Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3671/21.0T8VCT.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS NOGUEIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
ATRIBUIÇÃO DE HABITAÇÃO SOCIAL
JURISDIÇÃO ADMINISTRATIVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - A atribuição do direito à habitação social, designadamente em regime de renda apoiada, assenta numa actuação unilateral que, ao abrigo de normas de direito público, regula a situação individual e concreta dos destinatários desse direito, atribuindo ou não a habitação, nas condições unilateralmente fixadas pela administração, dentro dos limites definidos pelo legislador.
II - A relação de arrendamento social integra-se, assim, na actividade administrativa do Estado munido das suas prerrogativas de ius imperium em relação ao arrendatário social, presidindo aos arrendamentos no regime de renda apoiada interesses de ordem pública de natureza social, pelo que a apreciação e decisão sobre a atribuição desse direito é da competência da jurisdição administrativa.
Decisão Texto Integral:
Atenta a julgada simplicidade da questão objecto do presente recurso, nos termos do art.º 656.º, do C.P.Civil, decide-se julgar sumariamente os presentes autos.
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I- Relatório

L. S., solteiro, maior, residente na Rua …, nº …, Viana do Castelo, veio propor contra X – Instituto de Habitação e Reabilitação Urbana, com sede na Rua … Porto, pedindo a condenação deste a conceder-lhe a si e ao seu agregado familiar habitação social com arrendamento apoiado e com urgência, atentas as precárias condições de saúde e económicas do Autor e do seu agregado familiar.
Após contestação e réplica, foi proferido despacho, ao abrigo do disposto no art. 3º, nº 3 do CPC, a determinar a notificação das partes para, querendo e em 10 dias, se pronunciarem sobre a incompetência material do juízo local cível a que foi distribuída a acção.
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Posteriormente, foi proferida decisão que julgou verificada a incompetência material da jurisdição cível, absolvendo, em consequência, o réu da instância (art. 99º, nº 1 do CPC).
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II- Objecto do recurso

Não se conformando com a decisão proferida veio o A./Recorrente interpor recurso, juntando, para o efeito, as suas alegações, e apresentando, a final, as seguintes conclusões:

A sentença recorrida considerou o tribunal a quo, incompetente em razão da matéria, nos termos conjugados entre os artigos 64º, do C.P.C., e 40º, nº 1, da Lei de Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013, de 26/08).
2ª – Porém, o recorrente entende que mal, pois não estamos em presença de litígio emergente de relação jurídica administrativa.
3ª – Com efeito, para o efeito jurídico pretendido, alegou sucintamente ter-se candidatado junto do recorrido para obter habitação em regime de arrendamento apoiado, para si e seu agregado familiar, tendo ainda alegado a urgência dessa atribuição, atentas condições frágeis de saúde, suas e de vários elementos do seu agregado familiar.
4ª – E em tal estribou o pedido, isto é, a conceder-lhe e ao seu agregado familiar habitação social com arrendamento apoiado e com urgência.
5ª – Ora, o artigo 17º, da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, atualizada pela Lei nº 32/2016, de 24 de Agosto, parece muito claro, do mesmo se inferindo, maxime do seu nº 3, que “Compete aos tribunais administrativos conhecer das matérias relativas à invalidade ou cessação dos contratos de arrendamento apoiado”.
6ª – E nos presentes autos não dilucidamos questão que se prenda com a invalidade ou cessação de contrato de arrendamento (não há ainda contrato).
7ª – Acrescendo que esta interpretação parece a única que se conjuga com o disposto no nº 3, do artigo 5º, daquele diploma legal.
8ª - A sentença recorrida inverte o silogismo, expresso em lei, apoiando-se no artigo 29º,do Aviso nº 22600-B/2021, que regulamenta o acesso e atribuição de habitações do X, I.P., em regime de arrendamento apoiado, pois tal Aviso apenas concretiza a regulamentação prevista no artigo 8º, do preâmbulo da Lei nº 32/2016, de 24 de Agosto.
9ª – E seria materialmente inconstitucional que um Regulamento se sobrepusesse à Lei, fonte normativa hierarquicamente superior.
10ª- A sentença recorrida violou, assim, por errada interpretação, o disposto no artigo 17º, da Lei nº 81/2014, de 19 de Dezembro, atualizada pela Lei nº 32/2016, de 24 de Agosto, bem como as alíneas a) e k), do nº 1, do artigo 4º, do ETAF, pois a invalidade e a cessação são subsequentes à atribuição de habitação, plasmada na celebração do respetivo contrato de arrendamento apoiado.
11ª – As questões relacionadas com a atribuição e celebração do contrato de arrendamento apoiado, são, no modesto entender do recorrente, da competência dos tribunais comuns, seja, do Tribunal a quo e, assim sendo, incorreu, ainda, a sentença recorrida em erro de julgamento.
12ª - Pelo que, através de acórdão a proferir, deverá ser revogada a sentença recorrida e ordenar-se a tramitação subsequente dos autos no Tribunal a quo, por ser o competente.
Termos em que, julgando o presente recurso procedente e revogando a sentença recorrida, de acordo com as conclusões supra, e proferindo acórdão em conformidade, V. Exªs, Venerandos Juízes Desembargadores, farão JUSTIÇA!
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Não foram apresentadas contra-alegações, face ao que consta do sistema informático.
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III. O objecto do recurso

Como resulta do disposto nos arts. 608.º, n.º 2, ex. vi do art.º 663.º, n.º 2; 635.º, n.º 4; 639.º, n. os 1 a 3; 641.º, n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex. officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objecto do recurso.
Face às conclusões das alegações de recurso, cumpre apreciar e decidir se o litígio cabe no âmbito da jurisdição comum ou administrativa.
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Fundamentação de facto

- As incidências processuais supra expostas.
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Fundamentação de direito

A competência «ratione materiae» para o conhecimento dos processos alcança-se pelo «petitum», esclarecido ou iluminado pela respectiva «causa petendi».
Nos termos do art. 64.º do CPC, os tribunais comuns serão competentes para conhecer da presente causa se essa competência não estiver deferida à jurisdição administrativa.
Sendo esta a configuração da causa a ter em conta na decisão a proferir, há que atentar no facto dos tribunais judiciais terem uma competência residual na estrita medida em que a eles cabem as acções que não estejam atribuídas especificamente aos outros tribunais.
Esta competência residual decorre desde logo do artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República, e também do artigo 64.° do Código de Processo Civil, tal como do artigo 40.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, que postulam serem da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.
No que toca especificamente à competência dos tribunais administrativos e fiscais, estabelece-se no artigo 212.°, nº 3, da Constituição da República Portuguesa que “c[C]ompete aos tribunais administrativos e fiscais o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.”
Por sua vez, estabelece-se no artigo 1°, nº 1, do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro (doravante E.T.A.F.), na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 214-G/2015, de 2 de Outubro, aqui aplicável, por se tratar de um processo iniciado ou a iniciar após a sua entrada em vigor, que “o[O]s tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios compreendidos pelo âmbito de jurisdição previsto no artigo 4.º deste Estatuto”.
Ora, como se sabe, o E.T.A.F. aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro, teve como objectivo clarificar os critérios de delimitação da jurisdição administrativa com o propósito de facilitar o efectivo acesso à tutela jurisdicional dos interessados e de evitar conflitos de competência que sempre acabavam por retardar o funcionamento da Justiça. Nesse sentido, abandonou-se o critério delimitador da natureza pública ou privada do acto de gestão que gera o pedido, passando o artigo 4º do E.T.A.F. a enunciar as questões ou litígios sujeitos ou excluídos do foro administrativo, fazendo-o umas vezes de acordo com a cláusula geral do referido artigo 1º daquele Estatuto, outras em desconformidade com ela.
Certo é que a reforma administrativa de 2002, através da redacção conferida àquele artigo 4º, nº 1 do E.T.A.F., alargou claramente, em comparação com o E.T.A.F. de 1984, o âmbito da jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais. Não só ampliou o âmbito da jurisdição desses tribunais como, por outro lado, restringiu o tipo de litígio e de acções expressamente excluídos da competência desses mesmos tribunais.

Assim, para o caso que agora nos interessa, dispõe-se no artigo 4º desse diploma legal, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei nº 215-G/2015, de 2 de Outubro, que:
“1.- Compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questão relativas a:
(…)
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas”.
No caso em causa nos autos, o Recorrente pretende que lhe seja atribuída uma habitação social com arrendamento apoiado, invocando, para o efeito, a sua situação económica, social, familiar e pessoal, justificativas de tal atribuição urgente, sob pena de violação desse seu direito a uma habitação condigna.
Ora, a este título a Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, aplicável, entre o mais, aos contratos a celebrar após a data da sua entrada em vigor (2015-03-01), especifica que têm acesso à atribuição de habitações em regime de arrendamento apoiado os indivíduos e os agregados familiares que se encontrem em situação de necessidade habitacional urgente e ou temporária, designadamente decorrente de desastres naturais e calamidades ou de outras situações de vulnerabilidade e emergência social e perigo físico ou moral para as pessoas, incluindo as relativas a violência doméstica.
Assim, por via do Regulamento n.º 84/2018 de 2/2, de Acesso e Atribuição de Habitações do X, I. P., em Regime de Arrendamento Apoiado, visou-se regular os procedimentos aplicáveis ao acesso a habitações atribuídas pelo X, I. P., em regime de arrendamento apoiado, assentes no modelo do concurso por inscrição, que tem por objeto a oferta, aos candidatos inscritos em listagem própria, das habitações disponíveis para aquele efeito, a atribuir aos que, entre aqueles candidatos, obtenham a melhor classificação em função de critérios de hierarquização e de ponderação preestabelecidos.
Para esse efeito, considerou-se a lei orgânica do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I. P., aprovada pelo Decreto-Lei n.º 175/2012, de 2 de Agosto, mais precisamente nos termos conjugados das alíneas c) e r) do n.º 2 do seu artigo 3.º, o facto do X, I. P., possuir atribuições que visam assegurar a concretização da política definida pelo Governo para as áreas da habitação, designadamente na elaboração e apoio na elaboração de projetos legislativos e regulamentares nos domínios da habitação, da reabilitação urbana, do arrendamento e da gestão do património habitacional.
Por outro lado, atentou-se, ainda, no facto da Lei n.º 81/2014, de 19 de Dezembro, com a redação dada pela Lei n.º 32/2016, de 24 de Agosto, dispor no seu artigo 8.º, que as entidades locadoras devem promover a actualização dos seus regulamentos, e, assim, a consequente necessidade de adopção de um regulamento que definisse as condições e requisitos para o acesso e a atribuição de habitações do X, I. P., em regime de arrendamento apoiado, por forma a criar-se um quadro rigoroso e objectivo para esse fim, mas igualmente claro e de fácil percepção para os potenciais interessados, aprovando-se o projeco de Regulamento de Acesso e Atribuição de Habitações do X, I. P., em Regime de Arrendamento Apoiado, sujeito a consulta pública promovida ao abrigo do 101.º do Código do Procedimento Administrativo.
Posteriormente, por via do Aviso 22600-B/2021, de 30 de Novembro, procedeu-se à revisão do referido regulamento, no sentido de adequar, em conformidade com o antes exposto, os procedimentos aplicáveis ao acesso a habitações atribuídas pelo X, I. P., em regime de arrendamento apoiado, aí se estabelecendo no seu artigo 29.º, quanto à lei aplicável, que ‘a[A]o acesso e à atribuição de habitações do X, I. P., em regime de arrendamento apoiado é aplicável o disposto no presente regulamento, e subsidiariamente o regime jurídico constante da Lei 81/2014 e o Código do Procedimento Administrativo’.

Por sua vez, como se dispõe no artigo 1º do Código dos Contratos Públicos, aprovado pelo Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro:

“1 – O presente Código estabelece a disciplina aplicável à contratação pública e o regime substantivo dos contratos públicos que revistam a natureza de contrato administrativo.
2 - O regime da contratação pública estabelecido na parte ii é aplicável à formação dos contratos públicos que, independentemente da sua designação e natureza, sejam celebrados pelas entidades adjudicantes referidas no presente Código e não sejam excluídos do seu âmbito de aplicação.

3 - O presente Código é igualmente aplicável, com as necessárias adaptações, aos procedimentos destinados à atribuição unilateral, pelas entidades adjudicantes referidas no artigo 2.º, de quaisquer vantagens ou benefícios, através de ato administrativo ou equiparado, em substituição da celebração de um contrato público.(…)”.

No caso, a entidade demandada - Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana, I. P., abreviadamente designado por X, I. P. -, é um instituto público de regime especial e gestão participada, nos termos da lei, integrado na administração indireta do Estado, dotado de autonomia administrativa e financeira e património próprio (cfr. Art. 1.º, do . Decreto-Lei n.º 175/2012, de 2 de Agosto).
Posto isto, como resulta da breve síntese levada a efeito, resulta que a atribuição do direito à habitação social, designadamente em regime de renda apoiada, assenta numa actuação unilateral que, ao abrigo de normas de direito público, regula a situação individual e concreta dos destinatários desse direito, atribuindo ou não a habitação, nas condições unilateralmente fixadas pela administração, dentro dos limites definidos pelo legislador através, designadamente, dos diplomas acima enunciados.
A atribuição do direito à habitação social depende, assim, inequivocamente, de um acto administrativo, sendo que a posterior formalização dessa atribuição através de um contrato de arrendamento em nada colide com a sua natureza, já que esse contrato - com objecto passível de acto - não configura, quanto ao seu núcleo essencial o exercício de qualquer autonomia ou actividade consensual e bilateral, resultando o seu clausulado da manifestação, unilateral, da vontade do ente público.
Tal como se referiu na obra “Arrendamentos Sociais”, do C.I.J.E, da Fac. de Direito da Universidade do Porto, ed. Almedina, 2005 (ainda antes da publicação da Lei nº 21/09): “A relação de arrendamento social é encabeçada pelo Estado mas também, e sobretudo, pelos organismos autónomos, pelos institutos públicos, autarquias locais e IPSS, sempre que tenham construído ou adquirido prédios com apoio financeiro do Estado. São estes os arrendamentos sujeitos a renda apoiada, de acordo com o art. 82º, nº 1, do RAU” (págs. 32 e 33).
Regulando-se certos aspectos de tais arrendamentos no Dec. Lei nº 163/93 (essencialmente a fixação e actualização das rendas de acordo com os rendimentos do agregado familiar), tem plena justificação a argumentação expendida na citada obra, designadamente que: “A relação de arrendamento social aqui em análise não tem, também ela, origem contratual, mas antes se integra na actividade administrativa do Estado. O Estado ou mais propriamente, neste caso [habitações geridas pelo Município do Porto] a Autarquia Local surge nestas relações munidas das suas prerrogativas de ius imperium, numa posição face ao arrendatário social de supra/infra ordenação, especialmente na possibilidade de despejo administrativo e de transferência do agregado familiar em caso de sub-ocupação (art. 10º, nº 2, Dec. Lei 166/93, de 7-5)” (pág. 30).
Concluindo que aos arrendamentos no regime de renda apoiada presidem interesses de ordem pública de natureza social.
São esses interesses que justificam que as questões suscitadas no âmbito de tal contrato sejam resolvidas de acordo com os trâmites do procedimento administrativo, sem embargo da impugnação para o tribunal administrativo, tendo-se já entendido, no Ac. da Rel. do Porto, de 26-3-07, CJ, tomo II, num caso equiparável, tal como declarado nos Acs. da Rel. de Lisboa, de 7-10-10 e de 9-12-10 (www.dgsi.pt), no Ac. da Rel. do Porto, de 26-3-07 (jusnet), no Ac. do STA, de 8-2-11 (jusnet), ou nos Acs. do TCA-Sul, de 18-5-06 e de 8-6-06 (www.dgsi.pt), no Ac. da Rel. de Lisboa, de 12-5-11 (www.dgsi.pt), ser de decretar pela absolvição da instância com fundamento na incompetência material do tribunal.
Nestes termos, tem, assim, de se entender que a questão em causa nos autos é da competência da jurisdição administrativa, julgando-se, consequentemente, improcedente a apelação, por forma a manter-se a decisão recorrida.
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IV – DECISÃO

Pelo exposto, decide-se julgar a apelação improcedente, confirmando-se, consequentemente, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido.
Registe e notifique.
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Guimarães, 29 de Junho de 2022
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária e é assinado electronicamente)