Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
421/17.0T8BRG.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: CONTA BANCÁRIA
SOLIDARIEDADE
DESCOBERTO BANCÁRIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Na conta bancária solidária qualquer dos credores (depositantes ou titulares) tem a faculdade de exigir, por si só, a totalidade da quantia depositada e a prestação assim efectuada libera o devedor (Banco) para com todos eles (solidariedade activa).

II - Da convenção desse regime de solidariedade não poderá, sem mais, concluir-se também pelo estabelecimento do regime de solidariedade passiva,

III - Não resultando expressamente das cláusulas do contrato de abertura de conta à ordem solidária, que as partes quiseram, expressa ou tacitamente, submeter a responsabilidade pelos passivos da conta ao regime das obrigações solidárias, aceitando a posição de mutuários relativamente ao descoberto concedido, apenas quem efectuou tal saque, quem é responsável por tal descoberto, deverá responder pelo mesmo perante o Banco.”
Decisão Texto Integral:
SUMÁRIO (da responsabilidade da relatora)

I - Na conta bancária solidária qualquer dos credores (depositantes ou titulares) tem a faculdade de exigir, por si só, a totalidade da quantia depositada e a prestação assim efectuada libera o devedor (Banco) para com todos eles (solidariedade activa).
II - Da convenção desse regime de solidariedade não poderá, sem mais, concluir-se também pelo estabelecimento do regime de solidariedade passiva,
III - Não resultando expressamente das cláusulas do contrato de abertura de conta à ordem solidária, que as partes quiseram, expressa ou tacitamente, submeter a responsabilidade pelos passivos da conta ao regime das obrigações solidárias, aceitando a posição de mutuários relativamente ao descoberto concedido, apenas quem efectuou tal saque, quem é responsável por tal descoberto, deverá responder pelo mesmo perante o Banco.

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

O Banco X, SA, intentou a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra Manuel e mulher Maria, pedindo a condenação destes a pagarem-lhe a quantia de €360.628,97, acrescida de juros vincendos, à taxa legal de 7%, calculados sobre o capital em dívida de €358.270,84, e de imposto de selo vincendo, à taxa de 4%, sobre o valor de juros apurados.

Alegou, para o efeito e em síntese, que os réus são titulares de uma conta de depósitos à ordem na agência do autor, em Braga, a qual, sendo objecto de vários movimentos a crédito e a débito, apresenta um saldo negativo de €358.270,84, que aqueles nunca pagaram.
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Os réus contestaram a presente acção, invocando a ineptidão da petição inicial e a ilegitimidade da ré e impugnando a matéria vertida na petição inicial, alegando, em síntese, que nada devem ao autor, nunca receberam quaisquer extractos bancários referentes a contas de que sejam titulares, desconheceram até à citação para a acção a existência de qualquer saldo a descoberto, o autor nunca os interpelou por escrito para procederem ao pagamento de tal quantia e juros e sempre fizeram uma utilização normal das suas contas. Concluíram pela improcedência da acção e respectiva absolvição.
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O Banco autor respondeu às excepções deduzidas.
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Na audiência prévia, foi fixado o valor da acção em €360.628,97, foi julgada não verificada a arguida ineptidão da petição inicial e improcedente a excepção de ilegitimidade da ré, tendo sido proferido despacho saneador, identificado o objecto do litígio – “O descoberto em conta verificado na conta à ordem titulada pelos RR. e o direito do A. à restituição do valor correspondente e respectivos juros”- e enunciados os temas da prova – “Pagamentos e levantamentos efectuados pelos réus em França, a partir de 26-10-2016, através da utilização de cartão de débito para além do saldo disponível na conta bancária à qual se encontrava associado tal cartão; Montante correspondente à diferença entre tais operações e o saldo positivo dessa conta bancária; Envio pelo autor aos réus dos extractos bancários correspondentes ao alegado período de tempo”.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do formalismo legal.

Proferiu-se sentença em que se decidiu:

– «Nestes termos, o Tribunal julga parcialmente procedente, por provada, a presente ação e, consequentemente, condena os Réus Manuel e mulher Maria a pagarem ao A. Banco X, SA a quantia de € 358.270,84 (trezentos e cinquenta e oito mil duzentos e setenta euros e oitenta e quatro cêntimos), acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal de 7%, e de imposto de selo vencido e vincendo, à taxa de 4%, desde o dia 22 de Dezembro de 2016 e até integral pagamento.
No mais, absolvem-se os Réus do pedido.
Custas a cargo do A. e dos Réus, na proporção do respectivo decaimento – art. 527º, nº 1 do C.P.C..»
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Inconformados, os réus interpuseram o presente recurso, que instruíram com as pertinentes alegações, em que formulam as seguintes conclusões:

«1. Os Recorrentes não se conformam com a douta sentença proferida nestes autos e consideram que foi incorrectamente decidida a matéria de facto e efectuada uma errónea aplicação do direito.
2. O Tribunal recorrido fez uma incorrecta avaliação e ponderação da prova documental e testemunhal produzida, devendo ter dado como não provada a matéria constante dos pontos 4 e 8 a 12 dos factos assentes.
3. Relativamente à matéria provada constante do ponto 4, da prova produzida não pode dar-se por assente, como se deu, que tenha sido disponibilizado um cartão de débito aos Réus.
4. Quando muito poder-se-ia ter dado como provado que existe um cartão de débito com o nº ..., associado à conta em mérito, desconhecendo-se a que titular foi o mesmo disponibilizado.
5. Da prova produzida - cfr. depoimento prestado pela testemunha. F. F.) entre os minutos 11.08 a 11.19, não resulta qualquer facto que permita aferir quem é o concreto titular a que foi disponibilizado o direito de usar o cartão de débito, mediante um conjunto de condições e regras que devem constar de um contrato de adesão
6. Deste modo, não foi produzida prova suficiente de modo a apurar-se e dar como provado o facto constante do ponto 4 da matéria assente, devendo ser dado como não provado.
7. No que concerne aos factos 8 e 9 da matéria provada, inexiste) prova que sustente que tenha sido o Recorrido Manuel, que efectuou, socorrendo-se do cartão de débito, diversos pagamentos e levantamentos em França.
8. O documento junto com o articulado de resposta como doc 1, referente à empresa "Manuel", sedeada em França, demonstra tão somente que esta empresa desenvolveu a sua actividade comercial no período de 11 de Julho de 2011 a 4 de Julho de 2015, não havendo qualquer informação ou registo posterior a esta data, nada revelando, por isso, acerca da permanência do Recorrente em França à data dos factos - Outubro e Novembro de 2016.
9. A testemunha F. F., em relação a esta matéria nada referiu, a não ser que, pelo menos, desde Junho de 2015 não tem qualquer contacto com o Recorrente – Cfr. depoimento gravado aos minutos 30.38
10. Assim, a prova documental e testemunhal produzida é manifestamente insuficiente para se dar como provados os factos constantes dos pontos 8 e 9, uma vez que não foi produzida qualquer espécie de prova que sustente que, à data dos movimentos constantes dos extractos, o Recorrente se encontrava no estrangeiro ou na posse do cartão de débito, cuja titularidade se desconhece em absoluto, devendo, isso sim, serem dados por não provados.
11. Quanto aos factos provados descritos nos pontos 10 e 11 dos factos assente, dir-se-á que inexiste prova nos autos de que o Recorrido tenha enviado e, por seu turno, os Recorrentes recepcionado, os extractos mensais dos movimentos da conta bancária de que estes são titulares e as cartas de interpelação.
12. Da inquirição da testemunha F. F. - 24.52 a 25.38-, não se afere que as cartas em mérito foram de facto enviadas pelo banco para os clientes, registadas e com aviso de recepção, e que estes as tenham recepcionado.
13. Atenta a inexistência de elementos de prova, devem os factos constantes da matéria assente sob os pontos 10 e 11 serem dados como não provados.
14. Por último, no que concerne ao facto provado assinalado no ponto 12 da douta sentença, face à inexistência de prova que o sustente deve o mesmo ser dado como não provado.
15. O único documento junto aos autos referente à empresa "Manuel", sedeada em França, demonstra tão somente que esta empresa desenvolveu a sua actividade comercial no período de 11 de Julho de 2011 a 4 de Julho de 2015, não havendo qualquer informação ou registo posterior a esta data.
16. Relativamente à actividade profissional que o Recorrente exercia em Portugal, o único documento constante dos autos (doc. 2 junto à resposta).que aborda esta matéria, é uma cópia de uma página retirada da internet que não é actualizada há aproximadamente 10 anos.
17. A testemunha F. F., referiu que não podia esclarecer se, à data dos factos, o Recorrente mantinha a actividade profissional, uma vez que já não mantinha qualquer contacto com o Recorrente desde Junho de 2015 - minutos 31.38.
18. Neste contexto, não pode o tribunal ter dado como provado um facto que não tem qualquer sustentação a nível documental e testemunhal, devendo, ao invés, ser/dado o facto assente sob o ponto 12, como não provado,
19. Pelo exposto, os/autos contêm todos os elementos de prova que sirvam de fundamento à decisão proferida sobre a matéria de facto e que impõem a sua alteração, de modo a que se considerem como não provados os factos vertidos nos pontos 4 e 8 a 12.
20. Sem prescindir e caso assim se não entenda e se mantenha inalterada a matéria de facto provada, o que não se concede, entendem os Recorrentes que o Tribunal decidiu incorrectamente as questões de direito levadas à sua apreciação.
21. O tribunal recorrido fez uma interpretação demasiado lata do contrato de abertura de conta, em especial das cláusulas gerais nºs 4.3 e 4.4, sendo excessivo delas retirar. como o Tribunal retirou, a conclusão de que os Recorrentes deram uma autorização expressa e inequívoca à Autora no sentido de esta a seu bel-prazer fazer pagamentos ou entregas de dinheiro a descoberto, ficando cada um dos titulares, responsáveis, através de uma manifestação de vontade tácita, pela prestação integral, liberando o outro co-titular.
22. Ao contrário do que o Tribunal recorrido considerou, destas cláusulas gerais, não se extrai que aos titulares da conta, logo aquando da abertura da conta, lhes foi concedido crédito e, consequentemente, a possibilidade de os mesmos poderem sacar a descoberto.
23. Além disso, não resulta da lei nem resultou da vontade dos Recorrentes o estabelecimento expresso, ou sequer tácito, da solidariedade passiva.
24. Para que exista solidariedade passiva é necessário que o Recorrido prove que o saldo negativo foi determinado por todos os titulares da conta, ou por um deles com o assentimento expresso ou tácito dos demais, ou, então, que a constituição do saldo negativo corresponde ao cumprimento de uma obrigação da responsabilidade de todos os contitulares - cfr. Ac. TRL de 08/07/2004 proferido no processo nº 779/2004-1, in www.dgsLpt.
25. No caso sub judice resulta que foi o Recorrente marido que originou o saldo negativo devido a uma anomalia no sistema de multibanco que lhe permitiu ter efectuado as operações de levantamento e pagamento, pelo que, não pode a Recorrente mulher ser responsabilizada pelo pagamento do valor de um saque a descoberto que não foi nem autorizado nem feito por si e não foi, igualmente, autorizado pelo banco Recorrido.
26. Além disso, mesmo que se venha a entender que foi feita uma correcta interpretação das cláusulas 4.3 e 4.4 do contrato de abertura de conta, o Recorrido não logrou provar, como lhe competia, que o seu conteúdo foi devidamente explicado aos Recorrentes de forma a que estes entendessem que estavam a assinar um contrato de abertura de conta que convencionava uma solidariedade passiva para além dos limites do depósito nela existente - cfr. depoimento da testemunha F. F. aos minutos 23.11 a 23.43.
27. De resto, sendo, como são, as cláusulas 4.3 e 4.4 do contrato de abertura de conta, cláusulas gerais contratuais inseridas num contrato de adesão, o Recorrido tinha o dever de, nos termos do artº 6° do DL 446/85 de 25 de Outubro, informar, de acordo com as circunstâncias, os Recorrentes dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.
28. E, subsistindo ambiguidade, as cláusulas contratuais gerais têm de ser • interpretadas no sentido que lhes daria o contratante indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou a aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real, prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente – nº 1 e 2 do artº 11 ° do DL 446/85.
29. Acresce que o Banco de Portugal a fim de garantir aos depositantes bancários o conhecimento e entendimento das condições e características das contas de que são titulares e evitar interpretações das cláusulas, designadamente, as relativas aos saques a descoberto, publicou o Aviso nº 4/2009- (republicado pela Declaração de rectificação nº 2086/2009, de 21/8,in DR 2 Serie, Parte E, nº 165, de 26-8-2009) – nº 2 do art°6°.
30. Pelo que, também por esta razão, o tribunal recorrido fez uma errónea interpretação do contrato de abertura de conta, ao considerar existir uma solidariedade passiva dos co-titulares e condenado no pedido a Ré mulher.
31. O tribunal recorrido ao decidir por essa condenação violou as normas contidas nos artºs 9º, 512º e 513°, do Código Civil e os e os art°s 6° e 11 ° do DL 446/85 de 25 de Outubro, devendo ser revogada essa decisão e, em consequência, ser a Recorrente mulher absolvida do pedido.»
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O Banco apelado contra-alegou.
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O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos apelantes, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
As questões a resolver são as que constam das conclusões dos apelantes, acima reproduzidas.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

Factos considerados provados na sentença recorrida:

1. No dia 03 de Junho de 2005, os Réus contrataram com o Banco A, SA, a abertura de uma conta à ordem, sujeita ao regime de movimentação solidária, domiciliada no balcão de Braga Capelista da rede ex-BANCO A, à qual foi atribuído o n.º …, tendo aqueles fornecido como sua morada a “rua …, Póvoa de Lanhoso”.
2. E aceitaram expressamente as condições gerais de depósito que regem a abertura da conta.
3. As condições gerais da conta de depósitos à ordem prescrevem, além do mais:

“1.1 O contrato de conta de depósitos à ordem resulta da aceitação pelo Banco A, SA da proposta subscrita pelos clientes e da adesão por estes às presentes condições gerais que, em conjunto com as condições particulares, a legislação e os usos bancários aplicáveis regem o presente contrato.
3.3 A conta coletiva pode ser movimentada por uma das seguintes formas: a) conta solidária qualquer dos titulares pode, por si só, movimentar a conta a débito, total ou parcialmente, sem depender da intervenção ou autorização do(s) restante(s) co.titular(es), ficando o Banco A isento de toda a responsabilidade pela responsabilidade pela entrega da totalidade ou parte dos valores depositados.
4.3 Se a conta não dispuser de saldo ou provisão suficiente para que nela seja lançado qualquer movimento a débito, o Banco A está expressamente autorizado pelo(s) seu(s) titular(es) a debitar esse montante em qualquer outra conta de depósito do(s) mesmo(s) titular(es).
4.4 Se o Banco A, a título excepcional, e segundo o seu exclusivo critério de apreciação comercial autorizar o débito a descoberto na conta sacada, o respectivo saldo negativo vencerá juros à taxa máxima praticada e publicada pelo banco para operações activas que nela poderão ser debitadas em qualquer momento, sem necessidade de interpelação ou autorização do(s) se(s) titular(es). Esta autorização pontual de descoberto em conta não obriga o Banco a renová-la, nem gera qualquer expectativa ou presunção de concessão de mais crédito.
6.4 Se a conta tiver sido vinculada pelo(s) seu(s) titular(es) a qualquer cartão de débito ou de crédito, emitido ou contratado com o Banco A, o Banco fica expressamente autorizado a nela debitar os custos do cartão e todos os movimentos a débito decorrentes da sua utilização.
9.1 O Banco A emitirá e enviará ao(s) titular(es) extracto das respectivas contas com periodicidade mensal ou outra especialmente estipulada.
9.2 Os extractos da conta relativos aos movimentos nela efectuados num determinado período consideram-se aceites e aprovados pelo(s) seu(s) titular(es), caso não sejam objeto de reclamação escrita no prazo de 15 dias a contar da data do seu envio para a morada indicada pelo(s) destinatário(s).
10.1 Toda a correspondência relativa à conta, designadamente aos seus extractos será enviada para o endereço indicado para o efeito na proposta que antecede estas condições gerais, salvo instruções escritas em contrário do(s) titular(es).
10.2 O(s) titular(es) da conta obriga(m)-se a informar por escrito o Banco A sempre que ocorra qualquer alteração ou mudança do seu endereço, assumindo expressamente as responsabilidades decorrentes da omissão desta informação.
10.4 Consideram-se correctamente efectuadas as comunicações enviadas pelo Banco A para o último endereço indicado pelo(s) titular(es) da conta.”
4. No âmbito da conta identificada em 1, foi disponibilizado aos Réus um cartão de débito, vulgarmente designado cartão multibanco, sem qualquer plafond de crédito associado.
5. Por deliberação do Conselho de Administração do Banco de Portugal tomada em reunião extraordinária de 20 de Dezembro de 2015, os direitos e obrigações que constituíam activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco A, S.A. foram alienados ao A.
6. Após a migração para o Banco autor, a conta identificada em 1 foi renumerada com o n.º ...0.
7. No dia 26 de Outubro de 2016, a conta nº ...0 apresentava o saldo disponível de € 3,51.
8. A partir de 26 de Outubro de 2016, o Réu, socorrendo-se do cartão multibanco afectado à conta, efectuou, via ATM, até 02 de Novembro de 2016, diversos pagamentos e levantamentos em França que, a final, originaram um saldo negativo de € 358.270,84.
9. Aproveitando-se de uma anomalia no sistema Multibanco ocorrida aquando da interligação das redes Banco A e Banco X que permitiu que os cartões MB pudessem efectuar operações no estrangeiro, sem que fosse cativado o respectivo saldo, apenas o registo descritivo dos movimentos.
10. Todos os movimentos referentes à conta são levados a conta corrente, tendo sido os respectivos extractos remetidos aos Réus.
11. O A. remeteu a cada um dos Réus, para a morada que estes forneceram aquando da abertura da conta, carta datada de 22 de Dezembro de 2016 a fim de os interpelar para procederem ao pagamento da quantia em dívida correspondente ao saldo negativo decorrente do descoberto bancário acrescido de juros de mora e imposto de selo vencidos.
12. O Réu encontra-se registado em França como exercendo actividade relacionada com o fabrico de artigos de bijuteria e similares, apresentando-se em Portugal na categoria de “retalhistas – Ourivesarias e Joalharias”.
13. Entre os pagamentos aludidos em 8, contam-se pagamentos efectuados a “CV” e “GF” que se dedicam à compra e venda de ouro e outros metais preciosos, bem como jóias e moedas.
14. Os Réus não procederam ao pagamento da quantia indicada em 8, acrescida dos juros e imposto de selo devido até à presente data..

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A) IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Os apelantes impugnam a decisão da matéria de facto na parte em que se julgou provada a factualidade constante dos números 4 e 8 a 12, concretamente:

4. No âmbito da conta identificada em 1, foi disponibilizado aos Réus um cartão de débito, vulgarmente designado cartão multibanco, sem qualquer plafond de crédito associado.
8. A partir de 26 de Outubro de 2016, o Réu, socorrendo-se do cartão multibanco afectado à conta, efectuou, via ATM, até 02 de Novembro de 2016, diversos pagamentos e levantamentos em França que, a final, originaram um saldo negativo de € 358.270,84.
9. Aproveitando-se de uma anomalia no sistema Multibanco ocorrida aquando da interligação das redes Banco A e Banco X que permitiu que os cartões MB pudessem efectuar operações no estrangeiro, sem que fosse cativado o respectivo saldo, apenas o registo descritivo dos movimentos.
10. Todos os movimentos referentes à conta são levados a conta corrente, tendo sido os respectivos extractos remetidos aos Réus.
11. O A. remeteu a cada um dos Réus, para a morada que estes forneceram aquando da abertura da conta, carta datada de 22 de Dezembro de 2016 a fim de os interpelar para procederem ao pagamento da quantia em dívida correspondente ao saldo negativo decorrente do descoberto bancário acrescido de juros de mora e imposto de selo vencidos.
12. O Réu encontra-se registado em França como exercendo actividade relacionada com o fabrico de artigos de bijuteria e similares, apresentando-se em Portugal na categoria de “retalhistas – Ourivesarias e Joalharias”.

Sustentam os recorrentes, no tocante ao facto nº 4, que, quando muito, apenas se fez prova de que existe um cartão de débito com o nº ..., associado à conta identificada em 1, porque da prova documental e do depoimento da testemunha F. F. não é possível aferir a qual dos titulares foi disponibilizado o cartão.
Ora, do próprio teor da contestação conjunta dos réus, nomeadamente da defesa que apresentaram sob a veste de “ilegitimidade da ré mulher” e que não foi apresentada relativamente ao réu marido, decorre que os réus aceitaram que o cartão de débito era titulado e foi entregue ao réu marido (art.º 9º da contestação).

Aceitando os réus a matéria do art.º 2º da P.I., que não foi impugnada, salvo no respeitante à ré mulher no citado art.º 9º, a factualidade dada como provada no nº 4 dos factos provados tem de se considerar assente por acordo das partes.
No que concerne aos pontos 8, 9 e 12 dos factos provados, sustentam os apelantes que não existe prova de que tenha sido o recorrido a efectuar, socorrendo-se do cartão de débito, diversos pagamentos e levantamentos em França e que aí exercesse, ao tempo de tais levantamentos, a referida actividade.

Ora, da prova documental junta aos autos resulta que tais pagamentos e levantamentos foram efectuados com o dito cartão, que já temos por assente pertencer ao réu. O réu não comunicou à autora o furto ou extravio do dito cartão. No documento de fls. 98 (pesquisa de actividades da Ciberforma, portal do Código Postal) o réu consta como “retalhista – ourivesarias e joalharias. Nos documentos a fls. 113 a 117, relativos à actividade económica do réu em França, informação reportada a 16.12.2016, consta que o réu é artesão em actividade há dois anos integrado na T., especializado no sector da actividade de fabrico de artigos de bijuteria de fantasia e de artigos similares. O facto da última actualização da informação se reportar a 4.7.2015, não implica que tenha cessado a actividade nessa data, nem que a não exercesse em 2016. Também a testemunha F. F. afirmou que em conversa com o réu este lhe havia dito que negociava ouro. Não sendo habitual as pessoas mudarem de actividade todos os anos, o Tribunal, em termos de normalidade e razoabilidade pode estabelecer que o réu tinha essa actividade e negociava nesse ramo.

Do documento fls. 100 e mais especificadamente a fls. 163 e segs., constam os movimentos realizados com o cartão, presencialmente e validados por PIN, entre os dias 20 e 27 de Outubro de 2016, em França, que só poderiam ter sido efectuados pelo réu, uma vez que não participou nem comunicou o furto do cartão e só ele poderia ter acesso ao PIN, já que a esposa se encontrava em Portugal.

Da análise desses pagamentos verificamos que parte substancial (mais de €300.000) foram realizados a “CV” e “GF”, que, duma mera consulta à internet se constata negociarem em ouro, prata, diamantes e jóias, como aliás está documentado nos autos e assente no facto nº 13, que não foi objecto de impugnação, actividades essas relacionadas com a actividade exercida pelo réu.
Como no referido período a ré se encontrava em Portugal, tais movimentos da conta através de cartão de débito e com inserção de PIN só puderam ser feitos pelo réu, que, em França, apercebendo-se do erro do Banco (facto nº 9), que lhe permitia “sacar” quanto quisesse de uma conta sem fundos, se aproveitou, locupletando-se à custa alheia.
Não tem assim o apelante o mínimo de razão na impugnação destes factos (8º, 9º e 12º), que estão suficientemente provados pelo conjunto da prova produzida e acima assinalada.

Quanto aos factos nºs 10, e 11, alegam os apelantes que “que inexiste prova nos autos de que o recorrido tenha enviado e, por seu turno, os recorrentes recepcionado os extractos mensais dos movimentos da conta bancária de que estes são titulares e as cartas de interpelação”.
Note-se que nos aludidos factos não é mencionada a recepção dos extractos pelos réus.
Para prova dos factos 10º e 11º o Tribunal “a quo” atendeu aos documentos de fls 157 a 162 e ao depoimento da testemunha F. F., a qual afirmou que os extractos reportados a esta conta foram emitidos e remetidos aos réus, “afirmação que sustentou não só porque este é o procedimento habitual do autor, mas também pela inexistência de qualquer reclamação dos réus no sentido de não terem tomado conhecimento dos movimentos operados na conta em causa. A testemunha declarou, ainda, quando confrontado com os supra referidos documentos, que os réus foram interpelados a pagarem as quantias em dívida ao autor”.
Assim, contrariamente ao referido pelos apelantes há prova suficiente de que os extractos foram enviados e se foram ou não recepcionados é questão a apreciar em sede de direito.

De qualquer forma desde já adiantamos que, as cartas foram enviadas para a morada fornecida pelos réus, conforme cláusulas 10.1, 10.2 e 10.4, e, não tendo os réus comunicado alteração de residência, consideram-se correctamente efectuadas tais comunicações. Do clausulado do contrato não consta a exigência de envio de carta registada com aviso de recepção. Assim, nos termos da cláusula 9.2 do contrato celebrado entre o Banco A e os réus, não tendo estes reclamado dos extractos da conta relativos aos movimentos nela efectuados no referido período, os mesmos consideram-se aceites e aprovados pelos seus titulares.
Pelo exposto, analisados os invocados meios de prova, a nossa convicção coincide com a da 1ª instância, improcedendo assim a pretendida alteração fáctica e considerando-se assente a factualidade dada como provada na sentença recorrida.

B) RESPONSABILIDADE DA RÉ MULHER

Sem prescindir e caso se mantenha inalterada a matéria de facto provada, os recorrentes pugnam pela improcedência da acção no tocante à ré mulher.
Para tanto defendem que o Tribunal interpretou incorrectamente o contrato de abertura de conta, em especial as cláusulas gerais nºs 4.3 e 4.4, sendo excessivo delas retirar que os recorrentes deram uma autorização expressa e inequívoca à autora no sentido de esta, “a seu bel-prazer”, fazer pagamentos ou entregas de dinheiro a descoberto, ficando cada um dos titulares, responsáveis, através de uma manifestação de vontade tácita, pela prestação integral, liberando o outro co-titular.

Ora, das ditas cláusulas consta:

4.3 Se a conta não dispuser de saldo ou provisão suficiente para que nela seja lançado qualquer movimento a débito, o Banco A está expressamente autorizado pelo(s) seu(s) titular(es) a debitar esse montante em qualquer outra conta de depósito do(s) mesmo(s) titular(es).
4.4 Se o Banco A, a título excepcional, e segundo o seu exclusivo critério de apreciação comercial autorizar o débito a descoberto na conta sacada, o respectivo saldo negativo vencerá juros à taxa máxima praticada e publicada pelo banco para operações activas que nela poderão ser debitadas em qualquer momento, sem necessidade de interpelação ou autorização do(s) seu(s) titular(es). Esta autorização pontual de descoberto em conta não obriga o Banco a renová-la, nem gera qualquer expectativa ou presunção de concessão de mais crédito.
Tem ainda interesse para a apreciação da presente questão o teor da cláusula 6.4 – Se a conta tiver sido vinculada pelo(s) seu(s) titular(es) a qualquer cartão de débito ou de crédito, emitido ou contratado com o Banco A, o Banco fica expressamente autorizado a nela debitar os custos do cartão e todos os movimentos a débito decorrentes da sua utilização.

No que tange à 1ª questão entendemos que resulta do contrato, nomeadamente da cláusula 4.4, a possibilidade do Banco permitir excepcionalmente o saque a descoberto.

Foi o que sucedeu, ainda que involuntariamente, fruto de um erro informático de que o réu se aproveitou utilizando o cartão de débito em operações no estrangeiro, sem que a respectiva conta estivesse dotada dos necessários fundos. Não foi “a autora que “a seu bel-prazer” fez pagamentos ou entregas de dinheiro a descoberto, foi o réu, que, “a seu bel-prazer” fez pagamentos com o cartão de débito, no estrangeiro, aproveitando uma falha informática aquando da transição da conta do Banco A para o Banco autor, bem sabendo que a conta não tinha fundos que o permitissem e assim gerando o descoberto na respectiva conta bancária.

Quanto à segunda questão, da solidariedade passiva, traduzida na responsabilização do contitular dessa conta pelo descoberto que não é da sua responsabilidade, divergimos da sentença recorrida.

“A conta bancária diz-se solidária quando pode ser movimentada por qualquer dos respectivos titulares, indistinta ou isoladamente, devendo o Banco só uma vez a soma devida ao credor solidário que lho exija, ou seja, quando qualquer dos credores (depositantes ou titulares) tem a faculdade de exigir, por si só, a totalidade da quantia depositada e a prestação assim efectuada libera o devedor (banco) para com todos eles (cfr. arts. 512º C. Civ.). Qualquer dos titulares pode só por si realizar as várias operações de movimentação (vd. CALVÃO DA SILVA, "Direito Bancário", 345; PAULA P. CAMANHO, "Do Contrato de Depósito Bancário", 131” - e também Ac. do STJ de 14.2.2006 (05A4244) in dgsi.pt).

Esta modalidade de depósito, cujo regime visa facilitar a movimentação da conta (exigência do crédito ao banco devedor, que não obtém facilitação no pagamento da dívida), protege exclusivamente os titulares da respectiva conta, titulares que são, note-se, credores solidários do banco, situando-nos no campo da solidariedade activa.

Como se refere no supracitado acórdão:

– «Crê-se, porém, que da convenção desse regime de solidariedade não poderá, sem mais, concluir-se também pelo estabelecimento do regime de solidariedade passiva, pois que, para tanto, haveria de poder formular-se um juízo afirmativo da vontade dos contitulares da conta se responsabilizarem também pelos seus saldos negativos decorrentes de movimentos efectuados pelos outros contitulares.
Efectivamente, como escreve Paula Camanho (ob. cit., 245, nota 757), "o grau de confiança existente entre eles [contitulares] resume-se à movimentação do saldo da conta, e não respeita a uma movimentação para além daquele". E continua:

"E tal será ainda mais notório nos casos em que não exista uma convenção de "sacar a descoberto". Parece-nos, deste modo, que, em princípio, não existirá qualquer solidariedade passiva em tais casos. Para que esta possa, eventualmente, existir é necessária uma cláusula no contrato de depósito que a estabeleça, ou então, e tal hipótese não é totalmente líquida, que se convencione, no momento da abertura da conta a possibilidade de "sacar a descoberto" e, neste caso, talvez se possa retirar, tacitamente, uma vontade de os contitulares se obrigarem por saldos negativos de tal conta, ainda que tais descobertos sejam criados por outro dos co-depositantes".

Numa palavra, da mera titularidade de uma conta solidária não emerge para o contitular a responsabilidade pelo descoberto, pois que daquela solidariedade activa não pode, sem mais, deduzir-se a sujeição dos contitulares ao regime da solidariedade passiva. Tem de demonstrar-se que as partes quiseram, expressa ou tacitamente, submeter a responsabilidade pelos passivos da conta ao regime das obrigações solidárias, aceitando a posição de mutuários relativamente ao descoberto concedido.»

Ora, a cláusula 4.4 não constitui uma “convenção de sacar a descoberto”, mas apenas a possibilidade, a título excepcional do Banco sacado o vir permitir.

Não foi expressamente convencionado o saque a descoberto nem, por isso, acordado expressamente quem por tal descoberto respondia.

Embora a cláusula 4.3 pudesse ser interpretada nesse sentido, pois até se permite lançar o débito noutras contas, nela não se esclarece devidamente se é nas contas do titular responsável pelo descoberto ou também nas do outro.
Efectivamente da sua letra constasse “qualquer outra conta de depósito de qualquer dos titulares” e não, como consta, “qualquer outra conta de depósito do(s) mesmo(s) titular(es)”, a nossa interpretação seria diferente. Mas não consta. E, em matéria de Cláusulas Contratuais Gerais (DL n.º 446/85, de 25 de Outubro), na dúvida, prevalece o sentido mais favorável ao aderente (art.º 11º nº 2).

Consequentemente, entendemos que apenas quem efectuou tal saque, quem é responsável por tal descoberto, deverá responder pelo mesmo, isto é, o réu.
Nas suas contra-alegações o Banco apelado sustenta que a conta em questão, da titularidade do casal, suportava a actividade comercial do recorrente com o inerente benefício comum do casal, devendo assim a ré mulher responder por tal dívida, nos termos da alínea d) do n.º1 do artigo 1691º do Código Civil, uma vez que nos termos do art.º 1724º do mesmo diploma se presume o proveito comum.

Trata-se de uma questão nova, não só porque não foi apreciada na sentença, mas sobretudo porque não corresponde a matéria oportunamente alegada pelo Banco autor, na P.I. (como causa de pedir subsidiária), mas apenas na resposta, correspondendo a uma modificação da causa de pedir no tocante à ré mulher.

Alteração da causa de pedir que não obteve o acordo dos réus, que aliás se opuseram à apresentação de tal articulado, nem decorre de confissão dos réus aceita pela autora e que, por isso, não podia ser admitida, como não foi, nem expressamente (ver despacho a fls. 106 e acta da audiência prévia), nem implicitamente, pois a questão do proveito comum nem sequer vem elencada nos temas da prova.

Não assume assim esta questão, invocada em sede de contra-alegações, a natureza de questão cuja apreciação ficou prejudicada pela solução dada ao litígio, que aqui nos cumpra apreciar (art.º 665º nº 2 do CPC), mas antes a de questão nova, cuja apreciação está vedada ao Tribunal de recurso.
*
Assim, na procedência parcial das conclusões da apelação e apenas no que tange à apelante mulher, impõe-se a revogação da sentença recorrida

V - DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar parcialmente procedente a apelação, e, em consequência, revogam a sentença na parte em que condenou a ré mulher, que assim vai absolvida do pedido, mantendo-se o mais aí decidido.
Custas da apelação pelo apelante marido e pela apelada, na proporção de 50%.
Guimarães, 22-2-2018

Eva Almeida
António Beça Pereira
Maria Amália Santos