Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
883/17.5PBBRG-B.G1
Relator: FERNANDO MONTERROSO
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA POR CONEXÃO
NOTÍCIA DO CRIME
MOMENTO EM QUE OCORRE
ARTº 28º
Nº 3 DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/24/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO
Decisão: CONFLITO NEGATIVO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
Para o efeito da determinação da competência por conexão (art. 28 nº 3 do CPP), a «notícia do crime» ocorre no momento em que a denúncia é formalizada e não quando ocorre a autuação e registo do processo nos serviços do MP.
Decisão Texto Integral:
I – No Proc. 883/17.5PBBRG do Juízo Criminal de Braga – J1, a arguida Cristina foi acusada como autora dum crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143 nº 1 do Cod. Penal, cometido em 2-7-2017, sendo ofendida Maria.

Neste processo a queixa foi apresentada em 13-6-2017 no Comando Distrital de Braga da PSP; tem o número (...) no registo de entrada nos serviços do MP; a acusação foi deduzida em 11-9-2017, sendo proferido despacho de saneamento (art. 311 do CPP) em 19-3-2018.

II – No Proc. 893/17.2PBBRG do Juízo Local Criminal de Braga – J2, as arguidas Maria e C. C. foram acusadas, como coautoras, dum crime de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art. 143 nº 1 do Cod. Penal, cometido na mesma ocasião do crime imputado no processo identificado em I, sendo ofendida Cristina.

Neste processo a queixa foi apresentada em 14-6-2017 no Comando Distrital de Braga da PSP; tem o número (…) no registo de entrada nos serviços do MP; a acusação foi deduzida em 5-12-2017, sendo proferido despacho de saneamento (art. 311 do CPP) em 12-3-2018.

III – Por decisão de 10-4-2018, a sra. juíza titular do Proc. 893/17.2PBBRG do Juízo Local Criminal de Braga – J2, depois de mencionar que neste processo a denúncia tinha sido feita em 14-6-2017, enquanto no Proc. 883/17.5PBBRG do Juízo Criminal de Braga – J1 tinha ocorrido no dia anterior, nos termos do art. 28 al. c) do CPP, determinou a apensação do seu processo ao Proc. 883/17.5PBBRG, por ser neste “onde ocorreu primeiramente a notícia de qualquer dos crimes”.

IV – Por sua vez, após a apensação, o sr. juiz do 883/17.5PBBRG do Juízo Criminal de Braga – J1, embora aceitando a existência de conexão entre os processos, decidiu que o competente para o julgamento conjunto era o Juízo Criminal de Braga – J2, porque tribunal do processo onde primeiro houve notícia do crime é o da data da autuação e registo como processo-crime nos serviços do MP…”.
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Observado o disposto no art. 36 nºs 1 do CPP, o sr. procurador-geral adjunto junto deste tribunal se pronunciou, no sentido da competência ser atribuída ao Juízo Local Criminal de Braga – J2, “por ter sido o tribunal diante do qual foi primeiramente deduzida a pretensão punitiva do Ministério Público quanto aos crimes em situação de conexão…”.
Cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO

Está em causa determinar o que se deve entender por “tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia de qualquer dos crimes”, expressão que consta da norma da al. a) do art. 28 do CPP.

O sr. procurador geral adjunto nesta relação pronunciou-se no sentido da competência ser atribuída ao Juízo Local Criminal de Braga – J2, “por ter sido o tribunal diante do qual foi primeiramente deduzida a pretensão punitiva do Ministério Público quanto aos crimes em situação de conexão…”.

Transcrevo do seu parecer:

“…toda a economia da regulação do art. 28 suscita alguns problemas de interpretação uma vez que no corpo do artigo se utilizam duas variantes: “tribunais com jurisdição em diferentes áreas” e “tribunais com sede na mesma comarca”, ao passo que na alínea c) se refere apenas a hipótese do “tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia de qualquer dos crimes”, nenhuma previsão se estabelecendo para a segunda variante, ou seja a de “tribunais com sede na mesma comarca”, não se podendo esquecer que, nestes casos, os tribunais não cobrem distintas áreas, mas sim a mesma; tudo isto num cenário em que o legislador não cuidou de adaptar o Código de Processo Penal em função dos efeitos da nova orgânica judiciária”.

Uma vez que “não é possível, no caso, responder à questão de saber na área de qual dos dois juízos locais criminais houve primeiro notícia do crime, já que ela ocorreu na área dos dois, que é a mesma (…) não sendo possível, à partida, distinguir a área de cada um dos juízos em divergência, parece-nos que o critério da prioridade da notícia do crime, no conhecimento da sua existência enquanto ilícito para julgar, deve aferir-se (…) de acordo com a admissão em juízo da factualidade a julgar, conferindo-se à norma da al. c) do art. 28 do CPP a interpretação que envolva a consideração do tribunal onde primeiro tenha havido a notícia do crime como sendo aquele que tenha apreciado primeiramente qualquer das factualidades que estiverem na situação de conexão a que alude o art. 24 nº 1 al. e) do CPP”.
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São evidentes as insuficiências da lei, apontadas pelo sr. procurador geral adjunto, que importam um esforço acrescido de interpretação.

Porém, ao contrário deste magistrado, afigura-se-me que o critério adotado pelo legislador, vertido na norma da al. a) do art. 28 do CPPP, remete em primeira linha para o momento da «notícia do crime», tal como este conceito emerge dos arts. 241 e ss do Código de Processo Penal.

Quando a lei fala em «notícia do crime» refere-se à forma como a informação sobre a prática de um crime pode chegar ao conhecimento do MP (1). O Código de Processo Penal dedica-lhe um capítulo completo (arts. 241 a 247). É diferente a terminologia usada, quando o feito é introduzido em juízo, após a acusação ou a pronúncia – o art. 311 nº 1 do CPP diz que os autos são «recebidos no tribunal».

Aliás, os senhores juízes em conflito estão de acordo quanto à ideia de que a notícia do crime ocorre numa fase primordial do processo.
Tendo havido denúncia em ambos os processos, a divergência está no seguinte:

A sra. juíza do Proc. 893/17.2PBBRG do Juízo Local Criminal de Braga – J2 entende que, em cada processo, a notícia do crime ocorreu quando a denúncia foi formalizada.

Diferentemente, o sr. juiz do Proc. 883/17.5PBBRG considera que o “tribunal do processo onde primeiro houve notícia do crime é o da data da autuação e registo como processo-crime nos serviços do MP…”.
Diga-se desde já que a razão está do lado da sra. juíza do Juízo Local Criminal de Braga – J2 (Proc. 893/17.2PBBRG).
A lei faz a distinção entre a «notícia do crime» e a «aquisição da notícia do crime» pelo Ministério Público – cfr. art. 241 do CPP.

Havendo «denúncia» (que é o caso que agora interessa) a notícia do crime ocorre quando o denunciante, por qualquer um dos meios previstos na lei, comunica os factos ao Ministério Público, a outra autoridade judiciária ou aos órgãos de polícia criminal – art. 244 do CPP.

Depois, se a denúncia for feita a entidade diversa do Ministério Publico, é transmitida a este no mais curto prazo, que não pode exceder 10 dias – art. 245 do CPP.

No primeiro momento ocorre a «notícia do crime»; no segundo ocorre o conhecimento, ou a aquisição, pelo Ministério Público da «notícia do crime». Naturalmente, os dois momentos coincidem quando a denúncia for feita diretamente ao Ministério Público.

O Prof. Germano Marques da Silva trata destes dois momentos. Transcrevo: “A notícia do crime é prévia, exterior ao procedimento, pois que este só se inicia com o ato de promoção do Ministério Público, mas sendo exterior, pré-procedimental, é um ato processual de grande importância” – Curso de Processo Penal, vol. III, pag. 52, ed. 2000 (sublinhado meu).

É pacífico que, sob pena de nulidade insanável, é o MP quem tem legitimidade para promover o processo penal [arts. 119 al. b) e 48 do CPP]. Tempos houve em que outras entidades partilhavam essas funções – PSP, GNR, autoridades administrativas, e alguns organismos do Estado. A simples remessa a juízo dos autos de notícia ou dos corpos de delito devidamente organizados equivalia, para todos os efeitos, à acusação em processo penal (cfr. art. 2 do Dec.-Lei 35.007 de 13-10-45). Estas entidades podiam «promover» o processo penal.

A atual exclusividade do Ministério Público terá levado alguns à ideia da necessidade conceitual de fazer coincidir a «notícia do crime» com o início do «procedimento» penal. Porém, como resulta da transcrição feita do Prof. Germano Marques da Silva, a «notícia do crime» pode existir como realidade processual antes do seu conhecimento pelo Ministério Público, por ser prévia ao início do procedimento penal.

Veja-se, por exemplo, a norma do art. 262 nº 2 do CPP: “… a notícia de um crime dá sempre lugar à abertura de inquérito”. Sem necessidade de recorrer a explicações semânticas, esta norma pressupõe a existência dos dois referidos momentos. Primeiro há a notícia do crime, que depois “dá lugar” à abertura do inquérito. O procedimento só se inicia com o inquérito, mas a notícia do crime é já um ato processual.
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Assim, o julgamento conjunto deverá ser feito no Juízo Criminal de Braga – J1, no Proc. 883/17.5PBBRG ao qual foi apensado o Proc. 893/17.2PBBRG.

DECISÃO

Decido o presente conflito negativo nos termos acima indicados.
Não é devida tributação.
Observe-se o disposto no art. 36 nº 3 do CPP.

1- V. Maia Gonçalves, em anotação ao art. 241 do CPP.