partir da reapreciação dos meios de prova ou quando os elementos constantes do processo impuserem decisão diversa (no caso de ter sido apresentado documento autêntico, com força probatória plena, para prova de determinado facto ou confissão relevante) ou em resultado da apreciação de documento novo superveniente (art. 662º, n.º 1 do CPC);
- Ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio (art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC);
- Apreciação de patologias que a decisão da matéria de facto enferma, que, não correspondendo verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, se traduzam em segmentos total ou parcialmente deficientes, obscuros ou contraditórios (art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC).
Quanto a este último objetivo dos recursos da matéria de facto, diz-nos Abrantes Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª ed., pp. 291/29 que a decisão da matéria de facto pode apresentar patologias que não correspondem verdadeiramente a erros de apreciação ou de julgamento, podendo – e devendo – algumas delas ser solucionadas de imediato pela Relação, ao passo que outras poderão determinar a anulação total ou parcial do julgamento.
Como concretização de tais patologias enuncia o citado autor que as decisões sob recurso “podem revelar-se total ou parcialmente deficientes”, “resultante da falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, “de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”.
Verificado esse vício, para além de o mesmo ser sujeito a apreciação oficiosa da Relação, poderá esta supri-lo a partir dos elementos que constam do processo ou da gravação.
Pode, assim, “revelar-se uma situação que exija a ampliação da matéria de facto, por ter sido omitida dos temas da prova matéria de facto alegada pelas partes que se revele essencial para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo tribunal a quo”, faculdade esta que nem sequer está dependente da iniciativa do recorrente, bastando que a Relação se confronte com uma omissão objetiva de factos relevantes”; nesse caso, ao invés de anular a decisão da 1ª instância, se estiverem acessíveis todos os elementos probatórios relevantes, “a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na decisão da matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas”.
“Incumbe à Relação, enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”- cfr. Ac. Relação de Guimarães de 07.04.2016, disponível em www.dgsi.pt.
Contudo, sem prejuízo de uma valoração autónoma dos meios de prova, essa operação não pode nunca esquecer os princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas.
Como nos diz Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 245. “…ao nível da reapreciação dos meios de prova produzidos em 1ª instância e formação da sua própria e autónoma convicção, a alteração da decisão de facto deve ser efectuada com segurança e rodeada da imprescindível prudência e cautela, centrando-se nas desconformidades encontradas entre a prova produzida em audiência, após a efectiva audição dos respectivos depoimentos, e os fundamentos indicados pelo julgador da 1ª instância e nos quais baseou as suas respostas, e que habilitem a Relação, em conjunto com outros elementos probatórios disponíveis, a concluir em sentido diverso, quanto aos concretos pontos de facto impugnados especificadamente pelo recorrente; Em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida - que há de ser reanalisada pela Relação mediante a audição dos respectivos registos fonográficos -, deverá prevalecer a decisão proferida em 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso, nessa parte.”
Ou seja, na reapreciação da prova pela 2ª instância, não se procura obter uma nova e diferente convicção, mas antes verificar se a convicção do Tribunal a quo tem suporte razoável, à luz das regras da experiência comum e da lógica, atendendo aos elementos de prova que constam dos autos, e aferir, assim, se houve erro de julgamento na apreciação da prova e na decisão da matéria de facto, sendo necessário, de todo o modo, que os elementos de prova se revelem inequívocos no sentido pretendido pelo recorrente, impondo, pois, decisão diversa da proferida pelo tribunal recorrido – art. 640º, n.º 1 al. b), parte final, do CPC.
Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações da recorrente e recorridos, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Em suma, a este tribunal da Relação caberá apurar da razoabilidade da convicção probatória do tribunal de primeira instância, face aos elementos de prova considerados, sem prejuízo, como supra referido, de, com base neles, formarmos a nossa própria convicção.
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Em termos gerais, a recorrente alega que a decisão deu como provada os pontos 3º,4º,5º, 9 e 13º, factos com referência à pi,. e como não provados nº 18 e 19, factos referidos na contestação, por ter, em resumo:

a) ignorado e não ter devidamente valorizado o depoimento de parte da R ( a qual afirmou que o barraco por si edificado no logradouro em frente à casa de habitação foi implantado em domínio público e evoluiu para uma casa de habitação cuja inscrição foi feita sem oposição de ninguém e conhecimento de todos, encontrando-se inscrito na matriz; e a parte da habitação anteriormente arrendada é da sua propriedade também por inversão do título de posse e desde que os proprietários lhe doaram essa parte e um senhor das finanças lhe disse que a “ casa é automaticamente sua” por ter sido inscrita na matriz ) e do confronto com os documentos juntos aos autos e depoimento de parte da autora conclui-se o contrário quanto à existência e propriedade do logradouro ser dos AA;
b) e não valorizou devidamente os depoimentos testemunhais ( J. T., M. E., L. R., A. F. e A. C.- estas últimas pretende contraditar), conjugados com o teor dos documentos juntos aos autos, nomeadamente a certidão de registo predial, as cadernetas prediais e demais documentos ( planta topográfica e fotos)- dos quais resulta que a área descoberta e logradouro que os AA dizem ser proprietários não se encontra corroborada por qualquer outra prova, não constando daqueles documentos, e dos quais apenas resulta a propriedade dos AA do prédio nº ..., sendo certo que as regras da experiência dizem que os AA nunca iriam permitir a edificação de uma casa de habitação no seu logradouro e que a mesma estivesse, como está, inscrita na matriz; a perícia realizada é inócua e apenas demonstra atualmente o local, nada trazendo de novo aos autos.
c) Conclui, em termos de matéria de direito, que não fazendo prova da propriedade do logradouro pelos documentos ( caderneta e registo predial), apenas poderiam os AA adquirir a mesma por usucapião, que não invocam.

Em termos gerais, a recorrente alega que os AA não produziram prova que atestasse a sua propriedade do logradouro e, por outro lado, a decisão não valorizou devidamente o depoimento de parte da ré, conjugado com o teor da inscrição matricial junto aos autos, os quais atestam a propriedade da sua casa de habitação e logradouro, tudo há mais de 20 anos.

Ouvida aquela prova pessoal produzida em audiência e analisada a documentação dos autos, a R, ora recorrente, não tem, no essencial, razão.
Vejamos.
Antes de mais, importa ter presente que, essencialmente, e para além da questão da alteração do locado com a construção da marquise e casa de banho (questão apenas discutida em sede de matéria de direito, e oportunamente analisada), o cerne da questão da impugnação da decisão da matéria de facto tem por base apenas saber se faz parte integrante do prédio registado a favor dos AA um logradouro, área da mesmo e localização e ainda se a Ré logrou demonstrar ter invertido a posse da casa de habitação arrendada.
A apelante pretende que se alterem aqueles segmentos dos factos dados como provados nos pontos 3º,4º,5º, 9 e 13º, factos com referência à pi,. e como não provados nº 18 e 19, factos referidos na contestação, porquanto esta pretensão tem na sua base a alegação e conclusão da recorrente de que aquele logradouro ( onde foram feitas por si construções era de domínio público), localizado à frente da casa de habitação, e esta casa de habitação são da sua propriedade. Sustenta que estes factos se retiram do teor das inscrições matriciais donde consta a inscrição em seu nome do barraco feito no logradouro e da casa de habitação e do seu depoimento de parte, nos termos do qual afirmou que percebeu a certa altura que lhe tinham doado a casa de habitação anteriormente arrendada.

Neste particular, a sentença motiva as respostas dadas àquela matéria de facto nos seguintes termos:
No que concerne aos factos 3) a 5), 9) e 13), sopesaram-se, conjugadamente, as declarações da Autora M. C. e das testemunhas M. E., J. T., M. Q., A. S., L. R., A. F. e A. C.., em concatenação com valoração do relatório pericial, sendo que não foram produzidas contraprovas.

No que tange aos factos 18) a 19), o naufrágio probatório dos mesmos decorreu desde logo das declarações da Ré, a qual assinalou que não efetuou negócios com os Autores, nem com os seus antecessores, e enunciou que só deixou de paga a renda porque passou a pagar o IMI, sendo que não foram produzidas quaisquer provas testemunhais ou documentais que confirmassem o vertido na contestação.

No que se atem Autora M. C., ab initio, abordou sumariamente a tipologia da casa que pertenceu aos seus pais, sita no Bairro ..., mencionando a decomposição da mesma em três partes e referenciando medianamente o entorno do arrendamento de uma das partes da casa pela Ré e pelo seu marido.
Concomitantemente, a Autora sublinhou com plausibilidade a existência de um pátio à frente da casa, utilizado, nomeadamente, como estrumeira, e assinalou que a Ré construiu um anexo no mesmo, o que se compagina substantivamente com as fotografias e a topografia vertidas no relatório pericial, no qual é linearmente percetível que o antedito anexo foi edificado na faixa de terreno que intercorre entre a casa dos Autores e a rua, indiciando-se sustentadamente que a predita faixa, ante a respetiva localização e tipologia, configurava o sobredito pátio do prédio, o que se coaduna encadeadamente com o referido pelas testemunhas M. E., J. T., M. Q., A. S., L. R., A. F. e A. C..
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A Ré E. E. abordou minimamente o contexto em que a mesma e o marido arrendaram parte da casa brandida pelos Autores aos primitivos proprietários, A. B. e A. J., e enunciou medianamente as sucessivas obras efectivadas, v.g., a marquise, a casa de banho e o anexo/barraco.
Ademais, a Ré atascou-se em proposições perplexizantes, indicando “não saber” quem inscreveu a casa no nome dela e referenciando que o Sr. J. da Junta de Freguesia disse que a casa “automaticamente era dela”, atascando-se num manto de insubsistência explicativa.
Enfatize-se que a Ré não deduziu quaisquer circunstâncias constitutivas da “doação” na contestação e tampouco de uma eventual inversão do título de posse, referindo que não efetuou negócios com os Autores, nem com os seus antecessores, e enunciou que só deixou de paga a renda porque passou a pagar o IMI, o que elide de forma insanável a tese vertida na contestação.
Sublinhe-se, outrossim, que, relativamente ao “barraco” que a Ré edificou e que admitiu que inscreveu na matriz, a mesma não logrou explanar a afetação histórica do respetivo terreno e tampouco aflorou a tese rocambolesca da “desafectação do domínio público municipal” exposta na contestação, i.e., a Ré não deduziu circunstâncias suscetíveis de contraditar que a faixa de terreno onde foi erigido o “barraco” pertencia ao prédio dos Autores.
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No que se refere às testemunhas M. E., J. T., M. Q., A. S. e L. R., num primeiro plano de análise, efetivaram declarações objetivadas, aduzindo a respetiva razão de ciência, a qual se prefigurou contextualmente sustentada relativamente à casa dos Autores sita no lugar ..., procedendo a uma descrição historicamente sedimentada da mesma com referência aos anos setenta, v.g., aflorando a sua “decomposição” em partes que foram preteritamente arrendadas a diferentes pessoas e enunciando fundadamente quer o quadro subjacente ao arrendamento da Ré E. E. e do seu marido quanto à predita casa, quer o modus operandi do pagamento da renda, em sede de narrativas eivadas de inerente verosimilhança, curando-se de matéria matizadamente reconhecida pela Ré (em sede de contestação).
Ademais, numa segunda vertente de aferição, as testemunhas enunciaram fluentemente a existência de um pátio/quinteiro junto da casa, que era utilizado como estrumeira e local de colocação da lenha, assinalando com plausibilidade que tal faixa de terreno confrontava com o caminho e que corresponde ao local onde a Ré erigiu o propalado anexo, matéria que se prefigura marcadamente consonante com as fotografias e a topografia vertidas no relatório pericial, no qual é visível que o mesmo foi edificado à frente da casa dos Autores, na área de confinância com a rua e se compagina com o indicado linearmente pela testemunha A. F., sendo que não foram produzidas contraprovas minimamente fundadas.
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Relativamente às testemunhas A. F. e A. C., positivaram depoimentos eivados de tangível naturalidade, mencionando com entorno fáctico e plausibilidade objetiva quer o lapso temporal inerente ao arrendamento de parte da casa dos Autores pela Ré e marido, quer as sucessivas obras implementadas pelos mesmos, v.g., a casa de banho e os anexos, matéria outrossim discorrida na contestação.
Acresce que as testemunhas sublinharam a qualidade de arrendatária da Ré, não dimanando quaisquer circunstâncias suscetíveis de indiciar a doação alardeada pela Ré.
Concomitantemente, as depoentes enunciaram com naturalidade que existia uma faixa de terreno entre a casa dos Autores e a estrada, admitindo matizadamente que tal área corresponde ao local onde a Ré edificou o predito anexo, sendo que a testemunha A. F. explicou meriodianamente que tal espaço, que designou como “terreiro”, pertencia à casa dos Autores, o que se coaduna com a configuração vertida no relatório pericial e com o mencionado pelas testemunhas M. E., J. T., M. Q., A. S. e L. R..
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A testemunha António não emanou cognição atinente à matéria nuclearmente controvertida, efetuando um depoimento inócuo.
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As cadernetas prediais de fls. 15 e 29-30, a certidão registal de fls. 16 e as escrituras públicas de fls. 17-23 e 53-54 afiguram-se dotadas de força probatória plena atinente aos factos registados e fiscalmente inscritos e aos percepcionados directamente pelo oficial público que exarou as escrituras, v.g. o registo predial enuncia um específico direito real e a matriz predial indica que um prédio está inscrito na autoridade tributária e aduaneira em nome de uma determinada pessoa com finalidade estritamente fiscal, nos termos dos arts. 369.º/1, 370.º/1 e 371.º/1, do Código Civil (quorum notitiam et scientiam habet propiis sensibus, visus et auditus), aferindo-se, assim, que a referenciada força probatória do registo predial não congloba os elementos descritivos dos prédios, v.g., as áreas, limites, confrontações (vd. Acórdão do STJ de 27.3.2014, proc. n.º 555/2002.E2.S1, in www.dgsi.pt ).
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O levantamento topográfico de fls. 24 prefigura uma contextura do prédio dos Autores que se antolha convergente com o certificado no relatório pericial.
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No que tange à avaliação pericial, afigura-se objetivamente fundada e não foi impugnada pelas partes, consagrando uma posição cristalinamente sustentada em parâmetros claros, suficientemente fundamentados e congruentes, configurando-se, assim, consistente e subjetivamente fiável no âmbito da determinação da topografia e especificações descritas do imóvel referenciado nos autos, das suas edificações e logradouro, atestando, designadamente, que:

i) A área total do prédio é de 330,00 m2;
ii) O “correr de casas” indicado na petição inicial corresponde à área de 195,00 m2 (edifícios 1 e 2);
iii) A construção mais recente (casa) implantada a Norte tem à área de 40,75 m2 (edifício 4);
iv) Existem, igualmente, duas construções/arrumos com as áreas de 8,60 m2 e 4,50 m2 (edifícios 3 e 5);
v) É visível um acesso pedonal através de umas escadas ao prédio rústico indicado na petição inicial (condicionado pela existência de um portão), como vestígio cristalino do logradouro do prédio dos Autores, o que corrobora o referenciado pelas testemunhas M. E., J. T., M. Q., A. S., L. R., A. F. e A. C..
vi) O antedito logradouro tem a área de 135,00 m2.
vii) No sobredito logradouro, foram erigidos os edifícios 3, 4 e 5;
viii) As construções erigidas pela Ré e marido impedem os Autores de aceder ao prédio rústico enunciado em 3).”

Vejamos, então, se dos depoimentos invocados pela recorrente, e sem olvidar as considerações prévias, quanto a tal, já acima explanadas, existem motivos para que as supras mencionadas respostas sejam modificadas ou alteradas.

Ora, ouvidos, na íntegra, todos os depoimentos prestados pelas testemunhas que depuseram acerca desta questão e apontadas pela recorrente, resulta que as mesmas, de relevante, referiram o seguinte:

- J. T., 72 anos, sempre ouviu dizer, toda a sua vida, que aquelas 3 casas pertenciam ao “ AR.” ( avô dos ora AA); afirmou que quando era criança passava todos os dias por aquele local e sempre viu que ali para além de terem morado os anteriores proprietários (AR.) também viviam “os inquilinos”, inclusive a Ré (a irmã da testemunha, e várias outras famílias) e todos utilizavam a frente das casas até ao caminho ( do lado esquerdo até à mata do carvalhal) um quinteiro, pátio, logradouro e era exclusivo dos ali habitantes, os quais colocavam lá lenha.
- M. E., distribuía a correio e recorda-se da “estrumeira” ( onde hoje há uma construção) em frente das casas, “ no correr das casas” (sendo que numa das 3 casas morava a ré), e que era utilizada pelos habitantes da “ casa ...” como estrumeira, espaço esse que vinha até ao caminho da carvalhada ou carvalhal, único caminho lá existente e que corresponde hoje à rua; nunca ouviu que aquilo era da ré, mas sim dos AA e lembra-se dos “velhotes” ( referindo-se aos avós dos AA, “a tia A. B. e o velhote”), os quais utilizavam o logradouro, ali colocando lenha, esterco e animais (galinhas), pelo que concluiu “ o direito das pessoas que lá moraram devia ser o mesmo dos velhotes”.
- L. R., trabalhou, por conta da família dos AA, no terreno atrás das casas, em 1968/69 e recorda-se das casas arrendadas e do pátio com a estrumeira em frente das casas e por onde passava para ir trabalhar o prédio rústico.
- A. F., 56 anos, foi vizinha da ré, porquanto morou numa das casas arrendadas à sua mãe e sempre ouviu dizer que “aquilo pertencia à srª A. R.” e que todos pagavam-lhe a renda (inclusive a sua mãe e a Ré); afirmou perentoriamente que “ espaço em frente das casas pertencia às casas”, e ainda não havia barraco, o qual ouviu dizer que foi construído pelo Ré, bem como todas as obras que a mesma fez para melhorar a casa, como o telhado, casa de banho. Não se lembra da estrumeira, mas só de um tanque e ribeiro que ali passava e ainda do caminho em frente das casas, por onde passavam os moradores e família C..
-A. C., 54 anos, foi vizinha da ré, e recorda-se do barraco construído em frente das casas e que ocupa o terreno que fazia parte do pátio que pertencia só às casas ( era para brincar e só para os ali moradores das casas). Não se recorda da estrumeira.

Analisados estes depoimentos, sufragamos a “leitura” que dos mesmos foi feita em 1.ª instância, aceitando os argumentos ali expendidos para justificar a demonstração da matéria em causa, que se resume à questão de saber se o logradouro descrito nos autos e que se desenha na frente das casas faz parte do prédio, hoje, dos autores e ainda se a Ré logrou demonstrar a propriedade da casa por si habitada e construções por si edificadas no terreno correspondente ao dito logradouro ( que na sua versão era um terreno baldio, camarário) e inscritas na matriz em seu nome.
Todas as pessoas ouvidas foram unânimes em considerar que o referido logradouro é parte integrante do prédio, atualmente, dos autores, especificando as razões em que assentam tal convicção e que acima se deixaram referidas.
Efetivamente, dos depoimentos prestados, sem exceção, resulta que só os habitantes das casas da barreira ( e casas essas fisicamente autónomas, mas que constituem um só prédio urbano), ocuparam e/ou utilizaram o logradouro em causa, inicialmente como estrumeira e posteriormente como “depósito” de lenha, e local de convívio para as crianças brincarem, sendo certo que apenas ali passavam os moradores, e a família C. ( morava acima das casas), sendo certo que os moradores ou eram inquilinos ou eram os familiares dos AA ( seus avós, Srª A. B. e Sr. AR.).
Estes depoimentos corroboraram as declarações de parte da autora e, nessa medida, compreende-se a valoração das mesmas e desvalorização das declarações de parte da Ré, absolutamente contrárias àquela prova, nomeadamente quando afirmava que “ eles só tinham da porta para dentro e parte de fora era tudo camarário”, referindo-se à utilização que era dada pelos inquilinos e proprietários das casas da barreira.
Vejamos, então o que dizer da valoração das declarações de parte da autora em face das declarações de parte da Ré.
Antes porém, façamos um parêntesis, para recordarmos os concretos parâmetros de valoração das declarações de parte e a função da mesma como meio de prova no processo.
Nos termos do Artigo 466º, nº3 do Código de Processo Civil, o tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.
Esta liberdade de valoração, todavia, nada nos diz sobre os concretos parâmetros de valoração das declarações de parte nem sobre a função da mesma como meio de prova no processo.
Assim, a doutrina e a jurisprudência vêm assumindo várias posições no que tange à função e valoração das declarações de partes.

O Ac. do TRL n.º 18591/15.0T8SNT.L1-7, de 26-04-2017 ( Relator Luís Filipe Pires de Sousa) pronunciando aprofundadamente sobre a questão, expõe três teses essenciais:
i.-Tese do caráter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos;
ii.-Tese do princípio de prova;
iii.-Tese da autossuficiência das declarações de parte.

Neste acórdão pugna-se abertamente pelo carácter autónomo da prova por declarações de parte, transcrevendo o Relator as posições doutrinárias que já antes havia expressado nas suas publicações.
Sem embargo da existência das indicadas divergências doutrinais e jurisprudenciais, pela nossa parte, aderimos à doutrina e jurisprudência que admite a prova por declarações de parte como sendo uma prova autónoma, que vale plenamente para a formação da convicção do juiz, ainda que não se apresente acompanhada de mais elementos de prova.
Tal entendimento, para além de mais consentâneo com os (amplos) termos em que a prova por declarações de parte é admitida no CPC ( em face da revisão de 2013), parece também ser o único que cumpre as exigências da garantia de uma tutela plena e efetiva.
Para este último efeito, basta pensar naquelas situações em que inexistam outros meios que sejam idóneos à comprovação da factualidade que se alegou.
Conforme se lê no citado acórdão “Num sistema processual civil cuja bússola é a procura da verdade material dos enunciados fáticos trazidos a juízo, a aferição de uma prova sujeita a livre apreciação não pode estar condicionada a máximas abstratas pré-assumidas quanto à sua (pouca ou muita) credibilidade mesmo que se trate das declarações de parte. Se alguma pré-assunção há a fazer é a de que as declarações de parte estão, ab initio, no mesmo nível que os demais meios de prova livremente valoráveis. A aferição da credibilidade final de cada meio de prova é única, irrepetível, e deve ser construída pelo juiz segundo as particularidades de cada caso segundo critérios de racionalidade.”
Porém, correspondendo a prova por declarações de parte a uma “prova interessada”, a maior valoração que possa ser atribuída a este meio de prova terá também de estar, sempre, alicerçada na exteriorização de um depoimento que se afigure imparcial e isento, por que a parte depoente se mostre relativamente desapegada da realidade que a envolve e narre os factos sobre os quais depõe com aparente serenidade e correção.
Igualmente, para essa maior valoração será essencial que aquele depoimento se faça sem contradições ou hesitações ou confusões.
Igualmente, se no caso concreto existirem outros meios de prova “mais fortes” que possam ser apresentados pela parte, o recurso à prova por declaração de parte deve ser valorado nessa mesma medida ou tomando em atenção a existência daquela possibilidade.
Ou seja, a maior valoração que deva ser dada à prova por declaração de parte, ou a sua autonomia, há de ser apreciada à luz do caso concreto e da necessidade da parte de lançar mão àquele meio de prova para poder fazer valer o seu direito.

Fechado o parêntesis, e volvendo ao caso sub judicio, diremos novamente que apenas as declarações de parte da autora foram corroboradas pelos depoimentos testemunhais produzidos em audiência de julgamento e que revelaram-se objetivos, claros e sem qualquer interesse na causa.
Por outro lado, em face de tal prova, as declarações de parte da Ré, sem qualquer outra comprovação, não resultaram verosímeis quando não sabia explicar porque razão a casa de habitação a si arrendada estava inscrita na matriz no seu nome ( e assim era automaticamente sua, nas palavras de alguém da junta de freguesia), bem como o barraco (apenas admitindo em relação a este que o inscreveu no seu nome, mas não sabia explicar porque razão ou a que título ou sequer a tese da desafetação do domínio público), sendo certo que não demonstrou, por si ou por qualquer outro meio de prova, ter ocorrido a propalada, na contestação, doação dos AA e por si intuída quando estes a abordaram para sair do locado com uma indemnização, o que foi rejeitado pela mesma, pelo que nada mais tendo sido dito pelos AA a Ré pensou que lhe foi doado(!).
Acresce que diz ter deixado de pagar a renda quando passou a pagar o imposto, mas reporta o não pagamento da renda ao ano de 2008/2009 e as inscrições matriciais datam de 1994, pelo que porventura e com certeza teria iniciado o pagamento do imposto mais cedo.
Em suma, tudo aponta, como considerado em 1.ª instância, para que se conclua que, efetivamente, o logradouro em apreço, faz parte do prédio, hoje, dos autores, sendo certo por outro lado que a Ré não logrou provar quer a tese da desafetação do domínio público do dito logradouro, quer a tese da propriedade por usucapião e inversão da posse em relação à casa de habitação por si arrendada aos avós dos AA.
De resto, nem isso se impõe pelo facto de nas descrições matriciais se fazer constar o nome da Ré como sendo a proprietária dos dois prédios com aquelas confrontações e áreas, dado que as mesmas não contêm virtualidades para definir a propriedade dos prédios, quanto mais áreas e limites; bem como, igualmente, isso não resulta do teor de qualquer documento autêntico, como uma escritura, nem sequer da presunção do registo predial.
Destarte, no que respeita ao teor das certidões da matriz em nome da Ré ( sem qualquer título e sem qualquer registo), as mesmas não contêm virtualidades para que a referida matéria de facto seja alterada, uma vez que as certidões matriciais, por si só, carecem de qualquer relevância presuntiva da propriedade para efeitos civis.
Em verdade, estas apenas gozam de presunções para efeitos fiscais mas não para efeitos civis, dado que nos termos do CIMI, se presume proprietário para efeitos fiscais, quem como tal figure ou deva figurar em 31 de Dezembro do ano a que respeite a contribuição.
Os elementos matriciais apenas contêm a virtualidade de obter relevância civil indiretamente, através dos registos prediais, com os quais se devem harmonizar (cf. artigos 28.º a 32 do Cód. de Registo Predial – neste sentido, Luís Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, Quid Iuris, Lisboa, 2001, pág. 122, nota 1 e citado in AC da RC de 06-12-2016).
Mesmo no que se refere ao registo predial e presunção daí decorrente, não se pode olvidar que, cf. artigo 7.º do Código de Registo Predial: “O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define”.
Assim sendo, quem beneficia da presunção decorrente da inscrição no registo não precisa de provar o facto a que ela conduz, tal como decidido, entre outros, no Acórdão da Relação de Lisboa, de 18/12/86, CJ, 1986, 5, pág. 156 e citado no AC da RC de 06-12-2016, in dgsi.
Lê-se neste aresto: citando Isabel Pereira Mendes, in Estudos Sobre Registo Predial, Almedina, 1997, a pág.s 87 e 88 “…, o Registo Predial, …, visa a defesa dos direitos privados. Assim, estabelecendo a presunção “juris tantum” da existência dos direitos inscritos (legitimação), nos precisos termos em que o Registo os define, a favor dos respectivos titulares, garante a estes a inoponibilidade dos factos não inscritos e incompatíveis, a não ser nos casos em que o registo seja previamente cancelado, por inválido”.
No entanto, como se refere na mesma obra a pág.s 98 e 99, “… no nosso sistema de registo, a presunção registral não pode abranger a totalidade dos elementos de identificação dos prédios, que continuam sujeitos a uma eventual rectificação ou actualização”, asserção que constitui jurisprudência, há muito, uniforme e pacífica (como ali se exemplifica), ficando, pois, fora da presunção registral, a configuração, área, composição ou confrontações dos prédios tal como foram registados.( sublinhado nosso).
Pelo que, o registo efetuado em nada releva para efeitos de saber da real configuração do prédio, designadamente quanto à questão de saber se a faixa de terreno/logradouro em questão é parte integrante do prédio dos autores.

Ora, no caso sub judicio, do registo predial não consta qualquer referência ao dito logradouro situado em frente às casas que compõe o prédio urbano com o art. ..., nem na matriz consta tal referência.
Sem embargo, os AA alicerçam a sua pretensão na base da alegação de beneficiarem do registo a seu favor do dito prédio urbano e também na aquisição originária do mesmo e com logradouro como parte integrante do mesmo e com área que reivindicam, por usucapião ( ao contrário do que sustenta a ré nas alegações de recurso quando afirma que a usucapião não é invocada).
Por outro lado, provaram a sua alegação, pois mais que não é a alegação da aquisição originária do que o que ficou a constar como factos provados nos pontos 3,4,5, os quais por sua vez correspondem à alegação aduzida na petição inicial, conforme analisaremos mais adiante.
Ou seja, da prova testemunhal acima analisada e que corroborou as declarações da autora é manifesto que, contrariamente ao que defende a ré, a atuação material dos AA recorridos e seus antecessores sobre o espaço/logradouro em causa nos autos, e com as dimensões reproduzidas no relatório pericial, ocorreu em nome próprio e na convicção de estarem a exercer um direito próprio (na qualidade de proprietários), à vista de todos e sem qualquer oposição, ainda que, a partir de certa altura, através apenas dos arrendatários que lá moravam como a ré.
A perícia serviu, in casu, para objetivar as dimensões reais do prédio, construções nele edificadas e logradouro em causa, as quais resultaram verosímeis por serem as de sempre, atentos os depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência e que confirmaram, há mais de 40 anos, a localização das casas da barreira ( que apesar de fisicamente serem autónomas pertenciam a um só prédio) e o logradouro “no correr das casas” e construções ali edificadas, bem como o acesso pedonal ao terreno rústico localizado atrás do prédio urbano, sendo certo que a perícia relata as dimensões com referência às construções e localização do prédio e logradouro referidos por todas as testemunhas e pela a autora, em declarações.
Por outro lado, a Ré não logrou provar a factualidade por si alegada e consubstanciadora da inversão da posse em relação à casa de habitação e edificações por si construídas e/ou aquisição por usucapião do logradouro onde edificou as construções lá existentes e que descreveu como sendo terreno baldio ou público, a que desde logo se oporia o disposto no art. 202º,nº2 do CC.
Em suma, diremos que mostrando-se a matéria de facto dada como provada, de cujos factos foi posta em causa a sua não demonstração, devidamente fundamentada, não se revelando arbitrária nem discricionária, estando em conformidade com o que resulta da prova gravada, bem como da prova documental e pericial e regras da experiência comum e lógica dos comportamentos normais, entendemos não proceder a qualquer modificação da factualidade que vem dada como provada e não provada, improcedendo, por tal, o recurso quanto à impugnação da matéria de facto.
Nestes termos, nesta parte, haverá o recurso que improceder.
Apenas, no que respeita à redação dos pontos 18 e 19 dos factos não provados, deverá ser retificada a menção “à casa de habitação descrita em 10)”, por padecer de lapso manifesto, deverá passar a ler-se “casa de habitação descrita em 1) e 6) e7)”.
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Considerando que não houve nenhuma alteração introduzida na decisão relativa à matéria de facto, a factualidade (provada) a atender para efeito da decisão a proferir é a já constante de III, com a retificação supra aludida.
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2. Reapreciação de direito.

2.1.Cabe agora verificar se deve a sentença apelada ser revogada/alterada, em razão da pretendida alteração da decisão relativa à matéria de facto proferida pelo tribunal a quo – no seguimento da impugnação da ré/apelante - decidindo-se pela improcedência dos pedidos principais da ação.
Como resulta das conclusões do recurso da R/apelante, é manifesto que a pretendida alteração da decisão de direito dependia em parte da modificação/alteração da decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal a quo, o que não ocorreu.
Contudo e ainda assim, vejamos a seguinte questão suscitada pela apelante, a respeito do logradouro: se a presente ação deve ser julgada improcedente, por os autores não terem logrado demonstrar os factos constitutivos do direito de propriedade a que se arrogam, sobre o logradouro em causa, designadamente, por não se verificarem os requisitos da usucapião.
Com efeito, a recorrente alega o seguinte: em face da matéria de facto alegada que, no seu entender, deve ser dada como provada e não provada, se tem de concluir que não pode proceder a ação, por os autores não terem provados os factos constitutivos do direito que se arrogam sobre o logradouro em causa, com as consequências que daí advêm, designadamente, não lhes podendo, em consequência, ser reconhecido o direito de propriedade sobre o questionado logradouro.
Como é óbvio, e tal como já referimos, a procedência desta questão do recurso estava na total dependência do sucesso que a recorrente obtivesse no que toca ao recurso da matéria de facto a respeito.
Improcedendo, como improcedeu, a sua pretensão nesta parte e mantendo-se, em consequência, a matéria de facto dada como provada e não provada em 1.ª instância, ou seja a demonstração de que os autores e antepossuidores exerceram os supra descritos atos de posse sobre o referido logradouro, estando este integrado no prédio de que são proprietários tem, fatalmente, a presente ação de proceder, como procedeu, na parte respeitante ao reconhecimento da propriedade do logradouro.
Os autores fundamentam, como já referido, a sua pretensão na aquisição do direito de propriedade sobre a descrita faixa de terreno/logradouro, com base na usucapião, ao contrário do sustentado pela recorrente.
Mais se diga que ainda que não se entendesse que assim foi expressamente invocado, atenta a alegação aduzida pelos AA ( e dada como provada), sempre seria de assim se concluir ainda que tacitamente, o que é legalmente possível ( vide neste sentido, acerca da invocação tácita da usucapião, AC RE de 20-03-2007, in dgsi).
Ora, a usucapião mais não é do que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo, desde que se revista de determinadas características e durante certo período temporal – cf. artigo 1287.º CC.
No que às características da posse tange, de acordo com o disposto nos artigos 1258.º a 1262.º, do CC, pode a mesma ser titulada/não titulada, de boa ou má fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta, o que tem relevância para a quantificação do prazo reputado de suficiente para que se verifique a usucapião – cf. artigos 1294.º a 1296.º, CC, sendo que o prazo para que a usucapião se possa iniciar não se conta enquanto permanecer uma situação de posse violenta ou tomada ocultamente – cf. dispõe o artigo 1297.º CC.
Traçado este quadro teórico, vejamos, então, se em face dos factos alegados e demonstrados se pode concluir que os autores adquiriram o invocado direito de propriedade sobre o identificado logradouro, integrante do seu prédio, através da usucapião.
Ora, compulsados estes, é manifesto que assim sucede.
Em verdade, atentos os factos dados como provados nos pontos 3 a 5, pode-se concluir que os AA adquiriram o invocado direito de propriedade sobre o logradouro com as dimensões constantes do ponto 3, integrante do prédio identificado no ponto 1, através de usucapião.
Isto porque de acordo com tal factualidade, demonstrou-se que os autores, por si e antepossuidores o vêm utilizando e fruindo, de forma exclusiva, há mais de 40 anos, desde então tendo vindo a praticar os atos de posse ali melhor descritos, pois ao darem de arrendamento o prédio referido no ponto 1), também deram de arrendamento o seu logradouro, conforme ressuma do ponto 5 dos factos provados, à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém e com a convicção de serem legítimos proprietários.
Dir-se-á ainda que a alteração das áreas do prédio em causa (introdução de área descoberta e respeitante ao logradouro e áreas cobertas, tal como consta do ponto 3), quando em sede de descrição matricial nada se referia a respeito, em nada influi no desfecho da ação.
Como já acima assinalado, as descrições/referências matriciais em nada influem com a demonstração da posse e propriedade sobre um determinado bem.
E muito menos se pode considerar que a posse só se inicia aquando desta alteração.
Não, o que releva, como é óbvio, parece-nos, é o exercício dos poderes de facto, sobre aquela concreta realidade (física) predial, independentemente, da forma como a retrata/descreve a matriz predial, do que decorre que para efeitos de sucessão e/ou acessão na posse, a mesma se conta, no caso, desde há mais de 40 anos, em conformidade com o disposto nos artigos 1255.º e 1256.º, ambos do Código Civil.
Ora, tudo isto a respeito do logradouro e edificações ali construídas pela Ré, não se tendo provado que foi com autorização dos AA, sempre seriam ilícitas e suscetíveis de serem retiradas.
A respeito da casa de habitação que lhe havia sido arrendada, diremos que a R não logrou demonstrar a inversão do título de posse.
Na sua tese, adquiriu a propriedade do aludido prédio ou parte do mesmo e correspondente à casa de habitação que lhe foi arrendada pelos avós dos AA, uma vez que na sua tese o teria possuído, de forma pacífica, e desde pelo menos 2008/2009 por inversão do título de posse.
Ora, como supra mencionamos, só as coisas que são possuídas, em princípio, serão suscetíveis de serem usucapidas, pois os detentores e/ou possuidores precários não podem adquirir para si por usucapião o direito possuído, a não ser que haja inversão do título de posse, e neste caso, o tempo necessário para usucapir, começa a correr desde a data da inversão do título, artigo 1290º, do CCivil, cfr Ac STJ de 7 de Abril de 2011 (Relator Hélder Roque), in www.dgsi.pt.
Contudo, a inversão por oposição do detentor do direito contra aquele em cujo nome possuía impõe que o primeiro torne, diretamente, conhecida da pessoa em cujo nome possuía, a sua intenção de atuar como titular do direito, sendo uma oposição categórica, traduzida em atos positivos, materiais ou jurídicos, mas inequívocos, o que no caso vertente nunca ocorreu, nem poderia ter ocorrido, posto que a Ré apenas alegou, em declarações de parte, que estava convencida de que era proprietária por ter inscrito na matriz em seu nome a casa de habitação e logradouro.
Sem embargo, não chega o convencimento dos atos de posse, mas a convicção que os concretos atos praticados transmitem ao público sobre a natureza do direito que está a ser exercido e tal factualidade nem sequer foi alegada e ventilada pelas testemunhas ouvidas, para quem a Ré sempre ocupou a casa de habitação e logradouro como arrendatária.
E não se diga que as regras da experiência comum ditam que quem faz como a ré fez um barraco e posteriormente edificou com tijolo e telhado no mesmo local uma casa de habitação age com convicção de proprietário e aos olhos do público em geral detém essa qualidade. Em verdade, aos olhos das testemunhas ouvidas a Ré sempre ocupou tudo como arrendatária e ninguém afirmou julgar ser a R proprietária de coisa alguma.
Assim sendo, o facto de a R estar convencida de que erradamente pensava que o prédio também lhe pertencia, bem como todas as edificações por si construídas no terreno dos AA, não é suficiente para adquirir por usucapião o direito de propriedade sobre este prédio, mesmo que se verifiquem todas as outras características da posse indispensáveis à ocorrência da usucapião, mas que in casu nem sequer ocorrem.
Assim sendo, a presunção do registo a favor dos AA não cede perante a posse da Ré por não ser posse suscetível de conduzir à usucapião, o que não se verifica, in casu.
Já não concordamos com a sentença no enquadramento que fez a respeito da pretensão restitutiva do prédio no estado que se encontrava, a qual tem de ser entendida “cum grano salis”.
A sentença fala de uma denuncia tácita do contrato e nessa medida de uma cessação da relação contratual e percorrendo a alegação aduzida na p.i. e pedidos formulados não encontramos sequer um vislumbre de tal pretensão e enquadramento. Outrossim, pretendem os AA a demolição das edificações feitas pela Ré, mas não só as mencionadas no ponto 9 ( apenas as que a sentença condenou), mas também as referidas no ponto 8 ( vide arts. 19º e 20 da pi e alínea c) do pedido, devendo ser entendido o pedido da alínea b) de restituição do prédio no estado em que se encontrava de acordo com a restante alegação aduzida na pi., ou seja, demolição daquelas edificações e não como consequência de uma cessação do contrato até porque seria sempre contraditória com o pedido de pagamento das rendas, ou seja, o pedido de cumprimento do contrato).

Mais se consigna o seguinte:
Como já analisámos as edificações feitas pela Ré no logradouro e referidas no ponto 9 dos factos dados como provados e sem autorização dos AA são ilegais e nessa medida seriam suscetíveis de serem demolidas.
As obras referidas no ponto 8 dos factos provados ( marquise e casa de banho),é inequívoco tratar-se de alterações no locado ( se bem que a casa de banho seria sempre considerada uma obra necessária), a necessitar de autorização do senhorio, contudo, uma vez que estavam à vista de todos ( pois são obras exteriores), foram sempre do pleno conhecimento dos AA e seus antecessores, e não foram alvo de qualquer oposição durante anos, sendo certo que se trata de um locado com muitos anos e que nunca sofreu qualquer intervenção por parte do senhorio e sempre foi conservado pela ré.
Tendo por base o raciocínio exposto, temos que concluir que foram objeto de um consenso informal a posteriori, sendo a invocação da reposição até uma situação que configura um exercício abusivo do direito, nos termos do artigo 334.º.
A não oposição dos AA e seus antecessores, nada dizendo após tantos anos, criaram na Ré a legítima expetativa que estes aceitaram as alterações, não exercendo o direito, apenas se tendo oposto na presente ação.
Daí concluirmos que a reposição com a demolição das obras feitas pela ré sempre constituiria um abuso de direito dos AA.
Em verdade, o abuso de direito tem como raiz a teoria dos atos emulativos, e não só na sua conceção objetiva, como é a adotada no art. 334º do CC, apresenta-se como válvula de segurança de todo e qualquer ordenamento jurídico.
No art. 334º do CC, a conceitualização do abuso de direito aparece formulada nos seguintes termos: “ É ilegítimo o exercício do direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Mas, sendo estes os requisitos do abuso de direito, logo se alcança que a utilização do respetivo instituto não deve constituir panaceia fácil para toda e qualquer situação de exercício excessivo de um direito, em que o respetivo excesso não seja manifesto ou que só aparentemente se apresente como manifestamente excessivo.
Por outro lado, normalmente, difícil parece ser que o exercício de um direito quando constitua a reação contra uma situação ilícita possa ser qualificado de abusivo, o que vale por dizer que o abuso de direito não deve servir, em princípio, para transformar em situações de direito meras situações de facto criadas ilicitamente.
Por outras palavras, o abuso de direito não deve servir para, ao cabo e ao fim, dar cobertura a situações de facto ilícitas.
Sem embargo, não pode esquecer-se que a lei, na senda da generalidade da doutrina, exige, para que exista abuso de direito, que o excesso cometido pelo titular seja, como já salientamos, manifesto.
Feitas estas breves considerações, vejamos o que dizer sobre a sua aplicação ao caso dos autos.
Não há dúvidas de que a Ré violou o estatuto do arrendamento, ao fazer as obras que fez sem autorização do senhorio. Mas, os AA apenas com a presente demanda é que levantaram o problema. Ou seja, de tudo se retira que os AA e seus antecessores assistiram à realização das obras cuja demolição pretendem por intermédio da presente ação, sem terem deduzido qualquer oposição desde há décadas ( cfr. doc. De fls.51 v-licença da CM para construir a casa de banho- datado de 1991) e sempre demonstraram uma posição passiva, e nunca tiveram qualquer intervenção ativa sequer na conservação do arrendado ( cfr. até para a construção de uma casa de banho, compartimento inequivocamente necessário em qualquer casa de habitação teve de ser a arrendatária a tratar da mesma!).
Havemos de convir que seguramente esta situação enquadra-se nas que o instituto do abuso de direito, como válvula de segurança, procura evitar, porquanto e tal como já mencionamos, a não oposição dos AA e seus antepassados, nada dizendo após tantos anos, criaram na Ré a legítima expetativa que estes aceitaram as alterações, não exercendo o direito, apenas se tendo oposto na presente ação, pelo que o exercício daquele direito dos AA e ainda que constitua reação contra uma situação ilícita, é manifestamente abusivo, atenta a sua postura de não oposição desde a realização das obras.
Neste particular, importa aludir à chamada figura da « neutralização do direito », a qual, nas elucidativas palavras de Baptista Machado, não apresenta absoluta autonomia, antes deve ser reconduzida ao princípio do venire contra factum proprium ( cfr. « Obra Dispersa, pág. 241 ), dado estar, também, em causa a tutela da confiança. A sua única particularidade reside no relevo atribuído ao fator tempo e na circunstância do comportamento do titular do direito consistir, precisamente, em não agir.
Com efeito, em relação ao longo período de tempo em que por exemplo o agente se mantém passivo, pode falar-se da figura conhecida na doutrina por supressio.
O exercício do direito em tais condições ( decorrido tão longo lapso de tempo) contraria a boa fé.
Sinteticamente, dir-se-á que a « neutralização » é configurada quando o titular do direito deixa passar um longo período de tempo sem o exercer, o que, aliado a uma particular conduta desse titular ou a outras circunstâncias, cria na contraparte a expectativa ou convicção fundada e justificada de que o direito já não será exercido, em termos tais que a leva a adotar medidas ou «programas de ação que, doutro modo, não adotaria ».
Em tal caso, impõe-se que se impeça o exercício do direito, porquanto o seu exercício tardio e inesperado causaria desvantagem considerável, representando simultaneamente consequência ofensiva da boa fé ( cfr. Menezes Cordeiro, op. cit,, pág. 819, Baptista Machado, RLJ, 118°, págs. 11 e 228, Rita Amaral Cabral, RDES, XXXV, págs. 322 e 323, e o Ac. do STJ de 03/05/90, BMJ, 397, 454).
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V- Decisão:

Por tudo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar :
- parcialmente procedente o recurso interposto pela Ré, mas com fundamentos distintos, e em consequência, revoga-se parcialmente a sentença recorrida, em face do que acima se decidiu, mantendo-se apenas as seguintes condenações:

A) Condenar a Ré E. E. a reconhecer que os Autores M. C., M. M., C. A., E. M., D. M. e M. L. titulam o direito de propriedade com referência ao prédio urbano descrito em 1) e 3) dos factos provados;
B) Condenar a Ré E. E. a pagar aos Autores M. C., M. M., C. A., E. M., D. M. e M. L. a quantia de 1.150,00€ (mil, cento e cinquenta euros) e as quantias que se vencerem a título de rendas vincendas até efetiva entrega do referenciado prédio;
C) No mais, decide-se absolver a Ré E. E. do demais peticionado;
*
- Custas da ação conforme decidido na sentença e do recurso na proporção do decaimento nos pedidos, tudo nos termos do art. 527º do CPC, ou seja, aplicando-se o critério geral da proporção em que cada um ficou vencido nas questões suscitadas.
*
Guimarães, 2 de dezembro de 2021

Anizabel Sousa Pereira e
Jorge dos Santos e
Margarida Pinto Gomes