Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3208/19.1T8GMR.G2
Relator: PAULO REIS
Descritores: RESTITUIÇÃO PROVISÓRIA DE POSSE
ESBULHO COM VIOLÊNCIA
FECHADURA EM PORTÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDÊNCIA DA APELAÇÃO
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A violência que caracteriza o esbulho, suscetível de determinar a providência cautelar de restituição da posse, tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre coisas;

II- Para integrar o conceito de violência no esbulho é suficiente a verificação de uma ação física exercida sobre determinada coisa como meio de coagir uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade ao impedi-la, face aos meios utilizados, de aceder ou utilizar a coisa que vinha possuindo.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

X - Investimentos Imobiliários, S.A., intentou procedimento cautelar de restituição provisória de posse contra J. C., pedindo que fosse ordenada a restituição da posse relativamente ao caminho de servidão que identifica no requerimento inicial, sem audição do requerido.

Alegou, para o efeito e em síntese, que é dona e legítima proprietária da fração autónoma designada pela letra "A", correspondente a uma loja comercial situada no rés-do-chão, com uma divisão na cave, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Avenida …, freguesia de ..., concelho de Guimarães, inscrito na matriz sob o Artigo ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n." .../090390-A, sendo que o prédio onde se integra a identificada fração confina, do Norte e Nascente, com caminho de servidão, o qual se destina a permitir o acesso à entrada da mesma, através da cave que a integra - servidão aquela constituída por usucapião -, sucedendo que, a partir de 02-03-2018 a Requerente deixou de poder aceder livremente à entrada da sua fração pela cave da mesma, através do caminho acima referido, porquanto o requerido, desde aquela data, tranca à chave o portão que separa o passeio da referida Avenida ... daquele caminho, sendo certo que apenas ele possui aquela chave.

Na medida em que a Requerente é uma sociedade comercial que afeta a sobredita fração à sua atividade de venda, a retalho, de tecido têxtil, destinado à produção de artigos têxteis para vestuário e para o lar, e posto que a carga e descarga daquelas mercadorias são preferencialmente realizadas através da cave, desde logo em consequência das dificuldades de paragem e estacionamento de veículos que caracterizam a referida matéria, forçoso é concluir-se que o comportamento do Requerido gera e potencia escusados incómodos e encargos na realização daquelas operações de carga e descarga, obrigando a que estes ocorram a partir da porta principal da loja situada no rés-do-chão do edifício, com prejuízo da circulação de trabalhadores e clientes da Requerente, em suma, perturbando o normal funcionamento do estabelecimento comercial e produzindo má imagem junto dos seus fornecedores e clientela.

Após recurso, foi determinado o prosseguimento da providência cautelar nos termos requeridos, tendo-se procedido à inquirição das testemunhas arroladas, sem prévia audição do Requerido.
Foi então proferida decisão, datada de 03-09-2019, julgando improcedente o procedimento cautelar e não decretando a restituição da posse requerida.

Inconformada, a Requerente apresentou-se a recorrer, terminando as respetivas alegações com as seguintes conclusões (que se transcrevem):

«1. As questões que aqui se colocam à douta apreciação do Meritíssimo Tribunal “ad quem” resumem-se a saber se, no caso em apreço, existe violência, sobre a coisa e, ainda, saber se é necessária a prova do risco de dano jurídico decorrente da demora da acção possessória para o decretamento da restituição provisória da posse.
2. A violência no esbulho pode traduzir-se numa acção física exercida sobre as coisas como meio de coagir o esbulhado a suportar uma situação contra a sua vontade
3. Actualmente, encontra acolhimento maioritário na doutrina e na jurisprudência o entendimento segundo o qual a relevância da violência sobre coisas abrange, nomeadamente, os actos consistentes na mudança de fechaduras de portas do próprio prédio objecto de esbulho
4. No caso em apreço, o Apelado trancou à chave o portão que separa o passeio da referida Avenida ... daquele caminho
5. mudando a fechadura da única porta de acesso ao prédio, com recusa de entrega de uma chave da nova fechadura
6. obstando e tornando doravante impossível a continuação da posse pela requerente o que constitui esbulho violento
7. Encontram-se, assim, verificados os requisitos para o decretamento do procedimento cautelar de restituição provisória da posse: a posse, o esbulho e a violência
8. Não é necessária a prova do risco de dano jurídico decorrente da demora da ação possessória – “periculum in mora” - para o decretamento da Restituição Provisória da Posse».
O recurso foi então admitido pelo Tribunal recorrido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo da decisão.

II. Delimitação do objeto do recurso

Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso - artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil (CPC) - o objeto do presente recurso circunscreve-se à questão de saber se, à luz dos factos indiciariamente considerados provados estão verificados os requisitos para decretar a providência cautelar de restituição provisória da posse, concretamente, o da violência a que alude o artigo 377.º do CPC.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

III. Fundamentação

1. Os factos

1.1. Os factos, as ocorrências e elementos processuais a considerar na decisão deste recurso são os que já constam do relatório enunciado em I. supra, relevando ainda os seguintes factos considerados provados pela 1.ª instância na decisão recorrida e que não vêm impugnados no âmbito da presente apelação:
1.1.1. Encontra-se registada a favor da Requerente por aquisição pela ap. …/170593, a fração autónoma designada pela letra “A”, correspondente a uma loja comercial situada no rés-do-chão, com uma divisão na cave, do prédio urbano constituído em propriedade horizontal, sito na Avenida ..., freguesia de ..., concelho de Guimarães, inscrito na matriz sob o artigo … e descrita na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o n.º .../090390-A.
1.1.2. De acordo com a escritura de propriedade horizontal, o prédio confronta a norte e nascente com caminhos de servidão, tendo a cave da fração A entrada a Norte por servidão.
1.1.3. Desde a compra em 1993 até 2 de março de 2018, a requerente utilizou este caminho para acesso à cave, desde a Avenida ....
1.1.4. O Requerido, arrogando-se de proprietário, desde 2 de março de 2018 vem impedindo a Requerente de utilizar o caminho, trancando à chave o portão que separa o passeio da Avenida ... daquele caminho.
1.1.5. A Requerente, sociedade comercial que tem afeta a sobredita fração à sua atividade de venda, a retalho, de tecido têxtil, e posto que a carga e descarga daquelas mercadorias eram realizadas através da cave, tem de as realizar a partir da porta principal da loja situada no rés-do-chão do edifício, com prejuízo da circulação de trabalhadores e clientes da loja.

2. Apreciação sobre o objeto do recurso

2.1. Da verificação dos pressupostos para o decretamento da providência cautelar de restituição provisória da posse, concretamente, no que essencialmente releva para o caso, se há violência no esbulho

A recorrente insurge-se contra a decisão de 03-09-2019, que julgou improcedente o presente procedimento cautelar especificado, não decretando a requerida restituição provisória da posse.

Defende, em síntese, que atualmente encontra acolhimento maioritário na doutrina e na jurisprudência o entendimento segundo o qual a relevância da violência sobre coisas abrange, nomeadamente, os actos consistentes na mudança de fechaduras de portas do próprio prédio objeto de esbulho, sustentando que no caso em apreço, o apelado trancou à chave o portão que separa o passeio da referida Avenida ... daquele caminho, mudando a fechadura da única porta de acesso ao prédio, com recusa de entrega de uma chave da nova fechadura, obstando e tornando doravante impossível a continuação da posse pela requerente o que constitui esbulho violento. Conclui no sentido de se encontrarem verificados os requisitos para o decretamento do procedimento cautelar de restituição provisória da posse: a posse, o esbulho e a violência.

Sustenta, por fim, que não é necessária a prova do risco de dano jurídico decorrente da demora da ação possessória - “periculum in mora” - para o decretamento da restituição provisória da posse.
Por seu turno, na decisão recorrida entendeu-se, após inquirição das testemunhas arroladas, que a factualidade dada como sumariamente provada permitia concluir que a requerente utilizava há mais de 25 anos o referido caminho para acesso à cave que tem acesso a norte por esse caminho, nunca tendo sido antes colocada em causa a sua utilização, nos termos supra descritos. Em conformidade, considerou-se que a requerente atuou de modo a exercer o correspondente direito (ou pelo menos uma aparência de titularidade correspondente) preenchendo o necessário “corpus” possessório e também o “animus possidendi” (que alias, se presume) - para a tutela jurídica invocada no presente procedimento.
Mais concluiu o Tribunal de 1.ª instância que a requerente viu-se privada de exercer a sua posse sobre o trato de caminho que a requerente utilizava há mais de 25 anos para acesso à cave que tem acesso a norte por esse caminho uma vez que o requerido impediu o acesso e utilização do referido caminho. Mais considerou que nunca antes tinha sido colocada em causa a utilização pela requerente do caminho.
Em consequência, julgou igualmente verificado o segundo requisito indispensável para o decretamento provisório da providência solicitada, concretamente, o esbulho, que caracterizou pela privação, total ou parcial, do poder do possuidor no exercício dos atos correspondentes ao direito real que se traduzem na retenção, fruição da coisa, ou da possibilidade de o continuar a exercer.
Entendeu, porém, que os factos alegados e que foram considerados indiciariamente como provados não eram suscetíveis de ser enquadrados no conceito de violência, de acordo com o entendimento de que foi apenas alegado que o Requerido fechou à chave o portão existente - não havendo indicação se proprietário, mas arrogando-se de tal qualidade -, e não entregou a chave à requerente. Sustentou então o Tribunal a quo que o requerido não teve que vencer qualquer obstáculo para tomar posse do caminho, já aí existindo um portão, não sendo provado nem alegado que se destruíram fechaduras, mas determinou que o portão ficasse fechado à chave. Entendeu, assim, que tal facto não consubstancia qualquer violência, sendo apenas o “meio de realização do próprio esbulho”.
Em consequência, concluiu que não houve no caso qualquer perturbação da tranquilidade pública que justifique a punição imediata do esbulhador com recurso à restituição imediata da posse, sem audição do Requerido, através da providência cautelar prevista no artigo 377.º do CPC.
Por último, tal como entendeu ainda o Tribunal a quo, o procedimento também não podia agora ser decretado, sem qualquer contraditório, e atendendo ao tempo decorrido - mais de um ano deste o esbulho - e tendo sido apenas alegado e indiciariamente provado que a falta de acesso pelo caminho impede a carga e descarga na cave, tendo que ser feita na rua principal, com incómodo, acrescentando que tal incómodo não preenche o requisito geral de periculum in mora que a demora da decisão definitiva possa implicar, não se podendo daqui concluir a existência de um fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito da requerente.
Verifica-se, em primeiro lugar, que a Recorrente não impugna a decisão sobre a matéria de facto incluída na decisão recorrida, porquanto não indica quaisquer factos que entenda terem sido indevidamente julgados.
Assim sendo, resulta evidente que os factos a considerar na apreciação da questão de direito são os que se mostram enunciados sob os n.ºs 1.1.1. a 1.1.5 supra.
O procedimento cautelar de restituição provisória de posse mostra-se especificamente regulado no âmbito dos artigos 377.º e 378.º do CPC.
Neste domínio, o referenciado artigo 377.º do CPC prevê a possibilidade de o possuidor, no caso de esbulho violento, pedir que seja restituído provisoriamente à sua posse, alegando os factos que constituem a posse, o esbulho e a violência. Tais requisitos surgem ainda enunciados no artigo 378.º do Código Civil (CC), o qual alude aos termos em que a restituição é ordenada, enunciando que «se o juiz reconhecer, pelo exame das provas, que o requerente tinha a posse e foi esbulhado dela violentamente, ordena a restituição, sem citação nem audiência do esbulhador».
O artigo 1251.º do CC define posse como «o poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real».
Tal como anotam Rui Pinto, Cláudia Trindade(1), a posse apresenta como primeiro pressuposto «a verificação de subordinação da coisa à vontade de um sujeito, a qual pode ou não corresponder a um direito legítimo. Essa subordinação designa-se tradicionalmente por corpus e tem o seu início no momento da constituição da posse (…). O corpus não é uma situação material stricto sensu, pois não se exige o aproveitamento contínuo da coisa. O que se exige é que a coisa esteja subordinada à vontade do sujeito. Para tanto basta que esse sujeito possa renovar a atuação material sobre ela sempre que queira. (…) Todavia a verificação de corpus não é bastante para se concluir pela existência de posse. Exige-se um segundo pressuposto de facto: o animus possidendi”.
Relativamente à posse enquanto requisito reportado ao procedimento cautelar de restituição provisória da posse revela-se manifesto que a providência poderá ser decretada desde que o julgador formule um juízo de mera probabilidade quanto à sua verificação.

No que concerne ao esbulho, este «verifica-se nos casos em que a pessoa é privada, total ou parcialmente, do exercício da “retenção ou fruição do objecto possuído”, ou seja, quando fica privada de exercer a sua posse ou os direitos que tinha anteriormente. O esbulho abrange, por isso, os atos que impliquem a perda da posse contra a vontade do possuidor e que assumam proporções de tal modo significativas que impeçam a sua conservação» (2).

No caso vertente, o Tribunal a quo entendeu indiciariamente demonstrada a prática pela requerente ré de atos materiais correspondentes à titularidade do direito invocado, no caso, que utilizava há mais de 25 anos o caminho para acesso à cave da fração autónoma (loja) de que é proprietária, enquanto titular de um direito de passagem (servidão de passagem), julgando preenchido o necessário corpus e também o correspondente “animus possidendi”, que, aliás, se presume, para a invocada tutela jurídica.

Mais entendeu indiciariamente comprovado o segundo requisito para o decretamento provisório da providência solicitada, concretamente, o esbulho, por considerar resultar da matéria de facto dada como sumariamente provada que a requerente viu-se privada de exercer a sua posse sobre o trato de caminho, uma vez que o requerido impediu o acesso ao mesmo e a respetiva utilização para acesso à cave a que a requerente tem acesso a norte por esse caminho, nunca tendo sido antes colocada em causa a sua utilização.
O juízo de probabilidade ou verosimilhança formulado pelo Tribunal a quo a propósito da verificação dos dois primeiros requisitos indispensáveis para o decretamento da providência, no caso a posse e o esbulho, não vem questionado na presente apelação. Também não vemos razões para alterar a qualificação enunciada na decisão recorrida a propósito de tais requisitos, atendendo à matéria de facto indiciariamente apurada nos autos.
Porém, como se viu, a existência de violência no esbulho é o pressuposto essencial que dita o acesso ao formalismo simplificado previsto no âmbito do artigo 377.º do CPC, por referência ao procedimento inominado ou procedimento cautelar comum.
Na verdade, o art.º 379.º do CPC faculta ao possuidor que seja esbulhado ou perturbado no exercício do seu direito, sem que ocorram as circunstâncias previstas no citado artigo 377.º, nos termos gerais, o recurso ao procedimento cautelar comum.

Nas palavras do Prof. Alberto dos Reis, para obter a restituição «o requerente não precisa de alegar e provar que corre um risco, que a demora na decisão definitiva na acção possessória o expõe à ameaça de dano jurídico; basta, como dissemos, que alegue e prove a posse, o esbulho, a violência. O benefício da providência é concedido, não em atenção a um perigo de dano iminente, mas como compensação da violência de que o possuidor foi vítima» (3).
Por conseguinte, «aquilo que se exige para efeitos de restituição provisória de posse é que a violência seja caracterizadora do próprio esbulho» ou seja, «que o julgador se convença, ainda que de uma forma indiciária, que o requerente tinha a posse de uma determinada coisa e que foi dela esbulhado de forma violenta» (4).
Nesta linha, e como de resto decorre do preceituado no artigo 378.º do CPC revela-se indiscutível que o momento em que deve ser considerada a violência é o próprio momento do desapossamento.
De acordo com o disposto no artigo 1261.º, n.º 2, do CC considera-se violenta a posse quando, para obtê-la, o possuidor usou de coação física ou coação moral nos termos do art.º 255.º. De acordo com o preceituado neste último preceito, diz-se feita sob coação moral a declaração negocial determinada pelo receio de um mal de que o declarante foi ilicitamente ameaçado com o fim de obter dele a declaração, esclarecendo o n.º 2, que a ameaça tanto pode respeitar à pessoa como à honra ou fazenda do declarante ou de terceiro.
A questão do alcance ou conteúdo do conceito de violência relevante para efeitos do esbulho tem sido objeto de controvérsia na doutrina e jurisprudência, sendo que para uma corrente, mais restritiva, a violência no esbulho só pode ser exercida sobre a pessoa do possuidor esbulhado ou contra as pessoas que defendem a posse, enquanto para outra corrente, de âmbito mais amplo, a violência no esbulho pode igualmente incidir sobre as coisas, ou seja, o esbulho «será igualmente violento quando, sendo exercido de forma direta e imediata sobre a coisa, atinja de algum modo, ainda que por via indirecta ou reflexa, designadamente pelo seu cariz ameaçador ou intimidatório, a pessoa do possuidor» (5).

Esta última corrente tem vindo a consolidar-se, ainda que com posições mais ou menos abrangentes, afigurando-se atualmente indiscutível que a violência que caracteriza o esbulho, suscetível de determinar a providência cautelar de restituição da posse, tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre as coisas.

Neste caso, e conforme sintetiza Abrantes Geraldes (6), «basta a violência exercida sobre a coisa, designadamente quando esteja ligada de algum modo à pessoa do esbulhado ou quando dela resulte uma situação de constrangimento físico ou moral».
É evidente que a adesão a esta última posição conduz à conclusão de que a violência aqui retratada não implica necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor.
Como se viu, de acordo com uma variante mais aberta ou abrangente desta última orientação jurisprudencial, a violência diretamente exercida sobre as coisas constitui meio indireto de atingir as pessoas. E, tal como referem a propósito Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (7), «ao lado da coação moral, há a coação física e, em domínio que não é o do negócio jurídico, esta pode consistir num obstáculo material que impossibilite a posse, independentemente de qualquer ameaça ou outro comportamento susceptível de afetar a segurança do possuidor». Assim, de acordo com este entendimento, «[b]asta que a ação física exercida sobre as coisas seja um meio de coagir uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade». Por conseguinte, «a coisa não deve ser vista como um obstáculo à apropriação do esbulhador até ao momento em que ele atua, mas como um obstáculo à atuação do possuidor a partir do momento da atuação do esbulhador».

Em face dos argumentos agora enunciados tudo nos leva a sufragar o entendimento vertido no Ac. STJ de 19-10-2016 (relatora: Fernanda Isabel Pereira) (8), sufragando a aceção mais lata de esbulho violento sinteticamente enunciado nas respetivas conclusões (nos segmentos que para o caso relevam):

«(…)
V - O conceito de violência encontra-se plasmado no art. 1261.º, n.º 1, do CC, que define como violenta a posse adquirida através de coacção física ou de coacção moral nos termos do art. 255.º do mesmo Código.
VI - A violência aqui retratada não implica necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor. Basta que o possuidor dela seja privado contra a sua vontade em consequência de um comportamento que lhe é alheio e impede, contra a sua vontade, o exercício da posse como até então a exercia – pelo que se sufraga a acepção mais lata de esbulho violento.
VII - A interpretação mais restritiva seria redutora e deixaria sem tutela cautelar o possuidor privado da sua posse por outrem que, na sua ausência e sem o seu consentimento, actuou por forma a criar obstáculo ou obstáculos que o constrangem, nomeadamente, impedindo-lhe o acesso à coisa.
VIII - Não pode deixar de se considerar esbulho violento a vedação com estacas de madeira e rede com uma altura de 1,50m executada pelos requeridos como um obstáculo que constrange, de forma reiterada, a posse dos requerentes, impedindo-os de a exercitar como anteriormente faziam, merecendo, por conseguinte, tutela possessória cautelar no âmbito do procedimento de restituição provisória de posse».

Com efeito, conforme se enuncia ainda no Ac. do TRG de 3-11-2011 (relator: António Sobrinho) (9):

«I- A violência no esbulho pode ser exercida tanto sobre as pessoas como sobre as coisas.
II- Na acção cautelar de restituição provisória de posse, quando a actuação do esbulhador sobre a coisa esbulhada é de molde a, na realidade, tornar impossível a continuação da posse, seja através de obstáculos físicos ao acesso à coisa, seja através de meios que impedem a utilização pelo possuidor da coisa esbulhada, estaremos perante um caso de esbulho violento;
III- A violência no esbulho pode traduzir-se numa acção física exercida sobre as coisas como meio de coagir o esbulhado a suportar uma situação contra a sua vontade».

De forma idêntica, refere o Ac. do TRG de 14-09-2017 (relator: Espinheira Baltar) (10):

«1. Na restituição provisória de posse a violência pode ser dirigida contra as pessoas ou coisas.
2. Quando direcionada às coisas é relevante desde que a coisa seja obstáculo do esbulho e impeça o exercício do direito do esbulhado ou potencie a intimidação ou constrangimento, de forma direta ou reflexa, do esbulhado».

A este conceito mais lato de esbulho violento adere ainda o Ac. TRP, de 2-03-2006 (relator: Mário Fernandes) (11), onde se entendeu que « a retirada das chaves da porta que dá acesso ao imóvel é suficiente para caracterizar uma situação de violência, fazendo-a equivaler àquela outra situação de mudança de fechadura que comummente é atendida pela doutrina e jurisprudência para se dar como verificado o requisito de violência em restituição provisória de posse», após considerar que « para a caracterização da violência no esbulho, torna-se relevante toda aquela situação em que o esbulhado é colocado numa posição de impedimento de aceder ou contactar com a coisa que vinha possuindo, face à actuação levada a cabo pelo esbulhador.
Releva para tal efeito o esbulho que conduz ao impedimento do possuidor de usar e fruir a coisa, havendo de vencer um obstáculo colocado por actuação do esbulhador.
É também por isso que, numa tese mais abrangente, se defende que a violência do esbulho tanto pode ser uma violência por coação física ou moral que atinja a capacidade volitiva do possuidor espoliado, como o pode ser sobre a coisa possuída, ainda que não tenha o aludido efeito de constrangimento na vontade de acção do possuidor (…)».

Nestes termos, deve considerar-se violento todo o esbulho que impede o esbulhado de contactar com a coisa possuída, em consequência dos meios usados pelo esbulhador (12).

No caso vertente, verificamos que a decisão recorrida atendeu aos factos que da mesma constam discriminados como indiciariamente provados, para considerar que «[n]ão teve o Requerido que vencer qualquer obstáculo para tomar posse do caminho, já aí existindo um portão, não sendo provado nem alegado que se destruíram fechaduras, mas determinou que o portão ficasse fechado à chave.
Como já se referiu nestes autos, em nosso entender este facto não consubstancia qualquer violência, sendo apenas o “meio de realização do próprio esbulho”», após o que concluiu: «[n]ão houve aqui qualquer perturbação da tranquilidade pública, que justifique a punição imediata do esbulhador, restituindo-se imediatamente a posse sem audição deste».
Em primeiro lugar, cumpre referir que na conclusão 5.ª das correspondentes alegações vem a apelante aludir à mudança da fechadura da única porta de acesso ao prédio, com recusa de entrega de uma chave da nova fechadura. Porém, analisando os factos que foram considerados indiciariamente como provados e que se mostram pacificamente consolidados em sede de recurso facilmente se verifica que a solução que a recorrente defende para o litígio assenta, na parte agora em evidência, em matéria de facto que não consta dos factos provados. Assim, em lado algum da matéria de facto assente consta a referência à aludida mudança da fechadura da única porta de acesso ao prédio nem a aludida recusa de entrega de uma chave da nova fechadura.
De relevante, extrai-se da factualidade indiciariamente provada, além do mais, o seguinte: «Desde a compra em 1993 até 2 de março de 2018, a requerente utilizou este caminho para acesso à cave, desde a Avenida ...» (1.1.3); «O Requerido, arrogando-se de proprietário, desde 2 de março de 2018 vem impedindo a Requerente de utilizar o caminho, trancando à chave o portão que separa o passeio da Avenida ... daquele caminho» (1.1.4.).
Ora, à luz do enunciado enquadramento mais abrangente de esbulho violento, ao qual aderimos, julgamos que a conduta do requerido, ao passar a fechar à chave o portão por onde se fazia o acesso ao objeto da posse, no caso ao caminho de servidão, traduz-se num ato violento porquanto impediu e impede a requerente de continuar a utilizá-lo para aceder à sua cave desde a Avenida .... Tal atuação configura um obstáculo à atuação do possuidor, ora requerente, impedindo-a de continuar a aceder a tal caminho de servidão pela forma como vinha fazendo há mais de 25 anos, sem que nunca antes tivesse sido colocada em causa a sua utilização. Decorre do exposto que a coisa objeto da intervenção, no caso o portão que se provou separar o passeio da Avenida ... daquele caminho, se encontrava anteriormente na disponibilidade do esbulhado, porquanto resulta sumariamente provado que desde a compra em 1993 até 2 de março de 2018, a requerente utilizou este caminho para acesso à cave, desde a Avenida ....
Por conseguinte, estamos perante uma ação física exercida sobre a coisa como meio de coagir uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade e, como se viu, a coação física pode consistir num obstáculo material que impossibilite a posse, independentemente de qualquer ameaça ou outro comportamento susceptível de afetar a segurança do possuidor.
Como tal, pensamos que a matéria de facto provada sumariamente provada permite integrar o esbulho violento para efeitos dos artigos 1279.º do CC e 377.º do CPC, verificando-se assim todos os requisitos para que seja determinada a restituição provisória da posse, sem prévia audiência do alegado esbulhador.
Por último, defende a recorrente - e bem, como vimos - não ser necessária a prova do risco de dano jurídico decorrente da demora da ação possessória - “periculum in mora” - para o decretamento da restituição provisória da posse.
É certo ainda que na parte final da decisão recorrida o Tribunal a quo considerou que a falta de acesso pelo caminho impede a carga e descarga na cave, tendo que ser feita na rua principal, com incómodo.
Mais concluiu que tal incómodo não preenche o requisito geral de periculum in mora que a demora da decisão definitiva possa implicar, não se podendo daqui concluir a existência de um fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito da requerente.
Porém, a referência feita na decisão recorrida a tal requisito autónomo surge após nela se ter concluído que não se encontravam preenchidos todos os requisitos indispensáveis ao decretamento da providência cautelar de restituição provisória da posse.
Torna-se, assim, evidente, que a pronúncia do Tribunal a quo sobre esta matéria não foi efetuada a propósito da aferição dos pressupostos específicos do procedimento cautelar especificado de restituição provisória da posse mas a título de apreciação dos requisitos substantivos de que depende a procedência da pretensão destinada à defesa ou restituição da posse sem que ocorra o esbulho violento, ou seja, por meio de procedimento cautelar comum, conforme previsto no artigo 379.º do CPC.
Ora, tendo-se concluído pela verificação de todos os requisitos para que seja determinada a restituição provisória da posse, desnecessário se torna recorrer ao procedimento cautelar comum e, consequentemente, proceder à aferição dos requisitos substantivos de que depende a procedência de defesa ou restituição da posse por meio de procedimento cautelar comum.
Nestas circunstâncias, impõe-se conceder provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida, decretando a restituição provisória da posse à requerente, relativamente ao caminho de servidão aludido no ponto 1.1.3. dos factos provados.

Daí que procedam as conclusões da apelante.

Atendendo à situação evidenciada nos autos, para evitar que o requerido fique sem acesso ao caminho, entendemos que a melhor solução será a de proporcionar ao requerido chave ou chaves do portão, nos mesmos termos que sejam facultados ao requerente, ficando no tribunal à sua disposição.
Pelo exposto, cumpre julgar procedente a apelação.

Síntese conclusiva:

I - A violência que caracteriza o esbulho, suscetível de determinar a providência cautelar de restituição da posse, tanto pode ser exercida sobre as pessoas como sobre coisas;
II - Para integrar o conceito de violência no esbulho é suficiente a verificação de uma ação física exercida sobre determinada coisa como meio de coagir uma pessoa a suportar uma situação contra a sua vontade ao impedi-la, face aos meios utilizados, de aceder ou utilizar a coisa que vinha possuindo.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogar a decisão recorrida, determinando a restituição provisória da posse à requerente/apelante, relativamente ao caminho de servidão aludido no ponto 1.1.3. dos factos provados, devendo ser colocada a disposição do Tribunal, aquando da entrega, igual montante de chaves que forem disponibilizadas à requerente/apelante, para entrega ao requerido, aquando da respectiva notificação.
Oportunamente, após a efetivação da restituição deverá ser notificado o requerido, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 366.º, n.º. 6, 372.º, ambos do CPC.
Custas pelo requerente/apelante quanto ao procedimento cautelar e ao recurso, ao abrigo do disposto no artigo 539.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Guimarães, 17 de outubro de 2019
(Acórdão assinado digitalmente)

Paulo Reis (relator)
Alberto de Paiva Taveira (1.º adjunto)
Espinheira Baltar (2.º adjunto)


1. Código Civil Anotado, Coord. Ana Prata, Volume II, Coimbra, Almedina, 2017, p. 17
2. Cfr. Marco Filipe Carvalho Fernandes, Providências Cautelares, 2017-3.ª edição, Coimbra, Almedina, p. 260.
3. Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, Volume I, 3.ª edição – reimpressão - Coimbra, Coimbra-Editora, 1982, p. 670.
4. Cfr. Marco Filipe Carvalho Fernandes, Ob. cit., p. 262.
5. Cfr. Marco Filipe Carvalho Fernandes, Ob. cit., p. 262.
6. Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Vol. Coimbra, Almedina, 2001, p. 43, enunciando a propósito a doutrina e jurisprudência que julgamos representativa.
7. Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 3.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, pgs. 93-94, em anotação ao artigo 377.º do CPC, citando, a propósito, jurisprudência que julgamos elucidativa.
8. P. n.º 487/14.4T2STC.E2.S1 – 7.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt.
9. P. n.º 69/11.2TBGMR-B.G1, disponível em www.dgsi.pt.
10. P. n.º 99/17.0T8AMR.G1, disponível em www.dgsi.pt.
11. P. 0630368 disponível em www.dgsi.pt.
12. Cfr. Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, Ob. cit. pg. 94.