Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
32/18.2T8BCG.G1
Relator: FERNANDA PROENÇA FERNANDES
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
INQUÉRITO JUDICIAL À SOCIEDADE
INQUÉRITO PREVISTO NO ART.º 67º DO CSC
REQUISITOS ESSENCIAIS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/31/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pela relatora):

I – Constituem dois processos especiais diferentes, o inquérito judicial à sociedade, previsto no artigo 1048º, nº 1, do Código de Processo Civil, e o inquérito, previsto no artigo 67º, nº 1, final, do Código das Sociedades Comerciais.

II – Em ambos os casos, para a viabilidade do inquérito à sociedade, é exigido ao sócio que o requeira que alegue, na petição inicial, um mínimo de factos que permitam ver reunidos os respectivos pressupostos.

III - Pretendendo a apelante a realização de dois inquéritos, um previsto no art. 1048º do Código de Processo Civil, fundado num direito subjectivo à informação; e outro previsto no artigo 67º do Código das Sociedades Comerciais, fundado num direito à elaboração do relatório de gestão e das contas de exercício, e não tendo sido alegados na petição inicial factos reveladores dos requisitos essenciais para a sua viabilidade, temos que a petição inicial apresentada não se mostra adequada a alicerçar qualquer um deles.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório.

Na presente acção especial de inquérito judicial a sociedade, que corre termos no Juízo Local Cível de Bragança - Juiz 1 – da Comarca de Bragança, em que é autora X Consultores e Investidores, lda, representada por Nuno e réus Y – Serralharia, lda e H. J., foi pela primeira pedido que se ordene inquérito judicial à sociedade ré.

Para tanto alegou que:

- a sociedade requerente e o requerido H. J. são os únicos sócios da sociedade requerida;
- esta tem a sua sede e instalações em Vinhais e dedica-se à construção e colocação de portas, janelas, caixilharias, etc.;
- desde a sua constituição em 2012, a sociedade requerida deliberou serem nomeados para gerentes o requerente Nuno, em representação da sociedade requerente, e o requerido H. J.;
- a sociedade requerida obriga-se com a assinatura de um gerente;
- os bens da fabricação da requerida são constituídas por um edifício (pavilhão), maquinaria diversa, ferramentas, veículos automóveis, escritório e linha da produção;
- aquando do início da actividade, o requerido H. J. ficou responsável pelas compras, vendas orçamentos, linha de produção, colocação de material acabado, recebimentos dos bens vendidos e colocados e gestão operacional da serralharia;
- para iniciar a sua actividade, a empresa teve de adquirir todos os bens, tendo para o efeito recorrido a empréstimos bancários, dando de garantia as próprias instalações e aval pessoal de ambos os sócios;
- devido à crise económica que assolou o país, houve a necessidade de recorrer a outro tipo de operações, nomeadamente empréstimos de ambos os sócios, suprimentos, pagamentos através de contas individuais e outros procedimentos, com o que se conseguiu manter a empresa em laboração;
- ao mesmo tempo, o requerente Nuno e o requerido H. J. reuniam periodicamente, acertavam contas no sentido de ficar sempre devidamente esclarecido sobre os procedimentos, quem era credor e devedor, se os empréstimos feitos pelos sócios eram ou não pagos, etc.;
- o requerido H. J. prestava contas, explicava a matéria-prima que tinha comprado, o trabalho que tinha sido executado, onde tinha sido colocado e para quem, onde depositava o dinheiro, se estava pago ou não e tudo o mais inerente;
- a partir de 2015, o requerente Nuno e o requerido H. J. começaram a sentir dificuldades de entendimento ao ponto de deixarem de dialogar;
- iam chegando relatos de incumprimento de obrigações do dia-a-dia e recebimentos que não passavam pelas contas da empresa, de incumprimentos para com os bancos e de a empresa estar sem dinheiro, pese embora formalmente a contabilidade não o demonstrar;
- atento o mau relacionamento existente que impossibilitava o diálogo, o requerente Nuno solicitou aos seus colaboradores técnicos a participação em reuniões com o requerido a fim de estes lhe prestarem todas as informações relativas à verdadeira situação financeira da sociedade e quem era credor de quem;
- por falta de informações do requerido H. J. não se chegou a nenhuma conclusão;
- foi nesse contexto que o requerente Nuno renunciou à gerência em 10.10.2016,
- uma vez que o requerente já tentou de diversas formas obter as informações necessárias, quer directamente, quer através de técnicos mandatados para o efeito, facilmente é de presumir que agora, com o corte de relações e com o clima de conflitualidade existente, o requerido não fornecerá mesmo qualquer informação;
- as contas não foram prestadas, antes foram recusadas injustificadamente.

Concluiu pedindo que se averigúe:

- quais os bens de produção propriedade da sociedade requerida (máquinas, ferramentas e veículos);
- quais os recursos humanos existentes, vencimentos e encargos gerais anuais com funcionários;
- quais os materiais em stock e seu valor;
- o que se deve a fornecedores e qual a situação concreta de cada débito, o mesmo acontecendo com os créditos;
- quais os empréstimos de que a sociedade beneficiou, quem os concedeu, qual a situação de cada um, incluindo os dos sócios, o mesmo se referindo em relação aos suprimentos;
- demonstrar e provar a origem dos provimentos feitos pelo requerido H. J. e pelo requerente Nuno;
- qual o valor patrimonial actual da empresa;
- se há incumprimento de empréstimos bancários e operações análogas, por que razão e quais as consequências verificadas e esperadas e qual o destino de todas as quantias recebidas.

Regularmente citados, os réus contestaram, aceitando como verdadeiros os factos alegados nos artigos 1.º a 6.º, 8.º, 10.º e 11.º da petição inicial e impugnando os demais, com a alegação de que:

- o requerente Nuno teve, até à sua renúncia da qualidade de gerente, um papel activo e determinante no giro da sociedade, já que também ele angariava obras para a sociedade requerida, negociava financiamentos e projectos, recebia pagamentos de clientes e fazia em exclusivo a gestão financeira e bancária da sociedade requerida;
- nas reuniões de gerência o requerente Nuno deixou de prestar contas e de esclarecer determinados actos de gestão por si praticados, designadamente, não esclarecia a razão pela qual certos pagamentos a si confiados por clientes da sociedade requerida não foram depositados na conta da mesma;
- a contabilidade da sociedade requerida sempre foi feita pela W – Serviços de Gestão, S.A.;
- além de partilharem a sede, a sociedade requerente e a W partilham o administrador – Nuno;
- sendo a contabilidade feita pela W e tendo o seu administrador a ela acesso e tendo a sociedade requerente como actividade, entre outros, a consultoria para os negócios e a gestão, contabilidade, auditoria e consultoria fiscal, fácil é concluir que a sociedade requerente só não sabe quanto à vida comercial e financeira da sociedade requerida o que não quer;
- os conflitos tiveram início pelo facto de o requerido H. J. se ter apercebido que estaria a trabalhar arduamente e, em vez de obter e partilhar resultados, tinha de realizar constantes suprimentos de modo a solver compromissos da sociedade requerida;
- a fim de se inteirar das contas, o requerido H. J. pediu à contabilidade os livros de cheques que esta tinha em seu poder;
- o gabinete de contabilidade informou-o de que os livros de cheques referentes aos nos de 2012, 2013 e parte de 2014 tinham desaparecido e de que também tinham desaparecido as contas da empresa relativas aos anos de 2012, 2013 e parte do ano de 2014, tal como o computador e a pen drive onde toda essa documentação estava gravada por segurança;
- face a isso, o requerido H. J. começou, em 29.09.2014, a preencher e entregar os cheques passados pela empresa e a dar ele próprio no banco ordens de transferência;
- e a estar muito mais atento à facturação emitida e à cobrança dessas facturas, atitude de atenção e vigilância que terá desagradado ao requerente Nuno e está na origem da sua renúncia à gerência.

Concluíram pedindo que, caso não se verifique a improcedência do pedido de inquérito à sociedade, no inquérito a ordenar seja abrangida informação sobre os seguintes actos praticados pelo requerente Nuno:

- por que pagou a sociedade requerida a quantia de € 7.300,00 a Manuel (antigo proprietário do pavilhão de que a requerida faz sede da empresa) a pretexto de pagamento de uma dívida deste à Segurança Social;
- quanto à obra feita a I. G., tia e madrinha do requerente Nuno, no valor de € 20.050,27, porque apenas existe recibo emitido relativo a entrada do valor de € 8.670,27, aonde foi feito e qual o trânsito bancário relativo ao pagamento que aquela afirma ter feito por transferência bancária para a conta fornecida pelo sobrinho;
- no que respeita à obra de Francisco, no valor de € 2.200,00, porque apenas existe a factura correspondente à obra, aonde foi feito e qual o trânsito bancário relativo ao pagamento que aquele afirma ter feito a requerente Nuno;
- aonde foi feito e qual o trânsito bancário relativo ao pagamento realizado por C. no montante de € 18.552,00;
- qual o trânsito e destino do montante de € 14.000,00 dos € 15.000,00 recebidos pela sociedade requerida no dia 01.0.2015 na conta do Banco A a título de reembolso de I.V.A., levantado pelo requerente Nuno no da 02.07.2015 através de dois cheques;
- qual o trânsito e destino do montante de € 13.02,00 relativo a obra feita à sociedade requerente, já que não há vestígio contabilístico e/ou bancário do pagamento que o requerente Nuno afirma estar paga;
- qual o trânsito e destino do montante de € 12.500,00 relativo a obra feita a Sgel, já que não há vestígio contabilístico e/ou bancário do pagamento que o requerente Nuno afirma estar paga;
- qual o trânsito e destino do montante de € 250,00 relativo a obra feita a DV, Lda, já que não há vestígio contabilístico e/ou bancário do pagamento que o gerente daquela afirma ter pago ao requerente Nuno.
Os réus, com a sua contestação juntaram o relatório das contas dos exercícios de 2015, 2016 e 2017.
Respondendo à contestação, nos termos constantes de fls. 83-88, que aqui se dão por reproduzidos por uma questão de economia processual, a autora juntou informação do gerente da agência de Bragança do Banco B de que se encontram em dívida as prestações bancárias referentes aos meses de Novembro e Dezembro de 2017 e Janeiro e Fevereiro de 2018, no valor total de € 3.289,04.
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Finda esta tramitação processual, foi proferida decisão nos autos, com o seguinte teor, que se transcreve:

“…Considerando que, nos termos do disposto no artigo 1049.º, n.º 1, do C.P.C., “[h]aja ou não resposta dos requeridos, o juiz decide se há motivos para proceder ao inquérito […]”, cumpre apreciar e decidir.
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O inquérito judicial é o meio processual especial a que o sócio deve recorrer para conseguir que a informação seja prestada em caso de recusa expressa ou presumida, ou ainda em caso de prestação de informação presumivelmente falsa, incompleta, ou não elucidativa, por parte do conselho de administração ou da direcção da sociedade.

Se a informação que o sócio pretende obter tem a ver apenas com a falta de apresentação do relatório de gestão, as contas do exercício e os demais documentos de prestação de contas, o processo de inquérito deverá seguir os termos do artigo 67.º do Código das Sociedades Comerciais, aplicável ex vi do artigo 1048.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.

Se o sócio pretender outras informações que não apenas aquelas, o inquérito deverá seguir a tramitação dos artigos 1048.º, n.ºs 1 e 2, e 1049.º a 1051.º do C.P.C..

Impõe-se, desde logo, apreciar da bondade do meio processual eleito pelos Requerentes para assegurar o seu direito de informação à vida societária e acesso à respectiva documentação, alegadamente postergado pelo sócio e gerente H. J., detendo a sociedade Requerente a posição de sócia da sociedade Requerida.

Estabelece o artigo 216.º, ex vi do artigo 214.º, ambos do Código das Sociedades Comerciais, que ao sócio a quem tenha sido recusada a informação ou que tenha recebido informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa, é-lhe lícito requerer ao tribunal inquérito à sociedade.

De igual modo se lê no artigo 1048.º, n.º 1, do C.P.C. que “[o] interessado que pretenda a realização de inquérito judicial à sociedade, nos casos em que a lei o permita, alegará os fundamentos do pedido de inquérito, indicará os pontos de facto que interesse averiguar e requer as providências que repute convenientes”.

O recurso a inquérito judicial é admissível quando ao sócio tenha sido recusada a informação – nas vertentes de não fornecimento de informações em sentido estrito (ou de fornecimento de informação falsa, incompleta ou não elucidativa) bem como de recusa do direito de consulta ou do direito de inspecção.

Observe-se que a sociedade Requerente é sócia da sociedade Requerida em conjunto com o Requerido H. J. e o Requerente Nuno, em representação da sociedade Requerente, foi, até Outubro de 2016, data em renunciou ao cargo, também juntamente com aquele Requerido, gerente da sociedade.

Tal qualidade esteve-lhe atribuída juridicamente, e nessa medida, ainda que se verificasse realidade de facto distinta, o mesmo continuaria a poder usar das prerrogativas inerentes à função, e consequentemente, a tornar efectivo o seu acesso a toda a informação da vida da sociedade, mesmo que contasse com a invocada recusa do outro sócio.

Isto é, o inquérito judicial, constituindo, à partida, numa intromissão exógena na vida da sociedade, somente se deverá justificar na circunstância de o interessado não dispor de poderes que o legitimem juridicamente a tornar real o seu direito de informação e acesso à escrita da sociedade.

Ora, o gerente societário, que alegadamente não exerce as funções que lhe estão destinadas, abdica voluntariamente de saber o que se passa e de interferir na vida da sociedade; e, se tal ocorre na realidade não por opção voluntária do visado, mas, por imposição de outrem, terá ainda assim que usar dos meios apropriados para efectivar os seus direitos, que não o uso do inquérito judicial, sob pena de se permitir desigualdade entre gerentes, e até “facilitar” por essa via a resolução de um evidente laxismo e omissão na sua actuação que a norma de todo não pretende acolher.

Sucede, porém, que o Requerente Nuno renunciou à gerência em 10.10.2016, tendo por força de tal atitude abdicado de todas as prerrogativas inerentes à qualidade de gerente que lhe permitiria o uso dos meios processuais adequados a uma situação de alegada sonegação de documentos e informação.
A sociedade Requerente é, portanto, desde 10.10.2016 tão-somente sócia da sociedade Requerida.

Sob a epígrafe «Direito dos sócios à informação», o artigo 214.º do C.S.C. prescreve que:

“1 - Os gerentes devem prestar a qualquer sócio que o requeira informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade, e bem assim facultar-lhe na sede social a consulta da respectiva escrituração, livros e documentos. A informação será dada por escrito, se assim for solicitado.
2 - O direito à informação pode ser regulamentado no contrato de sociedade, contanto que não seja impedido o seu exercício efectivo ou injustificadamente limitado o seu âmbito; designadamente, não pode ser excluído esse direito quando, para o seu exercício, for invocada suspeita de práticas susceptíveis de fazerem incorrer o seu autor em responsabilidade, nos termos da lei, ou quando a consulta tiver por fim julgar da exactidão dos documentos de prestação de contas ou habilitar o sócio a votar em assembleia geral já convocada.
3 - Podem ser pedidas informações sobre actos já praticados ou sobre actos cuja prática seja esperada, quando estes sejam susceptíveis de fazerem incorrer o seu autor em responsabilidade, nos termos da lei.
4 - A consulta da escrituração, livros ou documentos deve ser feita pessoalmente pelo sócio, que pode fazer-se assistir de um revisor oficial de contas ou de outro perito, bem como usar da faculdade reconhecida pelo artigo 576.º do Código Civil.
5 - O sócio pode inspeccionar os bens sociais nas condições referidas nos números anteriores.
6 - O sócio que utilize as informações obtidas de modo a prejudicar injustamente a sociedade ou outros sócios é responsável, nos termos gerais, pelos prejuízos que lhes causar e fica sujeito a exclusão.
7 - À prestação de informações em assembleia geral é aplicável o disposto no artigo 290.º.
8 - O direito à informação conferido nesta secção compete também ao usufrutuário quando, por lei ou convenção, lhe caiba exercer o direito de voto”.

Por seu turno, o artigo 216.º do C.S.C. estabelece que:

“1 - O sócio a quem tenha sido recusada a informação ou que tenha recebido informação presumivelmente falsa, incompleta ou não elucidativa pode requerer ao tribunal inquérito à sociedade.
2 - O inquérito é regulado pelo disposto nos n.ºs 2 e seguintes do artigo 292.º.”

Os Requerentes solicitam a realização de inquérito judicial à sociedade Requerida com fundamento no facto de que, a partir de 2015, o Requerente Nuno e o Requerido H. J. começaram a sentir algumas dificuldades de entendimento ao ponto de deixarem de dialogar e que foram chegando aos ouvidos do primeiro relatos de incumprimento de obrigações do dia-a-dia e recebimentos que não passavam pelas contas da empresa, de incumprimentos para com os bancos e de a empresa estar sem dinheiro, “pese embora o facto de formalmente a contabilidade não o demonstrar”, acusando o Requerido H. J. de se recusar a prestar “informações relativas à real e verdadeira situação financeira da sociedade e quem era credor de quem”.
Ora, resulta demonstrado – porque tal até foi reconhecido pelos Requerentes – que é a sociedade W – Serviços de Gestão, S.A. responsável pela contabilidade da sociedade Requerida – de resto, a fls. 34-49v, 50-54v e 55-66 constam os relatórios de contas da sociedade referentes aos anos de 2015 2016 e 2017 elaborados precisamente pela aludida W, S.A..
Os Requerentes também admitem que o Requerente Nuno é responsável local dos escritórios da W, S.A. em Vinhais e Bragança, localizando-se o escritório de Vinhais no mesmo edifício onde a sociedade Requerida tem a sua sede.

Temos, assim, que os Requerentes, tendo afinal acesso à contabilidade da sociedade Requerida (o que se depreende da afirmação “pese embora o facto de formalmente a contabilidade não o demonstrar”), estarão a pôr em causa a sua veracidade, sendo certo que as contas daquela são elaboradas por uma empresa que funciona em escritório de que o Requerente Nuno é responsável.
O inquérito judicial a sociedade é um processo especial, de jurisdição voluntária, para exercício de direitos sociais.
O inquérito tem lugar apenas nos casos em que a lei o permita, como advém do citado artigo 1048.º, n.º 1, do C.S.C., e, para além das situações a que se refere o artigo 67.º do C.S.C. (não apresentação do relatório de gestão, contas de exercício e demais documentos de prestação de contas), pode ser requerido quando o sócio vê preterido o seu direito à informação sobre a vida e os actos de gestão da sociedade, nos termos dos artigos 21.º, n.º 1, alínea c), e 214,º do mesmo Código.
É o que determina o artigo 216.º do C.S.C., que, no seu n.º 1, preceitua “o sócio a quem tenha sido recusada a informação ou que tenha recebido informação falsa, incompleta ou não elucidativa pode requerer inquérito à sociedade”.

A pretensão dos Requerentes não se prende com a não apresentação do relatório de gestão, contas de exercício e demais documentos de prestação de contas (cfr. artigos 1048.º, n.º 3, do C.P.C. e 67.º do C.S.C.), tanto mais que da certidão permanente que juntou a fls. 8-10v consta que as contas de exercício dos anos de 2012, (não 2013?), 2014, 2015 e 2016 foram apresentadas e registadas, mas sim no direito à informação sobre a “verdadeira” situação financeira da sociedade Requerida.

Com base nisso os Requerentes pretendem que se averigúe:

- quais os bens de produção propriedade da sociedade Requerida (máquinas, ferramentas e veículos);
- quais os recursos humanos existentes, vencimentos e encargos gerais anuais com funcionários;
- quais os materiais em stock e seu valor;
- o que se deve a fornecedores e qual a situação concreta de cada débito, o mesmo acontecendo com os créditos;
- quais os empréstimos de que a sociedade beneficiou, quem os concedeu, qual a situação de cada um, incluindo os dos sócios, o mesmo se referindo em relação aos suprimentos;
- a origem dos provimentos feitos pelo Requerido H. J. e pelo Requerente Nuno;
- qual o valor patrimonial actual da empresa;
- se há incumprimento de empréstimos bancários e operações análogas, por que razão e quais as consequências verificadas e esperadas; e
- qual o destino de todas as quantias recebidas.

No relatório de contas referente ao exercício de 2017 junto pela mão dos Requeridos, em sede de contestação do presente processo, vemos informação, a fls. 44, sobre o dinheiro em caixa e em depósitos bancários ((...)), os clientes e fornecedores, a fls. 45, sobre os encargos fiscais, empréstimos bancários (o que foi pago por conta dos mesmos e o respectivo saldo) e suprimentos, a fls. 46, sobre as compras de matérias-primas e os activos fixos tangíveis (terrenos, edifícios, equipamento básico, de transporte e administrativo), a fls. 47, sobre os activos intangíveis e fornecimentos a serviços externos, a fls. 48, sobre os gastos com pessoal (remuneração dos órgãos sociais e do pessoal, encargos sobre remunerações e seguros) e outros gastos e as vendas, encontrando-se ainda a fls. 48 informação sobre o resultado líquido do período (€ 1.534,51).

Repetimos que tal relatório foi elaborado pelo gabinete de contabilidade da W, S.A. em Vinhais de que o Requerente Nuno é responsável. E resulta à saciedade que responde ao pedido de informação dos Requerentes: os bens de produção propriedade da sociedade Requerida (máquinas, ferramentas e veículos), os recursos humanos existentes, vencimentos e encargos gerais anuais com funcionários, os materiais em stock e seu valor, as dívidas a fornecedores e créditos sobre fornecedores, os empréstimos contraídos pela sociedade Requerida e os suprimentos de que esta beneficiou; quanto ao valor patrimonial actual da empresa e o destino das quantias recebidas, é facilmente apreensível pelos Requerentes com base no conjunto da referida informação; e as razões e consequências da existência de incumprimento de empréstimos bancários também com facilidade se alcançam, não sendo preciso um inquérito judicial para o descobrir.

Parece-nos que as informações relativas à situação financeira da sociedade são alcançáveis pela consulta da respectiva escrituração, livros e documentos, prevendo o artigo 214.º, n.º 4, do C.S.C. que essa consulta “deve ser feita pessoalmente pelo sócio”, o qual “pode fazer-se assistir de um revisor oficial de contas ou de outro perito, bem como usar da faculdade reconhecida pelo artigo 576.º do Código Civil” – nos termos do qual, “[f]eita a apresentação, o requerente tem a faculdade de tirar cópias ou fotografias, ou usar de outros meios destinados a obter a reprodução da coisa ou documento, desde que a reprodução se mostre necessária e se lhe não oponha motivo grave alegado pelo requerido” –, podendo ainda o sócio “inspeccionar os bens sociais” nas mesmas condições.

O recurso ao inquérito judicial não é imotivado nem se pode basear em mera suspeita de irregularidades na administração dos bens sociais; deverá basear-se em factos concretos cuja prova cabe a quem pede o inquérito e deverão revelar a falsidade da informação ou a sua insuficiência (cfr. Acórdão da Relação do Porto de 14.09.2006, proc. n.º 0633440, in www.dgsi.pt).

Considerando que a actual situação da sociedade Requerida aparece contabilisticamente reflectida no relatório de contas referente ao ano de 2017, junto a fls. 34-49, parece-nos que a mera suspeita de a contabilidade não reflectir a realidade e mesmo a falta de relacionamento e diálogo com o Requerido H. J. não servem para fundamentar a realização do inquérito judicial requerido.

Ao alegarem que, a partir do ano de 2015, o Requerente Nuno e o Requerido H. J. se desentenderam “ao ponto de deixarem de dialogar” e que o primeiro ouviu rumores “de incumprimento de obrigações do dia-a-dia e recebimentos que não passavam pelas contas da empresa, de incumprimentos para com os bancos e de a empresa estar sem dinheiro”, apesar de a contabilidade da empresa não o reflectir, e afirmarem que “há sinais evidentes de má gestão, desde logo o facto de as obrigações para com os bancos não estarem a ser pontualmente cumpridas, o que significa que ou não há receitas ou existindo estão a ser encaminhadas para fins indevidos”, os Requerentes limitam-se a levantar suspeitas sobre a existência de irregularidades na gestão da sociedade Requerida, insinuando até que a contabilidade não é verdadeira, com fundamento na circunstância de sociedade Requerida estar já em incumprimento em relação a algum (quanto ao Banco B, até junta informação) ou alguns compromissos com instituições bancárias

De todo o modo, são os próprios Requerentes que alegam que os bens da fabricação da requerida são constituídas por um edifício (pavilhão), maquinaria diversa, ferramentas, veículos automóveis, escritório e linha da produção, que para iniciar a sua actividade a empresa teve de adquirir todos os bens, tendo para o efeito recorrido a empréstimos bancários, dando de garantia as próprias instalações e aval pessoal de ambos os sócios, que devido à crise económica que assolou o país houve a necessidade de recorrer a outro tipo de operações, nomeadamente empréstimos de ambos os sócios, suprimentos, pagamentos através de contas individuais e outros procedimentos, com o que se conseguiu manter a empresa em laboração – do que resulta que os Requerentes conhecem bem os bens que a sociedade Requerida adquiriu aquando do início da actividade e os recursos financeiros (empréstimos bancários e suprimentos dos sócios) utilizados para esse efeito e para manter a actividade, tendo até sido pela mão deles que foi junta informação do gerente da agência de Bragança do Banco B de que se encontram em dívida as prestações bancárias referentes aos meses de Novembro e Dezembro de 2017 e Janeiro e Fevereiro de 2018, no valor total de € 3.289,04.

E ao procederem à junção do relatório das contas do último exercício, os Requeridos acabaram por esvaziar a aplicação da norma do artigo 1048.º, n.º 1, do C.P.C., nos termos do qual “o juiz decide se há motivos para proceder ao inquérito, podendo determinar logo que a informação pretendida pelo requerente seja prestada, ou fixa prazo para apresentação das contas da sociedade” – pois, como dissemos, o referido relatório de contas parece responder às informações pretendidas.
*
Pelo exposto, o Tribunal:

i) indefere, por infundado, ao pedido de realização de inquérito judicial à sociedade Y – Serralharia, L.da;
E, face à junção do relatório de contas do exercício de 2017,
ii) julga extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
*
Custas a cargo dos Requerentes (cfr. artigos 527.º e 1052.º, n.º 1, do C.P.C.).
Registe e notifique.”
*
Inconformada com esta decisão, dela interpôs recurso a autora, a qual, a terminar as respectivas alegações, formulou as seguintes conclusões:

“CONCLUSÕES

41. O tribunal violou o artigo 615 do CPC, pois caiu na nulidade do artigo 607, nº 4, já que os fundamentos da apreciação da matéria de facto, estão em oposição com a decisão – as partes não alegaram factos que o tribunal considerou.
42. E não se poder concluir que o Nuno conhece a real situação financeira da requerida só porque é administrador da W, sendo que está proibido de oficialmente conhecer por impedimento deontológico.
43. E muito menos que a apresentação das contas, transmite todos esses conhecimentos. O relatório não esclarece o que pretendemos, e não tem valor, já que não está aprovado em assembleia geral.
44. O Tribunal fez uma incorreta interpretação dos artigos 67º e 216º do CSC, pois ao considerar “que o inquérito judicial é o meio processual especial a que o sócio deve recorrer para conseguir que a informação seja prestada em caso de recusa expressa ou presumida ou ainda em caso de prestação de informação presumivelmente falsa, incompleta, ou não elucidativa…”,
45. E continuando “se a informação tem a ver com a falta de relatório de gestão e…,…o processo de inquérito deverá seguir os termos do artigo 67 do CSC”;
46. Por ultimo acrescenta o tribunal “se o sócio pretender outras informações que não apenas aquelas, o inquérito deverá seguir a tramitação dos artigos 1048, 1049 e 1051 do CPC”.
47. Ora, se bem lermos a petição, o entendimento do Tribunal é contraditório: o que os recorrentes alegam é exatamente não a falta do documento de prestação de contas, mas sim a necessidade de conhecimento da situação real da empresa, uma vez que existem motivos preocupantes, tal como os RR. reconhecem, não existe outra forma de obter aquele conhecimento, uma vez que não há assembleias gerais, aprovações de contas e os sócios estão de relações cortadas.
48. Além da contradição, o douto Tribunal interpretou incorretamente a lei. Fez uma interpretação restritiva do inquérito à verificação da falta de relatório de contas. Não nos parece que a lei se baste com isto.
49. A ratio legis, vai no sentido que o inquérito judicial não se deve ficar pela previsão da falta de relatório de gestão, mas deve servir também para o caso de falta de conhecimento de reais elementos essenciais ou falsidade do apresentado no relatório ou em outros documentos contabilisticos, seguindo-se em ambos os casos os termos do artº 1048º, por ambos os tipos (de inquéritos) serem cumuláveis.
50. Não restam duvidas que os AA. alegaram clara e objetivamente o que pretendem conhecer, os motivos do desconhecimento, a necessidade de conhecer, as consequências desastrosas que daí advêm e também a impossibilidade fatica de adquirir aquelas informações e os fundamentos da presunção de recusa do recorrido em os fornecer.
51. Consequências essas que estão bem claras: há um sócio a quem está a ser retirado dinheiro da sua conta porque deu garantias pessoais nos empréstimos, já foi comunicado ao banco de Portugal, o que o vai sujeitar a consequências pessoais complicadas, a empresa vai “rio abaixo” toda descomandada, e as contas apresentadas nada dizem de errado…parece já termos visto isto, salvo a devida dimensão, noutro tipo de empresas financeiras. Estava tudo bem, até que se começou a mexer…
52. A decisão e pelos motivos expostos, não nos parece acertada, e muito menos a decisão de extinguir a instância por inutilidade superveniente da lide.
53. No caso concreto, o sócio Nuno viu e vê todos os dias o seu direito a informação ser preterido, tendo fundamentos para requerer ao tribunal o inquérito judicial nos termos do 292.º, n.º 2 e seguintes do C. S. C. Com o devido respeito, parece-nos ser esta a melhor interpretação da lei.
54. Avaliou mal o douto Tribunal ao concluir, que o sócio Nuno, ao renunciar à gerência, se estava a demitir das suas responsabilidades. Se hoje continuasse gerente, o resultado seria o mesmo.
55. Não havendo outro meio processual adequado a proteger os interesses da sociedade e também, naturalmente, do sócio aqui recorrente.
56. Mais, o que pretende o recorrente saber não faz parte das informações que constam do documento junto aos autos pelo sócio H. J. (relatório de contas referente ao exercício de 2017) e até porque resulta provado dos documentos juntos pelo próprio recorrido com a contestação, que o relatório de contas existe, mas não está aprovado e daí, para o que está em causa, não oferece garantias, muito menos de conformidade;
57. A título exemplificativo, como já foi mencionado, o Recorrente obteve informação junto de entidades bancárias que as obrigações não estão a ser cumpridas pela sociedade;
58. Bem analisada a contestação oferecida pelo recorrido, ele próprio confessa a inexistência de informação, ele próprio também pretende conhecer mais e formula inclusive quesitos.
59. Este género de informações não se encontram disponíveis no tal documento junto aos autos, o que significa que os elementos levados à contabilidade pelo sócio gerente, não são verdadeiros, pois, além do mais, omitem esse ponto absolutamente fundamental.
60. Por seu turno, a veracidade da informação do documento deve ser averiguada pois, na prática, não se verifica a situação favorável que do mesmo consta. Se o inquérito judicial não serve para isto, serve para quê?
61. Com esta decisão do Tribunal, o Recorrente não consegue fazer valer o seu direito potestativo, o direito a ser informado, consagrado pelo C. S. C.

Nestes termos, e nos melhores de direito que V. Exas. mui doutamente suprirão, deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando a douta decisão proferida, considerando o inquérito judicial como o meio processual adequado e a ação ser julgada procedente, assim de fará a acostumada
INTEIRA JUSTIÇA!!!”
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Os recorridos não contra-alegaram.
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O recurso foi admitido por despacho de 11 de Julho de 2018 como de apelação, a subir nos próprios autos, e com efeito meramente devolutivo.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Questões a decidir.

Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal são:
1. saber se se verifica a nulidade do art. 615º nº 1 al. c) do CPC na decisão recorrida.
2. saber se se encontram reunidos os pressupostos para que se proceda a inquérito judicial da sociedade ré.
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III. Fundamentação de facto.

Os factos materiais relevantes para a decisão da causa são os que decorrem do relatório supra.
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IV. Fundamentação de direito.

1. Delimitadas que estão, sob o n.º II, as questões essenciais a decidir, é o momento de apreciar cada uma delas.
1.1. saber se se verifica a nulidade do art. 615º nº 1 al. c) do CPC, na decisão recorrida.

Nas conclusões de recurso sob o ponto 41 suscita a apelante a nulidade da sentença, com fundamento no art. 615º/1 c) CPC.
Resulta dessa norma legal que a sentença é nula quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão.

A previsão da norma contempla as situações de contradição real entre os fundamentos e a decisão e não as hipóteses de contradição aparente, resultante de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão.

Como referia o Professor Antunes Varela, in, Manual de Processo Civil, pág. 690.: “a norma abrange os casos em que há um vício real no raciocínio do julgador: a fundamentação aponta num sentido; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”.

Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição – cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 11.1.94, Cardoso Albuquerque, BMJ nº 433, p. 633, do STJ de 13.2.97, Nascimento Costa, BMJ nº 464, p. 524 e de 22.6.99, Ferreira Ramos, CJ 1999 – II, p. 160.

Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos – cfr. Lebre de Freitas, A Acção Declarativa Comum, 2000, pg. 298.
Por outras palavras, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8.3.2001, Ferreira Ramos, acessível em www.dgsi.jstj/pt.

No que tange à obscuridade conducente à ininteligibilidade da decisão, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, V Volume, p. 151, ensinava a este propósito:

«A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido é ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz.»

A ininteligibilidade da decisão não se reporta ao conteúdo ou mérito, mas à exteriorização formal do discurso “quo tale”, perfilando-se, nesta perspectiva, situações de ambiguidade expositiva, de obscuridade, de excessivo gongorismo impeditivo da univocidade ou, no limite, de meros lapsos de escrita – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.9.2006, Sebastião Póvoas, acessível em www.dgsi.pt/jstj.

O que a apelante põe em causa é a interpretação e aplicação do direito aos factos provados. Ora, a ser incorrecta tal aplicação, ocorrerá um erro de julgamento e não uma contradição entre os fundamentos e a decisão.
Tal nulidade não ocorre no caso em apreço como claramente ressalta do explanado.

Improcedem pois, nesta parte, as conclusões de recurso sob o ponto 41.
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2. saber se se encontram reunidos os pressupostos para que se proceda a inquérito judicial da sociedade ré.

Dispõe o artigo 1048º do Código de Processo Civil que:

“nº 1 O interessado que pretenda a realização de inquérito judicial à sociedade, nos casos em que a lei o permita, alega os fundamentos do pedido de inquérito, indica os pontos de facto que interesse averiguar e requer as providências que repute convenientes.
nº 2 São citados para contestar a sociedade e os titulares de órgãos sociais a quem sejam imputadas irregularidades no exercício das suas funções.
nº 3 Se o inquérito tiver como fundamento a não apresentação pontual do relatório de gestão, contas do exercício e demais documentos de prestação de contas, seguem-se os termos previstos no artigo 67º do Código das Sociedades Comerciais.

O artigo 67º do Código das Sociedades Comerciais, integrado no capítulo relativo à apreciação anual da sociedade, reporta-se à falta de apresentação das contas e de deliberação sobre elas e ao inquérito que essa situação é susceptível de motivar.

Nos termos dispostos pelo art. 1049º nº 1 Código de Processo Civil: “Haja ou não resposta dos requeridos, o juiz decide se há motivos para proceder ao inquérito, podendo determinar logo que a informação pretendida pelo requerente seja prestada, ou fixa prazo para apresentação das contas da sociedade”.

Se for ordenada a realização do inquérito à sociedade, o juiz fixará os pontos que a diligência deve abranger, nomeando o perito ou os peritos que devem realizar a investigação, aplicando-se o disposto quanto à prova pericial (artigo 1049º, nº 2, do Código de Processo Civil).

Ou seja, verificados os pressupostos de direito substantivo do exercício do direito social de inquérito judicial à sociedade, implementado o contraditório, deve o juiz, de entre os pontos de facto indicados pelo requerente, fixar aqueles que relevam e sobre os quais deve haver resposta.

No âmbito do direito societário, o sócio tem a faculdade de obter informações sobre a vida da sociedade, nos termos da lei e do contrato social.

Este direito à informação, que assim é configurado nos seus contornos mais gerais pelo artigo 21º, nº 1, alínea c), do Código das Sociedades Comerciais, é desenvolvido depois, no que às sociedades por quotas diz respeito, nos artigos 214º a 216º do mesmo diploma.

Dispõe o artigo 214.º do Código das Sociedades Comerciais:

“(Direito dos sócios à informação)

1 - Os gerentes devem prestar a qualquer sócio que o requeira informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade, e bem assim facultar-lhe na sede social a consulta da respectiva escrituração, livros e documentos. A informação será dada por escrito, se assim for solicitado.
2 - O direito à informação pode ser regulamentado no contrato de sociedade, contanto que não seja impedido o seu exercício efectivo ou injustificadamente limitado o seu âmbito; designadamente, não pode ser excluído esse direito quando, para o seu exercício, for invocada suspeita de práticas susceptíveis de fazerem incorrer o seu autor em responsabilidade, nos termos da lei, ou quando a consulta tiver por fim julgar da exactidão dos documentos de prestação de contas ou habilitar o sócio a votar em assembleia geral já convocada.
3 - Podem ser pedidas informações sobre actos já praticados ou sobre actos cuja prática seja esperada, quando estes sejam susceptíveis de fazerem incorrer o seu autor em responsabilidade, nos termos da lei.
4 - A consulta da escrituração, livros ou documentos deve ser feita pessoalmente pelo sócio, que pode fazer-se assistir de um revisor oficial de contas ou de outro perito, bem como usar da faculdade reconhecida pelo artigo 576.º do Código Civil.
5 - O sócio pode inspeccionar os bens sociais nas condições referidas nos números anteriores.
6 - O sócio que utilize as informações obtidas de modo a prejudicar injustamente a sociedade ou outros sócios é responsável, nos termos gerais, pelos prejuízos que lhes causar e fica sujeito a exclusão.
7 - À prestação de informações em assembleia geral é aplicável o disposto no artigo 290.º
8 - O direito à informação conferido nesta secção compete também ao usufrutuário quando, por lei ou convenção, lhe caiba exercer o direito de voto”.

Decorre deste preceito legal que, quem tem direito à informação é qualquer sócio; que quem está obrigado a prestá-la, transmitindo todos os esclarecimentos, é o gerente da sociedade (aquele a quem incumbe prosseguir a actividade societária, representando-a e administrando-a) e que o conteúdo desse direito tem duas vertentes: ou a informação em sentido estrito, constituída pelos esclarecimentos concernentes à gestão da sociedade, e de índole verdadeira, completa e elucidativa; ou num sentido mais amplo abrangendo a consulta da escrituração, livros e documentos da sociedade na sede social respectiva.

No direito à informação em sentido estrito, o que está em causa são os procedimentos (concretos) e as actuações de gestão, de execução e desenvolvimento da vida social, “São os factos relevantes da existência e do funcionamento societários” (João Labareda, “Direito à informação”, Problemas do Direito das Sociedades, página 129).

Trata-se do direito do sócio de acompanhar o que faz a sociedade; sendo portanto o desenrolar da actividade societária o que importa, os assuntos da vida da sociedade que interfiram com os negócios em que ela se envolva (Raul Ventura, “Sociedades por Quotas”, volume I, 1987, página 288; A. Menezes Cordeiro, “Direito das Sociedade”, volume I, página 661).

Contudo, é ao interessado que compete sempre definir a matéria específica, a concreta actuação societária ou o assunto da vida ou da gestão da sociedade, sobre que deseja ser informado (António Menezes Cordeiro, “Direito das Sociedade”, volume I, página 664).
Pode no entanto suceder que um qualquer sócio de uma sociedade veja preterido o seu direito à informação.

Para que tal aconteça, necessário se torna que o interessado exerça esse direito mediante requerimento por si formulado e dirigido à gerência, discriminando as informações que pretende obter, e esta lhe recuse resposta, ou então preste um esclarecimento que seja de presumir falso, incompleto ou não elucidativo (cfr. Hélder Quintas, “Regime Jurídico das Sociedades por Quotas”, 2010, página 126).

O mesmo sucede se for solicitada a designação de dia e hora para a consulta na sede social da escrituração, livros ou documentos da sociedade, e a mesma gerência lho recusar.

Caso tal suceda, tem o sócio preterido a faculdade de poder requerer ao tribunal inquérito à sociedade (artigo 216º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais).

Ou seja, é condição para o êxito de um inquérito social, o apuramento de uma ilícita recusa de informação ou um desvirtuamento da que foi prestada.

Assim, são pressupostos da viabilidade da realização do inquérito judicial a alegação pelo sócio dos fundamentos do pedido de inquérito (a sua qualidade de sócio e o impedimento ou desvirtuamento de aceder à informação pedida) e a indicação dos pontos de facto que interesse averiguar (o próprio conteúdo da informação obstaculizada, as realidades da vida societária que se pretenderam, e pretendem, conhecer) (A respeito do ónus de alegação e prova no inquérito, Carlos Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, volume II, 2ª edição, página 329; e Acórdãos da Relação do Porto de 22 de Janeiro de 2001, proc.º nº 0050849, e de 7 de Abril de 2005, proc.º nº 0531171, ambos in www.dgsi.pt).

É também essencial a satisfação do ónus de explicitar claramente, e com transparência, o esclarecimento que se pretende, e que, embora validamente pedido, não foi veiculado; não podendo ter-se por operacionais pedidos de informação vagos, confusos ou indeterminados (A Menezes Cordeiro, “Direito das Sociedade”, volume I, página 679).
Feitos estes esclarecimentos, vejamos o caso dos autos.

Invoca a apelante, no que para tal interessa, que:

- a sociedade requerente e o requerido H. J. são os únicos sócios da sociedade requerida;
- desde a sua constituição em 2012, a sociedade requerida deliberou serem nomeados para gerentes o requerente Nuno, em representação da sociedade requerente, e o requerido H. J.;
- aquando do início da actividade, o requerido H. J. ficou responsável pelas compras, vendas orçamentos, linha de produção, colocação de material acabado, recebimentos dos bens vendidos e colocados e gestão operacional da serralharia;
- para iniciar a sua actividade, a empresa teve de adquirir todos os bens, tendo para o efeito recorrido a empréstimos bancários, dando de garantia as próprias instalações e aval pessoal de ambos os sócios;
- devido à crise económica que assolou o país, houve a necessidade de recorrer a outro tipo de operações, nomeadamente empréstimos de ambos os sócios, suprimentos, pagamentos através de contas individuais e outros procedimentos, com o que se conseguiu manter a empresa em laboração;
- ao mesmo tempo, o requerente Nuno e o requerido H. J. reuniam periodicamente, acertavam contas no sentido de ficar sempre devidamente esclarecido sobre os procedimentos, quem era credor e devedor, se os empréstimos feitos pelos sócios eram ou não pagos, etc.;
- o requerido H. J. prestava contas, explicava a matéria-prima que tinha comprado, o trabalho que tinha sido executado, onde tinha sido colocado e para quem, onde depositava o dinheiro, se estava pago ou não e tudo o mais inerente;
- a partir de 2015, o requerente Nuno e o requerido H. J. começaram a sentir dificuldades de entendimento ao ponto de deixarem de dialogar;
- iam chegando relatos de incumprimento de obrigações do dia-a-dia e recebimentos que não passavam pelas contas da empresa, de incumprimentos para com os bancos e de a empresa estar sem dinheiro, pese embora formalmente a contabilidade não o demonstrar;
- atento o mau relacionamento existente que impossibilitava o diálogo, o requerente Nuno solicitou aos seus colaboradores técnicos a participação em reuniões com o requerido a fim de estes lhe prestarem todas as informações relativas à verdadeira situação financeira da sociedade e quem era credor de quem;
- por falta de informações do requerido H. J. não se chegou a nenhuma conclusão;
- foi nesse contexto que o requerente Nuno renunciou à gerência em 10.10.2016.
- uma vez que o requerente já tentou de diversas formas obter as informações necessárias, quer directamente, quer através de técnicos mandatados para o efeito, facilmente é de presumir que agora, com o corte de relações e com o clima de conflitualidade existente, o requerido não fornecerá mesmo qualquer informação;
- as contas não foram prestadas, antes foram recusadas injustificadamente.

Pese embora exista alguma ambiguidade na alegação, pois que se atribui ao legal representante da requerente sociedade (única autora nos autos), a qualidade de requerente/autor (que de facto não é, pois que não é ele próprio sócio da sociedade requerida), entende este tribunal, considerando a forma como são identificadas as partes na parte introdutória da petição inicial, que quem intentou a presente acção foi apenas a sociedade X (sócia da sociedade requerida), representada pelo seu legal representante, Nuno.

Assim sendo, verificado está o primeiro pressuposto da viabilidade da realização do inquérito judicial: a alegação pelo sócio da sua qualidade de sócio.

Passemos então ao segundo requisito.

Para verificação do mesmo necessário se torna apurar se em alguma parte da alegação acima referida (e constante da petição inicial) se reconhece a preterição do direito à informação em sentido estrito.
Ou seja, se foi omitido à sociedade autora, injustificadamente, algum esclarecimento, sobre algum concreto assunto da vida social, que adequadamente houvesse solicitado.
Não nos parece.

Com efeito, e como acima já afirmado, é essencial um pedido de informações à sociedade, prévio, e depois insatisfeito; referente a algum, ou alguns dos actos de gestão da vida da sociedade, dos assuntos ou dos negócios sociais.

Para que tal aconteça, necessário se torna que o interessado exerça esse direito mediante requerimento por si formulado e dirigido à gerência, discriminando as informações que pretende obter, e esta lhe recuse resposta, ou então preste um esclarecimento que seja de presumir falso, incompleto ou não elucidativo.

O exercício adequado desse direito exige, também, como dissemos, uma explicitação clara do que pretende, sendo ineficaz a solicitação vaga ou indeterminada.

No caso dos autos, temos que não resulta da alegação da apelante na petição inicial, que esta tenha exercido o seu direito mediante requerimento por si formulado e dirigido à gerência, discriminando as informações que pretende obter (de forma clara e explícita), e esta lhe tenha recusado resposta, ou que tenha prestado um esclarecimento que seja de presumir falso, incompleto ou não elucidativo.

Assim, do conteúdo da petição inicial não é possível obter a configuração concreta de um direito à informação sobre a vida societária que a apelante tenha, haja exercitado e lhe haja sido preterido.

O mesmo se diga da apresentação das contas.

Com efeito, pese embora no art. 34º da petição inicial se diga que as contas não foram prestadas, antes recusadas, o facto é que tal é infirmado pela certidão da matrícula da sociedade requerida, junta pela própria apelante, na qual constam inscritas várias prestações de contas (doc. 1 junto com o requerimento inicial).
O que a apelante parece pretender alegar é que a si, pessoalmente, lhe não foram apresentadas contas.

Mas também não tinham de o ser, pois que de acordo com o disposto pelo artigo 65º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, a quem as contas devem ser submetidas é ao órgão competente da sociedade, não individualmente a cada um dos sócios. De facto, a gerência da sociedade não tem que lhe submeter o relatório da gestão e as contas do exercício; tem de o fazer mas aos órgãos societários, no tempo que a lei comina.

Assim sendo, pretendendo a apelante a realização de dois inquéritos, um previsto no art. 1048º do Código de Processo Civil, fundado num direito subjectivo à informação; e outro previsto no artigo 67º do Código das Sociedades Comerciais, fundado num direito à elaboração do relatório de gestão e das contas de exercício, temos que a petição inicial apresentada não se mostra adequada a alicerçar qualquer um deles, por não terem sido alegados factos reveladores dos requisitos essenciais para a sua viabilidade.

Nesta conformidade, inexiste motivo para que se proceda a inquérito judicial à sociedade ré, razão pela qual, embora com fundamentação diferente, se confirma a decisão proferida de indeferimento, por falta de fundamento, do pedido de realização de inquérito judicial.
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Na decisão sob recurso, para além de se ter decidido indeferir o pedido de realização de inquérito judicial à sociedade ré, por infundado (pese embora, com fundamentos diferentes dos considerados neste acórdão), também se decidiu, face à junção do relatório de contas do exercício de 2017 pelos réus, julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

Desta parte também recorreu a autora.

Contudo, face ao decidido acima, entendemos que se mostra prejudicado o conhecimento desta questão.

No entanto, ainda que assim se não entendesse, sempre diríamos que, salvo o devido respeito por opinião em contrário, tais decisões parecem-nos contraditórias.

De facto, se o tribunal a quo entende que não há fundamento para a realização do inquérito judicial à sociedade, então a decisão a proferir é apenas a primeira (indeferir o pedido).

A decisão de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide apenas poderia ser aventada, na hipótese de o tribunal entender haver fundamento para a realização de inquérito, caso em que, a junção do relatório de contas do exercício de 2017, poderia então levar ao entendimento do Tribunal da verificação da inutilidade superveniente da lide (por entender que tal relatório responde às informações pretendidas).

Assim sendo, não faria sentido manter esta segunda parte da decisão, que julgou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.
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V. Decisão.

Perante o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, e, em consequência, confirmar a decisão recorrida na parte em que indeferiu o pedido de realização de inquérito judicial à sociedade ré, por infundado, pese embora com fundamentação diversa.
Custas da apelação, pela apelante (arts. 527º e 1052º nº 1 do CPC).
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Guimarães, 31 de Outubro de 2018

Fernanda Proença Fernandes
Heitor Gonçalves
Maria Conceição Bucho

(O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico com excepção das “citações” efectuadas que o sigam)