Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3671/13.4TDLSB.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO
TRIBUNAL DE RECURSO
ALEGAÇÕES ORAIS
LEI 48/2007 DE 28/08
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I – Na sequência das alterações introduzidas pela Lei 48/2007, de 29/8, o actual regime processual penal não só abandonou a regra da audiência no tribunal de recurso, como o legislador impõe a especificação dos pontos da motivação do recurso que o recorrente pretende ver debatidos, para que a mesma (excepcionalmente) tenha lugar, pelo que, sem o cumprimento dessa condição processual, decorrente do art. 411º, nº 5, do CPP, não haverá lugar a audiência de julgamento, para a produção de alegações orais.

II – O exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, visando uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como tendo sido incorrectamente julgados e uma reponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, pressupõe que nessa especificação o recorrente cumpra o ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário, tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, actualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do nº 4 do art. 412º do CPP. E daí que se reconheça não existir fundamento bastante para rejeitar a impugnação da decisão numa situação em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do recurso, tenha sido devidamente cumprido o ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados e as propostas de decisão alterN. sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal alterN., já podendo – e até devendo – o cumprimento do ónus secundário ser satisfeito na motivação (corpo das alegações), para aí sendo relegadas a valoração dos concretos meios de prova indicados nas conclusões e a determinação da sua relevância para a distinta decisão proposta, bem como a indicação concreta das passagens da gravação.

III - Sendo de verificação, praticamente, impossível a produção de prova sem discrepâncias ou contradições, ou, mesmo, sem divergência inconciliável, a sua existência não pode impedir o tribunal de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de acordo com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum, ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

No processo comum singular nº 3671/13.4TDLSB.G1 da Instância Local, Secção Criminal de Guimarães, da Comarca de Braga, a arguida C. C. foi submetida a julgamento e condenada, como autora de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256º, n.º 1, al. d) do C. Penal, na pena na pena de 250 dias de multa à taxa diária de € 6 e, ainda, no pagamento da quantia de € 32.287,50 (trinta e dois mil e duzentos e oitenta sete euros) e cinquenta cêntimos, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do PIC até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos decorrentes da sua conduta.

Inconformada com essa decisão, a arguida sustentou a sua absolvição por falta de prova bastante para a condenar no recurso que dela interpôs e cujo objecto delimitou com as seguintes conclusões (sic):

«1- O presente recurso, vem da não apreciação correta das provas e da sua conjugação com a lei.
2- A douta sentença assenta em prova não produzida em audiência, portanto assenta em não prova. Condenando pela negativa, e não ponderando o princípio in dúbio pro reo.
3- Toda a prova produzida em audiência de julgamento, todas as testemunhas da Assistente reconheceram, que nunca falaram com a Arguida / Recorrente e que nem a conhecem, mesmo quando se deslocaram ao Norte, estiveram sempre com o “gerente de facto”, designação dada pela Assistente à testemunha J. L..
4- Também, não se falou nem ficou demonstrado que o negócio foi tratado com a Arguida, ou que foi esta quem entregou o cheque ao Assistente, antes pelo contrário.
5- Assim nunca se poderia dar como facto provado que a entrega do cheque pela testemunha J. L. foi a pedido da Arguida, conforma consta no ponto 2. dos factos provados. O Tribunal a quo, extrapolou esta consideração, não se baseando em nada, ou em prova alguma.
6- No ponto 6. dos factos provados é referido que o cheque se encontrava na posse da Assistente, e que a Arguida era quem o tinha entregue, e que esta bem sabia que o mesmo ia ser apresentado a pagamento. Ora nada disto resulta dos autos ou da prova produzida, sendo mesmo uma contradição insanável da fundamentação, porque num ponto alega-se que a Arguida entregou, noutro alega-se que não entregou. E todos reconhecem que não entregou, mesmo todas as testemunhas, e elas é que estavam lá.
7- Ora em momento algum e em toda produção de prova se verifica que tenha sido a Arguida a entregar o cheque, e nada se prova que a Arguida ao realizar a declaração no Banco sabia que a mesma não correspondia á realidade. Esta executou a assinatura no cheque a mando do gerente de facto, e executou a declaração no banco, a mando do gerente de facto, até porque não conhecia os meandros do negócio, como, preço, modalidade de pagamento, etc.
8- Quando tudo foi tratado conforme é reconhecido por todas as testemunhas da Assistente, pela testemunha J. L., e todos reconhecem que nunca falaram com a Arguida e que esta nenhuma intervenção teve no assunto dos autos, excepto o ter preenchido o cheque em branco, tudo o resto foi tratado pela referida testemunha “gerente de facto”, nomeadamente, data, local de emissão, e montante, valor, desconhecendo por completo a Arguida todo esse contexto.
9- Esta testemunha funcionava como gerente de facto da empresa, tanto assim é, que tudo era tratado por este, desde contratos de fornecimento, acordos de pagamento, tudo o que fosse necessário á condução da sociedade “Empresa A, Unipessoal, Lda.”, como se infere até do próprio pedido cível da Assistente / Demandante e das declarações das testemunhas por si indicadas, que sempre trataram tudo com o J. L..
10- Esta testemunha J. L., referiu que foi por sua iniciativa que levou a Arguida ao Banco para subscrever a declaração de extravio, conforme indicação da Assistente.
11- Foi por iniciativa do Tribunal a quo foi requerido de Fls. 347 a 362 dos autos, informações junto da Direcção de Finanças, e junto da Segurança Social, onde se comprova de forma inequívoca que a Arguida é trabalhadora por contra de outrem, no caso concreto, da Associação de Apoio á Criança, desde há longos anos, o que demonstra que não podia ser gerente de facto da sociedade “Empresa A”, mas apenas gerente de direito. O próprio Tribunal dá como provado que a Arguida é auxiliar de educação, veja-se o ponto 14. dos factos dados como provados.
12- E numa contradição insanável, o Tribunal a quo, alega que a Arguida sabia de tudo e agiu com dolo.
13- A gerência de direito, é distinta da gerência de facto, e pelas regras da experiência comum, sabemos que isto ocorre em centenas de empresas neste País, até porque a Arguida / Recorrente ao cumprir um horário de trabalho na Associação de Apoio á Criança, não podia acompanhar obras, negociar com fornecedores, acompanhar os elementos contabilísticos da empresa, contratar pessoal, deslocar-se aos clientes, deslocar-se aos fornecedores, contratar trabalhadores, transportá-los, etc..
14- Assim, e perante a prova produzida em audiência, perante os depoimentos das testemunhas, perante os documentos incertos nos autos, nunca em momento algum o Tribunal podia dar como provados os factos incertos nos pontos 2., relativamente á frase “... a pedido da Arguida, ...”, e dar por provados os factos incertos nos pontos 6., 7., 8., e 9., devendo com base na prova produzida e nas regras da experiência comum, dar esses pontos como factos não provado.
15- Relativamente aos factos dados como não provados na douta sentença, o descrito nos factos 1., 5., 6., 7., 8. e 9., passarem a ser em face da prova existente nos autos e produzida em audiência, serem declarados como factos provados, e em consequência com esta alteração dos factos dados como provados e dos factos dados como não provados, deve a douta sentença ser alterada em conformidade e consequentemente a Arguida / Recorrente ser absolvida.
16- Acresce o facto, de que a douta sentença não fundamenta nem motiva, o elemento subjetivo do crime, que é a ocorrência de dolo, nada da prova produzida indicia, quanto mais provar, que a Arguida agiu com dolo.
17- E faltando este elemento, não existe crime de falsificação e consequentemente não pode ocorrer condenação.
18- Por outro lado, o Tribunal a quo, não ponderou a ocorrência do in dúbio pro reo, principio esse que devia ponderar, atenta a falta de prova que sustente a acusação, produzida em audiência.
19- Ora, com direta decorrência do principio da presunção de inocência, encontramos o denominado princípio “in dúbio pro reo” , de acordo com o qual, só podem dar-se como provados quaisquer factos ou circunstâncias desfavoráveis ao arguido, quando eles se tenham, efectivamente, provado para além de qualquer dúvida, pelo que, em caso de dúvida, na apreciação da prova, a decisão não pode ser desfavorável ao arguido, (cfr Jesheck, “Tratado de Derecho Penal ­ Parte General” trad. De Mir Puig Munõz Conde, Bosch, Barcelona, 1981, pág. 195).
20- Sobre essa matéria Figueiredo Dias ensina qua “à luz do princípio da investigação bem se compreende, efetivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminosos, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser atribuídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados (cfr. Artigo “Direito Processual Penal” I Vol., Reimpressão de 1984, pág. 213)
21- E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termos o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, ou seja, relativamente aos factos desfavoráveis ao arguido, a dúvida conduzirá a que os mesmos se dêem como não provados. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio “in dubeo pro reo”.
22- A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio terá de ser insanável, razoável e objectivável. Em primeiro lugar, a dúvida terá de, ser insanável, prossupondo, por conseguinte, que houve empenho e diligência no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.
23- Deverá ser razoável, ou seja, impõe-se que se trata de uma dúvida séria, argumentada e racional. A dúvida que é gerada, unicamente, pela preguiça ou pelo medo de decidir, não é uma verdadeira dúvida.
24- A dúvida deverá ainda ser objetivável, ou seja, é necessário que possa ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjeturas e suposições.
25- Recentrando a nossa atenção no caso “a quo” identificadas as provas, feita a sua apreciação critica e considerando os explicitados critérios de valoração, não se dissiparam as dúvidas surgidas quanto à verificação da factualidade descritas nas alíneas a) a f), pelo que, face à persistência da dúvida razoável, entendemos que a mesma deve ser resolvida de acordo com o princípio in dúbio pro reo, que irá necessariamente aproveitar à arguida, permitindo ao Tribunal decidir no sentido que lhe é mais favorável, ou seja, no sentido da não verificação dos factos acima referidos.
26- A douta sentença, não faz uma aplicação correta nomeadamente, dos art.s 13º, 16º, 20º, 27º, 28º, 29º e 32º, da Constituição da República Portuguesa, dos art.s 124º a 127º, do Código de Processo Penal e 256º, do CP.».

No remate dessas conclusões, a recorrente requereu a realização de audiência (nos termos do art. 411º, nº 5 do CPP), por pretender alegar na conferência, nos termos dos art.s 419º, e 423º, ambos do C.P.P.» para «que a sua defesa, seja melhor exposta nesse douto Tribunal de recurso, até porque não é este o recurso que o satisfaça».

O recurso foi admitido por despacho proferido a fls. 480.

O Ministério Público, em 1ª instância, apresentou resposta ao recurso deduzido pela arguida, pugnando pela sua total improcedência, por entender que a decisão recorrida não violou qualquer disposição legal ou princípio jurídico, mostrando-se devidamente fundamentada, tendo feito um exame crítico das provas, que permite avaliar cabalmente o processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, justo e adequado. E, neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta relegou para as alegações orais, a produzir na audiência, a tomada de posição quanto ao mesmo.
A assistente N., Arquitectura, Engenharia e Construção, Lda., contra-alegou pugnando também pela improcedência do recurso, asseverando que a prova produzida em audiência foi correctamente apreciada e, por isso, não merece qualquer censura.

Foi cumprido o art. 417º, nº 2, do CPP, tendo a recorrente e a assistente apresentado resposta, sustentando a última que o recurso não deve ser decidido em audiência, porque a recorrente não a requereu nos termos do art. 411º, nº 5, do CPP.

Efectuado exame preliminar e, colhidos os vistos, foi determinado que o processo fosse presente à conferência, nos termos do art. 419º, n.º 3, al. c), do CPP.
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Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (art. 412º, nº 1, do CPP), sem prejuízo de questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, neste recurso suscita-se a questão de saber se ocorreu erro de julgamento, designadamente por violação do princípio in dubio pro reo, que importa decidir depois de, previamente, aferir se o recurso deve ser decidido em conferência.
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Importa decidir, para o que deve considerar-se como pertinentes os factos considerados provados e não provados, bem como a motivação da respectiva decisão (sic):

«1. A arguida C. C. é sócia gerente da sociedade “Empresa A, Unipessoal, Lda” e nessa qualidade em 14.08.2012, celebrou com a assistente um acordo para fornecimento de geocomposto drenante, cujo valor totalizava €32.287,50.
2. Para pagamento desta quantia, em 16.08.2012, a testemunha J. L., a pedido da arguida, entregou à assistente “N. – Arquitectura, Engenharia e Construção, Lda”, o cheque do Banco A nº 098577…., assinado pela arguida, e preenchido pela testemunha J. L., com a data de 05.10.2012 para apresentação do mesmo a pagamento.
3. Foi no entanto solicitado à assistente sucessivas prorrogações desta data, que foram sendo aceites, até que a assistente decidiu apresentar o mesmo a pagamento em 20.11.2012.
4. Em 15.11.2012, a arguida perante o Banco A, declarou que pretendia a revogação do cheque com fundamento no seu extravio, subscrevendo os documentos que constam de fls. 94 e 95 cujo teor se dá por reproduzido.
5. Tal declaração determinou que esta entidade bancária devolvesse à assistente o cheque por esta entregue sem pagamento.
6. A arguida ao realizar a referida declaração sabia que a mesma não correspondia à realidade, bem sabendo que o cheque se encontrava na posse da assistente a quem o tinha entregue e ia ser apresentado a pagamento.
7. Pretendia com a mesma obstar ao pagamento à assistente da quantia de €32.287,50 titulada por aquele cheque.
8. Bem sabia a sua conduta proibida e punida por lei.
9. A demandante emitiu e entregou à demandada a factura nº 120000762 no montante global de €32.287,50.
10. A demandante em 19.03.2015, apresentou requerimento de injunção contra a sociedade “Empresa A, Unipessoal, Lda” com base na factura emitida no valor de €32.287,50 para obtenção de titulo executivo.
11. Em 01.06.2015, munida do título executivo, a demandante iniciou procedimento extrajudiacial pré-executivo para aferir da viabilidade de prossecução de uma acção executiva contra a referida sociedade.
12. Do resultado das buscas ao património da sociedade resultou que esta não detinha qualquer património.
13. A demandante convolou o PEPEX para a respectiva acção executiva, mas não se logrou encontrar bens suficientes e susceptíveis de liquidar o crédito (apenas se encontraram viaturas automóveis de baixo valor).
14. A arguida é auxiliar de educação e aufere cerca de €500,00 mensais.
15. Vive sozinha, em casa arrendada e paga €350,00 de renda.
16. Frequentou a escola até ao 6º ano.
17. A arguida não tem antecedentes criminais.

Factos não Provados:

1. A testemunha J. L. era gerente de facto da sociedade “Empresa A Unipessoal, Lda”.
2. A demandante ao ter depositado o cheque na sua instituição bancária (Banco B), e o mesmo ter vindo devolvido por extravio, cria no banco uma certa desconfiança e uma suspeita da prática de condutas menos dignas adoptadas pela demandante.
3. A relação de confiança entre a demandante e o banco fica abalada ou pelo menos paira uma certa desconfiança que pode obstar a que no futuro se mantenham relações comerciais, bem como a concessão de créditos.
4. Toda esta situação causou enormes transtornos à demandante, que se sentiu lesada na sua reputação, uma vez que com a devolução do cheque teve que atrasar pagamentos a fornecedores e entregas a clientes.
5. A arguida não sabia que o cheque por si emitido não tinha provisão.
6. A assistente informou “o gerente de facto” que vai fazer o acerto de contas, mas que entretanto, não sabe do cheque dos autos, e que possivelmente este se terá extraviado.
7. A arguida foi confrontada com a necessidade de cancelar o referido cheque no interesse da assistente.
8. O Banco A exigiu que o cheque fosse cancelado com fundamento no seu extravio, até porque tinha sido essa a informação dada pela assistente ao “gerente de facto”.
9. A arguida mais não fez do que seguir as ordens que lhe pediram, sem ter consciência de que ao agir desse modo, isso não correspondia à realidade.».

Motivação da decisão sobre matéria de facto:

«O Tribunal formou a sua convicção com base na valoração da prova produzida e examinada em audiência de discussão e julgamento, designadamente:
- nos documentos juntos aos autos;
- nas declarações dos legais representantes da assistente;
- nos depoimentos das testemunhas.
Feita esta breve súmula da prova produzida, tem que se concluir no sentido de que os factos dados como provados efectivamente aconteceram e a arguida foi a sua agente.
Com efeito, resulta dos documentos que foi emitido o cheque em causa, e após foi feita uma declaração junto do banco no sentido da sua revogação por motivo de extravio (cfr. fls. 15 e 16, 93 e ss.), o que levou ao seu não pagamento.
Tal cheque foi assinado pela arguida, conforme, referiu a testemunha J. L., e por este preenchido, e visava pagar um transacção comercial efectuada entre a empresa da arguida e a assistente, como esclareceram de forma coerente e sincera os legais representantes da assistente.
Na verdade, os legais representantes da assistente, souberam referir de forma coerente por si e entre si e conjugadas as suas declarações com a demais prova, que o cheque foi emitido pré-datado, para pagamento da factura que teve origem na transacção comercial, e que a testemunha J. L., lhes foi pedindo sucessivos adiamentos na entrega do cheque ao banco, porque a empresa da arguida tinha dificuldades em pagar.
Mais souberam esclarecer que após tais prorrogações, tentaram falar com a testemunha J. L., mas esta não mais atendeu o telemóvel.
Ora, da conjugação desta prova, logo se conclui da motivação para o crime. A arguida era a única sócia gerente da “Empresa A”, e nessa qualidade, assinou o cheque da sua empresa (fls. 15), com vista a pagar o referido fornecimento, mas como não dispunha de meios financeiros, através da testemunha J. L. (seu amigo e conhecedor do negócio), conseguiu um prazo acrescido para efectuar tal pagamento (data aposta no cheque). Mas como não conseguiu pagar na data de vencimento do cheque, através desta testemunha pediu mais prorrogações de prazo, até que a assistente decidiu entregar o cheque no banco no dia 20.11.2012. Todavia, a arguida já se tinha antecipado, e no dia 15.11.2012, foi pedir a revogação do cheque junto do seu banco, invocando o extravio (cfr. referiu a testemunha J. L. que a acompanhou).
Destarte, ficou o tribunal convencido que não obstante a testemunha J. L., tenha tido um papel nos factos, o certo é que a arguida era a sócia-gerente da empresa dona do cheque, assinou-o, foi ao banco revogá-lo, e sabia bem que o mesmo se destinava a um pagamento, que não quis fazer. Tanto é assim que nunca entregou outro cheque em substituição, e não pagou o valor, quer voluntariamente, quer através de acção executiva. É o que decorre da prova produzida à luz de juízos de experiência comum e normal acontecer.
Como se defende no Ac. STJ. nº 07P4588, de 12-09-2007, in www.dgsi.pt “I - A prova do facto criminoso nem sempre é directa, de percepção imediata; muitas vezes é necessário fazer uso dos indícios.
II - “Quem comete um crime busca intencionalmente o segredo da sua actuação pelo que, evidentemente, é frequente a ausência de provas directas. Exigir a todo o custo, a existência destas provas implicaria o fracasso do processo penal ou, para evitar tal situação, haveria de forçar-se a confissão o que, como é sabido, constitui a característica mais notória do sistema de prova taxada e o seu máximo expoente: a tortura” (J. M. Asencio Melado, Presunción de Inocência y Prueba Indiciária, 1992, citado por Euclides Dâmaso Simões, in Prova Indiciária, Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 205).
III - Indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra.
IV - A prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência.
V - O juízo de inferência deve ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há-de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência.” (sublinhado nosso)
Já versão da defesa, não mostrou qualquer credibilidade quer por si mesma quer face à prova produzida, porquanto não foi esclarecido de forma lógica e credível porque os representantes da assistente alegariam o extravio do cheque, e a arguida ao pedir a sua revogação, não lhes entregou outro em sua substituição. É que a alegação ulterior de que afinal haveria um acerto de contas a fazer, foi totalmente descabida e inverosímil, visto que os depoimentos das testemunhas J. R. e J. L., a este propósito, se mostraram incoerentes por si e entre si, e em desacordo com juízos de experiência comum, navegando mesmo à vista, tentando fazer crer ao tribunal que sendo a assistente e a empresa da arguida devedora de uma terceira empresa, iria ser feita entre as três um acerto de contas, aliás tudo desmentido pelos representes legais da assistente e testemunha M. L., os quais garantiram que sempre tiveram o cheque na sua posse, e não foi metido ao banco na data de vencimento a pedido da testemunha J. L..
Assim no que se refere aos factos dados como não provados, não foi feita qualquer prova sólida documental, por declarações, testemunhal ou outra sobre os mesmos, ou foi demonstrada a tese contrária. E o mesmo se diga quanto aos alegados danos não patrimoniais, sendo certo que dizem os juízos de experiência comum que a demandante não poderia ser responsabilizada ou ver a sua reputação beliscada, por uma conduta que não lhe é imputável, o que os bancos sabem porque faz parte da sua actividade.
No que concerne à situação pessoal e económica da arguida, relevaram as suas declarações e os documentos juntos aos autos.
Quanto à inexistência de antecedentes criminais, tomou-se em consideração o certificado de registo criminal junto aos autos.».
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1. A questão prévia.
Na sequência das alterações introduzidas pela Lei 48/2007, de 29/8, a audiência de julgamento para produção de alegações orais está concebida como uma efectiva excepção à normal tramitação dos recursos penais. O actual regime processual penal não só abandonou a regra da audiência no tribunal de recurso, como o legislador impõe a especificação dos pontos da motivação do recurso que o recorrente pretende ver debatidos, para que a mesma tenha lugar (excepcionalmente) (1). Assim, sem o cumprimento dessa condição processual, decorrente do nº 5 do artigo 411º do CPP, não haverá lugar a audiência de julgamento, para efeitos de produção de alegações orais.
Sobre tal matéria, já se pronunciou o Tribunal Constitucional no seu Ac nº 163/2011, de 03/11 (proc. 459/2010) que, depois de considerar «inquestionável que a sujeição do recorrente a um ónus processual de identificação dos pontos da motivação de recurso que pretende discutir, mediante alegações orais, constitui medida adequada e idónea a assegurar uma maior eficiência e celeridade na tramitação processual penal», concluiu pela não inconstitucionalidade do citado preceito, designadamente da sua interpretação de que resulte a imposição da indicação dos pontos de que se pretenda o debate em audiência, bem como a rejeição do requerimento de julgamento em audiência, sem prévio convite ao aperfeiçoamento, se o ónus legal imposto não for satisfeito (2).
Nesses termos, desatendendo a pretensão da recorrente, decidir-se-á o recurso em conferência.

2. O erro de julgamento e o princípio in dubio pro reo.
A verdadeira pretensão da recorrente dirige-se à impugnação, por erro de julgamento, da decisão proferida em 1ª instância sobre a matéria de facto, embora aluda à contradição da fundamentação, defendendo que devem ser considerados como não provados os factos que ficaram a constar nos pontos 2 (relativamente ao trecho «a pedido da arguida»), 6, 7, 8 e 9 – por insuficiência de prova cabal, directa e precisa, deixando, pelo menos, uma dúvida razoável, que deveria ter sido decidida a seu favor – e dar-se como provados os factos que ficaram a constar dos pontos 1, 5, 6, 7, 8 e 9 dos tidos por não provados.
A par dos vícios previstos no art. 410º, nº 2, alíneas a), b) e c), do CPP, o regime processual penal consagra a chamada impugnação ampla da matéria de facto, através da invocação de erro de julgamento, nos termos previstos no art. 412º, nº 3, alíneas a), b) e c), do mesmo código.
Para correctamente se impugnar a decisão com fundamento em erro de julgamento, é preciso que se indiquem elementos de prova que não tenham sido tomados em conta pelo tribunal quando deveriam tê-lo sido; ou assinalar que não deveriam ter sido considerados certos meios de prova por haver alguma proibição a esse respeito; ou ainda que se ponha em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, mas assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência – pela qualidade, sobretudo – dos elementos considerados para as conclusões tiradas.
É certo que a possibilidade de a Relação modificar a decisão da 1ª instância, sem que se imponha qualquer limitação relacionada com a convicção que serviu de base à decisão impugnada – ainda que, quanto à prova gravada, com a consciência dos condicionamentos postos pela limitação da acção do princípio da imediação –, é inteiramente congruente com o objectivo de garantir um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, claramente prosseguido pela lei de processo (3). Todavia, uma vez invocado o erro de julgamento, embora a sua apreciação se alargue à análise do que se contém e pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, a mesma é balizada pelos concretos pontos impugnados e meios de prova indicados, ou seja pelos limites fornecidos pelo recorrente, a quem se impõe o estrito cumprimento dos ónus de especificação previstos no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP (4). É esta a doutrina recomendada pelo STJ, p. ex., nos sumários dos seus Acs. de 10-01-2007 e 15-10-2008 (5).
O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos concretos pontos de facto que o recorrente especifique como tendo sido incorrectamente julgados, na sua perspectiva, a fim de poder obviar a eventuais erros ou incorrecções na forma como foi apreciada a prova.
Daí que a delimitação desses pontos de facto seja determinante na definição do objeto do recurso, cabendo ao tribunal da relação confrontar o juízo que sobre eles foi realizado pelo tribunal a quo com a sua própria convicção, determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifique nas conclusões da motivação.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Sendo certo que neste tipo de recurso sobre a matéria de facto (impugnação ampla), o tribunal da relação não se pode eximir ao encargo de proceder a uma ponderação específica e autonomamente formulada dos meios de prova indicados, deverá fazê-lo com plena consciência dos limites ditados pela natureza do recurso e pelo facto de se tratar de uma apreciação de segunda linha, a que faltam as importantes notas da imediação e da oralidade de que beneficiou o tribunal a quo.
Precisamente por isso, o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto deve cumprir o ónus de especificação previsto nas alíneas do nº 3 do citado art. 412º. A referida especificação dos concretos pontos factuais traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam na sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados. E a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico dos meios de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual impõem decisão diversa da recorrida. Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nesses meios de prova não sustenta o facto dado por provado ou como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe decisão diversa da recorrida, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.
Note-se que o cumprimento ou incumprimento da impugnação especificada pelo recorrente afecta os direitos do recorrido. Este, para defesa dos seus direitos, tem de saber quais os pontos da matéria de facto de que o recorrente discorda, que provas exigem a pretendida modificação e onde elas estão documentadas, pois só assim pode, eficazmente, indicar que outras provas foram produzidas quanto a esses pontos controvertidos e onde estão, por sua vez, documentadas. É que aos princípios da investigação oficiosa e da descoberta da verdade material contrapõem-se os do exercício do contraditório e da igualdade de armas, para que o processo se desenrole de acordo com o due process of law.
Daí a necessidade e importância da impugnação especificada, por permitir a devida fundamentação da discordância no apuramento factual, devendo tais especificações constar ou poder ser deduzidas das conclusões formuladas (art. 417º, n.º 3). Face ao nosso regime processual quanto aos pressupostos do exercício do duplo grau de jurisdição sobre a matéria de facto, é possível distinguir um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pelo recorrido e pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que, actualmente, se alcança com a indicação concreta das passagens em que se funda a impugnação, como consta do nº 4 do citado art. 412º.
É também por isso que se reconhece não existir fundamento bastante para rejeitar a impugnação da decisão numa situação em que, nas conclusões delimitadoras do objecto do recurso, tenha sido devidamente cumprido o ónus primário ou fundamental, identificando os concretos pontos de facto impugnados e as propostas de decisão alterN. sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imponham tal alterN., já podendo – e até devendo – o cumprimento do ónus secundário ser satisfeito na motivação (corpo das alegações), para aí sendo relegadas a valoração dos concretos meios de prova indicados nas conclusões e a determinação da sua relevância para a distinta decisão proposta, bem como a indicação concreta das passagens da gravação (6).
E, nessa senda, a análise da impugnação tem que ser feita por referência à matéria de facto efectivamente provada ou não provada e não àqueloutra que o recorrente, colocado numa perspectiva subjectiva, não equidistante, tem para si como sendo a boa solução de facto e entende que devia ser provada.
Como em geral sucede, esta tarefa é norteada pela ideia de que a apreciação da prova, segundo o grau de confirmação que os enunciados de facto obtêm a partir dos elementos disponíveis, está vinculada a um conceito ou a um critério de probabilidade lógica preponderante e, especificamente, face a uma eventual divergência inconciliável de depoimentos, produzidos por pessoas dotadas de uma razão de ciência sensivelmente homótropa, prevalecerão os contributos colhidos por essa via, que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum.
Contudo, no âmbito penal, o princípio in dubio pro reo, invocado pela recorrente nesta sede, estabelece a imposição de que, após a produção da prova, o tribunal terá de decidir a favor do arguido, perante a persistência de uma dúvida razoável: exige-se uma pronúncia favorável ao arguido quando o tribunal não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Neste conspecto, esse princípio constitui um limite normativo do princípio da livre apreciação da prova, na medida em que impõe orientação vinculativa para os casos de dúvida sobre os factos. Ora, como resulta do exposto, a violação desse princípio só se pode verificar quando o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
Normalmente, a imputação de uma alegada violação desse princípio suscita a necessidade de ser demonstrado o erro na apreciação da prova produzida, com vista a evidenciar no recurso a carência de prova de que os factos imputados ao arguido foram por este protagonizados ou de que se verificou qualquer circunstância que a lei faz depender a punibilidade do mesmo.
É certo que a prova não pressupõe uma certeza absoluta, mas, por outro lado, também não se pode quedar na mera probabilidade de verificação de um facto. Assenta no alto grau de probabilidade do facto suficiente para as necessidades práticas da vida (7). Trata-se de uma liberdade de decidir segundo o bom senso e a experiência da vida, temperados pela capacidade crítica de distanciamento e ponderação, ou no dizer de Castanheira Neves da «liberdade para a objectividade» (8).
É por isso que nos casos em que o julgador não logra decidir com segurança com base nas mesmas e permanecendo uma dúvida consistente e razoável não pode desfavorecer a posição do arguido, só lhe restando concluir pela absolvição do mesmo por apelo do princípio in dubio pro reo (9), pois convém não esquecer que «o arguido beneficia da presunção de inocência: a prova para condenação tem de ser plena (...). Desde que a prova suscite (…) a possibilidade de diferente hipótese que não pode ser afastada, prevalece, por força da lei, a presunção de inocência».
Assim é, porque «a condenação de um inocente afecta muito mais gravemente a justiça, e por isso também o próprio interesse social, do que a não punição de um culpado» (10).
E, como é evidente, é segundo esta perspectiva que hão-de ser apreciados os factos provados e a fundamentação que o tribunal recorrido levou a efeito para sustentar a sua convicção acerca deles, ou seja, o processo avaliativo que o tribunal levou a cabo de modo a que se possa dizer com segurança se houve ou não uma errada apreciação da prova produzida. Em suma, neste processo, a violação do invocado princípio deve ser defrontada ou apreciada também nesta vertente da adequação da decisão proferida à prova produzida.
É ponto assente na doutrina e na jurisprudência que na fundamentação da matéria de facto, como já se salientou, se hão-de indicar as razões porque se atribui credibilidade a certos meios de prova, incluindo naturalmente os depoimentos prestados, e a explicação das razões porque se não confere essa credibilidade a outras provas que hajam sido produzidas e que apontem em sinal contrário. O que implica, claro está, que todos os meios de prova sejam escrutinados quanto ao seu interesse e ao seu valor. Sabendo-se que as provas são, em princípio, apreciadas segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (art. 127º CPP) é necessário que o processo de formação dessa convicção seja explicado, esclarecendo-se nomeadamente porque se entende que ele se encontra em conformidade com as regras da experiência. Isto significa que não basta afirmar que certo depoimento, onde se abordaram determinados pontos está de acordo com as regras da experiência e, por isso, é credível; é preciso esclarecer de forma raciocinada a compatibilidade do seu teor com as tais regras da experiência, tanto mais detalhadamente quanto a decisão esteja em aparente desconformidade com essas regras.
Com efeito, não podemos olvidar que de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal, orientado pela descoberta da verdade material, aprecia livremente a prova e não está inibido de socorrer-se da chamada prova indiciária ou indirecta. Como é evidente, tais princípios não comportam apreciação arbitrária nem meras impressões subjectivas incontroláveis, antes têm, sempre, de nos remeter, objectiva e fundadamente, ao exame em audiência, com critérios da experiência comum e da lógica do homem médio supostos pela ordem jurídica, das provas aí validamente produzidas, visando a descoberta da verdade prático-jurídica e não a verdade transcendente, inalcançável, fruto de especulação projectada para fora do domínio da racionalidade prática, sem suporte em concretos argumentos e elementos de prova objectivos (11).
Realmente, como se sabe, os meios de prova nem sempre reproduzem por si directamente a imagem da verdade. Conforme refere G. Marques da Silva (12), é clássica a distinção entre prova directa e prova indiciária. Aquela refere-se aos factos probandos, ao tema da prova, enquanto a prova indirecta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova.
O indício não tem uma relação necessária com o facto probando, pois pode ter várias causas ou efeitos, e, por isso, o seu valor probatório é extremamente variável.
Na prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica da entidade que a afere. Porém, qualquer um daqueles elementos intervém em momentos distintos.
Em primeiro lugar é a inteligência que associa o facto indício a uma máxima da experiência ou uma regra da ciência; em segundo lugar intervém a lógica através da qual, na valoração do facto, outorgaremos a inferência feita maior ou menor eficácia probatória.
Segundo expõe André Marieta (13), a prova indiciária realizar-se-á para tanto através de três operações: «Em primeiro lugar a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência que permite, num terceiro momento, inferir outro facto que será o facto sob julgamento. A lógica tratará de explicar o correcto da inferência e será a mesma que irá outorgar à prova capacidade de convicção.».
A associação que a prova indiciária proporciona entre elementos objectivos e regras objectivas até leva alguns autores a afirmar a sua superioridade perante outro tipo de provas, nomeadamente a testemunhal, pois que nesta também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade, sendo, por isso, muito mais difícil de determinar a respectiva credibilidade (14).
Na ausência de referência na nossa lei a quaisquer requisitos especiais da prova indiciária, dependem da convicção do julgador os respectivos funcionamento e creditação, a qual, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável.
Conforme menciona G. Marques da Silva, o juízo sobre a valoração da prova suscita, num primeiro nível, a credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova, depende substancialmente da imediação e nele intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível inerente à valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, princípio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência (15).
Nada impedirá, pois, que devidamente valorada, a prova indiciária, por si, na conjunção dos indícios, permita fundamentar a condenação.

Analisemos, então, o sentido dos elementos de prova invocados na decisão impugnada e nas conclusões de recurso sobre os pontos da impugnação deduzida.
À luz do que acima expendemos, dum ponto de vista formal, a recorrente cumpriu, ainda que num patamar mínimo, o apontado ónus de especificação legalmente exigido para o conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto que formulou, identificado os concretos pontos de facto impugnados e propostas de decisão alterN. sobre os mesmos, bem como os concretos meios de prova que imporiam tal alterN., remetendo para os depoimentos produzidos em audiência e indicando as respectivas passagens concretas da gravação (apenas no corpo da motivação), para sustentar a versão que apresentou sobre os factos, alegando que o Tribunal não valorou correctamente os depoimentos prestados pelas testemunhas que referencia, cometendo, por isso, erros na apreciação da prova e violando o princípio in dubio pro reo.
Contudo, sendo de verificação, praticamente, impossível a produção de prova sem discrepâncias ou contradições, ou, mesmo, sem divergência inconciliável, a sua existência não pode impedir o tribunal de procurar formular a sua convicção acerca dos factos, de acordo, como se disse, com um critério de probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos que sejam corroborados por outras provas, ou que, ao menos, melhor se conjuguem entre si e/ou com a experiência comum ou de extrair conclusões de um facto conhecido para determinar um ou mais factos desconhecidos.
Após exame do resultado dos depoimentos produzidos, não apenas dos segmentos referenciados pela recorrente, conjugado com os elementos documentais juntos aos autos, podemos, desde já, adiantar que esses meios de prova permitem, sem margem para qualquer dúvida, concluir como o fez o tribunal recorrido. Concretizando.
Estava em causa a declaração feita pela recorrente perante o Banco A de que o cheque que havia emitido a favor da assistente se tinha extraviado, obrigando ao seu cancelamento.
Em face de tão específica matéria e com facilmente se intui, a recorrente era a pessoa que se encontrava em melhores condições para explicar das razões que a levaram a proceder desse modo. Porém, como resulta da prova produzida em audiência, a mesma remeteu-se ao silêncio, recusando-se a prestar declarações, apenas o tendo feito quanto às suas condições socioecónomicas.
Foram ouvidas as testemunhas indicadas na pronúncia e pela assistente e arguida, que apresentaram versões antagónicas sobre os factos.
Com efeito, os depoentes A. D. e António e a testemunha I. L., aqueles representantes legais e esta funcionária da assistente, explicaram o negócio que esteve subjacente à emissão do cheque por banda da arguida – fornecimento do material constante da factura de fls. 9 à empresa de que esta era a única sócia gerente – e reportaram os sucessivos pedidos no sentido de que o cheque não fosse apresentado a pagamento e a sua devolução, subsequente ao momento em que decidiram obter a sua cobrança. Esclareceram, ainda, que nunca contactaram com a arguida, tendo o cheque em causa sido entregue por uma terceira pessoa – a testemunha J. L. infra identificada –, com quem sempre mantiveram contacto até à data em que lhe comunicaram que iriam apresentar o cheque a pagamento.
Ao invés, as testemunhas J. R. e J. L., o primeiro ex-funcionário de uma empresa que manteve relações comerciais com a empresa da arguida e o segundo amigo desta, tentaram que fazer vingar a ideia de que terão sido os representantes legais da assistente a dar a indicação de que o cheque se havia extraviado, razão pela qual foi ordenado o seu cancelamento. Estas testemunhas, num redobrado esforço, também tentaram passar a ideia de que a arguida apenas se limitou a apor a sua assinatura no cheque sem ter conhecimento do negócio que lhe esteve subjacente e que efectuou a declaração no banco porque lhe havia sido dito que aquele se havia extraviado. No desenvolvimento das suas declarações, acabaram por afirmar que o cheque apesar de ter sido emitido não iria ser apresentado a pagamento porque havia um encontro de contas a ser efectuado entre a assistente e uma outra empresa (a Empresa X) de que o aludido J. L. era sócio gerente, assim destapando o véu das reais motivações da falsa declaração de extravio.
Todavia, é completamente evidente que a versão trazida pelos depoimentos, entre si conjugados, de A. D., António e I. L., segundo o critério da probabilidade lógica preponderante e da prevalência dos contributos corroborados por outras provas, é a que melhor se coaduna com as regras da experiência comum e, ainda, com a documentação enunciada na decisão impugnada. Vejamos:
É inegável que existiu uma transacção comercial entre a assistente e a empresa “Empresa A”, de que a arguida era a única sócia gerente, e que, nessa sequência, veio a ser emitido o cheque cuja cópia se encontra junta a fls. 15 dos autos, assinado pelo punho desta. Também resulta dos autos que o produto fornecido e identificado na factura de fls. 9, foi entregue, pelo menos na data em que consta da factura, no dia 14/08/2012, sendo que, a pedido da testemunha J. L., o cheque foi datado para o dia 5/10/2012 e, chegada esta data, foi sucessivamente adiada a sua apresentação a pagamento por solicitação dessa testemunha.
É igualmente incontestável que o cheque foi entregue por intermédio de uma terceira pessoa, e não directamente pela arguida, mas essa realidade encontra-se vertida nos factos provados, sendo meramente aparente a contradição que, segundo a recorrente, afectaria os itens 2 e 6 dos factos provados.
Nos apontados contexto e contornos em que surgiu a declaração que a arguida fez do extravio do cheque, suscitam alguma perplexidade as reiteradas tentativas ensaiadas pelas testemunhas arroladas pela defesa visando excluir a responsabilidade daquela por tal declaração. Realmente, se o cheque não se destinava a ser apresentado a pagamento, que sentido fariam os sucessivos pedidos de adiamento da sua apresentação? Por que razão não foi feito desde logo esse encontro de contas? E, aliás, como se poderia fazer esse encontro com contas respeitantes a uma distinta empresa de que a arguida não fazia parte?
Todos os elementos recolhidos nos autos, de harmonia com a realidade dos factos e do normal suceder, apontam num sentido diferente.
Idêntico raciocínio justifica a alegação da arguida/recorrente quando sustenta que se limitou a assinar o cheque, enquanto gerente da sociedade em questão, nada mais sabendo sobre o negócio que foi celebrado, porquanto, apesar de se ter apurado que o cheque foi preenchido por pessoa distinta da arguida, esta não se poderia alhear de que o tinha assinado e que era responsável pelo pagamento da quantia que viesse a ser inserta no mesmo: a arguida deveria previamente ter-se assegurado junto dos representantes legais da beneficiária do cheque da realidade da declaração que acabou por fazer no banco, se dela estivesse intimamente convicta, e providenciar pela sua substituição, pois, enquanto sacadora, era responsável pelo pagamento da quantia que o mesmo titulava.
Assim, não merece, acolhimento a argumentação da recorrente quando centra o alegado erro de julgamento, essencialmente, sobre os elementos subjectivos da factualidade tida por provada, procurando evidenciar a falta de conhecimento da sua parte, quer do negócio subjacente à emissão do cheque, quer da não correspondência com a realidade da declaração que acabou por efectuar pretendendo que se considere que agiu sem dolo.
Efectivamente, quanto ao elemento subjectivo da infracção, mais uma vez se tem que fazer uso das regras da experiência comum. Na verdade, sendo o dolo um elemento da vida interior – ou, dito de outro modo, de um facto do foro psicológico – do agente, por isso, impossível de apreender directamente, pode deduzir-se ou inferir-se de dados que, com muita probabilidade, o revelem. Tratando-se de factos, muitas vezes, indemonstráveis de forma naturalística, o tribunal pode considerá-los provados, através de outros que com eles normalmente se ligam.
No caso, em face dos apurados condicionalismos pessoais da recorrente, os particulares contornos da conduta desta têm um significado evidente, mais do que probabilidade séria daquele elemento subjectivo, a certeza da sua verificação, posto que manifestamente preenchido o conhecimento da totalidade dos elementos típicos, com o que é evidente a vontade da prática dos factos, sem que se verifique qualquer erro na apreciação da prova e sem contradição da fundamentação na modalidade de se terem dado como provados factos contraditórios ou da omissão da sua motivação.
De facto, se a mesma assinou o cheque, especificamente sabia que estava a dar uma ordem de pagamento pela quantia que lhe viesse a ser aposta e que era responsável pelo seu pagamento e ao proferir a declaração em causa, que sabia não ser verdadeira, obstava a tal desiderato, o que quis. Assim, os factos dados como provados têm a consistência e a clareza suficiente para, do ponto de vista subjectivo, configurar a actuação da recorrente na forma de autoria material com dolo directo.
Na verdade, é lícito aos juízes, na formação da sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, utilizar a experiência da vida, inferindo de um facto conhecido outro ou outros factos desconhecidos, convencendo sobejamente as explicações vertidas na decisão recorrida.
Pese embora a inexorável privação de imediação, também aderimos ao exame do Sr. Juiz sobre as falhas de credibilidade dos depoimentos prestados pelas testemunhas arroladas pela defesa, insuficiente, por isso, para abalar a convicção formada quanto ao desenvolvimento dos factos. Bem diversamente, reiteramos nós, os já referenciados depoimentos prestados por A. D., António e I. L. foram coerentes e convincentes e deles se extrai a materialidade que ficou a constar do elenco dos factos provados.
Assim sendo, não tem fundamento a discordância da recorrente quanto à decisão sobre a matéria de facto. Como resulta expressamente da motivação dessa decisão, o Sr. Juiz atribuiu credibilidade aos depoimentos agora referenciados, em detrimento das declarações prestadas pelas testemunhas arroladas pela defesa, pela razão, como sublinhou, de aqueles lhe terem parecido mais lógicos e conformes com a realidade e com as regras da experiência comum, consignando, também, na motivação da decisão sobre a matéria de facto o motivo pelo qual desconsiderou estas declarações.
Ora, os enunciados elementos, devidamente ponderados segundo as regras da lógica e da experiência comum, permitem que se retire a conclusão de que a recorrente, nas circunstâncias de tempo e lugar descritas nos factos, apesar de saber que se encontrava em dívida o montante que o cheque titulava, efectuou a declaração do seu extravio apenas com o intuito de se eximir ao respectivo pagamento.
Donde, entendemos que a decisão impugnada não merece censura, pois procedeu a uma correcta e devida ponderação de todos os meios de prova produzidos.
Na verdade, ressalta da decisão recorrida uma imagem lógica do que realmente aconteceu, sem que subsistam dúvidas de que a recorrente, naquelas circunstâncias de tempo e lugar, cometeu os factos tidos por provados. Realmente, resulta dos factos a vontade da arguida em fazer a declaração sabendo que a mesma não correspondia à verdade. É o que também resulta da motivação, acima transcrita, da decisão sobre os factos constantes da sentença recorrida, em que o Sr. Juiz indica cabalmente os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção e as razões pelas quais relevaram os meios de prova de que se socorreu e obtiveram credibilidade no seu espírito. Para tanto, não se limitando a indicar os concretos meios de prova geradores do seu convencimento, revelou as razões pelas quais, apoiando-se nas regras de experiência comum, adquiriu, com apoio na imediação e na oralidade da produção de tais meios, a convicção sobre a realidade dos factos tidos por provados e a inveracidade dos demais. Como se escreveu nessa motivação, para a formação da sua convicção quanto aos factos impugnados, foram determinantes os referenciados depoimentos, que se lhe afiguraram ser coerentes, confluindo, nos elementos essenciais dos factos, não tendo suscitado reservas do tribunal quanto à sua credibilidade.
Dito por outras palavras, o Senhor Juiz fez um exame, uma observação atenciosa e cuidada, efectuando de modo crítico um juízo sobre a prova produzida, que permite compreender a opção pelos meios probatórios e os motivos pelos quais os elegeram em detrimento de outros.
À recorrente assistia, evidentemente, o direito de apresentar a versão que lhe aprouvesse e que tivesse por mais adequada à sua defesa. Porém, a mesma limitou-se a alegar a credibilidade ou falta dela dos depoimentos que refere, sem apontar argumentos ou provas impositivas de uma decisão diversa da que foi tomada pelo tribunal nos segmentos aludidos.
De facto, não é suficiente pretender o reexame da convicção alcançada pelo tribunal de 1ª instância apenas por via de argumentos que apontem para a possibilidade de uma outra convicção, antes é necessário demonstrar que as provas indicadas impõem uma diversa convicção, ou, dito de outro modo, é indispensável a demonstração de que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, por violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais.
Por fim, dir-se-á que é certo que, se existisse a possibilidade razoável de uma solução alterN. ou de uma explicação racional e plausível diferente, dever-se-ia assentar a decisão na que se mostrasse mais favorável à arguida, de acordo com o aludido princípio in dubio pro reo. Contudo, o apelo a este princípio, fundamentalmente como corolário da apreciação que a recorrente fez da prova, não colhe no caso em apreço, porquanto não se demonstra que o tribunal de 1ª instância se tivesse defrontado com qualquer dúvida na formação da convicção, contra ela resolvida.
Efectivamente, atentando na motivação da decisão de facto, logo se constata que o Senhor Juiz não ficou em estado de dúvida: fica-se a conhecer, cristalinamente, o processo de formação da sua convicção, através do enunciado sobre o exame crítico da prova, com a justificação das razões pelas quais foram valorados e tidos em consideração os depoimentos das testemunhas, em conjugação com os demais meios de prova produzidos, como acima se deixou explicito em detrimento da defesa apresentada pelo arguido.
E, conforme já exposto, a este Tribunal de recurso também não restaram dúvidas da prática pela arguida dos factos assentes e da indemonstração dos demais e, consequentemente, também nós concluímos que foi acertada a avaliação feita em 1ª instância da prova produzida em audiência. Na verdade, todos os aduzidos elementos, conjugados entre si, analisados criticamente, segundo o indicado critério de probabilidade lógica prevalecente, facultam as expostas ilações quanto à matéria em apreço, incompatíveis com o acolhimento do sentido por que pugnou a recorrente quanto aos pontos referidos no recurso. Assim, perante a prova produzida, não se detecta qualquer pontual e concreto erro de julgamento ou patente irrazoabilidade na convicção probatória formada pelo julgador (com imediação (16)).

Por conseguinte, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não se vislumbrando a violação de qualquer norma ou princípio jurídico.


Decisão:

Nos termos expostos, indefere-se o requerimento da arguida/recorrente C. C. para a realização de audiência e, julgando-se improcedente o recurso por ela interposto, decide-se confirmar a decisão recorrida.

Custas do incidente e do recurso a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça deste em quatro UC´s.

Guimarães, 6/11/2017

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado


1- Pinto de Albuquerque (in “Comentário ao Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3ª ed., 2009, p. 1118) considera que «o legislador consagrou a audiência no tribunal de recurso como uma excepção» com o «objectivo de celeridade processual e ponderando que a audiência já constituía um direito renunciável».
2- «(…) a condição processual para produção de alegações orais, perante o tribunal de recurso, tal como fixada pelo n.º 5 do artigo 411º do CPP não configura uma “eliminação”, uma “redução” ou sequer uma “oneração” excessiva que diminua o âmbito e a extensão do direito fundamental de recurso penal (artigo 32º, n.º 1, da CRP). Mesmo que o recorrente se veja privado da possibilidade de produção de alegações orais, certo é que o núcleo essencial do direito a que determinada decisão penal condenatória seja apreciada por um outro tribunal, mantém-se plenamente intacto, visto que as suas motivações escritas serão alvo de conhecimento, pela conferência resultante da alínea c) do n.º 3 do artigo 419º do CPP.».
Também a RL tem indeferido a realização da audiência perante a falta de especificação dos pontos concretos que o recorrente pretenderia ver debatidos, como se retira da consulta dos acórdãos de 8-06-2016 (p. 51/15.0YUSTR.L1-3 - Vasco Freitas) e de 8-02-2017 (p. 577/14.3TAALM-3 - Barradas Oliveira) de cuja síntese consta: «O recorrente deve indicar com precisão/especificadamente, quais os pontos que pretende discutir em audiência e não limitar-se a requerer em termos genéricos a realização da mesma remetendo para a generalidade das suas motivações».
3- O legislador pretendeu um grau de recurso que atentasse e procedesse – dentro dos limites que uma gravação, despida dos factores possibilitados pela imediação consentisse – uma verdadeira e conscienciosa reapreciação da decisão de facto.
4- Como se expendeu no acórdão do Tribunal Constitucional nº 312/2012, relatado pelo conselheiro Cura Mariano «…o direito ao recurso constitucionalmente garantido não exige que o controlo efetuado pelo tribunal superior se traduza num julgamento ex-novo da matéria de facto, face às provas produzidas, podendo esse controlo limitar-se a aferir se a instância recorrida não cometeu um error in judicando conforme já se decidiu no Acórdão n.º 59/2006 deste Tribunal (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), onde se escreveu: “Na verdade, seria manifestamente improcedente sustentar que o recurso para o Tribunal da Relação da parte da decisão relativa à matéria de facto devia implicar necessariamente a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1ª instância. Essa solução traduzir-se-ia num sistema de “duplo julgamento”. A Constituição em nenhum dos seus preceitos impõe tal solução…».
5- Processos nºs 06P3518 e 08P2894, respectivamente, ambos relatados pelo Conselheiro Henriques Gaspar.
6- É, aliás, no cumprimento deste último requisito que, segundo parece ser consensual, se deve estabelecer alguma maleabilidade, em função das especificidades do caso, da maior ou menor dificuldade que ofereça, com relevo, designadamente, para a extensão dos depoimentos e das matérias em discussão, uma vez que se considere que a insuficiência de tal indicação não dificulta de forma substancial e relevante o exercício do contraditório, nem o exame pelo Tribunal.
7- Como dizia Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, p. 191.
8- Rev. Min. Pub. 19º, 40.
9- Com efeito, como ensina Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. I, Verbo, 1993, pág. 41, «a dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado». Neste sentido se pronuncia, também, a generalidade da jurisprudência dos nossos tribunais superiores, como o atestam, v.g., o Ac. da RP, de 21/04/2004, in www.dgsi.pt, no qual se refere: «O princípio “in dubio pro reo” é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. Ou seja, e dito de outro modo, quando o juiz não consiga ultrapassar a dúvida razoável de modo a considerar o facto como provado, com a certeza que se exige para tal, e porque não pode haver um “non liquet”, tem de valorar o facto a favor do arguido. a favor do arguido é consequente do princípio da presunção de inocência».
10- Cfr. Manuel Cavaleiro de Ferreira, in “Curso de Processo Penal”, vol. 2º, 1986, Editora Danúbio, pág. 259.
11- A óbvia vinculação dessa liberdade às regras fundamentais de um estado-de-direito democrático, sobretudo as vertidas na lei fundamental e na do processo penal, não obsta à busca da verdade material. Por ser condição da realização da justiça e da sua própria subsistência, não pode a concretização dessa tarefa, embora exercida com exigência e rigor, tropeçar em exagero ou comodismos, travestidos de juízos matematicamente infalíveis ou de argumentos especulativos e transcendentes, sob pena de essencialmente deixar de o ser e de o julgamento passar à margem da verdadeira, fundamental e íntima convicção dos juízes, com o risco indesejável de, assim, o tribunal abdicar da sua soberana função de julgar em nome da comunidade (cfr. Ac. STJ de 15/6/2000, in CJ(S), 2º/228, sobre a questão da livre convicção).
Mas, ainda a propósito da livre apreciação da prova, convém lembrar o que refere o Prof. F. Dias: «(…) o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável – e portanto arbitrária – da prova produzida». E acrescenta que tal discricionaridade tem limites inultrapassáveis: «a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever – o dever de perseguir a chamada «verdade material» – , de tal sorte que a apreciação há-de ser, em concreto, recondutível a critérios objectivos e, portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo». E continua: «a «livre» ou «íntima» convicção do juiz ... não poderá ser uma convicção puramente subjectiva, emocional e portanto imotivável». Embora não se busque o conhecimento ou apreensão absolutos de um acontecimento, nem por isso o caminho há-de ser o da pura convicção subjectiva. E «Se a verdade que se procura é...uma verdade prático-jurídica, e se, por outro lado, uma das funções primaciais de toda a sentença (maxime da penal) é a de convencer os interessados do bom fundamento da decisão, a convicção do juiz há-de ser, é certo, uma convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v. g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais – mas, em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, portanto capaz de impôr-se aos outros». E conclui: «Uma tal convicção existirá quando e só quando ... o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável», isto é, «quando o tribunal ... tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse» - Direito Proc. Penal, 1º. Vol., pp. 203/205.
12- Curso de Processo Penal, p. 82.
13- La Prueba em Processo Penal, p. 59.
14- Cfr. Mittermaier, Tratado de la Prueba em Matéria Criminal.
15- Ainda sobre o recurso a tal espécie de prova, o STJ em Ac. de 8/11/95 (BMJ 451/86) refere que «Um juízo de acertamento da matéria de facto pertinente para a decisão releva de um conjunto de meios de prova, que pode inclusivamente ser indiciária, contanto que os indícios sejam graves, precisos e concordantes» e acrescenta que as regras da experiência a que alude o art. 127º, têm um importante papel na convicção do Tribunal. E o Ac. da RC de 6/3/96, in CJ 2º/44, que: «A prova pode ser directa ou indiciária; A prova indiciária assenta em dois elementos: a) - o indício que será todo o facto certo e provado com virtualidade para dar a conhecer outro facto que com ele estará relacionado; b) - a existência de presunção que é a inferência que, obtida do indício, permite demonstrar um facto distinto; Nada impede que, devidamente valorada a prova indiciária, a mesma por si, na conjugação dos indícios permita fundamentar uma condenação» – doutrina reafirmada no Ac. do mesmo Tribunal de 9/2/2000, também in CJ, 1º/51. Também sobre prova directa, prova indiciária e regras da experiência, os Acs. Do STJ de 25/2/99 (BMJ 484/288) e de 3/3/99 (BMJ 485/248).
16- Devendo anotar-se que a falta dessa imediação, sempre impõe a este Tribunal de recurso alguma cautela na afirmação de tal irrazoabilidade. Como se sabe, apesar de as palavras serem importantes, só uma percentagem da nossa comunicação é feita verbalmente. Ora o simples registo audiofónico da prova não permite interpretar, na sua plenitude, as emoções reflectidas nos sinais não-verbais (movimentos corporais ou expressões faciais), designadamente os involuntários e inconscientes, dos depoentes e demais intervenientes. Como ensina o Prof. Figueiredo Dias, in “Princípios Gerais do Processo Penal”, p. 160, só a oralidade e a imediação permitem o indispensável contacto vivo com o arguido e a recolha deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por um lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabelece-se com o tribunal de 1ª instância, e daí que a alteração da matéria de facto fixada deverá ter como pressuposto a existência de elemento que pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo princípio da imediação.