Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
170/19.4GAPTB-A.G1
Relator: ARMANDO AZEVEDO
Descritores: MEDIDAS DE COACÇÃO
DISPENSA DE CONSENTIMENTO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
IRREGULARIDADE
ARTºS118º
Nº 2
123º E 379º
Nº 2 DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- Apenas a nulidade da sentença, e não também dos meros despachos, é legalmente possível suscitar diretamente por via da interposição de recurso, cfr. nº 2 do artigo 379º do CPP.

II- No caso, em que se mostra indiciado a prática de um crime de violência doméstica, está em causa um despacho judicial pelo qual foi decidida a aplicação ao arguido, aqui recorrente, de medidas de coação (proibição de contactos e de se aproximar da vítima, com fiscalização através de meios eletrónicos de controlo à distância), tendo sido prescindido o consentimento do arguido no que se refere à aplicação dos referidos meios técnicos de controlo ou de fiscalização.

III- A falta da fundamentação de despachos tem como efeito a sua irregularidade (cfr. artigo118º, nº 2 e 123º do CPP), se a lei não cominar de forma diferente (v.g. artigo 194º, nº 4 do CPP; relativamente à sentença, tal falta acarreta nulidade – artigo 379º CPP);

IV- A violação ou a inobservância da lei - no caso a apontada falta ou deficiente fundamentação do despacho quanto à imprescindibilidade da aplicação dos meios técnicos de controlo à distância e à dispensa de consentimento para a aplicação dos mesmos - a existir constitui uma mera irregularidade processual, a qual, porque o interessado a ela assistiu, deveria ter sido arguida no próprio ato, não o tendo sido mostra-se sanada, cfr. artigo 118º, nº1 e nº 2 do CPP.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- RELATÓRIO

1. No Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo Local Criminal de Ponte da Barca, nos autos de inquérito nº 170/19.4 GAPTB, em que é arguido G. M., com os demais sinais nos autos, o Senhor Juiz com funções instrutórias, por despacho exarado nos autos, após submissão do arguido a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, ordenou a aplicação ao arguido da medida de coação de proibição de contactar e de se aproximar da ofendida, mantendo dela e da sua residência uma distância de, pelo menos 1 Km, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, mesmo sem o consentimento do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 36.º, n.º 7 da Lei nº 112/2009, de 16/09.
2. Não se conformando com o mencionado despacho, dele interpôs recurso o arguido, sem, contudo, formular conclusões.
3. O Ministério Público, na primeira instância, respondeu ao recurso interposto pelo arguido, tendo concluído nos seguintes termos (transcrição):
1. Alega o arguido que a decisão que determinou a aplicação das medidas de coação é nula por falta de fundamentação suficiente quanto à imprescindibilidade para a vítima que a fiscalização das medidas de coação seja efetuada por meios técnicos de controlo à distância, e bem assim quanto à dispensa do consentimento do arguido e das pessoas afectadas com esse controlo, incluindo a vítima.
2. Com este entendimento não podemos concordar.
3. Como sabemos, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 31.° d), 35.° e 36.° da Lei n.° 112/2009 de 16.09 o recurso aos meios técnicos de controlo à distância da medida de coação de proibição de contactos depende da verificação de dois requisitos:
(iii) o juízo de imprescindibilidade da medida para a proteção da vítima;
(iv) (ii) a obtenção do consentimento do arguido e das restantes pessoas identificadas no artigo 36.° referido, a não ser que o tribunal, em decisão fundamentada, face às circunstâncias concretas, ponderando os valores em conflito, conclua que a aplicação daqueles meios técnicos se toma Indispensável/imprescindível para a proteção dos direitos da vítima.
4. Ora, para ajuizarmos da verificação do critério de imprescindibilidade para a proteção da vitima teremos que atentar ao caso concreto e bem assim se existem nos autos indícios de que o arguido poderá atentar contra a vida ou integridade física da vítima, ou seja, da existência de indícios da continuação da atividade criminosa.
5. Com efeito, esta condição de aplicação da medida de coacção deve ser concretizada e tem em vista a salvaguarda futura da paz social, que foi afectada com a conduta criminosa revelada pelo arguido e que tem potencialidades, objectivas (natureza e circunstâncias) ou subjectivas (personalidade), para continuar a alarmar ou mesmo para manter essa actividade delituosa.
6. Para o efeito, toma-se necessário efectuar um juízo de prognose de perigosidade social do arguido, atendendo às circunstâncias anteriores ou contemporâneas à sua indiciada actividade delituosa.
7. Ora, no caso concreto entendemos que verifica-se uma forte possibilidade de continuação da atividade criminosa e desrespeito pela medida de coação imposta se não fiscalizada através de meios técnicos de controlo à distancia não podendo o Estado permitir-se arriscar a vida e a integridade física da ofendida.
8. Na verdade, constata-se que a actividade delituosa do arguido, por um lado, vem-se repetindo no tempo e, por outro lado, atingiu níveis graves de ilicitude, praticando os factos com uma total indiferença pela sua esposa, dirigindo-lhe ameaças de morte, sendo que existe concreto e sério perigo do arguido do continuar com aquela actividade criminosa.
9. Com efeito, resulta dos autos de inquirição de testemunhas (ofendida e filho) e auto de notícia que o arguido tem retirado os seus comportamentos agressivos, insultando a esposa, apertando-lhe o pescoço, quase a sufocando, ameaçando-a de morte e provocando-lhe um ambiente de total terror e pânico arremessando para o efeito diversos objectos, partindo-os, e bem assim destruindo as portas com violência.
10. Para além do mais, conforme resulta dos autos esta é a quarta vez que a vítima denuncia a prática do crime de violência doméstica por parte do arguido, no espaço de um ano, o que demonstra um escalamento da violência.
11. Ademais, o receio do comportamento agressivo do arguido está bem patente na forma como a ofendida tem vivido estes últimos anos.
12. Na verdade, resulta dos autos que, temendo pela sua vida e pela sua integridade física, e por forma a evitar que o arguido atente contra a sua integridade física e vida, a ofendida M. L. vivia refugiada no sótão da sua habitação.
13. Por outro lado, o comportamento do arguido toma-se complemente imprevisível quando associado ao consumo de bebidas alcoólicas, o que é comum por parte do arguido.
14. Ademais, esta falta de adesão à terapêutica associada ao consumo de bebidas alcoólicas faz perigar e aumentar ainda mais a instabilidade e perigosidade do seu comportamento.
15. Acresce que, encontra-se em curso a suspensão provisória do processo determinada no âmbito dos autos n.° 236/18.8 GAPTB pela prática de um crime da mesma natureza do investigado nestes autos, no tendo aquele instituto e contacto com o sistema judicial sido suficiente para demover o arguido da prática de novos factos e ilícitos.
16. Com efeito, conforme se lê na doura decisão ora posta em crise: É manifesto, por outro lado, que ao actuar desta forma, o arguido veio a tornar evidente que as injunções que lhe foram aplicadas no processo de inquérito supra identificado, não foram adequadas e suficientes a acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa.
17. Acresce a isto o facto de a medida de coacção de termo de identidade e residência anteriormente aplicada ao arguido se ter tornado insuficientes, sendo manifesto que o arguido continuou a agir como se nada tivesse acontecido, revelando um total desprezo pelo sistema de justiça.
18. Tudo para concluir que o arguido mostra um total desrespeito pelas decisões e obrigações que lhe são impostas no âmbito dos processos, comportamento que é extensivo à falta de reconhecimento de autoridade por parte dos militares.
19. Com efeito, nem a presença das autoridades policiais fizeram demover o arguido de levar a cabo os seus intentos, pois que, tal como refere o militar que deslocou-se ao local e o fez exarar no auto de notícia, mesmo na presença dos militares da GNR dentro da habitação do arguido, o arguido não acalmou, continuando a causar um ambiente de terror e pânico batendo com força com as portas.
20. E mesmo depois de ter sido aconselhado por parte dos srs. Militares a acalmar-se o arguido persistiu na sua conduta, não reconhecendo qualquer autoridade aos srs. Militares.
21. Ora, esta personalidade avessa ao dever-ser faz antever o perigo de continuação da atividade criminosa, pelo que, a fiscalização da medida de proibição de contactos através de meios de controlo à distancia é a única que se mostra eficaz, adequada e proporcional à gravidade dos factos, e à defesa e proteção da vitima.
22. Com efeito, atenta a gravidade dos factos em apreço, ao arguido não é possível imputar, nesta altura, um juízo favorável sobre a sua personalidade, marcadamente violenta quando associada ao consumo excessivo de bebidas alcoólicas.
23. Ademais, é consabido que o crime de violência doméstica é propício à reiteração da conduta por parte dos seus agentes, estando ainda associado ao mesmo o receio de continuação da actividade criminosa por parte do arguido, que o revela em concreto, conforme á ficou dito supra.
24. Acresce que os factos são objectivamente graves, causadores de grande alarme social e puníveis com pena de prisão de máximo de 2 a 5 anos, tendo sido idóneos à produção de prejuízos consideravelmente elevados e de pôr em risco a integridade física das vítimas.
25. Importa pois restabelecer a paz e a tranquilidade e garantir a segurança da ofendida fazendo com que o arguido seja impedido de contactar com aquela e proibindo-se de se aproximar da residência desta (pelo menos enquanto se mantiver a instabilidade e imprevisibilidade do seu comportamento muito associado ao consumo excesso de bebidas alcoólicas).
26. Por último e conforme referido no douto despacho ora colocado em crise, temos que ponderar que a sua sujeição ao presente interrogatório poderá constituir mais um pretexto para este continuar a maltratar a sua esposa, quer física, quer psicologicamente e assim sendo, urge aplicar ao arguido medidas de coacção que se mostrem aptas a obviar ao perigo acima descrito.
27. Para além do perigo de continuação da actividade criminosa. verifica-se também, uma perturbação da ordem e tranquilidade públicas. uma vez que este tipo de condutas reiteradas causa alarme social (o que resulta à saciedade dos autos, tendo havido necessidade de intervenção da GNR para que a conduta do arguido cessasse).
28. Tudo para concluir que mostra-se absolutamente imprescindível para a defesa e proteção da vida e integridade física da vítima que a fiscalização da medida de coação de proibição de contactos se faça através de meios técnicos de controlo à distância.
29. E assim sendo, fica justificada a dispensa de consentimento do arguido para a imposição de tais meios, pois que, sendo os mesmos considerados imprescindíveis para a proteção da vitima não poderia tal decisão ficar subordinada ao consentimento do arguido.
30. Neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 22.9.2015 e publicado em www.dgsi.pt onde se lê que: Não é necessário o consentimento do arguido para a imposição de uso de meios técnicos de controlo à distância - artigos 152 do C.P.P., 31° e 36°, n° 7 da Lei n° 112/2009, de 16-09 - se por ciúme e obsessão daquele existe risco de continuação da actividade criminosa e aqueles meios são essenciais para a protecção da ofendida.
31. Dizer ainda que, no que respeita aos demais consentimentos, nomeadamente da vítima e das pessoas referidas no n.°2 do art.° 36.° da Lei n.° 112/2009 de 16 de Setembro, os mesmos são prestados nos serviços encarregados da execução dos meios técnicos de controlo à distância por simples declaração escrita, que o enviam posteriormente ao juiz — art.° 36.°, n.°5 daquele diploma legal.
32. Assim, e, em conclusão, encontra-se, a nosso ver, justificada, por fundamentada, a decisão de aplicação das aludidas medidas de coação e o recurso à fiscalização da mesmas através de meios técnicos de controlo à distância não se verificando assim a nulidade a que se reporta o recorrente.

Assim, e para concluir, e contrariamente ao alegado pelo recorrente, consideramos que é evidente estarem reunidas in casu quer as condições gerais de aplicação de qualquer medida de coação (cfr. art. 204.°, al. c) in fine do CPP), e bem assim como foram respeitados os princípios basilares que presidem à sua aplicação (cfr. art, 193.° do CPP), encontrando-se devidamente fundamentadas em termos legais quer no que respeita à imprescindibilidade para a proteção da vitima que a fiscalização da medida de coação se faça através de meios técnicos de controlo à distância quer no que respeita à dispensa de consentimento do arguido, pelo que nada há a censurar ao despacho recorrido, devendo o mesmo manter-se e bem assim as medidas de coação aplicadas.

Assim, deverá negar-se provimento ao recurso, mantendo-se inteiramente a decisão do Tribunal a quo, com o que se fará JUSTIÇA.

3. Nesta instância, o Exmo. Senhor Procurador - Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de o recorrente ser convidado a formular conclusões, sob pena de o recurso ser rejeitado.
4. Nessa sequência o recorrente foi convidado a apresentar conclusões do recurso interposto. Em resposta ao referido convite, o recorrente apresentou conclusões, com o seguinte teor (transcrição):

O recorrente não se conforma, pois, com o despacho recorrido, por este não apresentar uma justificação cabal suficiente sobre a imprescindibilidade da aplicação dos meios técnicos de controlo à distância na medida de coação de proibição de contactos com a vítima que foi aplicada.
Para além de não terem sido efetuadas as diligências para a obtenção do consentimento do arguido e das pessoas diretamente afetadas com esse controlo, incluindo a própria vítima.
O tribunal a quo ao não fundamentar de forma plena a imprescindibilidade da aplicação dos meios técnicos de controlo à distância e a dispensa de consentimento para a aplicação dos mesmos incorreu, salvo melhor opinião, em erro grosseiro.
Entendemos que a falta desta fundamentação conduz inevitavelmente à nulidade da decisão, a sua insuficiência ou deficiência justifica a impugnação mediante recurso, e é neste entendimento que se baseiam estes autos.

Em suma, é de nosso entender que o tribunal a quo na sua decisão não aplicou corretamente a lei, nomeadamente os artigos 35º e 36º da Lei n.º 112/2009 que legisla sobre a aplicação da fiscalização por meios técnicos de controlo à distância. Sendo, portanto, merecedora de censura e da sua consequente revogação.

Pelo exposto e pelo mais que for doutamente suprido por V. Exas. Deve conceder-se provimento ao presente recurso, fazendo-se a costumada JUSTIÇA!

5- Então, o Exmo. Senhor Procurador - Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que na decisão recorrida não se encontra fundamentada a imprescindibilidade do recurso a meios técnicos de controlo eletrónico à distância para proteção dos direitos da vítima, dispensando-se o consentimento do arguido, pelo que o recurso deverá proceder.
6. Cumprido que foi o disposto no artigo 417º nº2 do CPP, não foi apresentada resposta.
7- Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II- FUNDAMENTAÇÃO

1- Objeto do recurso

O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º, e 412º, nº 1 do C..P. Penal.

Assim, e vistas as conclusões do recurso, a questão essencial a decidir consiste em saber se o despacho recorrido padece de nulidade por falta de fundamentação quanto à aplicação de meios técnicos de vigilância eletrónica sem o consentimento do arguido.

2- Decisão recorrida

O despacho recorrido tem o seguinte teor [transcrição]:

Depois de realizado o interrogatório do Arguido e analisada toda a prova produzida até este momento, afigura-se-nos que indiciam fortemente os autos a seguinte factualidade alegada pelo Ministério Público:

1. M. L. e o arguido contraíram casamento no dia - de Julho de 1980, fixando residência na Rua ..., Ponte da Barca;
2. Desse relacionamento nasceu, a -.3.1982, P. G.;
3. No dia 8 de Maio de 2019, no âmbito dos autos n.º 236/18.8 GAPTB - em que o arguido figura nessa qualidade a esposa M. L. como ofendida, encontrando-se o arguido indicado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º n.º 1) a), 2, 4 e 5 do Código Penal - foi decretada a suspensão provisória do processo pelo período de 8 meses mediante as seguintes injunções:
a. Comparecer consulta com o seu médico de família, tendo em vista diagnosticar se padece de algum problema adição alcoólica. Na afirmativa, e sendo-lhe prescrito um tratamento, deverá o arguido segui-lo, por um período não inferior 6 meses, com acompanhamento das técnicas da DGRSP, entidade que supervisionará o tratamento;
b. Não voltar a agredir física e/ou verbalmente a ofendida M. L.;
4. Contudo, o arguido não cessou os seus comportamentos agressivos para com a sua esposa, tendo até aumentado a frequência e a gravidade dos mesmos;
5. Com efeito, o arguido continuou a ingerir bebidas alcoólicas em excesso iniciando de forma quase diária discussões com a sua esposa tornando-se agressivo;
6. Desde essa data – Maio de 2019 até à presente data – com a frequência diária, e no interior da residência id. em 1.º, o arguido, no interior da residência do casal, proferiu e dirigiu as seguintes expressões à esposa com foros de seriedade:” filha da puta, vagabunda, ordinária, destruíste a minha vida, vou-te matar, dentro de dias vou acabar contigo, não quero estar casado contigo”;
7. Acresce que, nessas circunstancias de tempo e de lugar, o arguido, como forma de provocar pânico e terror à esposa, o que conseguiu, partiu diversos objetos, loiças, vidros das janelas, portas, arremessando para o efeito os objetos para o chão e embatendo com muita força com as portas, e ainda fazendo uso do seu veículo automóvel rebentou com o portão de entrada da residência, causando prejuízos não concretamente apurados.
8. No dia 7 de Setembro de 2019, por volta das 20:00 horas, o arguido, após ter pernoitado dois dias na sua oficina regressou à casa do casal id. em 1;
9. Assim que chegou a casa, e após ter estado a ingerir bebidas alcoólicas em excesso o arguido iniciou mais uma violenta discussão com a esposa;
10. Nessa sequência o arguido começou a arremessar diversos objectos existentes no interior da residência para o chão, partindo-os; arremessou diversos produtos existentes no frigorifico da habitação para o chão; partiu pelo menos três portas no interior da residência por forma a causar um ambiente de terror e pânico à esposa, o que conseguiu;
11. Temendo pela sua vida e encontrando-se no interior da residência a ofendida pegou no seu telemóvel para solicitar ajuda junto do seu filho;
12. Como se não tivesse gostado, o arguido abeirou-se da esposa, e com as mãos tentou alcançar e agarrar o telemóvel da esposa;
13. Como a isso a ofendida M. L. se opôs, o arguido, irado, agarrou-a e projetou-a para cima de uma cama aí existente, posicionando-se de seguida sobre o corpo da sua esposa, e ficando frente a frente com esta, com as mãos e com força apertou-lhe o pescoço ao mesmo tempo que que vociferava com foros de seriedade:” eu mato-te M. L., eu mato-te M. L.”;
14. Permanecendo nesta situação, a ofendida suplicou ao arguido que a largasse contudo, o mesmo não parou continuando a apertar o pescoço da esposa e a vociferar aquelas expressões;
15. O arguido apenas parou quando a ofendida, desesperada, disse-lhe: ”tu vais me matar, eu não consigo respirar, como é que tu vais viver?;
16. Nessa altura a ofendida logrou libertar-se do arguido;
17. Acto contínuo o arguido, furioso, continuou à procura da esposa pelas várias divisões da casa com vista a alcançá-la, não o tendo conseguido em virtude da ofendida ter-se refugiado debaixo das escadas de acesso à residência, de onde apenas saiu com a chegada da patrulha da GNR ao local;
18. Temendo pela sua vida e pela sua integridade física, e por forma a evitar que o arguido atente contra a sua integridade física e vida, a ofendida M. L. vive refugiada no sótão da sua habitação;
19. As expressões referidas em 6.º e 13.º aliado ao comportamento anterior do arguido e descrito no processo n.º 236/18.8 GAPTB, associado ainda à dependência do consumo de bebidas alcoólicas de que padece o arguido, e ainda aliado à sua personalidade agressiva e violenta geraram na ofendida um sério e justificado receio de que o arguido mais tarde viesse a concretizar tais intentos e atentar contra a sua integridade física e vida, criando assim na ofendida um sentimento de pânico e terror permanente;
20. O arguido padece de dependência do consumo de bebidas alcoólicas desde há vários anos não possíveis de apurar em concreto, tendo desde então iniciado tratamento à dependência do consumo de bebidas alcoólicas de que padece, contudo, reincide sempre no mesmo comportamento, ingerindo bebidas alcoólicas em excesso;
21. Ao actuar da demais forma supra descrita, o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que a aplicação na ofendida, sua esposa daquela agressão grave, era um meio apto a molestá-la física e psiquicamente, sabendo igualmente que os insultos que lhe dirigia eram de molde a fazê-la sentir-se vexada, lesando a sua integridade moral e dignidade pessoal, e que as expressões proferidas e os comportamentos assumidos descritos supra (partir e arremessar objectos) eram de molde a provocar medo e inquietação àquela, fazendo-a recear pela sua integridade física e vida, bem sabendo que tais condutas eram adequadas e idóneas a provocar na ofendida um estado de espírito redutor e constrangedor da sua liberdade pessoal, de circulação e de autodeterminação, inerente a qualquer pessoa, o que, de facto, aconteceu;
22. Ademais, a conduta do arguido merece especial reprovação e é contrária às mais elementares regras da convivência gregária e familiar, atendendo ao facto de ser companheiro da vítima, sendo que sobre si recaía, nessa qualidade, obrigação de, em cumprimento de assistência, zelar pela sua vida, saúde, integridade física e bem-estar em geral e não provocar sofrimento psíquico e físico, como provocou;
23. Agiu assim o arguido de forma indiferente à relação que mantinha com a ofendida, bem como ao facto de praticar todos estes factos no lar conjugal, reduto da intimidade da ofendida, local onde esta se devia sentir mais segura e protegida do que em qualquer outro;
24. Acresce que o arguido tinha conhecimento que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei, e não obstante não deixou de agir da forma supra descrita.
Para além desta factualidade, resulta das declarações do arguido quanto às suas condições económicas e pessoais que o mesmo é mecânico por conta própria e aufere uma rendimento médio mensal de € 600,00, vive com a esposa, que não trabalha, em casa própria; não tem encargos, à excepção dos encargos com a sua actividade profissional; tem como bens imóveis a oficina onde trabalha e a sua casa de habitação.
Resulta do CRC de fls. 25, que o arguido não tem antecedentes criminais.

MOTIVAÇÃO.

A matéria de facto tida por fortemente indiciada e ora descrita fundamenta-se nos seguintes meios prova:

(Prova Testemunhal)

- M. L., id. a fls. 53;
- P. G., id. a fls. 78;
- D. S., militar da GNR no posto territorial de Ponte da Barca

(Prova Documental)

- fotografias de fls. 6;
- CRC de fls. 25;
- print de fls. 26;
- cópias de fls. 34 a 44;
- assento de nascimento de fls. 81 e 82;
- assento de nascimento de fls. 83 e 84 dos autos.

Explicitando.

Conforme resulta dos autos, designadamente do assento de nascimento de fls. 81/82, o arguido e a ofendida são casados desde - de Julho de 1980.
Pela factualidade que consta do auto de inquirição de testemunhas de fls. 53 e ss. E 73 e ss., decorre que o arguido consume bebidas alcoólicas em excesso e já efectuou um tratamento à dependência alcoólica.
Em consequência de tal dependência, começou a agredir verbalmente a sua esposa e a ameaçar matá-la, o que deu origem à suspensão provisória do processo no âmbito do processo nº 236/18.8GAPTB, conforme decorre de fls. 34 e ss..
Nesse processo ficou o arguido obrigado a submeter-se a tratamento à dependência alcoólica e a não voltar a agredir física ou verbalmente a sua esposa M. L..
Todavia, conforme decorre dos autos de inquirição de testemunhas (ofendida e filho) e auto de notícia de fls. 4 e ss., o arguido reiterou os comportamentos anteriores, quer ameaçando a ofendida de morte, quer insultando-a, quer provocando-lhe o pânico partindo tudo dentro de casa (o que resulta comprovado através das fotografias de fls. 6), quer apertando-lhe o pescoço.

Sucede que, conforme assinala o militar da GNR que foi ao local no dia dos factos, no auto de notícia, mesmo na presença dos militares da GNR dentro da habitação do casal, o arguido não serenou, continuado a bater com as portas. E tendo-lhe sido dito para se acalmar respondeu que não era nenhum cão e que em sua casa fazia o que quisesse (não reconhecendo qualquer autoridade aos militares em causa). Para além do mais, conforme decorre do auto de notícia, esta é a quarta vez que a vítima denuncia a prática do crime de violência doméstica por banda do arguido, no espaço de um ano, o que demonstra um escalamento da violência, aliás demonstrado pelo relatório de risco junto aos autos, que classifica o risco como “médio”.
*
As medidas de coacção e de garantia patrimonial são meios processuais de limitação da liberdade pessoal ou patrimonial dos arguidos e outros eventuais responsáveis por prestações patrimoniais, que têm por fim acautelar a eficácia do procedimento, quer quanto ao seu desenvolvimento, quer quanto à execução das decisões condenatórias.

No que se refere às medidas de coacção, a sua finalidade é referida pelo artigo 204.º do CPP, quando dispõe que nenhuma medida de coacção, à excepção do termo de identidade, pode ser aplicada se em concreto se não verificar:

a) Fuga ou perigo de fuga; b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.

O procedimento penal nasce com um acto do Ministério Público em consequência da notícia do crime e até à sua conclusão demora um certo tempo, por vezes longo. Importa investigar a notícia do crime (inquérito), comprovar a decisão no termo do inquérito (instrução), proceder ao julgamento e apreciar os recursos interpostos; só então, sendo firme a decisão, se iniciará, no caso de condenação, a fase da execução.

Durante qualquer das fases do processo o arguido poderá procurar frustrar-se à acção da justiça, fugindo ou procurando fugir, poderá dificultar a investigação, procurando esconder ou destruir meios de prova ou coagindo ou intimidando as testemunhas e poderá continuar a sua actividade criminosa; poderá também dispor do seu património em ordem a evitar o pagamento de eventuais indemnizações ou multas a que venha a ser condenado.

Para evitar esses riscos, o CPP predispõe uma série de medidas cautelares de natureza pessoal e patrimonial com o fim de impor limitações à liberdade pessoal e patrimonial dos arguidos.

Excepção feita ao termo de identidade e residência, são pressupostos da sua aplicação a existência de duas ordens: do fumus comissi delicti e do periculum libertatis. Não pode ser aplicada uma medida de coacção ou de garantia patrimonial se não se indiciarem os pressupostos de que depende a aplicação ao sujeito de uma pena ou medida de segurança criminais. Mas, ainda que existam indícios da prática de crime, não deve ser aplicada qualquer medida de coacção ou de garantia patrimonial quando houver fundados motivos para crer que o agente não virá a ser punido, em razão da existência de qualquer causa de isenção de responsabilidade ou de extinção do procedimento criminal.
Expressando o princípio constitucionalmente acolhido da necessidade, o artigo 191.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, estabelece que a liberdade das pessoas só pode ser limitada em função de exigências cautelares que o caso reclame.
A adequação e a proporcionalidade são legalmente reconhecidas expressamente no n.º 1 do artigo 193.º do Código de Processo Penal.
Todas as medidas de coacção implicam uma restrição de liberdades, mesmo que a medida aplicada seja a menos gravosa – o Termo de Identidade e Residência.
*
O MP requereu, para além do TIR a que já foi sujeito, a aplicação das seguintes medidas de coação:

a) Proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida M. L., tudo nos termos conjugados do art. 31º, nº1, alínea d) e 35.º e 36.º da Lei nº 112/2009, de 16/09, com as disposições dos artigos art. 200.º d) 193º, 194º, n.º 1, 3 e 4, 196.º e 204º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal;
b) Proibição de se aproximar da ofendida e da sua residência, sendo necessário manter uma distância de, pelo menos, 2 Km, tudo nos termos conjugados do art. 31º, nº1, alíneas c) e 35.º e 36.º da Lei nº 112/2009, de 16/09, com as disposições dos artigos art. 200.º d), e art.ºs 193º, 194º, n.º 1, 3 e 4, 196.º e 204º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal;
c) sujeição a tratamento à dependência de que padece, desde que obtida para tanto a sua autorização (art.º193º, 200º, n.º1 al. f) do Código de Processo Penal e art.ºs 193º, 194º, n.º 1, 3 e 4, 196.º e 204º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal).

Medidas essas aplicadas, com o recurso a fiscalização por meios técnicos de controlo à distancia, mesmo sem o consentimento do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 36.º, n.º 7 da Lei nº 112/2009, de 16/09.

Face aos factos indiciados, verifica-se, com indiscutível clareza, que está presente o perigo de continuação da actividade criminosa (artigo 204.º, alínea c) do CPP).
É patente que o Arguido tem uma problemática aditiva relacionada com o consumo de substâncias etílicas e que os seus comportamentos, em face da Ofendida, descritos e indiciariamente verificados, podem derivar desta adição. Na verdade, toda a factualidade que lhe vem sendo imputada, abstractamente inserível no tipo legal de violência doméstica, é desencadeada, invariavelmente, por consumos anteriores de bebidas alcoólicas por parte do Arguido.
Considera-se que, em face das declarações prestadas pelo mesmo quanto às suas condições económicas e pessoais e da demais prova indiciária havida, bem ainda como da factualidade predita, que as medidas de coacção que se afigura mais adequadas e proporcionais são justamente aquelas que o MP promove.

Dispõe o art. 36º da Lei nº 112/2009, que “1 - A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende do consentimento do arguido ou do agente e, nos casos em que a sua utilização abranja a participação da vítima, depende igualmente do consentimento desta.

2 - A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende ainda do consentimento das pessoas que o devam prestar, nomeadamente das pessoas que vivam com o arguido ou o agente e das que possam ser afectadas pela permanência obrigatória do arguido ou do agente em determinado local.
3 - O consentimento do arguido ou do agente é prestado pessoalmente perante o juiz, na presença do defensor, e reduzido a auto.
4 - Sempre que a utilização dos meios técnicos de controlo à distância for requerida pelo arguido ou pelo agente, o consentimento considera-se prestado por simples declaração deste no requerimento.
5 - As vítimas e as pessoas referidas no n.º 2 prestam o seu consentimento aos serviços encarregados da execução dos meios técnicos de controlo à distância por simples declaração escrita, que o enviam posteriormente ao juiz.
6 - Os consentimentos previstos neste artigo são revogáveis a todo o tempo.
7 - Não se aplica o disposto nos números anteriores sempre que o juiz, de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a protecção dos direitos da vítima.”.

Ora, no caso concreto, impõe-se a dispensa de consentimento do arguido, pois entendemos que está em causa a situação de perigo de vida da vítima, atentas as ameaças do arguido contra a mesma.
Por último temos que ponderar que a sua sujeição ao presente interrogatório poderá constituir mais um pretexto para este continuar a maltratar a sua esposa, quer física, quer psicologicamente e assim sendo, urge aplicar ao arguido medidas de coacção que se mostrem aptas a obviar ao perigo acima descrito.
Acresce a isto o facto de a medida de coacção de termo de identidade e residência anteriormente aplicada ao arguido se ter tornado insuficientes, sendo manifesto que o arguido continuou a agir como se nada tivesse acontecido, revelando um total desprezo pelo sistema de justiça. É manifesto, por outro lado, que ao actuar desta forma, o arguido veio a tornar evidente que as injunções que lhe foram aplicadas no processo de inquérito supra identificado, não foram adequadas e suficientes a acautelar o perigo de continuação da actividade criminosa.
Para além do perigo de continuação da actividade criminosa, verifica-se também uma perturbação da ordem e tranquilidade públicas, uma vez que este tipo de condutas reiteradas causa alarme social (o que resulta à saciedade dos autos, tendo havido necessidade de intervenção da GNR para que a conduta do arguido cessasse).
*
Pelo exposto, verificando-se, em concreto, os pressupostos de que depende a aplicação de medida de coacção mais gravosa que o TIR já prestado, afigura-se-nos que aquelas que se mostram mais adequadas para acautelar o perigo acima descrito e se revelam proporcionais à gravidade do crime indiciado e das sanções que previsivelmente lhe possam vir a ser aplicadas, são aquelas doutamente promovidas pelo Ministério Público.

Assim, determino que o arguido aguarde os ulteriores termos do processo sujeito às seguintes medidas de coacção:

a) Termo de identidade e residência;
b) Proibição de contactar, por qualquer meio, com a ofendida M. L., tudo nos termos conjugados do art. 31º, nº1, alíneas d) e 35.º e 36.º da Lei nº 112/2009, de 16/09, com as disposições dos artigos art. 200.º d) 193º, 194º, n.º 1, 3 e 4, 196.º e 204º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal;
c) Proibição de se aproximar da ofendida e da sua residência, sendo necessário manter uma distância de, pelo menos, 2 Km, tudo nos termos conjugados do art. 31º, nº1, alíneas c) e 35.º e 36.º da Lei nº 112/2009, de 16/09, com as disposições dos artigos art. 200.º d), e art.ºs 193º, 194º, n.º 1, 3 e 4, 196.º e 204º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal, sendo que para a segurança da vítima, determinamos o recurso a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, mesmo sem o consentimento do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 36.º, n.º 7 da Lei nº 112/2009, de 16/09,
d) sujeição a tratamento à dependência de que padece, desde que obtida para tanto a sua autorização (art.º193º, 200º, n.º1 al.s f) do Código de Processo Penal e art.ºs 193º, 194º, n.º 1, 3 e 4, 196.º e 204º, n.º 1, c), do Código de Processo Penal).
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Solicite à DGRS a elaboração de relatórios com vista à execução da medida de sujeição a tratamento médico aplicada ao Arguido, bem como a aposição de meios de vigilância electrónica na residência da vítima e do arguido.
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Determino que a GNR acompanhe o arguido à residência da vítima, a fim de o mesmo retirar de casa os seus pertences.
Vai o Arguido advertido de que, nos termos do artigo 203.º, n.º 1 do CPP, em caso de violação das obrigações impostas por aplicação de uma medida de coacção, o juiz, tendo em conta a gravidade do crime imputado e os motivos da violação, pode impor outra ou outras medidas de coacção previstas neste Código e admissíveis no caso.
*
Seguidamente a Meritíssima Juíza instou o arguido se o mesmo aceitava ser sujeito a tratamento contra a dependência alcoólica de que padece, tendo o mesmo declarado expressamente aceita o tratamento.
Pelo arguido foi dito que a sua oficina fica a 1200 metros da residência de família, tendo face a esta informação a Meritíssima Juíza dado a palavra a Procuradora do Ministério Público para se pronunciar, tendo a mesma dito que atenta as declarações do arguido promove a alteração da distancia de afastamento para 1Km.
A Ilustre Defensora do arguido disse nada ter a opor.

Seguidamente a Meritíssima Juíza proferiu o seguinte

DESPACHO

Atenta a promoção que antecede, altera-se, nos termos promovidos, a proibição de se aproximar da ofendida para a distância de 1 Km.
Notifique, sendo o arguido nos termos do artigo 194.º, n.º 9 do CPP.
D.N. com vista à boa execução do supra decidido.
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2. Apreciação do recurso

2.1- O recorrente, nas conclusões do recurso que interpôs - apresentadas por forma não articulada e sem indicação das normas violadas quanto à apontada nulidade ao contrário do que determina o nº 1 e o nº 2 al. a) do artigo 412º do CPP – sustenta que “O tribunal a quo ao não fundamentar de forma plena a imprescindibilidade da aplicação dos meios técnicos de controlo à distância e a dispensa de consentimento para a aplicação dos mesmos incorreu, salvo melhor opinião, em erro grosseiro. (…) a falta desta fundamentação conduz inevitavelmente à nulidade da decisão, a sua insuficiência ou deficiência justifica a impugnação mediante recurso, e é neste entendimento que se baseiam estes autos”.

Ora, constitui um dado adquirido que os atos decisórios dos juízes têm obrigatoriamente de ser fundamentados, cfr. artigo 205º, nº 1 da CRP, segundo o qual “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”. O nº 5 do artigo 97º do CPP refere, por seu lado, que “Os atos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão”.

Todavia, como bem se salienta no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, processo 146/11.0JABRG, relator Cruz Bucho, “As exigências do cumprimento do dever de fundamentação e as consequências da falta ou insuficiência da fundamentação não são as mesmas para todos os atos decisórios: existe um regime geral (definido nos artigos 97.º e 118.º a 123.º do Código de Processo Penal) e regimes específicos para a sentença (artigos 374.º e 379.º), para os despachos que aplicam medidas de coação e de garantia patrimonial (artigo 194.º), para a acusação pelo Ministério Público, pelo assistente e acusação particular (artigos 283.º, n.º3, 284, n.º2 e 285.º, n.º3, respetivamente), para o despacho de pronúncia ou de não pronúncia e decisão instrutória (artigos 308.º, n.º2 e 309.º).”

Acresce dizer que, em processo penal, no que concerne às nulidades, vigora o princípio da legalidade ou tipicidade, pois que a inobservância das disposições da lei de processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei, cfr. nº 1 do artigo 118º do C. P. Penal. A irregularidade processual tem carácter residual, uma vez nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o ato ilegal é irregular, cfr. nº 2 do aludido preceito legal.

No caso vertente, está em causa um despacho judicial pelo qual foi decidida a aplicação ao arguido, aqui recorrente, de medidas de coação (proibição de contactos e de se aproximar da vítima, com fiscalização de meios eletrónicos de controlo à distância), tendo sido prescindido o consentimento do arguido no que se refere à aplicação dos referidos meios técnicos de controlo ou de fiscalização.

Acontece que as medidas de coação são decididas por despacho em conformidade com o disposto no artigo 194º do CPP, o qual tem a seguinte redação:

“1 - À exceção do termo de identidade e residência, as medidas de coação e de garantia patrimonial são aplicadas por despacho do juiz, durante o inquérito a requerimento do Ministério Público e depois do inquérito mesmo oficiosamente, ouvido o Ministério Público, sob pena de nulidade.
2 - Durante o inquérito, o juiz pode aplicar medida de coação diversa, ainda que mais grave, quanto à sua natureza, medida ou modalidade de execução, da requerida pelo Ministério Público, com fundamento nas alíneas a) e c) do artigo 204.º
3 - Durante o inquérito, o juiz não pode aplicar medida de coação mais grave, quanto à sua natureza, medida ou modalidade de execução, com fundamento na alínea b) do artigo 204.º nem medida de garantia patrimonial mais grave do que a requerida pelo Ministério Público, sob pena de nulidade.
4 - A aplicação referida no n.º 1 é precedida de audição do arguido, ressalvados os casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e pode ter lugar no acto de primeiro interrogatório judicial, aplicando-se sempre à audição o disposto no n.º 4 do artigo 141.º
5 - Durante o inquérito, e salvo impossibilidade devidamente fundamentada, o juiz decide a aplicação de medida de coação ou de garantia patrimonial a arguido não detido, no prazo de cinco dias a contar do recebimento da promoção do Ministério Público.
6 - A fundamentação do despacho que aplicar qualquer medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, contém, sob pena de nulidade:
a) A descrição dos factos concretamente imputados ao arguido, incluindo, sempre que forem conhecidas, as circunstâncias de tempo, lugar e modo;
b) A enunciação dos elementos do processo que indiciam os factos imputados, sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime;
c) A qualificação jurídica dos factos imputados;
d) A referência aos factos concretos que preenchem os pressupostos de aplicação da medida, incluindo os previstos nos artigos 193.º e 204.º
7 - Sem prejuízo do disposto na alínea b) do número anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 3.
8 - Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 6, o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição de recurso.
9 - O despacho referido no n.º 1, com a advertência das consequências do incumprimento das obrigações impostas, é notificado ao arguido.
10 - No caso de prisão preventiva, o despacho é comunicado de imediato ao defensor e, sempre que o arguido o pretenda, a parente ou a pessoa da sua confiança.”

Por outro lado, o fundamento legal em que se baseou o tribunal recorrido para proceder à aplicação ao arguido, sem o consentimento deste, dos meio técnicos eletrónicos de controlo à distância por forma a fiscalizar o cumprimento das medidas de coação foi o artigo 36º da Lei nº 112/2009, o qual tem a seguinte redação:

“1 - A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende do consentimento do arguido ou do agente e, nos casos em que a sua utilização abranja a participação da vítima, depende igualmente do consentimento desta.
2 - A utilização dos meios técnicos de controlo à distância depende ainda do consentimento das pessoas que o devam prestar, nomeadamente das pessoas que vivam com o arguido ou o agente e das que possam ser afectadas pela permanência obrigatória do arguido ou do agente em determinado local.
3 - O consentimento do arguido ou do agente é prestado pessoalmente perante o juiz, na presença do defensor, e reduzido a auto.
4 - Sempre que a utilização dos meios técnicos de controlo à distância for requerida pelo arguido ou pelo agente, o consentimento considera-se prestado por simples declaração deste no requerimento.
5 - As vítimas e as pessoas referidas no n.º 2 prestam o seu consentimento aos serviços encarregados da execução dos meios técnicos de controlo à distância por simples declaração escrita, que o enviam posteriormente ao juiz.
6 - Os consentimentos previstos neste artigo são revogáveis a todo o tempo.
7 - Não se aplica o disposto nos números anteriores sempre que o juiz, de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a proteção dos direitos da vítima.”.

No caso vertente, tendo o recorrente suscitado a nulidade do despacho recorrido por “não fundamentar de forma plena a imprescindibilidade da aplicação dos meios técnicos de controlo à distância e a dispensa de consentimento para a aplicação dos mesmos”, a verdade é que apenas o fez por via da interposição do presente recurso e não, como seria de supor, através de requerimento perante o tribunal recorrido. Quando é certo que apenas a nulidade da sentença e não também dos meros despachos é legalmente possível suscitar diretamente por via da interposição de recurso, cfr. nº 2 do artigo 379º do CPP, segundo o qual “As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso…”.

Ora, a falta da fundamentação de despachos tem como efeito a sua irregularidade (cfr. artigo118º, nº 2 e 123), se a lei não cominar de forma diferente (v.g. arigo 194º, nº 4; relativamente à sentença, tal falta acarreta nulidade – artigo 379º), cfr. Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, Coimbra Editora, 2ª edi., pág. 277.
Acontece que não se encontra prevista na lei, quer nos preceitos legais acima transcritos, quer em qualquer outra norma, a nulidade como sanção para a falta ou deficiente fundamentação do despacho pelo qual é determinada a aplicação de medidas de coação relativamente à aplicação de meios técnicos de controlo à distância sem o consentimento do arguido.
Assim sendo, a violação ou a inobservância da lei - no caso a apontada falta ou deficiente fundamentação do despacho - a existir constitui uma mera irregularidade processual, a qual, porque o interessado a ela assistiu, deveria ter sido arguida no próprio ato, não o tendo sido mostra-se sanada, cfr. artigo 118º, nº1 e nº 2 do CPP.
Por isso, mesmo a ocorrer falta ou deficiente fundamentação do despacho recorrido relativamente à aplicação de meios técnico de controlo à distância, com o sobredito fundamento, nunca o recurso poderia proceder.

2.2- De qualquer forma, ainda que assim não fosse, verificamos que o despacho recorrido, relativamente imprescindibilidade da aplicação dos meios técnicos de controlo à distância e à dispensa de consentimento do arguido para a sua aplicação encontra-se fundamentada, pese embora, é certo, por forma sucinta, mas ainda assim fundamentada.

Com efeito, do acima transcrito artigo 36º da Lei nº 112/2009 decorre que a regra é a de que a aplicação de meios técnicos de controlo à distância - que constitui inequivocamente uma restrição de direitos do arguido - depende do seu consentimento. A exceção é a de que este consentimento pode ser dispensado se a aplicação dos referidos meios técnicos se justificar de tal forma que sejam imprescindíveis para a salvaguarda dos interesses da vítima, o que mostra-se consentâneo com a ideia de que as restrições de direitos do arguido devem limitar-se ao estritamente necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, cfr. artigo 18º, nº 2 da CRP.
Assim, a dispensa do consentimento do arguido para aplicação dos aludidos meios técnicos somente é possível em face da imprescindibilidade para proteção dos interesses da vítima, cfr. nº 7 do citado preceito legal.

No caso em apreço, depois de ter sido decido aplicar as medidas de coação a impor ao arguido, com fundamento, nomeadamente, em perigo de continuação de atividade criminosa, quanto à aplicação de meios técnicos de controlo à distância foi invocado o acima mencionado artigo 36º e depois concluiu-se dizendo que “ Ora, no caso concreto, impõe-se a dispensa de consentimento do arguido, pois entendemos que está em causa a situação de perigo de vida da vítima, atentas as ameaças do arguido contra a mesma.”

Por fim, no dispositivo do despacho, foi decidido “… para a segurança da vítima, determinamos o recurso a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, mesmo sem o consentimento do arguido, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 36.º, n.º 7 da Lei nº 112/2009, de 16/09.

Assim, a interpretação que fazemos do despacho recorrido é a de que, pese embora sem nele ter sido referida a palavra “imprescindível”, foi dispensado o consentimento do arguido quanto à aplicação de meios técnicos de controlo à distância pelo facto de estes serem imprescindíveis para acautelar a situação de perigo de vida da vítima, atentas as ameaças do arguido contra a mesma, uma vez que a dispensa do consentimento do arguido apenas é legalmente permitida nesta hipótese.
Por conseguinte, também por esta ordem de razões sempre o recurso teria de improceder.

III- DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao presente recurso e, consequentemente, confirmar o despacho recorrido.
Custas pelo arguido recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 3 Ucs – artigos 513º, nº 1, 514º, nº 1, ambos do C.P.P. e artigo 8º, nº 9 do R.C.P. e tabela III anexa a este último diploma legal.
Notifique.
Guimarães, 09.03.2020

Armando da Rocha Azevedo – Relator
Clarisse S. Gonçalves - Adjunta
(Texto integralmente elaborado e revisto pelos signatários – artigo 94º, nº 2 do CPP).