Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4615/17.0T8BRG.G1
Relator: MARGARIDA ALMEIDA FERNANDES
Descritores: PRESTAÇÃO DE CONTAS
ADMINISTRAÇÃO DE BENS ALHEIOS
PROCURAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/17/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDÊNCIA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- É a administração de bens alheio que impõe a obrigação de prestação de contas, quer esta resulte da lei, de negócios jurídicos e do princípio da boa-fé.

II- Uma vez que a concessão de poderes de representação, por si só, não cria na esfera jurídica do procurador, uma obrigação de os exercer, da procuração em si mesma não resulta nenhuma obrigação de prestar contas, mas esta obrigação existirá caso a procuração seja utilizada na administração de bens alheios.

III- A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, mas esta obrigação não deve ser entendida como um dever de informação genérico, mas como uma obrigação de informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documentos.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

X – Investimentos Imobiliários Lda., com sede em Braga, intentou a presente acção especial de prestação de contas contra A. C., residente na Rua …, em Braga, peticionando que fosse o réu condenado a prestar-lhe contas.

Para tanto alegou que o réu não cumpriu com o dever de prestação de contas, relativamente a procuração onde a autora lhe concedeu poderes para em seu nome e em sua representação, vender ou prometer vender, permutar ou prometer permutar determinados bens imóveis que especifica.
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O réu contestou negando a obrigação de prestar contas invocando em síntese que os bens indicados na procuração lhe pertenciam em virtude de acordo de princípios celebrado com a autora, sendo a procuração invocada o instrumento usado pelas partes para permitir que os bens ingressassem a esfera do réu.
Mais invoca erro na forma de processo.
*
A autora respondeu negando a celebração de qualquer acordo com o réu, sendo totalmente alheia a qualquer acordo pessoal celebrado entre o este e o C. C., seu administrador.
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Foi realizada tentativa de conciliação das partes, que se frustrou.
O tribunal pronunciou-se pela improcedência do alegado erro na forma de processo.
Foi designada data para inquirição das testemunhas e prestação de depoimento de parte.
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Após, foi proferida sentença, cuja parte decisória reproduzimos na íntegra:

“Termos em que julgo verificada a obrigação de prestação de contas por parte do Réu à autora dos actos jurídicos praticados no uso da procuração outorgada 13.5.2013, e, consequentemente, ordeno que o Réu apresente as referidas contas no prazo de 20 dias sob pena de, não o fazendo, não poder contestar as que a autora apresente (cfr. art. 942.º, n.º 5, do Código de Processo Civil).
Custas a cargo do réu (cfr. art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil), fixando-se oportunamente o valor da acção.
Notifique, sendo a ré para prestar as contas nos termos determinados e em conformidade com o disposto no art. 944.º, n.ºs 1 e 3, do Código de Processo Civil).”
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Não se conformando com esta sentença veio o ré dela interpor recurso de apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:

I- Do Objeto do Recurso

1- O presente recurso tem por objeto a douta sentença proferida no âmbito do processo supra identificado – para a qual remetemos e damos por integralmente reproduzida por questões de economia processual – na medida em que julga “verificada a obrigação de prestação de contas por parte do Réu à Autora” e ordena que “o Réu apresente as referidas contas”.

II- Contextualização Prévia.

2- Nesta sede, remetemos integralmente para o corpo das motivações, por questões de economia processual, dando por aqui reproduzida toda aquela matéria.

Posto isto,

III- Do erro no julgamento e a decisão que deveria ter sido tomada.
3- Os concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados.
4- Considera o recorrente que andou mal o tribunal a quo ao considerar como não provado que a autora tinha já obtido todas as informações relativamente aos negócios previstos na procuração, por via do seu representante legal C. C..
5- Designadamente, o recorrente considera que devem ser dados como não provados os seguintes factos constantes do rol dos factos dados dados como provados pelo tribunal a quo:
- o facto nº 8;
- o facto nº 12, na parte em que refere “foi celebrado entre A. C. e C. C.”;
6- Para sufragar este entendimento, o recorrente baseia-se na prova produzida, quer documental, quer testemunhal.

Assim,

IV- Dos concretos meios probatórios que, a ver do recorrente, deveriam ter conduzido a uma decisão diversa da recorrida, bem como da sua interpretação jurídica.
A) - Prova documental: O Acordo de Princípios celebrado entre A. C. e C. C..
7- Um dos elementos fulcrais carreados para os autos que cumpre analisar é o denominado Acordo de Princípios, já referido supra.
8- É certo que a interpretação deste acordo acarreta também a ponderação de matéria de direito e não apenas matéria de facto; assim, por razões de economia processual e para uma maior facilidade de compreensão, discutiremos todas as questões relacionadas com este Acordo de Princípio e a sua valoração e interpretação – sem prejuízo de uma análise jurídica em sede própria infra.
9- Como se pode constatar, o documento designado por Acordo de Princípios assume particular relevância, pois o mesmo permite, por si só, descobrir se a autora já tinha conhecimento da informação que pretende agora seja prestada ou não.
10- O tribunal a quo interpreta o Acordo de Princípio no sentido em que o mesmo não vincula a autora, pois não foi assinado por um legal representante desta mas sim apenas por um sócio (o Sr. C. C.), pelo que não o considera relevante para a decisão da causa, decidindo assim que o réu é obrigado a prestar contas.
11- Ora, salvo melhor entendimento, esta é uma interpretação excessivamente formal do Acordo, que desconsidera toda a relação subjacente que lhe serviu de base e que vai contra a vontade manifestada pelas partes.
12- Mas, mesmo que assim não se entenda, crê o recorrente que esta circunstância apontada pelo tribunal a quo em nada releva para o caso em discussão nos presentes autos – tendo em conta que se trata de uma ação especial de prestação de contas.

Vejamos,

A)-1 Da irrelevância da questão da validade ou eficácia do contrato para a decisão da presente ação de prestação de contas.
13- Entende o recorrente que a vinculação da autora ao Acordo de Princípios (ou falta dela) não deveria sequer ter sido tomada em consideração neste processo.
14- Isto porque não está em discussão a validade ou a eficácia ou qualquer outro aspeto do contrato designado Acordo de Princípios.
15- Como bem refere o tribunal a quo, a obrigação de prestar contas é uma “obrigação de informação”, cujo reflexo adjectivo é a ação de prestação de contas – também neste sentido, veja-se o acórdão da Relação de Lisboa, de 19/01/2006, processo 10895/2005-6, bem como o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/02/2006, processo 05B4061.
16- A ação de prestação de contas em si tem um carácter misto: num primeiro momento, pretende-se o “apuramento e aprovação das receitas obtidas e despesas realizados por quem administra bens alheios” e posteriormente, se for o caso, “a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”, pelo que não se trata exclusivamente de uma ação destinada a obter informação – neste sentido, Abílio Neto “Novo Código de Processo Civil Anotado, 3ª Edição de Maio de 2015, pps. 1068 e ss..
17- No entanto, é pacífico que a condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se está absolutamente dependente do apuramento das receitas e despesas – e, por conseguinte, da verificação da obrigação de prestar contas, sem a qual a ação está condenada ao insucesso.
18- Ora, uma vez que o objeto da ação é, num primeiro momento e essencialmente, obter uma informação, é um pressuposto essencial que o autor não tenha obtido ou não tenha podido obter a informação que peticiona.
19- Aliás, um dos requisitos legais para a verificação da obrigação de prestar informação, no geral, é a “dúvida fundada” por parte do titular de um direito acerca da sua existência ou do seu conteúdo – artigo 573º do Código Civil.
20- O critério que releva é, portanto, o do conhecimento. Se o autor tem conhecimento da informação que pretende ver prestada, a sua pretensão não tem fundamento legal – não pode pedir judicialmente informações sobre situações que já conhece - nesta senda, acórdão da Relação de Lisboa, de 27-02-2014.
21- Tendo em conta toda esta argumentação, e regressando ao Acordo de Princípios, verificamos que o mesmo foi assinado pelo Sr. A. C. e pelo Sr. C. C..
22- A procuração outorgada pela autora é apenas uma consequência, lógica e cronológica, daquele Acordo de Princípios celebrado.
23- O Sr. C. C., atuando enquanto representante da autora, teve, então, pleno conhecimento dos negócios celebrados, nos precisos termos em que o foram (ou seja, tinha conhecimento da sua existência e do seu conteúdo) – como, aliás, se demonstrará pelo seu depoimento, que infra transcreveremos.
24- Bem assim, se o representante legal da Autora teve conhecimento, então a própria autora também o teve.
25- Reitera-se, a validade ou a eficácia do contrato, ou a aposição de carimbo da sociedade ou falta dela, não significam que a autora não teve conhecimento da celebração destes negócios, e é isto que verdadeiramente importa averiguar na ação de prestação de contas.
26- A questão de saber se o contrato vincula ou não a sociedade e não o sócio, ou se foi validamente celebrado ou não, seria apenas apreciável em sede de ação própria para o efeito.
27- Veja-se, este contrato apenas foi carreado para os autos pelo réu apenas para demonstrar que a autora tinha pleno conhecimento dos negócios celebrados, e é precisamente isso que vem demonstrar.

Sem prescindir,

28- Ainda que se considerasse relevante para a boa decisão da causa, quer a validade do contrato denominado Acordo de Princípios, quer a vinculação da autora ao mesmo, sempre teria o Tribunal a quo de considerar que o sócio C. C., aquando da outorga daquele contrato, pretendia obrigar a autora ao cumprimento do mesmo.
29- Tal conclusão pode constatar-se através da análise crítica e conjugada, à luz das regras da experiência, dos seguintes factos:
30- - C. C. era administrador da autora, e por isso, o único que a podia representar;
31- - Foram os funcionários da autora (contabilistas, juristas e advogados) que estiveram na feitura do aludido contrato denominado Acordo de Princípios;
32- - A autora outorgou procuração, junta aos autos, com os mesmos bens definidos naquele Acordo, sem estipular preços, dando poderes ao réu para este poder dar cumprimento ao referido contrato;
33- - No referido contrato, são disciplinas obrigações da autora, nomeadamente o destino dos seus bens;
34- - A autora interpelou, por diversas vezes, o réu para o cumprimento do referido Acordo de Princípios;
35- - A autora e o réu criaram mecanismos internos para o acompanhamento do cumprimento do respetivo contrato.
36- Na verdade, o Tribunal a quo, ao desconsiderar a factualidade supra narrada, dá guarida à argumentação do distúrbio de personalidade do Sr. C. C. invocada pela autora, uma vez que aquele, sem o carimbo, se transforma numa outra entidade.
37- Deste modo, entendemos que o Tribunal a quo andou mal ao afastar a autora das obrigações decorrentes daquele contrato.
38- Veja-se, na esteira deste entendimento, os seguintes acórdãos: Acórdão do STJ, de 10/05/2000, processo 00A3370, Acórdão da Relação do Porto, de 09/12/2010, processo 3450/09.3TBSTS-A.P1 e Acórdão do STJ, de 06/07/2011, processo 544/10.6T2STC.S1.

Acresce que,

B) Prova documental: a procuração outorgada pela autora, que serve de base à sua pretensão.

39- Desde logo, a procuração que a autora junta com a petição inicial demonstra ele própria ser um indício de que a autora se tinha conhecimento prévio do contrato designado Acordo de Princípios.
40- Na verdade, tal procuração foi outorgada após a celebração daquele contrato e prevê a “transmissão” dos imóveis que estão amplamente discriminados no contrato.
41- Veja-se que a procuração não especifica preços nem sequer modalidades de transmissão, pois que toda a informação relevante constatava do contrato em si.
42- Ora, parece-nos evidente que estas “coincidências” entre a procuração e o contrato Acordo de Princípios são, na verdade, perfeitamente propositadas, pois a procuração limita-se a ser um instrumento legal para a concretização daquilo que tinha sido combinado no contrato.
43- O que apenas revela que a autora tinha pleno conhecimento dos negócios que iriam ser celebrados.

C) Prova documental: as missivas da autora, constantes de fls 31 e ss e 61 e ss, que revelam o seu conhecimento do contrato designado “Acordo de Princípios”.

44- Para além do Acordo de Princípios, já amplamente analisado supra, e na esteira do mesmo, é necessário atentar ainda nas diversas missivas enviadas pela autora ao réu, já constantes dos autos.
45- Tendo analisado tais missivas, o tribunal a quo concluiu que as mesmas não significam que a autora se tenha vinculado ao contrato, nem que servem elas própria como uma espécie de “vinculação posterior” ao Acordo de Princípios.
46- No entanto, o tribunal a quo não pondera o facto de estas missivas indicarem que a autora tinha conhecimento do Acordo de Princípios celebrado.
47- Veja-se que a autora pugna pelo cumprimento daquele contrato em tais missivas, designadamente quando refere “Na sequência do acordo de princípios e divisão de património, celebrado em abril de 2013[…]” (missiva de 22 de Abril de 2016) e “Conforme acordo celebrado, e que é do conhecimento de V. Exa.[…]” (missiva de 17 de Junho de 2016).
48- Isto apenas pode significar que a autora tinha conhecimento da celebração do Acordo de Princípios e, bem assim, dos precisos termos do mesmo.
49- E, tendo conhecimento de tal Acordo – que discrimina os negócios a celebrar e os seus termos – significa que também tinha pleno conhecimento dos negócios celebrados mediante a procuração outorgada pela autora.

D) Declarações de parte do legal representante da autora.

50- Conjugado com o teor do documento suprarreferido, a análise crítica do depoimento prestado pelo Sr. C. C. – cujas transcrições se encontram no corpo das motivações, para o qual remetemos - permite concluir, com toda a certeza, que o mesmo tinha pleno conhecimento dos negócios celebrados ao abrigo daquela procuração, ao ponto de este não ter quaisquer dúvidas sobre os valores que o réu, alegadamente, lhes deve.
51- Do depoimento de parte do legal representante da autora, resulta evidente o conhecimento dos direitos que aquela considera serem seus, uma vez que este afirma que se considera, “sem dúvidas nenhumas”, do montante de “700 e tal mil”, o que desde logo, torna desnecessária a ação para prestação de contas, dado que a autora tem conhecimento de toda a informação que considera legitimar o seu direito.
52- Ademais, resulta claro do depoimento deste que o contrato denominado Acordo de Princípios é do conhecimento da autora e, em sequência desse contrato, emitiu a procuração objeto dos autos, que servia de instrumento à concretização daquele contrato.
53- Claro que o legal representante da autora apresenta uma visão muito própria acerca do alcance do clausulado, referindo que, da letra do contrato, não estava o réu desobrigado a pagar, pois não era esse o alcance que procurava dar com a expressão “passam a pertencer”. No entanto, em momento algum o legal representante da autora refere o desconhecimento do conteúdo do mesmo, que aliás seria absurdo de acordo com o conteúdo daquele contrato, conjugado com a procuração.

E) Prova testemunhal: do depoimento das testemunhas S. S., R. P. e P. V.

54- Da análise dos depoimentos destas três testemunhas – já transcritos no corpo das motivações, para o qual remetemos e aqui consideramos integralmente reproduzido - emana uma certeza: que os três, fazendo parte dos quadros das sociedades, acompanharam ainda que de formas diferentes quer as negociações quer, as feituras do contrato denominado acordo de princípios e da procuração objeto dos autos, quer o cumprimento do mesmo, tudo no exercício das funções profissionais, como funcionários das sociedades.
55- Revela-se, uma vez mais, que os quadros daquela sociedade estiveram envolvidos naquele contrato designado Acordo de Princípios e que a mesma tinha pleno conhecimento de tal contrato, ficando ainda claro que, tal como o seu superior hierárquico (C. C.), o que estas entendem é que o contrato tem um alcance diferente daquele pelo qual pugna o réu, isto é, entendem que o contrato obrigava o autor ao pagamento, nunca pondo em causa o conhecimento do mesmo.

F) Do depoimento das testemunhas H. F. e M. F..

56- Dos depoimentos destas testemunhas – já transcritos no corpo das motivações e que aqui consideramos integralmente reproduzidos -, decorre que as sociedades conheciam o contrato e que criaram estruturas e mecanismos para acompanhamento do cumprimento do referido contrato.

G) Depoimento de parte do réu, ora recorrente.

57- No seu depoimento – já transcrito supra e que aqui consideramos integralmente reproduzido - , o réu revelou de forma espontânea e coincidente com a documentação junta aos autos, que a autora detinha toda a informação, explicando que a procuração foi outorgada para dar cumprimento ao contrato.
V- A decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
58- Destarte, atendendo a toda a argumentação plasmada supra, entende o recorrente que deve ser alterado o acervo de factos dados como provados e não provados, do seguinte modo:
1º Deverá remover-se o ponto 8;
2º Deverá alterar-se o facto nº 12, na parte em que refere “foi celebrado entre A. C. e C. C.”;
3º Deverão acrescentar-se os seguintes novos pontos aos factos dados como provados:
14- “A autora tinha pleno conhecimento do contrato denominado Acordo de Princípios, tendo os seus quadros estado na feitura de tal contrato, bem como acompanhado o cumprimento, ainda que parcial, do mesmo.”
15- “A autora interpelou o réu para o cumprimento desse contrato.”
16- “A autora declara ter conhecimento que, em virtude desse contrato, foi celebrada a procuração objeto dos autos, para a concretização do mesmo, considerando, em função disso, que tem direito a receber mais de 700.000,00€.”
17- “Desde a celebração do contato até à propositura desta ação, a autora manifestou comportamentos que revelavam a intenção de cumprir o Acordo de Princípios, tendo inclusive interpelado o réu para o seu cumprimento.”
VI- Da inexistência da obrigação de prestar contas, nos termos dos artigos 573º do Código Civil, que redunda na improcedência da ação, nos termos do artigo 941º do Código de Processo Civil.
59- Considera o recorrente que a decisão recorrida viola as normas dos artigos 573º do Código Civil e 941º do Código de Processo Civil.
60- Como já amplamente se referiu supra relativamente à interpretação do acervo probatório carreado para os autos – nomeadamente o “Acordo de Princípios” e as declarações do representante legal da autora -, com facilidade se pode concluir que a autora já tinha acesso à informação que pretende, agora, ver prestada.
61- Conforme se referiu, o objeto da ação de prestação de contas é o “apuramento e aprovação das receitas obtidas e despesas realizadas”, com a eventual “condenação no saldo que venha a apurar-se”.
62- No entanto, uma vez que se trata de um meio jurisdicional que efetiva o direito/obrigação de informação prevista no artigo 573º do Código Civil, a mesma só poderá obter provimento se os requisitos daquele normativo substantivo se encontrarem preenchidos – neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa, de 19-01-2006, processo 10895/2005-6.
63- Designadamente, o autor necessita de ter uma “dúvida fundada” quanto à existência ou conteúdo o seu direito, pelo que a ausência de tal “dúvida fundada” redundará, necessariamente, na improcedência da ação por falta de verificação dos pressupostos substantivos.
64- Ademais, tal obrigação de informação encontra-se limitada pelos requisitos do artigo 573º do mesmo diploma – que são densificados na lei adjetiva, nomeadamente no artigo 941º do Código de Processo Civil
65- Como já amplamente se demonstrou, a autora não tinha uma “dúvida fundada” quanto aos negócios celebrados ao abrigo da procuração que outorgou a favor do réu, para os efeitos do artigo 573º do Código Civil, pois todos esses negócios estavam devidamente discriminados no Acordo de Princípios, que era do conhecimento da autora.
66- Assim sendo, a autora não tem o direito de exigir a prestação de contas, nos termos do artigo 941º, nº1 do Código de Processo Civil, pelo que a sua pretensão não tem fundamento legal.
67- Face ao exposto, entende o réu, ora recorrente, que andou mal o tribunal a quo na interpretação do contrato que operou, em violação do disposto nos artigos 573º do Código Civil e 941º do Código de Processo Civil, pelo que deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que reconheça a inexistência de prestar contas por parte do réu/recorrente.

Sem prescindir,

VII- Da Nulidade da Sentença.

A) Da nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615º, nº1 alínea c) do Código de Processo Civil.
68- Considera o recorrente que a decisão recorrida viola as normas dos artigos 573º do Código Civil e 941º do Código de Processo Civil.
69- Com o devido respeito, que é muito, parece-nos que existe um “salto” entre a fundamentação e a decisão proferida, como aliás foi possível depreender ao longo de toda a argumentação aduzida supra.

Vejamos,

70- O tribunal a quo considera que o Acordo de Princípios junto aos autos “não vincula a A.”, por ser “pessoal” entre o Sr. C. C. e o Sr. A. C..
71- Para sufragar este entendimento, o tribunal a quo realça vários aspetos; por questões de economia processual, remetemos para a douta sentença recorrida, que aqui consideramos integralmente reproduzida.
72- No entanto, acaba por concluir que “[…] provado ficou que, o réu não prestou à autora quaisquer contas relacionadas com os poderes que lhe foram conferidos pela procuração outorgada em 13.5.2013, […]”.
73- Ora, salvo melhor entendimento, a validade ou eficácia do contrato designado Acordo de Princípios não releva para a presente ação, nem sequer tais questões são passíveis de ser analisadas nesta sede, tendo em conta o objeto processual da ação de prestação de contas.
74- Os argumentos deduzidos pelo tribunal a quo – a falta de aposição de carimbo das sociedades no contrato, a falta de indicação expressa da qualidade de legal representante, a não intervenção de todos os sócios na outorga do contrato, o facto de considerar que o contrato é um mero “princípio de acordo” – acabam por ser, todos eles, uma apreciação da validade/eficácia do contrato entre as partes que o outorgaram; mas não é isso que se pretende decidir na ação de prestação de contas nem foi isso que o réu pretendeu demonstrar quando procedeu à junção deste documento.
75- A questão de o Sr. C. C. ter outorgado tal contrato não como legal representante da autora mas sim em nome próprio é uma questão paralela, que deve ser discutida autonomamente, mediante a interposição da competente ação judicial – que não será uma ação de prestação de contas.
76- E trata-se verdadeiramente de uma questão paralela, pois saber se o contrato vincula a sociedade ou vincula o Sr. C. C. em si não permite concluir que a autora tenha direito a exigir do réu a prestação de contas por aquele negócio.
77- Não é demais repetir, o grande objetivo da ação de prestação de contas é, num primeiro momento, obter informação, e não é exigível a prestação de uma informação que a autora já detém.
78- Aliás, veja-se que uma decisão judicial sobre o conteúdo deste contrato, proferida nestes moldes, coarta completamente os direitos do réu, uma vez que é passível de formar caso julgado quanto a esta questão, sem poder ter sido discutida devidamente com respeito do princípio do contraditório.
79- Por outro lado, a conjugação de todos os demais elementos carreados para os autos permite concluir que a autora tinha conhecimento do Acordo de Princípio e, por conseguinte, dos negócios celebrados pelo réu.
80- Designadamente, as missivas constantes de fls 31 e ss e 61 e ss revelam que a autora tinha conhecimento deste Acordo de Princípios; no entanto, o tribunal a quo limita-se a apreciá-las no sentido de que as mesmas não configuram uma vinculação por parte da autora àquele acordo, pese embora não seja essa a questão que se coloca.
81- Em suma, o tribunal a quo atende aos elementos carreados para os autos mas apenas para resolver uma questão que não faz parte do objeto do processo.
82- Veja-se que a nulidade da sentença nos termos do artigo 615º, nº 1 alínea c) “radica na desarmonia lógica entre motivação fáctico-jurídica e a decisão resultante de os fundamentos inculcarem um determinado sentido decisório e ser proferido outro de sentido oposto ou, pelo menos, diversa.” – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02/06/2016, processo nº 781/11.6TBMTJ.L1.S1.
83- Nesta conformidade, entende o recorrente que os fundamentos da decisão recorrida não podem levar à conclusão tomada pelo tribunal a quo, pelo que se verifica assim a nulidade da sentença nos termos do artigo 615º, nº1 alínea c), nulidade essa que expressamente se invoca e deve ser decretada, devendo, em consequência, proferir-se nova decisão em conformidade com o alegado supra.

Sem prescindir,

B) Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615º, nº1, alínea d) do Código de Processo Civil.
84- Caso não se julgue verificada a nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão, sempre se dirá que a decisão recorrida padece, mesmos assim, de nulidade nos termos do artigo 615º nº1, alínea d) do Código de Processo Civil.
85- Isto porque, como já demonstramos no ponto anterior – cuja argumentação aqui se considera integralmente reproduzida por questões de economia processual – o tribunal a quo não profere decisão quanto ao facto de a autora ter tido pleno acesso (ou não) à informação que vem requerer seja prestada.
86- Existe apenas uma decisão que consigna que a autora não está vinculada ao Acordo de Princípios celebrado, mas isso não significa que não tivesse conhecimento nem do teor do mesmo nem dos negócios celebrados pelo réu na sua globalidade.
87- Uma vez que se trata de uma questão levantada pelo réu na sua contestação e que se afigura absolutamente essencial para a decisão da causa, deveria o tribunal a quo ter-se pronunciado concretamente sobre ela, o que, manifestamente, não aconteceu.
88- Face ao exposto, caso não se entenda existir oposição entre a fundamentação e a decisão, sempre existirá uma omissão de pronúncia que gera a nulidade da sentença, nos termos do artigo 615º, nº1, alínea d), nulidade essa que expressamente se invoca e deve ser decretada, devendo, em consequência, proferir-se nova decisão em conformidade com o alegado supra.

Ademais,

VIII- Do abuso do direito por parte da autora que, in casu, se verifica.

89- É necessário atentar, ainda, no facto de a atuação da autora e do seu representante revelar deslealdade, numa clara intenção de prejudicar o réu.
90- Por questões de economia processual, damos aqui por reproduzida toda a matéria de facto já alegada anteriormente, cumprindo apenas retirar uma conclusão jurídica daquilo que a atuação da autora representa.
91- Na verdade, não é inocente nem despropositada a escolha da X Investimentos Imobiliários, Lda., pessoa coletiva, para figurar na presente ação como autora.
92- Todo o acervo probatório carreado para os autos – desde a prova documental até à prova testemunhal e mesmo as próprias declarações do representante legal da autora - permite concluir que a autora sempre teve conhecimento do teor do Acordo de Princípios que, por sua vez, discrimina todos os negócios celebrados pelo réu – aliás, este Acordo de Princípios deu origem à procuração junta pela autora, pelo que a antecede.
93- Assim, uma vez que a autora detinha a informação que peticionou na presente ação de prestação de contas, bem sabia que não tinha motivo legítimo para intentar a presente ação.
94- A atuação da autora configura assim abuso de direito, nos termos do artigo 334º do Código Civil, por exceder manifestamente os limites da boa fé;
95- Mas também existe abuso de direito, na modalidade de “venire contra factum proprium”, na medida em que a autora – através da pessoa do seu legal representante, o Sr. C. C., que, à data da celebração do Acordo de Princípios, atuou nas vestes de gerente – teve pleno conhecimento dos negócios celebrados pelo réu e vem agora, passados vários anos, exigir a prestação de contas como se nada soubesse e como se nada tivesse assinado.
96- Aliás, o facto de a autora ter tido conhecimento, na pessoa do seu legal representante, do conteúdo do Acordo de Princípios (e, por conseguinte, da informação que vem agora reclamar), para depois vir dizer que nem sequer tem conhecimento dos negócios celebrados à luz do mesmo, redunda numa verdadeira ofensa à boa fé e aos bons costumes, que choca o Direito e não pode nem deve ser admitida.
97- Note-se ainda que “O abuso do direito é de conhecimento oficioso, pelo que deve ser objecto de apreciação e decisão, ainda que não invocado” – acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/12/2012, processo nº 116/07.2TBMCN.P1.S1.
98- Assim, quer por se tratar de um excesso manifesto dos limites da boa fé, quer por configurar uma situação de “venire contra factum proprium”, a atuação da autora pauta-se por um claro abuso de direito, nos termos do artigo 334º do Código Civil, que aqui expressamente se invoca e deve ser decretado, devendo, em consequência, indeferir-se a pretensão da autora.”

Pugna pela revogação da decisão que deve ser substituída por outra nos termos expostos.
*
Foram apresentadas contra-alegações.
*
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
*
Tendo em atenção que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do/a recorrente (art. 635º nº 3 e 4 e 639º nº 1 e 3 do C.P.C.), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, observado que seja, se necessário, o disposto no art. 3º nº 3 do C.P.C., as questões a decidir são:

A) Saber se a sentença recorrida é nula nos termos do art. 615º nº 1 c) e d) do C.P.C.;
B) Apurar se houve erro na apreciação da matéria de facto;
C) E/ou na subsunção jurídica;
D) Conhecer do alegado abuso de direito por parte da autora.
*
II – Fundamentação

Foram considerados provados os seguintes factos:

1. Por instrumento de procuração outorgado em 2013/05/13, perante R. S., advogada, a autora concedeu ao réu poderes para, em nome e representação da mandante, vender ou prometer vender e permutar ou prometer permutar os seguintes imóveis:

a) Fracção urbana designada pela letra “C”, situada na Rua ..., Lote 3, ..., ..., Faro, descrita na C.R. Predial de Faro sob o nº .../20100225-C e inscrita na matriz sob o art. ...;
b) Prédio rústico situado em ..., na freguesia de ..., concelho de Vila Franca de Xira, descrito na 2ª C.R. Predial de Vila Franca de Xira sob o nº .../20010911 e inscrito na matriz sob o art. 18º;
c) Prédio Urbano situado em ..., Rua ..., Braga, descrito na 2ª C.R. Predial de Braga sob o nº .../20120510 e inscrito na matriz sob o art. ...;
d) Prédio rústico situado em ..., na freguesia e concelho de ..., descrito na C.R. Predial de ... sob o nº .../20040812 e inscrito na matriz sob o art. ...;
e) Prédio urbano designado por Lote 1, situado na freguesia de ..., descrito na C.R.Predial de Faro sob o nº .../20101215 e inscrito na matriz sob o art. nº ...;
f) Prédio urbano designado por Lote 3, situado na freguesia de ..., descrito na C.R. Predial de Faro sob o nº .../20101215 e inscrito na matriz sob o art. nº ...;
g) Prédio urbano designado por Lote 4, situado na freguesia de ..., descrito na C.R. Predial de Faro sob o nº .../20101215 e inscrito na matriz sob o art. nº ...;
h) Prédio urbano situado na ... e junto ao ..., na freguesia de ..., concelho de Sintra, descrito na C.R. Predial de Queluz sob o nº .../20070117 e inscrito na matriz predial sob o art. ...;
i) Fracção autónoma designada pela letra “A” do prédio situado na Avenida ..., na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na C.R. Predial de ... sob o nº .../20060803-A e inscrito na matriz predial sob o art. ...;
j) Fracção autónoma designada pela letra “B” do prédio situado na Avenida ..., na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na C.R. Predial de ... sob o nº .../20060803-B, inscrito na matriz predial sob o art. ...;
k) Prédio urbano situado na Travessa ..., nºs. .. e .., da freguesia do ..., concelho de Lisboa, descrito na C.R. Predial de Lisboa sob o nº .../20031231 e inscrito na matriz predial sob o art. ...;
l) Prédio urbano situado na Travessa ..., nºs. 56 e 58, da freguesia do ..., concelho de Lisboa, descrito na C.R. Predial de Lisboa sob o nº. .../20031231 e inscrito na matriz predial sob o art. …;
m) Prédio urbano situado na Travessa ..., nº. 60, da freguesia do ..., concelho de Lisboa, descrito na C.R. Predial de Lisboa sob o nº .../20031231 e inscrito na matriz predial sob o art. …;
n) Prédio urbano destinado a construção, designado por Lote 7, situado em ..., descrito na C.R. Predial de ... sob o nº ... e inscrito na matriz sob o art. ...;
o) Prédio urbano destinado a construção, designado por Lote 8, situado em ..., descrito na C.R. Predial de ... sob o nº ... e inscrito na matriz sob o art. ...;
p) Prédio urbano destinado a construção, designado por Lote 14, situado em ..., descrito na C.R. Predial de ... sob o nº ... e inscrito na matriz sob o art. ...;
conforme documento junto a fls. 9 e ss, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
2. Nos termos daquele instrumento foram concedidos poderes ao procurador, aqui réu, para receber os preços, outorgar e assinar as respectivas escrituras, nos termos e condições que entendesse (cfr. teor de fls. 9 e ss.).
3. No uso daquela procuração o réu outorgou, em nome e representação da autora, diversas escrituras, entre as quais aquelas mediante as quais vendeu os imóveis acima identificados nas alíneas a), e), f), g), n), o) e p), recebendo os respectivos preços de venda.
4. Os imóveis acima identificados sob as alíneas a), e) e g) foram vendidos à sociedade W Investimentos Imobiliários, Limitada (NUIPC ...), com sede na residência do réu, por escritura pública outorgada em 2015/06/09, na 1ª Conservatória do Registo Predial de Braga, Processo Casa Pronta nº .../2015, conforme teor de fls. 11 e ss..
5. O imóvel acima identificado sob a alínea n) foi vendido a N. J., por escritura pública outorgada em 2013/09/23, na 1ª Conservatória do Registo Predial de Braga, conforme teor de fls. 13v e ss..
6. Os imóveis acima identificados sob as alíneas o) e p) foram vendidos pelo réu a A. C., por escritura pública outorgada em 2013/11/25, na 1ª Conservatória do Registo Predial de Braga, Processo Casa Pronta nº. .../2013, conforme teor de fls. 15 e ss..
7. O imóvel acima identificado sob a alínea f) foi vendido à sociedade Y – Materiais de Construção, Lda., por escritura pública outorgada em 2016/02/23, no Cartório Notarial de L. M., a fls. 42 e ss. do Livro de Notas para escrituras nº 213, conforme teor de fls. 17v e ss..
8. A autora solicitou por diversas vezes ao réu que lhe prestasse contas do exercício do mandato.
9. Em 2015/11/23 a autora revogou a procuração aludida em 1, conforme resulta de fls. 20 e ss..
10. O que comunicou ao réu, mediante carta registada com aviso de recepção, em 2016/07/22 e ainda publicação no Jornal Diário ... em 2016/07/27,conforme resulta de fls. 21 e ss..
11. O réu recebeu os montantes das vendas realizadas, não os entregando à autora até à presente data.
12. No dia 02/04/2013 foi celebrado, entre A. C. e C. C., acordo escrito denominado “Acordo de Princípios, Transmissão de Participações e Divisão de Patrimónios das Empresas: C. A. & Filhos, S.A., ... Serviços, Transporte e Aluguer de Equipamento de Construção, Lda., X Engenharia - Lda. e X Investimentos, Lda.”, que se mostra junto a fls. 63V e ss., aqui dado por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
13. Outorgaram os referidos A. C. e C. C. esse documento na qualidade de sócio/accionista das aludidas sociedades.
*
Factos não provados:
Os demais alegados.
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A) Nulidade da sentença recorrida

As nulidades da sentença estão típica e taxativamente prevista no art. 615º do C.P.C. e reconduzem-se a vícios formais da decisão decorrentes de erro de actividade ou de procedimento - error in procedendo - referente à disciplina legal e que impedem o pronunciamento de mérito. As mesmas não se podem confundir com o erro de julgamento - error in judicando - que se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável.
1.
O apelante defende que a sentença recorrida é nula por existir oposição entre os fundamentos e a decisão uma vez que o tribunal considera que o “Acordo de Princípios” não vincula a autora, sendo um acordo pessoal, mas conclui que o réu não prestou contas à autora no que concerne os poderes que lhe foram conferidos pela procuração outorgada em 13/05/2013. E acrescenta que a validade/eficácia do referido acordo não releva para a presente acção, pois a autora conhecia o mesmo.
A apelada pronunciou-se dizendo que inexiste esta nulidade.

Vejamos.

Dispõe o art. 615º nº 1 c) do C.P.C.: “É nula a sentença quando: (…)
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; (…)”

Esta nulidade remete para o princípio da coerência lógica da sentença uma vez que entre os fundamentos (de facto e/ou de direito) e a decisão não pode haver contradição lógica, i.e., a decisão proferida não pode seguir um caminho diverso daquele que apontava a linha de raciocínio plasmado nos fundamentos. Tem-se entendido que esta nulidade está relacionada, por um lado, com a obrigação de fundamentação da decisão prevista nos art. 154º e 607º nº 3 do C.P.C. e, por outro, com o facto da sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor).

Revertendo ao caso em apreço, afigura-se-nos inexistir qualquer “salto” entre a referência feita na sentença no sentido do denominado “Acordo de Princípios” ser um acordo entre duas pessoas singulares que não vincula a sociedade autora (o tribunal recorrido não se pronunciou acerca da validade desse acordo) e a existência de uma procuração outorgada pela sociedade a favor de uma dessas pessoas, pessoa essa que não prestou contas em relação aos poderes que lhe foram conferidos e que no entender do tribunal recorrido deve prestar.

Tendo o réu argumentado que a procuração foi o instrumento utilizado para dar execução ao referido acordo, i.e., para permitir que bens da autora ingressassem no património do réu ou de quem este entendesse, o tribunal pronunciou-se nos termos referidos acerca da eficácia do acordo.

Entre os fundamentos de facto e/ou de direito e a decisão não ocorre qualquer contradição. Não ocorre igualmente qualquer ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível.
Conclui-se, assim, pela não verificação desta nulidade.

2.
Defende igualmente o apelante que a sentença é nula por omissão de pronúncia porquanto o tribunal não se pronunciou quanto ao facto de a autora ter tido (ou não) pleno acesso à informação que veio requerer que fosse prestada, questão essa levantada pelo réu.
Refere a apelada que na sentença se refere expressamente que o réu nunca prestou quaisquer contas.

Vejamos.

Nos termos do art. 615º nº 1 d) do C.P.C. É nula a sentença quando: (…)

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; (…).

Este vício incide sobre as questões a resolver nos termos e para os efeitos do disposto no art. 608º nº 2 do C.P.C.. Com efeito, nos termos deste preceito, O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
Questões cuja omissão de pronúncia conduz à nulidade de decisão são “(…) todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos pelas partes (…)” (Antunes Varela, in R.L.J., Ano 122, p. 112). São “todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer” (Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, 2º, 2ª ed., p. 704).
Assim, questões não se confundem com argumentos, razões (de facto ou de direito) ou motivos invocados pelas partes em defesa ou reforço das suas posições
Para que esta nulidade ocorra é necessário que ocorra omissão absoluta de conhecimento relativamente a cada questão não prejudicada e não uma fundamentação deficiente.
Revertendo ao caso em apreço afigura-se-nos que ter-se ou não acesso à informação de uma forma genérica não é uma questão que o tribunal deva conhecer, tratando-se antes de um argumento ou razão invocado pelo réu com vista a tentar demonstrar que não tem obrigação de prestar contas. Acresce que ter acesso a informação não é necessariamente coincidente com prestação de contas, pois estas pressupõem uma informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documento, o que o próprio réu reconhece que não fez.
Não se verifica, assim, esta nulidade.
*
B) Reapreciação da matéria de facto

Insurge-se o apelante contra os factos provados nº 8 e 12 (parte) defendendo que os mesmos devem ser considerados não provados. Refere que não se deve dar como não provado que a autora obteve já todas as informações relativamente aos negócios previstos na procuração por via do seu legal representante, C. C.. E que devem ser dado como provados os seguintes factos: “14- A autora tinha pleno conhecimento do contrato denominado Acordo de Princípios, tendo os seus quadros estado na feitura de tal contrato, bem como acompanhado o cumprimento, ainda que parcial, do mesmo.; 15- A autora interpelou o réu para o cumprimento desse contrato. 16- A autora declara ter conhecimento que, em virtude desse contrato, foi celebrada a procuração objeto dos autos, para a concretização do mesmo, considerando, em função disso, que tem direito a receber mais de 700.000,00€.; 17- Desde a celebração do contrato até à propositura desta ação, a autora manifestou comportamentos que revelavam a intenção de cumprir o Acordo de Princípios, tendo inclusive interpelado o réu para o seu cumprimento.”
A apelada defende que a impugnação da matéria de facto deve improceder.
Vejamos.
O Tribunal da 1ª Instância, ao proferir sentença, deve, em sede de fundamentação “(…) declarar quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas de factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência” (art. 607º nº 4 do C.P.C.) e “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” (art. 607º nº 5 do C.P.C.).
Sendo certo que o julgador aprecia a prova de acordo com a sua livre convicção, salvo algumas limitações, a análise crítica da prova é da maior importância do ponto de vista da fundamentação de facto da decisão. Com efeito, esta deve ser elaborada por forma a que, através da sua leitura, qualquer pessoa possa perceber quais os concretos meios de prova em que o Tribunal se baseou para considerar determinado facto provado ou não provado e a razão pela qual tais meios de prova foram considerados credíveis e idóneos para sustentar tal facto. Esta justificação terá de obedecer a critérios de racionalidade, de lógica, objectivos e assentes nas regras da experiência.
A exigência de análise crítica da prova nos termos supra referidos permite à parte não convencida quanto à bondade da decisão de facto tomada pelo tribunal da 1ª instância interpor recurso contrapondo os seus argumentos e justificar as razões da sua discordância.
Caso seja requerida a reapreciação da matéria de facto incumbe, desde logo, ao Tribunal da Relação verificar se os ónus previstos no acima art. 640º do C.P.C. se mostram cumpridos, sob pena de rejeição do recurso.
Não havendo motivo de rejeição procede este tribunal à reapreciação da prova nos exactos termos requeridos. Incumbe a este Tribunal controlar a convicção do julgador da primeira instância verificando se esta se mostra contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos e sindicar a formação da sua convicção. i.e., o processo lógico. Assim sendo, nada impede que, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, o tribunal superior conclua de forma diversa da do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas.
Uma vez que, no caso em apreço, o apelante assinala os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, a decisão que deve ser proferida e indica os concretos meios probatórios em que se baseia inexiste fundamento de rejeição de recurso nesta parte.
Tendo por base estas considerações e depois de ouvir na íntegra a prova produzida importa analisar os factos acerca do qual o apelante discorda.

- Ponto 8 dos factos provados

A solicitação da autora ao réu para que prestasse contas resulta, a nosso ver claramente, desde logo, da carta datada de 22/04/2016 (fls. 31 a 32V), a qual tem como assunto “Interpelação para regularização contabilística dos montantes respeitantes às escrituras de compra e venda realizadas nos anos de 2013 e 2016”, e onde se lê: “(…) vimos (…) solicitar a regularização dos assuntos infra mencionados (…) dos seguintes imóveis (…)” sendo que, dos sete imóveis identificados, quatro constam da procuração de 13/05/2013. Aí se faz referência a cláusulas do “Acordo de Princípios” alegadamente violadas pelo réu, nos termos das quais tais bens ficariam para o réu ou para quem este designasse na condição “de ser da sua responsabilidade o pagamento de todas as despesas e encargos afectos aos mesmos, bem como a regularização contabilística das escrituras na Sociedade” autora. E termina referindo o incumprimento da referida regularização contabilística e solicitando uma das seguintes opções: que o réu proceda à mesma ou proceda à anulação das escrituras de compra e venda. Mais alude à Cláusula 17ª do Acordo e à aí referida “compensação de saldos devedores/credores entre as várias sociedades (…)” (sublinhado nosso).
A testemunha S. S., jurista do grupo X e assessora de C. C., aludiu a esta e outras cartas, nas quais interveio, e à referida solicitação de prestação de contas.
Esta solicitação resulta igualmente do email datado de 14/03/2013, enviado por P. V., funcionária da autora, para C. F. e R. P., funcionários da ..., Lda. e para o réu, onde se refere estarem em falta “justificativos para as escrituras efectuadas” pelo réu e referindo que, naquele momento, “o valor ascende a 987.900,00€”.
Nas declarações de parte o legal representante do autor referiu que, ao longo do tempo, abordou por diversas vezes o irmão e ora ré solicitando prestação de contas referente à procuração de 13/05/2013.
Da conjugação desta prova entendemos que é de manter este ponto da matéria de facto dada como provada.

- Ponto 12 dos factos provados

É de manter a redacção deste facto que, aliás, resulta da parte introdutória do “Acordo de Princípios” – A. C. (…), na qualidade de Sócio/Acionista das sociedades (…); C. C. (…), na qualidade de Sócio/Acionista das sociedades (…) e “Os Outorgantes detêm participações de igual montante nas sociedades (…) (sublinhado nosso). Na parte final os mesmos assinam sem referir ou apondo qualquer carimbo das sociedades. É, assim, claro que C. C. e o réu intervieram nesse acordo a título pessoal e não como legais representantes das sociedades aí referidas. O mesmo foi confirmado pelo legal representante da autora e pela testemunha S. S., que esteve presente nas reuniões que antecederam a assinatura do referido acordo. Esta testemunha referiu que o acordo consubstanciava “um delinear do processo de separação deles”, i.e., com vista a que deixassem de ser ambos sócio/accionistas daquelas sociedades, que as dividissem entre si passando as sociedades a ter como sócio/accionista apenas um deles (sem prejuízo de ter outros sócios/accionistas).
Saber se o acordo vincula ou não a autora é matéria de direito e conclusiva que não pode constar dos factos e que é de abordar noutra sede.

- Conhecimento pela autora de toda a informação ora solicitada

Desde logo, esta matéria alegada pelo réu na sua contestação por ser conclusiva nunca poderia integrar os factos provados.
Acresce que a informação em causa pertinente corresponde a uma informação detalhada dos actos praticados com a procuração, suas receitas e despesas e demais receitas e despesas resultantes dos bens, acompanhada da justificação e documentação e não uma informação genérica acerca das vendas realizadas.
De qualquer modo, independentemente da procuração ter sido ou não outorgada como instrumento para a concretização dos negócios a que alude o Acordo de Princípios, o que abordará infra, de modo algum, resultou da prova produzida que a autora, através do seu legal representante, C. C., estivesse inteirada de todas as informações e contas associadas aos negócios celebrados com a procuração e, muito menos, que os tivesse acompanhado com detalhe.
Da conjugação da informação da autora plasmada nas suas missivas enviadas ao réu e documentos juntos com a p.i. resulta que a referida informação é meramente parcelar. Do depoimento da testemunha P. V. resulta que era a autora quem procurava a informação e que a obtinha de forma parcelar, pois esta referiu que, quando consultava o Portal das Finanças e detectava que determinado bem/bens já aí não constavam como bens da autora, perguntava aos funcionários da ..., Lda., M. F. e C. F., os quais confirmavam as vendas e cediam cópias de algumas escrituras.
Pelo exposto, é de manter este facto como não provado.

- Pontos pretendidos aditar à matéria de facto provada

Dos factos pretendidos aditar apenas parte dos factos nº 14 – a autora conhecia o “Acordo de Princípios” e nº 16 – a autora sabia que a procuração era instrumento para a concretização dos negócios previamente definidos no Acordo de Princípios - corresponde a matéria alegada pelo réu na contestação. Saber se a mesma tem interesse para a decisão jurídica da causa é matéria que abordaremos em sede própria.
Face ao alegado pelo réu, o teor das missivas, os depoimentos das testemunhas e declarações de parte da autora resulta provado que a autora, através do seu legal representante, tinha conhecimento do denominado Acordo de Princípios. Consignar que os quadros da autora estiveram na sua feitura, o que até resultou da prova produzida, não tem qualquer relevância. A referência a “acompanhado o cumprimento, ainda que parcial” é conclusiva pelo que não pode integrar a matéria de facto dada como provada.
Da prova produzida, designadamente das declarações de parte do legal representante da autora, resulta que confissão por este que procuração foi instrumento para a concretização dos negócios previamente definidos no Acordo de Princípios.
A referência à interpelação pela autora para que o réu cumpra o “Acordo de Princípios” não integra o objecto destes autos sendo que não foi sequer matéria alegada pelo réu. Assim, entendemos que a mesma não é de aditar aos factos provados.
A matéria que se pretende aditar como facto nº 17 corresponde, desde logo, a matéria conclusiva pelo que não pode ser considerada.

Pelo exposto, é de aditar os seguintes factos:

“14- A autora tinha conhecimento do acordo denominado Acordo de Princípios.
15- A autora sabia que a procuração objecto dos autos foi outorgada para concretização do “Acordo de Princípios”.”
*
Por uma questão metodológica passar-se-á a descrever a matéria de facto apurada de acordo com o decidido nesta instância:

1. Por instrumento de procuração outorgado em 2013/05/13, perante R. S., advogada, a autora concedeu ao réu poderes para, em nome e representação da mandante, vender ou prometer vender e permutar ou prometer permutar os seguintes imóveis:

a) Fracção urbana designada pela letra “C”, situada na Rua ..., Lote 3, ..., ..., Faro, descrita na C.R. Predial de Faro sob o nº .../20100225-C e inscrita na matriz sob o art. ...;
b) Prédio rústico situado em ..., na freguesia de ..., concelho de Vila Franca de Xira, descrito na 2ª C.R. Predial de Vila Franca de Xira sob o nº .../20010911 e inscrito na matriz sob o art. 18º;
c) Prédio Urbano situado em ..., Rua ..., Braga, descrito na 2ª C.R. Predial de Braga sob o nº .../20120510 e inscrito na matriz sob o art. ...;
d) Prédio rústico situado em ..., na freguesia e concelho de ..., descrito na C.R. Predial de ... sob o nº .../20040812 e inscrito na matriz sob o art. ...;
e) Prédio urbano designado por Lote 1, situado na freguesia de ..., descrito na C.R.Predial de Faro sob o nº .../20101215 e inscrito na matriz sob o art. nº ...;
f) Prédio urbano designado por Lote 3, situado na freguesia de ..., descrito na C.R. Predial de Faro sob o nº .../20101215 e inscrito na matriz sob o art. nº ...;
g) Prédio urbano designado por Lote 4, situado na freguesia de ..., descrito na C.R. Predial de Faro sob o nº .../20101215 e inscrito na matriz sob o art. nº ...;
h) Prédio urbano situado na ... e junto ao ..., na freguesia de ..., concelho de Sintra, descrito na C.R. Predial de Queluz sob o nº .../20070117 e inscrito na matriz predial sob o art. ...;
i) Fracção autónoma designada pela letra “A” do prédio situado na Avenida ..., na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na C.R. Predial de ... sob o nº .../20060803-A e inscrito na matriz predial sob o art. ...;
j) Fracção autónoma designada pela letra “B” do prédio situado na Avenida ..., na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na C.R. Predial de ... sob o nº .../20060803-B, inscrito na matriz predial sob o art. ...;
k) Prédio urbano situado na Travessa ..., nºs. 52 e 54, da freguesia do ..., concelho de Lisboa, descrito na C.R. Predial de Lisboa sob o nº .../20031231 e inscrito na matriz predial sob o art. ...;
l) Prédio urbano situado na Travessa ..., nºs. 56 e 58, da freguesia do ..., concelho de Lisboa, descrito na C.R. Predial de Lisboa sob o nº. .../20031231 e inscrito na matriz predial sob o art. 252º;
m) Prédio urbano situado na Travessa ..., nº. 60, da freguesia do ..., concelho de Lisboa, descrito na C.R. Predial de Lisboa sob o nº .../20031231 e inscrito na matriz predial sob o art. 253º;
n) Prédio urbano destinado a construção, designado por Lote 7, situado em ..., descrito na C.R. Predial de ... sob o nº ... e inscrito na matriz sob o art. ...;
o) Prédio urbano destinado a construção, designado por Lote 8, situado em ..., descrito na C.R. Predial de ... sob o nº ... e inscrito na matriz sob o art. ...;
p) Prédio urbano destinado a construção, designado por Lote 14, situado em ..., descrito na C.R. Predial de ... sob o nº ... e inscrito na matriz sob o art. ...;
conforme documento junto a fls. 9 e ss, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
2. Nos termos daquele instrumento foram concedidos poderes ao procurador, aqui réu, para receber os preços, outorgar e assinar as respectivas escrituras, nos termos e condições que entendesse (cfr. teor de fls. 9 e ss.).
3. No uso daquela procuração o réu outorgou, em nome e representação da autora, diversas escrituras, entre as quais aquelas mediante as quais vendeu os imóveis acima identificados nas alíneas a), e), f), g), n), o) e p), recebendo os respectivos preços de venda.
4. Os imóveis acima identificados sob as alíneas a), e) e g) foram vendidos à sociedade W Investimentos Imobiliários, Limitada (NUIPC ...), com sede na residência do réu, por escritura pública outorgada em 2015/06/09, na 1ª Conservatória do Registo Predial de Braga, Processo Casa Pronta nº .../2015, conforme teor de fls. 11 e ss..
5. O imóvel acima identificado sob a alínea n) foi vendido a N. J., por escritura pública outorgada em 2013/09/23, na 1ª Conservatória do Registo Predial de Braga, conforme teor de fls. 13v e ss..
6. Os imóveis acima identificados sob as alíneas o) e p) foram vendidos pelo réu a A. C., por escritura pública outorgada em 2013/11/25, na 1ª Conservatória do Registo Predial de Braga, Processo Casa Pronta nº. .../2013, conforme teor de fls. 15 e ss..
7. O imóvel acima identificado sob a alínea f) foi vendido à sociedade Y – Materiais de Construção, Lda., por escritura pública outorgada em 2016/02/23, no Cartório Notarial de L. M., a fls. 42 e ss. do Livro de Notas para escrituras nº 213, conforme teor de fls. 17v e ss..
8. A autora solicitou por diversas vezes ao réu que lhe prestasse contas do exercício do mandato.
9. Em 2015/11/23 a autora revogou a procuração aludida em 1, conforme resulta de fls. 20 e ss..
10. O que comunicou ao réu, mediante carta registada com aviso de recepção, em 2016/07/22 e ainda publicação no Jornal Diário ... em 2016/07/27,conforme resulta de fls. 21 e ss..
11. O réu recebeu os montantes das vendas realizadas, não os entregando à autora até à presente data.
12. No dia 02/04/2013 foi celebrado, entre A. C. e C. C., acordo escrito denominado “Acordo de Princípios, Transmissão de Participações e Divisão de Patrimónios das Empresas: C. A. & Filhos, S.A., ... Serviços, Transporte e Aluguer de Equipamento de Construção, Lda., X Engenharia - Lda. e X Investimentos, Lda.”, que se mostra junto a fls. 63V e ss., aqui dado por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
13. Outorgaram os referidos A. C. e C. C. esse documento na qualidade de sócio/accionista das aludidas sociedades.
14- A autora tinha conhecimento do acordo denominado Acordo de Princípios.
15- A autora sabia que a procuração objecto dos autos foi outorgada para concretização do “Acordo de Princípios”.
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Factos não provados:

Os demais alegados.
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C) Subsunção jurídica

A acção de prestação de contas é um processo especial cuja regulamentação está prevista nos art. 941º a 947º todos do C.P.C. para as contas em geral.
Dispõe o art. 941º do C.P.C.: “A acção de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se”.
A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de a prestar (art. 573º do C.C.).
Como referimos supra este dever de informação não deve ser entendido “(…) como um simples dever de informação sobre o objecto do direito de outrem, mas como obrigação de informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documentos” (Ac. da R.C. de 14/05/2013 (Henrique Antunes), in www.dgsi.pt), pois o fim é estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas de modo a obter uma saldo e determinar a situação de crédito ou de débito.
É a administração de bens alheio que impõe a obrigação de prestação de contas, quer esta resulte da lei (v.g. 1161º d), 2093º do C.C., 263º do C.S.C., 760º nº 1 do C.P.C.), de negócios jurídicos e do princípio da boa-fé. Neste sentido Alberto dos Reis, in Processos Especiais, Vol. I, Reimpressão, 1982, p. 303 e igualmente Vaz Serra, in Scientia Iuridica, Vol. XVIII, p. 115, onde escreve “(…) a fonte da obrigação da administração que gera a obrigação de prestar contas não releva; o que importa é o facto da administração de bens alheios, seja qual for a fonte”.
A acção com processo especial de prestação de contas pode ser proposta por quem tem direito a exigir a prestação de contas (prestação forçada) ou por quem tem o dever de prestá-las (prestação espontânea).
O processo de prestação forçada de contas tem duas fases: uma primeira onde se colocada como questão prévia de direito substantivo saber se o réu tem ou não obrigação de prestar contas, questão essa que o julgador, em princípio, decide sumariamente nos termos do art. 942º nº 3 do C.P.C. e, no caso afirmativo, segue-se a fase da prestação de contas.
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No caso em apreço encontramo-nos perante uma acção de prestação forçada de contas e divergem as partes acerca da obrigação de prestar contas por parte do réu.

Vejamos.

Em 13/05/2013 a autora outorgou a favor do réu procuração através da qual conferiu a este poderes para, em nome e representação daquela, “Vender ou prometer vender, permutar ou prometer permutar, pelo preço e condições que entender” os imóveis aí descriminados, bem como “poderes para receber o preço, outorgar e assinar a respectiva escritura”. O réu, munido desta procuração, procedeu à venda de sete desses prédios, recebeu os preços respectivos, mas não os entregou à autora, nem prestou contas.
Ora, a procuração (representação) não se confunde com mandato.
A procuração é o acto pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes representativos (art. 262º nº 1 do C.C.). o Mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra (art. 1157º do C.C.).
Pela representação o representante age em nome do representado e os efeitos jurídicos dos negócios por aqueles realizados, nos limites dos seus poderes, produzem-se directamente na esfera jurídica do representado (art. 258º nº 1 do C.C.).
Pelo mandato simples os efeitos do acto jurídico praticado pelo mandatário repercutem-se na sua própria esfera jurídica (art. 1180º do C.C.), mas, quando o mandato seja representativo, tais efeitos repercutem-se na esfera jurídica do mandante (art. 1178º C.C.).
Podem coexistir procuração e mandato e nesse caso haverá mandato com representação, mas a procuração pode ter outras fontes.
A concessão de poderes de representação, por si só, não cria na esfera jurídica do procurador, nenhuma obrigação de os exercer. Na verdade, a procuração não tem o efeito de obrigar o representante a uma actividade de gestão: o procurador fica simplesmente legitimado perante terceiros e autorizado ao desenvolvimento dessa gestão. Justamente por assim ser é que da procuração em si mesma não resulta nenhuma obrigação de prestar contas (Neste sentido vide Ac. do S.T.J. de 16/04/09 (Maria dos Prazeres Beleza), in www.dgsi.pt).
Revertendo ao caso em apreço, do conteúdo da procuração em causa não é possível concluir que a autora e réu tenham acordado que este ficava obrigado à prática de actos de venda ou permuta dos imóveis nela referidos (mandato). Acresce que nenhuma outra prova foi produzida no que concerne a eventual acordo nesse sentido.
Com efeito, não obstante o próprio legal representante da autora ter admitido que a procuração de 13/05/2016 visou concretizar o “Acordo de Princípios” de 02/04/2013, este não tem a virtualidade de consubstanciar um contrato de mandato que esteja na origem da outorga da procuração.
Desde logo, dos termos do referido “Acordo” não se extrai uma obrigação da prática de concretos actos jurídicos por conta de outrem. Acresce que, sendo um acordo entre duas pessoas singulares (independentemente de poderem ser representantes legais de sociedades), através do qual elas delinearam um projecto de transmissão de participações sociais e de divisão de património de sociedades, a concretizar num momento posterior, por quem tem legitimidade e através de actos jurídicos adequados, o mesmo não vincula as sociedades nele referidas.
De qualquer modo, “Está obrigado a prestar contas o procurador que age com poderes de representação, administrando bens ou interesses do representado, independentemente da existência ou natureza do negócio de que resultou a procuração. Não é o fim para que a procuração é emitida nem o conteúdo dos poderes que dela constam como conferidos ao procurador, mas apenas os actos realizados, que justificam a prestação de contas” – Ac. do S.T.J. de 09/02/2006 (Araújo de Barros) in www.dgsi.pt.
Assim, consubstanciando a conduta do réu administração de bens alheios está este obrigado a prestar contas da sua administração tanto mais que da procuração não resulta que o réu estivesse dispensado de as prestar.
E não se diga que a autora já teve acesso à informação que agora pretende ver prestada.

Conforme referido supra a noção de informação relevante para efeito de prestação de contas é uma informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documentos. Ora, da matéria de facto dada como provada não resulta que o réu tenha prestado contas nestes termos, nem que a autora tenha obtido esta informação por outra via.
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Vem ainda o apelante arguir que, ao pedir a prestação de contas, ocorre abuso de direito da autora por escolher a sociedade X, Lda. como autora desta acção e por esta conhecer o “Acordo de Princípios” e deter toda a informação que agora solicita.

Apesar desta questão não haver sido suscitada pelo réu na sua contestação e não constar da sentença recorrida importa conhecê-la uma vez que a mesma é de conhecimento oficioso.

Não tem razão o réu. Vejamos.

Este instituto encontra-se previsto no art. 334º do C.C. que preceitua É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

O Professor Vaz Serra, in Abuso de Direito, B.M.J., nº 85, escreveu “Pode dizer-se, de um modo geral, que há abuso do direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante; e a consequência é a de o titular do direito a ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual”.

Funciona como uma válvula de segurança do sistema, um dos expedientes ditados pela consciência jurídica para obtemperar a situações em que um preceito legal, certo e justo para as situações normais, venha a revelar-se injusto na sua aplicação a uma hipótese concreta, por virtude das particularidades ou circunstâncias especiais que nela concorram.

Este instituto jurídico baseia-se na boa fé que exprime os valores fundamentais do sistema e para cuja concretização utilizam-se dois princípios: o princípio da tutela da confiança legítima e o princípio da primazia da materialidade subjacente.
Entre os grupos típicos de actuação abusiva encontra-se o venire contra factum proprium, i.e., exercício de uma posição jurídica em contradição com uma conduta antes assumida ou proclamada pelo agente.

Ora, desde logo, nenhuma censura há a fazer à escolha da X, Lda. para autora desta acção uma vez que a prestação de contas solicitada tem na base a procuração de 13/05/13, outorgada por aquela sociedade. No mais, como vimos supra, inexiste qualquer contradição entre a autora conhecer o “Acordo de Princípios” e ter uma informação parcelar das vendas realizadas pelo réu com a referida procuração e o pedido de prestação de contas no âmbito da presente acção.

Por todo o exposto, improcede a apelação.
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Sumário – 663º nº 7 do C.P.C.:

I - É a administração de bens alheio que impõe a obrigação de prestação de contas, quer esta resulte da lei, de negócios jurídicos e do princípio da boa-fé.
II – Uma vez que a concessão de poderes de representação, por si só, não cria na esfera jurídica do procurador, uma obrigação de os exercer, da procuração em si mesma não resulta nenhuma obrigação de prestar contas, mas esta obrigação existirá caso a procuração seja utilizada na administração de bens alheios.
III – A obrigação de prestação de contas é estruturalmente uma obrigação de informação, mas esta obrigação não deve ser entendida como um dever de informação genérico, mas como uma obrigação de informação detalhada das receitas e despesas efectuadas, acompanhada da justificação e documentação de todos os actos de que é uso exigir e guardar documentos.
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III – Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e confirmam integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.
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Guimarães, 17/10/2019

Relatora: Margarida Almeida Fernandes
Adjuntos: Margarida Sousa
Afonso Cabral de Andrade