Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1472/21.5T8CHV.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: UNIÃO DE FACTO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. As pessoas que vivem em união de facto têm direito a proteção da casa de morada de família, aplicando-se, em caso de rutura da união de facto, o disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil.
2. O critério geral para atribuição do direito ao arrendamento da casa de morada da família na sequência de ação de divórcio ou rutura de união de facto não pode ser outro senão o de que deve ser atribuído ao ex-cônjuge (unido de facto) que mais precise dela, pois o objetivo da lei é proteger aquele que mais seria atingido pelo divórcio (rutura) quanto à estabilidade da habitação familiar.
3. Deve ter-se em conta, nomeadamente, tanto a situação patrimonial dos cônjuges, como o interesse dos filhos, a idade e o estado de saúde dos ex-cônjuges, a localização da casa, o facto de algum deles dispor de outra casa em que possa viver, etc.
4. Para fixação da renda, o tribunal não tem que ficar condicionado pelos valores de mercado, desconsiderando a situação patrimonial dos cônjuges, o que poderia inviabilizar na prática os objetivos da lei, antes terá que tomar em consideração as circunstâncias do caso e, em particular, a situação patrimonial do cônjuge arrendatário.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

AA intentou ação especial para atribuição da casa de morada de família contra BB pedindo que se reconheça que a autora e o réu viveram em união de facto desde o ano de 2005 até fevereiro de 2021 e que se proceda à atribuição judicial da casa de morada de família – fração autónoma ..., ..., do prédio em regime de propriedade horizontal sito no Bloco ..., n.º 22 do Bairro ..., inscrito na matriz predial urbana da freguesia ... sob o artigo ...69.º e descrito na CRP ... sob o n.º ...27... – à autora, mediante sujeição às regras do arrendamento para habitação e definindo as condições do contrato nos termos da alegação constante da petição inicial.
Teve lugar a tentativa de conciliação, sem êxito.
Foi proferido despacho que considerou extemporânea a contestação apresentada pelo réu, não produzindo efeitos nos autos.
Ao abrigo das normas relativas aos processos de jurisdição voluntária, foi admitida a prova oferecida pelo réu e designou-se dia para tomada de declarações às partes e inquirição das testemunhas.

Teve lugar a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, reconheceu que a autora e o réu viveram em união de facto desde o ano de 2006 até fevereiro de 2021, julgando improcedente a ação quanto à atribuição do direito de arrendamento à autora.
           
A autora interpôs recurso, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes
Conclusões:

a) A decisão da qual se recorre fere o sentido de justiça do cidadão comum e mina, enfim, a confiança que a comunidade deve depositar nos tribunais e na justiça.
b) De facto, ao não se atribuir à autora/requerente a casa de morada de família, mediante sujeição às regras do arrendamento, deixando-a lançada à sua sorte - sabendo-se ter sido esta diagnosticada recentemente com Leucemia Linfocítica Crónica (ponto 8 dos factos provados), padecer de uma incapacidade permanente de 64% (ponto 15 dos factos provados), não ter qualquer família no concelho ... (ponto 16 dos factos provados), convidada a abandonar a casa pelo cônjuge com o qual tinha uma relação de mais de 15 anos (pontos 1, 2 e 11 dos factos provados), o qual iniciou uma nova relação amorosa após o diagnóstico da doença da autora (ponto 9 dos factos provados) - está a desafiar-se o justo sentir comunitário, postergando-se os mais básicos valores humanos.
c) Não obstante os factos dados como provados serem elucidativos da situação de carência da autora e da premência desta em manter-se na casa na qual habita desde 2006 (ponto 3 dos factos provados), o certo é que a decisão não dedica uma única linha a essa indesmentível carência ou premência da autora, limitando-se a concluir friamente que “trabalhando a autora no concelho ... e não tendo como refere qualquer respaldo familiar em ..., a opção de residir mais perto do seu local de trabalho iria permitir uma poupança em despesas com as referidas deslocações” – pág. 9, in fine, da sentença.
d) A M.ª Juiz do Tribunal a quo preconiza assim que a autora se mude para o concelho ..., numa fase tão difícil da sua vida, deixando o seu entorno habitual na cidade ..., mesmo sabendo, como resulta do doc. ... junto com o requerimento inicial, que a mesma se encontra a ser seguida regularmente no serviço de Hematologia Clínica do CH... em ....
e) Para o Tribunal a quo o facto de o réu ter a fracção registada em seu nome e pagar a respectiva prestação do empréstimo constituiu critério decisivo para, como se diz na sentença, “fazer pender a balança” para o lado deste.
f) Ora, se o registo/propriedade da casa em nome de um dos cônjuges fosse critério decisivo, não faria sentido prever-se no artigo 1793.º n.º 1 do Código Civil que pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja comum quer própria do outro”.
g) Aliás, do julgamento resultou claro e transparente que a casa ficou unicamente registada em nome do réu porquanto à data da respectiva aquisição, o que aconteceu em 2006/09/11 (ponto 4 dos factos provados), a autora, não obstante já viver com o réu como se de marido e mulher se tratassem (pontos 1, 2 e 3 dos factos provados), ainda se encontrava a tratar do seu divórcio, que apenas viria a concretizar-se em 10/09/2007 (ponto 6 dos factos provados).
h) Esta matéria foi alegada nos artigos 21.º, 22.º e 23.º do requerimento inicial, não tendo merecido acolhimento ou sequer espaço de análise na sentença recorrida, a despeito dos elucidativos esclarecimentos prestados pela autora em declarações de parte, e sabendo-se que o alegado no requerimento inicial neste sentido não foi sequer alvo de contestação pelo réu, tanto assim que por despacho de 21-04-2022, a contestação apresentada foi julgada extemporânea, não produzindo efeitos nos autos.
i) É certo que a prestação do empréstimo da compra da casa foi sempre assegurada pelo réu, que tinha um salário superior ao da autora (ponto 17 dos factos provados), para não dizer bem superior, como emana proficientemente das declarações fiscais desde 2005 até ao presente, juntas com o requerimento inicial sob doc. ....
j) Diga-se, apesar de ter elementos bastantes para balizar o salário do réu, desde logo por recurso às declarações fiscais juntas aos autos, a M.ª Juiz deu laconicamente como não provado que “o réu aufere uma retribuição mensal na ordem dos 2.000 €”.
k) Se, concentrando-nos, por brevidade, apenas nos anos mais recentes, nos ativermos à análise dos anos fiscais de 2018, 2019 e 2020, temos que o réu declarou auferir nesses anos, como rendimentos de trabalho dependente,16.693,57€, 18.998,35€ e 19.192,09€, respetivamente, ao passo que a autora declarou auferir 7.849,33€, 8.741,40€ e 7.954,98€ no mesmo período.
l) Ora, uma vez que o Tribunal deu como provado no ponto 12 dos factos provados que a autora aufere a retribuição mínima mensal garantida – o que se presume ter sido dado como provado tendo por base as aludidas declarações de rendimentos, como discorrido no 4.º parágrafo da pág. 6 da sentença – deveria, pela mesma lógica, ter dado como provado, pelo menos, que o réu declarou auferir nos anos de 2018, 2019 e 2020, como rendimentos de trabalho dependente,16.693,57€, 18.998,35€ e 19.192,09€, respetivamente.
m) Assim se requer, pois, seja aditado aos factos provados um novo facto, sob n.º 19, com a seguinte redação:
19. O réu declarou auferir nos anos de 2018, 2019 e 2020, como rendimentos de trabalho dependente,16.693,57€, 18.998,35€ e 19.192,09€, respetivamente
n) Podendo assim concluir-se que o réu aufere rendimentos anuais que quase triplicam os rendimentos da autora.
o) Encontrando-se assente que a autora aufere a retribuição mínima mensal garantida, que atualmente se cifra em 705 euros (ponto 12 dos factos provados), suportando despesas mensais com alimentação, vestuário e combustíveis de cerca de 350 euros (ponto 13 dos factos provados) e efetuando despesas de cerca de 200 euros mensais com cuidados de saúde e deslocações para consultas (ponto 14 dos factos provados).
p) O que nos leva a questionar, como é que a autora, com os 155 euros restantes (705,00€ - 305,00€ - 200,00€) poderá a suportar uma renda noutro local, isto tendo em conta que a fração em causa se encontra inserida no comummente designado por “Bairro ...” – vd., por exemplo, as referências a Bairro ..., ... juntos com o requerimento inicial – que, como é consabido na cidade ..., é uma Cooperativa de Habitação Económica, onde as rendas são notoriamente mais baixas do que no restante parque habitacional da cidade.
q) A despeito de ter rendimentos bem inferiores ao réu – e sabendo-se que não estamos no âmbito de uma ação de enriquecimento sem causa – durante os mais de 15 anos de vivência conjugal autora sempre contribuiu para a vida comum, não se limitando simplesmente a adquirir os sofás, a mobília de quarto, o fogão e o forno ou a pagar o soalho flutuante e a sua colocação (ponto 10 dos factos provados), o que resultou suficientemente claro, além do mais, do depoimento da testemunha CC, sua vizinha, cujo depoimento supra se transcreveu, com especial enfâse nesta matéria para o minuto 11:57 e seguintes.
r) Portanto, a autora contribuiu sempre ativamente, dentro das suas possibilidades, para a economia comum e isso mesmo deveria ter sido devidamente sopesado na decisão final.
s) Acresce que, do depoimento da mencionada testemunha, resulta o forte apego e investimento pessoal que a autora fez na fração em causa, por exemplo, pintando-a regularmente, diligenciando pela colocação de roupeiros embutidos, personalizando-a a seu gosto e tornando-a, enfim, mais cómoda e agradável.
t) Do depoimento da referida testemunha, com especial enfâse de 00:00 até 05:18, resulta, outrossim, a importância da manutenção do entorno social e de vizinhança da autora para a preservação da sua estabilidade emocional, numa fase tão conturbada da sua vida e em que a mesma patenteia evidente fragilidade física e emocional, fruto da doença e do posterior abandono por parte do réu, que iniciou uma nova relação amorosa, sendo frequentes as vezes em que autora procura a testemunha, sua vizinha há mais de 15 anos, para desabafar, para ir às compras, entre outros, sabendo-se, como se disse, que a autora não tem qualquer respaldo familiar no concelho ....
u) A evidente fragilidade física e emocional da autora na atualidade, fruto da doença e do posterior abandono por parte do réu, que iniciou uma nova relação amorosa, ficou também bem vincada no depoimento da testemunha DD, na parte que se transcreveu no corpo desta alegação, a qual referiu notar a autora “muito em baixo”, “muito desanimada”, “não parando de chorar”, o que na perceção da referida testemunha resulta da doença que recentemente lhe foi diagnosticada e do posterior abandono pela pessoa com quem aquela vivia há mais de 15 anos e de quem esperava o necessário apoio e carinho nesta fase.
v) Se da parte da autora, o julgamento nos demonstrou o forte apego e investimento pessoal que a mesma fez na fração em causa, assim como a importância da manutenção do seu entorno social e de vizinhança para a preservação da sua estabilidade emocional nesta fase tão delicada da sua vida, já da parte do réu, o julgamento evidenciou-nos a sua clara insensibilidade e alheamento no que tange aos assuntos e lides da casa e sobretudo a sua total insensibilidade e desrespeito pela autora, que tanto lhe deu de si durante os mais de 15 anos de vida conjugal.
w) Aliás, sobre o “caseirismo” do réu, ficou claro do julgamento que o mesmo pernoita muitas vezes fora de casa por imperativos profissionais (e ultimamente também por ter estabelecido uma nova relação amorosa), tendo tal circunstância sido até admitida nas próprias alegações finais do seu Ilustre Mandatário, o qual admitiu, ao Minuto 2:43, que “O Sr. BB decorrente da profissão que exerce, motorista, muitas vezes não pernoita em casa, muitos fins-de-semana está ausente, porque tem que fazer viagens longas”
x) Tudo isto a M.ª Juiz desvalorizou, defendendo que a balança pende para o lado do réu porque este é proprietário e, por isso,” não tem de se sujeitar a ter de viver em casa de familiares ou tomar de arrendamento uma casa para si”.
y) Dir-se-ia tratar-se de uma conclusão la palisiana, não fosse toda a factualidade emergente dos presentes autos, a qual foi devidamente alegada no requerimento inicial, não foi contestada - tanto assim que por despacho de 21-04-2022, a contestação apresentada foi julgada extemporânea, não produzindo efeitos-, e que foi objeto da devida prova documental e testemunhal e, consequentemente, levada aos factos provados na sentença recorrida.
z) Isto, claro está, sem prejuízo da demais factualidade que deveria constar dos factos provados, nos termos supra propugnados e, enfim, de toda a demais factualidade (instrumental) resultante da discussão da causa, de onde, repete-se, emana proficientemente a ativa contribuição da autora para a economia comum, o forte apego e investimento pessoal que a mesma fez na fração, a importância da manutenção do seu entorno social e de vizinhança para a preservação da sua estabilidade emocional, o claro alheamento e insensibilidade do réu no que aos assuntos e lides da casa diz respeito, o facto de este pernoitar muitas vezes fora de casa por imperativos profissionais e ultimamente também por ter estabelecido uma nova relação amorosa, o facto de esta nova relação amorosa ter sido estabelecida à revelia da autora após o diagnóstico da sua grave doença, o facto de o réu ganhar quase o triplo da autora, podendo suportar mais facilmente uma renda na cidade ..., sabendo-se que a fração em causa se encontra inserida numa Cooperativa de Habitação Económica, onde as rendas são notoriamente mais baixas do que no restante parque habitacional da cidade.
aa) Ora, toda esta factualidade, deveria ter sido erigida como “fatores relevantes” para a decisão.
bb)Com efeito, a redação da norma do artigo 1793.º, n.º 1, do Código Civil (“Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal”), encontra-se muito próxima da do artigo 1105.º, n.º 2, do mesmo corpo de normas (“Na falta de acordo, cabe ao tribunal decidir, tendo em conta a necessidade de cada um, os interesses dos filhos e outros fatores relevantes”).
cc) Como emana do sumário do Acórdão do STJ de 17-12-2019, Relator Exma. Conselheira Maria João Vaz Tomé, “são, inter alia, atendíveis, a idade, a possibilidade de trabalho e a (im)possibilidade de um dos cônjuges dispor de outra casa em que possa residir sem beneficiar da mera tolerância de terceiros (…) deve também levar-se em consideração o comportamento pretérito de cada um dos cônjuges em relação ao outro, designadamente a conduta que se consubstancie na causa da rutura definitiva do casamento, que constitua fundamento do divórcio sem o consentimento de um dos cônjuges. A ponderação do elemento sistemático da interpretação da lei (contexto da lei: art. 2016.º, n.º 3), nos termos do art. 9.º, n.º 1, conduz a este resultado.
dd) Salvaguardando-se aqui, por consolidado, o entendimento de que os citados preceitos legais se aplicam igualmente à situação de rutura da união de facto, por determinação do artigo 4º da Lei n.º 7/2001, de 11-05, na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 23/2010, de 30-08, diploma que instituiu medidas de proteção à união de facto, reconhecendo e tutelando direitos aos conviventes, mesmo após cessada a vida em comum.
ee) Por tudo quanto se expôs, a autora tem de continuar a viver na casa de morada de família, naquele que é o seu Lar há mais 15 anos.
ff) Por isso mesmo recorreu deliberadamente a esta ação especial de atribuição da casa de morada de família e não a uma ação de enriquecimento sem causa, porque, afinal, nem tudo se resume a dinheiro, sobretudo nesta altura de extrema debilidade da sua saúde.
gg) Atribuir-se a casa de morada à autora - naturalmente mediante sujeição às regras do arrendamento para habitação, e definindo as condições do contrato - é uma questão da mais elementar justiça e humanismo.
hh) Nessa definição das condições do contrato, quer no que tange à duração e ao montante mensal da renda, há-de levar-se em linha de conta os mais de 15 anos de duração da união de facto (conforme pontos 1, 2 e 3 dos factos provados), a situação de saúde da autora, à qual foi diagnosticada Leucemia Linfocítica Crónica e que padece de uma incapacidade permanente de 64% (conforme pontos 8 e 15 dos factos provados), a sua idade, os seus parcos proventos, repetindo-se que se encontra assente que a autora aufere a retribuição mínima mensal garantida, suportando despesas mensais com alimentação, vestuário e combustíveis de cerca de 350 euros e efetuando despesas de cerca de 200 euros mensais com cuidados de saúde e deslocações para consultas (pontos 12, 13 e 14 dos factos provados), sendo nessa medida de estabelecer um contrato com duração nunca inferior a 15 anos e uma renda nunca superior a 155,00€ mensais, ou seja, o que lhe resta após todas as demais despesas que efetua em média por mês e que o Tribunal deu como provadas.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso, em conformidade com as conclusões que antecedem, assim se fazendo a clamada JUSTIÇA.

O réu contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito suspensivo.
Foram colhidos os vistos legais.

As questões a resolver prendem-se com a impugnação da decisão de facto, bem como com o significado da expressão “necessidades de cada um dos cônjuges” no âmbito da atribuição da casa de morada da família, importando ainda considerar qual o valor devido pelo arrendamento, caso este seja decretado.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Na sentença foram considerados os seguintes factos:

Provou-se que:

1. Desde pelo menos o ano de 2006 que a autora e o réu viveram como se marido e mulher se tratassem, vivendo na mesma casa, dormindo na mesma cama e comendo na mesma mesa.
2. Apresentando-se perante familiares, amigos e conhecidos como se de marido e mulher se tratassem.
3. A partir de setembro de 2006 a autora e o réu passaram a residir num apartamento, tipo ..., sito na Rua ..., ..., ..., ....
4. O imóvel encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...17..., estando o direito de propriedade sobre o mesmo inscrito a favor do réu pela Ap. ... de 2006/09/11.
5. Sendo o réu que suportou a prestação devido pelo empréstimo contraído para a sua aquisição.
6. A autora apenas viu dissolvido por divórcio o seu casamento com EE em 10/09/2007.
7. Em fevereiro de 2021 a autora e o réu deixaram de ter vida em comum, sendo que, apesar de estarem na mesma casa, faziam vidas completamente separadas.
8. Em junho de 2020 foi diagnosticado à autora Leucemia Linfocítia Crónica, estádio Binet A e Rai 0, passando a ser seguida na consulta do serviço de Hematologia do Hospital de ....
9. O réu, pelo menos desde 2021, tem uma relação de natureza amorosa com outra pessoa.
10. A autora adquiriu os sofás, a mobília do quarto, o fogão e o forno, bem como pagou o soalho flutuante e a sua colocação.
11. O réu pretende que a autora abandone a casa.
12. A autora trabalha na APPCADM de ... auferindo a retribuição mínima mensal garantida.
13. Suporta despesas mensais com alimentação, vestuário, combustíveis de cerca de 350 € mensais.
14. E despesas de cerca de 200 € mensais com cuidados de saúde e deslocações para consultas.
15. A autora padece de uma incapacidade permanente de 64%.
16. Não tem família no concelho ....
17. O réu é motorista de veículos pesados de passageiros na Auto-Viação do ... em ... auferindo uma remuneração superior à da autora.
18. O valor de mercado de uma renda de uma fração com as características e localização da referida em 3 ascende a 250 € mensais.
Com relevância para a decisão nada mais se provou, designadamente que:
a) Durante o tempo em que a autora e o réu viveram em comum foi aquela que assumiu o grosso das despesas domésticas, desde alimentação, loiças, toalhas, utensílios de cozinha e pequeno mobiliário do dia a dia.
b) Que o réu aufere uma retribuição mensal na ordem dos 2.000 €.

A apelante impugna a matéria de facto.
Contudo, verifica-se que não dá cumprimento ao ónus que para si resulta da aplicação do disposto no artigo 640.º do Código de Processo Civil, uma vez que não indica quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alíneas a) e c) do n.º 1 do citado normativo).
 A apelante limita-se a referir, genericamente, aquilo que terá resultado dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência, quanto à sua fragilidade emocional resultante da doença e do comportamento do seu ex-companheiro, bem como relativo à sua fragilidade financeira e ainda os factos relativos à sua comparticipação nas despesas do casal e da casa de morada da família.
Estando tais factos aflorados em pontos provados e sendo possível extrair as conclusões pretendidas pela apelante da análise do conjunto da matéria de facto, não pode este tribunal de recurso introduzir alterações na matéria de facto, sem que a apelante diga expressamente quais as alterações pretendidas e em que pontos em concreto da matéria de facto, em cumprimento daquele ónus resultante do disposto no artigo 640.º do CPC.
Não estando especificados tais pontos, tem a impugnação da matéria de facto que ser rejeitada.

Apenas quanto a um facto a apelante cumpre as obrigações decorrentes do artigo 640.º do CPC. Referimo-nos ao pretendido aditamento do ponto n.º 19 dos factos provados, com a seguinte redação:
19 – O réu declarou auferir nos anos de 2018, 2019 e 2020, como rendimentos de trabalho dependente, € 16.693,57, € 18.998,35 e € 19.192,09, respetivamente.
Com efeito, a apelante indica o facto que pretende ver aditado e a respetiva redação, indicando também os meios de prova respetivos – documentos de IRS juntos com a petição inicial.
Não há dúvida que tais valores se encontram provados e, se é certo que não se provou que o réu aufere uma retribuição mensal na ordem dos € 2.000,00 (apesar da existência do recibo relativo ao mês de maio de 2021, nesse valor, mas que inclui muitas horas de trabalho suplementar), também é verdade que, constando dos factos provados que a autora aufere a retribuição mínima mensal garantida, é de toda a conveniência que aí também constem os rendimentos do trabalho auferidos pelo réu, face à grande discrepância entre ambos.
Assim, considerando parcialmente procedente a impugnação da apelante, entendemos ser de aditar à matéria de facto provada o ponto n.º 19 com a seguinte redação:
19 – O réu declarou auferir nos anos de 2018, 2019 e 2020, como rendimentos de trabalho dependente, € 16.693,57, € 18.998,35 e € 19.192,09, respetivamente.

Avaliemos, agora, a questão relativa às necessidades de cada um dos cônjuges no âmbito da atribuição da casa de morada da família.
Não há dúvida que autora e réu não eram casados, mas viviam em união de facto, que durou desde 2006 até 2021.
A união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges, há mais de dois anos – artigo 1.º, n.º 2 da Lei n.º 7/2001 de 11 de maio, na redação da Lei n.º 23/2010 de 30/08.
Este diploma adotou medidas de proteção das uniões de facto, prevendo-se, nos seus artigos 3.º, alínea a) e 4.º, que as pessoas que vivem em união de facto têm direito a proteção da casa de morada de família, aplicando-se, em caso de rutura da união de facto, o disposto nos artigos 1105.º e 1793.º do Código Civil.
Assim, não havendo dúvida que autora e réu viveram em união de facto, desde 2006, até 2021, em imóvel propriedade do réu, e que a autora pretende continuar a habitar aquela que foi a casa de morada da família, é-lhes aplicável o disposto no artigo 1793.º do Código Civil que estabelece que “Pode o tribunal dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada da família, quer essa seja comum quer própria do outro, considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um dos cônjuges e o interesse dos filhos do casal.”
Vê-se, assim, que o facto de o imóvel ser propriedade do réu, não pode ser erigido em critério principal para a atribuição da casa de morada da família, como foi decidido em 1.ª instância, uma vez que a lei prevê, exatamente, que a casa possa ser propriedade do outro que não aquele que a pretende tomar de arrendamento.
Verifica-se, conforme referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, in «Curso de Direito da Família», vol. I, 4.ª edição, pág. 675, que «a lei terá sacrificado o direito de propriedade, constitucionalmente protegido (cfr. art. 62.º CRP), ao interesse da família, igualmente objeto de proteção constitucional (art. 67.º).
Não existindo filhos do casal, o critério mais importante (a indicação da lei não é taxativa, uma vez que refere “nomeadamente”) será o das necessidades de cada um dos cônjuges.
Pretende tal preceito defender a estabilidade da habitação familiar, querendo a lei que a casa de morada da família, decretado o divórcio ou a separação judicial de pessoas e bens, ou face à rutura da união de facto, possa ser utilizada pelo cônjuge ou ex-cônjuge, ou ex-unido de facto, a quem for mais justo atribuí-la, tendo em conta, designadamente, as necessidades de um e outro.
O critério geral para atribuição do direito ao arrendamento da casa de morada da família na sequência da rutura não pode ser outro senão o de que deve ser atribuído ao ex-unido de facto que mais precise dela, pois o objetivo da lei é proteger aquele que mais seria atingido pela referida rutura quanto à estabilidade da habitação familiar. A necessidade da casa será, assim, o fator principal a atender, devendo o tribunal ter em conta, tanto a situação patrimonial dos cônjuges, como o interesse dos filhos, para além de outras razões atendíveis como, a idade e o estado de saúde dos ex-cônjuges, a localização da casa, o facto de algum deles dispor de outra casa em que possa viver, etc.
Quando, em face destes elementos, se possa concluir que a necessidade ou premência da necessidade de um deles é consideravelmente superior à do outro, deve o tribunal atribuir o direito ao arrendamento da casa de morada da família àquele que mais precise dela.
A culpa, imputada a um ou a outro na rutura da união de facto (a que a apelante parece dar muita importância, designadamente, considerando que foi o réu quem passou a ter uma relação de natureza amorosa com outra pessoa), apenas deverá ser considerada quando as necessidades de ambos forem iguais ou sensivelmente iguais.
Assim definido o critério legal, caberá dizer que, em face dos factos provados, não há dúvida que a apelante tem mais necessidade da casa do que o apelado.
Por um lado, a apelante aufere uma retribuição mensal bastante inferior à do apelado e que, subtraídas as despesas obrigatórias, a deixa numa situação de grande debilidade financeira, impossibilitando-a de comprar ou arrendar uma habitação para si própria. Já o apelado tem uma situação financeira muito mais desafogada (mais do dobro da apelante), o que lhe permite, facilmente, encontrar outra situação de habitação para si mesmo.
Por outro lado, a apelante tem uma situação de saúde precária, tendo-lhe sido diagnosticada uma leucemia, padecendo de uma incapacidade permanente de 64% e não tem família no concelho ..., de que se possa socorrer, sendo certo que é no Hospital dessa cidade que é seguida e faz tratamentos.
O problema de saúde de que padece, aliado ao facto de o réu, com quem viveu cerca de 15 anos, ter assumido uma relação de natureza amorosa com outra pessoa (numa altura em que a autora tem já 60 anos de idade), naturalmente que lhe provoca uma fragilidade física e emocional que deve ser ponderada, no sentido de não a obrigar a abandonar, nesta fase da sua vida, a casa onde viveu nos últimos 15 anos, erigida, assim, em fator de estabilidade da maior importância.
Certo que já vimos que a culpa na rutura da vida familiar apenas deve ser ponderada no caso de as necessidades de ambos serem iguais ou sensivelmente iguais.
Neste caso, como resulta do que já salientámos, as necessidades da autora, em função da sua situação patrimonial e do seu estado de saúde, são muito superiores às do réu, pelo que nem sequer será necessário fazer apelo àquela culpa.
Daí que tenha que se considerar procedente a apelação, atribuindo-se a casa de morada da família à apelante.

Relativamente ao valor a pagar pela autora, deve dizer-se que, num caso de atribuição da casa de morada da família, o tribunal não tem que ficar condicionado pelos valores de mercado, desconsiderando a situação patrimonial dos cônjuges, «o que poderia inviabilizar na prática os objetivos da lei» - autores e obra citada, pág. 676.
A renda terá que tomar em consideração as circunstâncias do caso e, em particular, a situação patrimonial do cônjuge arrendatário.
No caso concreto, considerando os factos que se apuraram relativos à situação patrimonial da apelante e considerando, também, que o apelado suporta uma prestação mensal ao Banco relativa ao empréstimo para aquisição da casa, no valor de € 90,00, revela-se adequado fixar a quantia de € 100,00 mensais a pagar pela autora ao réu pela ocupação da casa de morada da família
Não será despiciendo lembrar aqui que       a atribuição da casa de morada da família é um incidente de jurisdição voluntária, podendo as suas resoluções ser alteradas com base em circunstâncias supervenientes que justifiquem a alteração, face ao que dispõe o artigo 1793.º, n.º 3 do Código Civil – neste sentido, cfr. Acórdãos da Relação do Porto de 25/02/2013 e de 22/05/2017, ambos em www.dgsi.pt – resultando do disposto nos artigos 988.º e 987.º do CPC a possibilidade de se alterar o regime, sem sujeição a critérios de legalidade estrita, antes adotando a solução que se julgue mais conveniente e oportuna.

Procede, nestes termos, a apelação, sendo de revogar a decisão recorrida, atribuindo-se à autora a utilização da casa de morada da família, ficando o arrendamento sujeito às regras do arrendamento para habitação, mediante a prestação mensal de € 100,00, a pagar pela autora ao réu e a ser atualizada nos termos legais.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e atribuindo-se à autora o direito de arrendamento da casa de morada da família, ficando este sujeito às regras do arrendamento para habitação, mediante a prestação mensal de € 100,00, a pagar pela autora ao réu e a ser atualizada nos termos legais.
Custas pelo apelado.
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Guimarães, 12 de janeiro de 2023

Ana Cristina Duarte
Alexandra Rolim Mendes
Maria dos Anjos Melo Nogueira