Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
97648/21.9YIPRT-A.G1
Relator: PAULO REIS
Descritores: FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA
PRESCRIÇÃO
CONHECIMENTO NO DESPACHO SANEADOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Estando em causa o fornecimento contínuo de um serviço essencial (serviço de fornecimento de energia elétrica), o prazo para a propositura da ação, ou da injunção, pelo prestador de serviço, enquanto prazo de prescrição, é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos, não relevando, como tal, a data do vencimento da fatura conforme pretendia a recorrida.
II - Estando em causa o fornecimento contínuo de um serviço essencial, o regime legal aplicável prevê expressamente que se tenha em conta o período mensal como intervalo de tempo relevante para a liquidação desse fornecimento.
III - No caso dos valores peticionados a título de diferencial entre o valor faturado por estimativa (e já pago) e o valor medido (real), importa concretizar a(s) data(s) precisa(s) do(s) pagamento(s) inicial/ais que foram efetuados pelo requerido relativamente aos concretos consumos peticionados, por ter aplicação o prazo previsto no n.º 2 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26-07, nos termos do qual, se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento.
IV - O estado do processo não permite o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, se em ação que teve por base procedimento de injunção, permanece por concretizar e apurar factualidade respeitante à exceção perentória invocada, sendo que tal matéria assume relevo para a apreciação de tal exceção, tendo em conta as várias soluções plausíveis dessa questão de direito.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

Energia … - Comercialização de Energia, S.A., apresentou requerimento de injunção, contra J. F., nos seguintes termos:
«O(s) requerentes(s) solicita(m) que seja(m) notificado(s) o(s) requeridos, no sentido de lhe(s) ser paga a quantia de € 4 728,26
Conforme discriminação e pela causa a seguir indicada:
Capital: € 4 564,30 Juros de mora: € 87,46 à taxa de: 7,00%, desde 07-07-2021
até à presente data; Outras quantias: € 0,00 Taxa de Justiça paga: € 76,50
Contrato de: Fornecimento de bens ou serviços (…)
Data do contrato: 06-02-2007 Período a que se refere: 21-06-2021 a 12-07-2021
Exposição dos factos que fundamentam a pretensão:
A Requerente tem como objeto comercial a produção e compra e venda de energia, sob a forma de eletricidade, gás natural e outras, bem como a prestação de serviços de energia, o fornecimento de energia, o fornecimento e montagem de equipamentos energéticos, a beneficiação de instalações de energia, a certificação energética e a manutenção e operação de equipamentos e sistemas de energia. Ao abrigo do contrato nº ……….02 forneceu ao/à Requerido(a) eletricidade, para o local de consumo sito, LUGR ESTRADA NACIONAL,…, que o/a Requerido(a) não pagou e que consta da(s) seguinte(s) factura(s): n.º FT2021 21/..................64, no valor de EUR 4.545,97, emitida em 21/06/2021, vencida em 06/07/2021, n.º ND2021 22/220000126517, no valor de EUR 4,43, emitida em 21/06/2021, vencida em 06/07/2021, n.º FT2021 24/240000807283, no valor de EUR 13,90, emitida em 12/07/2021, vencida em 30/07/2021, Ao valor em dívida acrescem os juros de mora vencidos e vincendos».
O réu apresentou oposição, excecionando a prescrição do direito da autora a exigir o pagamento dos serviços a que se reporta a fatura FT2021 21/..................64, por terem decorrido mais de seis meses desde a prestação dos serviços em causa até 25 de outubro de 2021, data em que a prescrição deve ter-se por interrompida (posto que a apresente ação foi instaurada a 20 de outubro de 2021), já que decorre do respetivo descritivo de consumos que foram contabilizados os consumos reais de 23 de abril a 17 de dezembro de 2020 e os consumos estimados de 18 de dezembro de 2020 a 22 de abril de 2021. Impugnou ainda todos os factos da injunção, afirmando desconhecer os elementos relativos à data de vencimento da fatura FT2021 21/..................64, e valores da mesma, por não serem iguais, aqueles que lhe foram comunicados, desconhecendo ainda s elementos relativos à fatura n.º FT2021 24/240000807283, e requerendo, além do mais, a condenação da requerente como litigante de má-fé, no pagamento de uma multa ao Tribunal e numa indemnização a favor do requerido no montante de 1.500,00 €.
Foi cumprido o contraditório relativamente à exceção deduzida na oposição, mediante a apresentação de articulado autónomo no qual a autora pugnou pela improcedência da exceção invocada, considerando que o prestador do serviço só pode exigir o pagamento após a data de vencimento da fatura - e que antes desse prazo o prestador nada pode fazer uma vez que não há incumprimento do que quer que seja - o prazo de prescrição só pode começar a correr nesse momento, e nunca em momento anterior, pelo que desde a data do vencimento das faturas peticionadas até à data de entrada do requerimento de injunção (15-10-2021) não decorreram mais de 6 meses. conclui como na petição inicial.
Após, foi proferido saneador-sentença, julgando improcedente a exceção perentória de prescrição invocada pelo requerido na contestação.

Inconformado com esta decisão, veio o requerido dela interpor recurso, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. O Tribunal “a quo” julgou integralmente improcedente a excepção de prescrição.
2. Os consumos de electricidade reportam-se entre 12 de Março de 2020 a 12 de Setembro de 2020, conforme resulta dos registos de leituras efectuado pela Energia …, administradora da rede elétrica nacional.
3. Entre os consumos realizados e a notificação para o pagamento (data de emissão da factura de 21 de Junho de 2021) decorreram mais de 283 dias, ou seja, mais de 6 meses a que alude o art. 10º do Lei nº 23/96, de 26 de Julho.
4. E desde aquela data à propositura da acção decorreram 405 dias, ou seja, mais de um ano após o consumo realizado.
5. O Tribunal “a quo” fundamenta que o período de pagamento da factura peticionada terminou em 22/04/2021 e que por tal facto o direito de acção foi tempestivamente exercido, o que não se pode concordar.
6. A factura peticionada tem um período de facturação que se iniciou em 23 de Abril de 2020 a 22 de Abril de 2021.
7. Ora, não se pode concordar com a posição adoptada pelo Tribunal “a quo” porquanto a lei estabelece que a prescrição se conta desde a data de prestação de serviço e não de facturação do mesmo.
8. Acresce ainda que, nos termos do artigo 9º da Lei dos Serviços Públicos Essenciais, o utente tem direito a uma fatura que especifique devidamente os valores que apresenta e com uma periodicidade mensal, com discriminação dos serviços prestados e das correspondentes tarifas.
9. Não se podendo aceitar o pernicioso intento da A. de contornar a prescrição estabelecida na lei ao facturar consumos anuais.
10. Conforme, resulta da resposta à excepção apresentada pela A., o R. procedia ao pagamento do montante mensal fixo de € 31,00.
11. Sempre tendo pago os valores que lhe eram debitados, ainda que a título de estimativa.
12. O R. tinha já pago anteriormente, a título mensal, os consumos que lhe foram debitados pela A.
13. Nos termos do nº 2, do artigo 10º, da Lei nº 23/96 de 26/07, “Se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento.”
14. Assim, o direito da A. ao recebimento da diferença entre o custo do fornecimento apurado por estimativa nas facturas mensais que foi emitindo e o custo apurado com base em leitura real caducava nos seis meses subsequentes ao pagamento do fornecimento liquidado por estimativa.
15. Factos esses que, não foram levados à instrução do processo, mas que eram essenciais à correcta apreciação da causa.
16. O Tribunal “a quo” errou ao julgar a improcedência da prescrição, com base na referência do último consumo facturado, pois a lei determina data da prestação do serviço.
17. O Tribunal “a quo” não poderia julgar a excepção invocada, sem apurar previamente qual a data do pagamento inicial que foi efectuado pelo R. relativo aos consumos peticionados na factura nº FT2021 21/..................64.
18. Em consequência, deverá ser revogada a douta decisão proferida, substituindo-se por decisão que julgue totalmente procedente a excepção, absolvendo-se o R. do pedido.

Nestes termos e nos melhores de Direito que serão sempre doutamente supridos, deve o presente recurso merecer provimento, proferindo-se Acórdão que acolha a alegação ora efectuada. Assim decidindo, Venerando Desembargadores, farão, como habitualmente, inteira e sã
JUSTIÇA!».
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, em separado e efeito devolutivo.
Os autos foram remetidos a este Tribunal da Relação, tendo o recurso sido admitido nos mesmos termos.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações dos recorrentes, e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º, n.º 1, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) -, o objeto do presente recurso consiste em aferir se o Tribunal a quo podia conhecer e decidir de imediato a exceção perentória invocada sem concretizar e apurar previamente quais os concretos períodos mensais de consumo que são objeto da fatura acionada nos presentes autos, assim como as datas dos pagamentos iniciais que foram efetuados pelo réu/recorrente relativamente aos consumos peticionados na fatura FT2021 21/..................64.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos

1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, atendendo a que o Tribunal de 1.ª instância não especificou qualquer matéria de facto provada na decisão recorrida

2. Apreciação sobre o objeto do recurso.

A presente apelação foi interposta pelo requerido no âmbito de uma Ação Especial para Cumprimento de Obrigações Pecuniárias - Dec. Lei n.º 269/98, de 01/09 - incidindo sobre o despacho saneador proferido a 17-01-2022, no segmento em que apreciou e decidiu da exceção perentória de prescrição da fatura n.º FT2021 21/..................64, cujo pagamento vem reclamado nos presentes autos, julgando tal exceção integralmente improcedente.
Face ao conhecimento de uma exceção perentória, conforme noção constante do artigo 576.º, n.º 3, do CPC, resulta manifesto que a 1.ª instância conheceu do mérito da causa no despacho saneador.

Nos termos do n.º 1 do artigo 595.º do CPC, o despacho saneador destina-se a:

a) Conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente;
b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória.
Acrescenta o n.º 3 do referido artigo o seguinte: «No caso previsto na alínea a) do n.º 1, o despacho constitui, logo que transite, caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas; na hipótese prevista na alínea b), fica tendo, para todos os efeitos, o valor de sentença».
Deste modo, resulta do estatuído nos n.ºs 1, al. b), e 2 do citado preceito legal que conhece do mérito da causa o despacho saneador que aprecia alguma exceção perentória, conforme ocorreu no caso presente.
A enunciada alínea b) do n.º 1 do artigo 595.º CPC permite o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, se o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas.
Densificando o descrito regime legal, em anotação ao referido preceito legal, referem António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa (1): «O juiz deve (…) conhecer do pedido ou dos pedidos formulados, sempre que não exista matéria controvertida suscetível de justificar a elaboração de temas da prova e a realização da audiência final. A antecipação do conhecimento de mérito pressupõe que, independentemente de estar em jogo matéria de direito ou de facto, o estado do processo possibilite tal decisão, sem necessidade de mais provas, e independentemente de a mesma favorecer umas ou outra das partes».
Conforme esclarecem ainda os referidos autores (2), tal acontece, designadamente, quando: «a) Toda a matéria de facto relevante esteja provada por confissão, expressa ou tácita, por acordo ou por documento: nestas circunstâncias é inviável a elaboração de temas da prova e, por isso mesmo, mostra-se dispensável a audiência final, nada obstando a que o juiz proceda à imediata subsunção jurídica; b) Quando seja indiferente para qualquer das soluções plausíveis a prova dos factos que permaneçam controvertidos: se, de acordo com as soluções plausíveis da questão de direito, a decisão final de modo algum puder ser afetada com a prova dos factos controvertidos, não existe qualquer interesse na enunciação dos temas da prova e, por isso, nada impede que o juiz profira logo decisão de mérito; se o conjunto dos factos alegados pelo autor (factos constitutivos) não preenche de modo algum as condições de procedência da ação, torna-se indiferente a sua prova e, por conseguinte, inútil o prosseguimento da ação para audiência final; mutatis mutandis quando se trate de apreciar de que forma os factos alegados pelo réu poderão interferir na decisão final, pois se tais factos, enquadrados na defesa por exceção, ainda que provados, se revelam insuficientes ou inócuos para evitar a procedência da ação, inexiste qualquer razão justificativa para o adiamento da decisão; c) Quando todos os factos controvertidos careçam de prova documental, caso em que o juiz proferirá despacho saneador-sentença, depois de ter convidado as partes a juntar a prova documental necessária (…)».
A presente ação teve por base procedimento de injunção, no qual a requerente pediu o pagamento da quantia de 4.564,30 € relativo ao valor da sua fatura n.º FT2021 21/..................64, de 21-06-2021, e juros de 87,46 €.
O réu apresentou oposição, excecionando a prescrição do direito da autora a exigir o pagamento dos serviços a que se reporta a fatura FT2021 21/..................64, por terem decorrido mais de seis meses desde a prestação dos serviços em causa até 25 de outubro de 2021, data em que a prescrição deve ter-se por interrompida (posto que a apresente ação foi instaurada a 20 de outubro de 2021) já que decorre do respetivo descritivo de consumos que foram contabilizados os consumos reais de 23 de abril a 17 de dezembro de 2020 e os consumos estimados de 18 de dezembro de 2020 a 22 de abril de 2021
Foi cumprido o contraditório relativamente à exceção deduzida na oposição, mediante a apresentação de articulado autónomo no qual a autora pugnou pela improcedência da exceção invocada, considerando que o prestador do serviço só pode exigir o pagamento após a data de vencimento da fatura - e que antes desse prazo o prestador nada pode fazer uma vez que não há incumprimento do que quer que seja - o prazo de prescrição só pode começar a correr nesse momento, e nunca em momento anterior, pelo que desde a data do vencimento das faturas peticionadas até à data de entrada do requerimento de injunção (15-10-2021) não decorreram mais de 6 meses.
A sentença recorrida entendeu - e bem - que a relação jurídica emergente do contrato de fornecimento de energia elétrica alegado pela requerente no âmbito da causa de pedir da presente ação está abrangida pela Lei dos Serviços Públicos Essenciais - Lei n.º 23/96, de 26-07 - diploma que prevê alguns mecanismos destinados a proteger o utente de serviços públicos essenciais, tendo por base o âmbito de aplicação expressamente previsto no respetivo artigo 1.º, n.º 2, al. a), do qual decorre que tal regime é aplicável ao serviço de fornecimento de energia elétrica prestado pela ora requerente, na qualidade de «prestador dos serviços», ao aqui requerido, o qual se considera «utente», nos termos e para os efeitos previstos nos n.ºs 3 e 4 do mesmo diploma.

O artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26-07, com a epígrafe «Prescrição e caducidade», prevê o seguinte:

«1 - O direito ao recebimento do preço do serviço prestado prescreve no prazo de seis meses após a sua prestação.
2 - Se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efectuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento.
3 - A exigência de pagamento por serviços prestados é comunicada ao utente, por escrito, com uma antecedência mínima de 10 dias úteis relativamente à data-limite fixada para efectuar o pagamento.
4 - O prazo para a propositura da acção ou da injunção pelo prestador de serviços é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos.
5 - O disposto no presente artigo não se aplica ao fornecimento de energia eléctrica em alta tensão».

Na sentença recorrida o Tribunal a quo começou por aludir às orientações jurisprudenciais mais relevantes a propósito do regime aplicável ao prazo de prescrição em causa, designadamente em face da redação originária do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26-07, entre as quais a que defendia que o prazo de seis meses previsto se referia à apresentação da fatura, a qual interrompia a prescrição, para concluir que o prazo para a propositura da ação ou da injunção pelo prestador dos serviços, enquanto prazo de prescrição, é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos, em conformidade com entendimento jurisprudencial consolidado e tendo presente a redação atual do citado preceito (artigo 10.º, n.º 4, da Lei n.º 23/96, de 26-07).
Com efeito, tendo por base as alterações introduzidas pelo artigo 1.º da Lei n.º 12/2008, de 26-02, no artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26-07, resulta claro que o legislador quis consagrar uma das orientações que era já defendida em face da redação originária do mesmo preceito, concretamente a posição que sustentava ser o prazo de seis meses ali previsto um prazo de prescrição do direito ao pagamento dos serviços, que se contava a partir da prestação dos mesmos, devendo considerar-se que a nova lei se assume como claramente interpretativa, integrando-se, por isso, na lei interpretada, sendo intenção do legislador proteger o consumidor final, contra a acumulação de dívidas de fácil contração, evitando que se vissem confrontados com a exigência de débitos acumulados que dificilmente poderiam satisfazer, determinando, assim, que os prestadores de serviços mantenham uma organização que permita a cobrança em momento próximo do correspondente consumo (3).
Tal segmento da fundamentação da sentença recorrida não vem questionado na presente apelação, nem vemos razões para alterar à luz do quadro legal em referência.
Contudo, apesar de ter entendido que o prazo para a propositura da ação, ou da injunção, pelo prestador de serviço, enquanto prazo de prescrição, é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial (não relevando, como tal, a data do vencimento da fatura conforme pretendia a recorrida), o Tribunal a quo veio a julgar integralmente improcedente a exceção de prescrição invocada, consignando para o efeito que o período em relação ao qual o requerente peticiona o pagamento da fatura n.º FT2021 21/..................64 terminou em 22-04-2021, a injunção deu entrada em 15-10-2021 e o requerido foi citado em 26-10-2021. Concluiu nos seguintes termos: «Datando o último dos consumos de 22/04/2021, o prazo prescricional ocorre em 22/10/2021; na medida em que a acção deu entrada em 15/10/2021 e o requerido somente foi citado em 26/10/2021, não havendo elementos para imputar essa demora à requerente, a prescrição interrompeu-se em 20/10/2021, por força do disposto no art 323º, n.º 2 do Cód Civil.
Na medida em que dispunha até 22/10/2021 para interpor a acção, a prescrição interrompeu-se antes do decurso do prazo prescricional (art 323º, n.º 2 do Cód Civil e 10º, n.º 1 da Lei n.º 23/96 de 26/07).
Termos em que julgo a excepção integralmente improcedente (art 10º, n.º 1 e n.º 4 da Lei n.º 23/96 de 26/07 e 323º, n.º 2 do Cód Civil)».
O recorrente insurge-se contra o assim decidido, sustentando que as regras constantes do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26-07 remetem para a data da prestação do serviço e não para o último consumo faturado, sendo que, nos termos do disposto no artigo 9.º, n.º 1, da referida Lei, o utente tem direito a uma fatura que especifique devidamente os valores que apresenta, a qual, de acordo com o n.º 2 deste último preceito legal, deve ter uma periodicidade mensal, com discriminação dos serviços prestados e das correspondentes tarifas. Acresce que, conforme resulta do alegado pela requerente em sede de resposta à exceção, o réu obrigou-se a um acordo conta certa, através do qual se obrigou ao pagamento do montante mensal fixo de 31,00 € e o pagamento dos correspondentes acertos, sempre tendo pago os valores que lhe eram debitados, razão pela qual o direito da autora ao recebimento da diferença entre o custo do fornecimento apurado por estimativa nas faturas mensais que foi emitindo e o custo apurado com base em leitura real caducava nos seis meses subsequentes ao pagamento do fornecimento liquidado por estimativa, nos termos do citado artigo 10.º, n.º 2, da Lei dos Serviços Públicos, factos esses que, não foram levados à instrução do processo, mas que eram essenciais à correta apreciação da causa.
E - desde já adiantamos - julgamos ser este último entendimento, invocado pelo recorrente, o único consentâneo com os critérios legais aplicáveis, antes enunciados, quando analisados à luz das concretas incidências processuais que o processo revela.
Nos termos do disposto no artigo 9.º, n. º 1, da Lei n.º 23/96, de 26-07, o utente tem direito a uma fatura que especifique devidamente os valores que apresenta, esclarecendo o n.º 2 do mesmo preceito que a fatura a que se refere o número anterior deve ter uma periodicidade mensal, devendo discriminar os serviços prestados e as correspondentes tarifas.
Deste modo, estando em causa o fornecimento contínuo de um serviço essencial (serviço de fornecimento de energia elétrica), o regime legal antes enunciado prevê expressamente que se tenha em conta o período mensal como intervalo de tempo relevante para a liquidação desse fornecimento, por razões de praticabilidade na liquidação do custo dos fornecimentos efetuados (4).
Mostra-se, assim, relevante, em primeiro lugar, apurar quais os concretos períodos mensais de consumo que são objeto da fatura acionada nos presentes autos (o que deve ser concretamente alegado nos autos e não apenas suscetível de ser concretizado pela junção de documentos), independentemente da forma específica de faturação de tais consumos.
Ademais, apenas em sede de contraditório relativo à exceção invocada a requerente veio alegar que a fatura FT2021 21/..................64 foi emitida ao abrigo de um “Acordo de Conta Certa” celebrado com a autora, acordo esse que «consiste numa modalidade de faturação e pagamento especial: a prestação de serviço de eletricidade durante um período de doze meses (automaticamente renovável) é paga através de 11 mensalidades de um valor fixo - acordado entre o Cliente e o prestador de serviços com base em estimativa (máxime no seu histórico de consumos), durante 11 meses, efetuando-se, no 12.º mês, o acerto de contas».
Ora, como se viu, de acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26-07, se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento.
Sendo assim, importa atender a este regime relativamente aos valores peticionados a título de diferencial entre o valor faturado por estimativa (e já pago) e o valor medido (real), sendo tal regime aplicável quando estão em causa diferenciais entre valores resultantes de leituras por estimativa e valores efetivamente consumidos (5).
Mostrando-se a alegação e eventual apuramento de tais factos essencial à decisão da exceção invocada, impõe-se concluir que o estado do processo não permite ainda o conhecimento do mérito da causa quanto a tal matéria, o qual se mostrou prematuro, impondo-se assim fazer prosseguir os autos com vista ao seu apuramento, possibilitando-se à requerente concretizar de forma expressa quais os concretos períodos mensais de consumo que são objeto da fatura acionada nos presentes autos, bem como a indicação da(s) data(s) precisa(s) do(s) pagamento(s) inicial/ais que foram efetuados pelo requerido relativamente aos consumos peticionados na fatura FT2021 21/..................64.
Assim sendo, cumpre revogar a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus termos, nos termos indicados, por forma a ser proferida decisão sobre a suscitada exceção perentória, com especificação da correspondente matéria de facto provada.
Procede, assim, a apelação.
Tal como resulta da regra enunciada no artigo 527.º, n.º 1, do CPC, a responsabilidade por custas assenta num critério de causalidade, segundo o qual, as custas devem ser suportadas, em regra, pela parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, pela parte que tirou proveito do processo. Neste domínio, esclarece o n.º 2 do citado preceito, entende-se que dá causa às custas a parte vencida, na proporção em que o for.
No caso em apreciação, como a apelação foi julgada procedente, as custas da apelação são integralmente da responsabilidade da recorrida, atento o seu decaimento.

Síntese conclusiva:

I - Estando em causa o fornecimento contínuo de um serviço essencial (serviço de fornecimento de energia elétrica), o prazo para a propositura da ação, ou da injunção, pelo prestador de serviço, enquanto prazo de prescrição, é de seis meses, contados após a prestação do serviço ou do pagamento inicial, consoante os casos, não relevando, como tal, a data do vencimento da fatura conforme pretendia a recorrida.
II - Estando em causa o fornecimento contínuo de um serviço essencial, o regime legal aplicável prevê expressamente que se tenha em conta o período mensal como intervalo de tempo relevante para a liquidação desse fornecimento.
III - No caso dos valores peticionados a título de diferencial entre o valor faturado por estimativa (e já pago) e o valor medido (real), importa concretizar a(s) data(s) precisa(s) do(s) pagamento(s) inicial/ais que foram efetuados pelo requerido relativamente aos concretos consumos peticionados, por ter aplicação o prazo previsto no n.º 2 do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26-07, nos termos do qual, se, por qualquer motivo, incluindo o erro do prestador do serviço, tiver sido paga importância inferior à que corresponde ao consumo efetuado, o direito do prestador ao recebimento da diferença caduca dentro de seis meses após aquele pagamento.
IV - O estado do processo não permite o conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, se em ação que teve por base procedimento de injunção, permanece por concretizar e apurar factualidade respeitante à exceção perentória invocada, sendo que tal matéria assume relevo para a apreciação de tal exceção, tendo em conta as várias soluções plausíveis dessa questão de direito.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, determinando a sua substituição por outra que fazer prosseguir os autos com vista à concretização e apuramento dos concretos períodos mensais de consumo que são objeto da fatura acionada nos presentes autos, bem como a indicação da(s) data(s) precisa(s) do(s) pagamento(s) inicial/ais que foram efetuados pelo requerido relativamente aos consumos peticionados na fatura FT2021 21/..................64 por forma a ser proferida decisão sobre a suscitada exceção perentória, com especificação da correspondente matéria de facto provada.
Custas pela apelada.
Guimarães, 30 de junho de 2022
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (Juiz Desembargador - relator)
Luísa Duarte Ramos (Juíza Desembargadora - 1.º adjunto)
Eva Almeida (Juíza Desembargadora - 2.º adjunto)



1. Cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 696.
2. Obra citada, p. 697.
3. Cf. o Ac. do TRP de 12-01-2015 (Relator: Oliveira Abreu), p. 98356/13.0YIPRT.P1, disponível em www.dgsi.pt.
4. Neste sentido, cf., por todos, o Ac. TRP de 26-04-2021 (relator: Carlos Gil), p. 45732/19.5YIPRT-A. P1, disponível em www.dgsi.pt.
5. Neste sentido, cf., por todos, o citado Ac. TRP de 26-04-2021; Ac. TRP de 28-02-2013 (relator: Freitas Vieira), p. 6682/05.0TBMTS.P1, disponível em www.dgsi.pt.