Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1855/13.4TBVRL-B.G1
Relator: AFONSO CABRAL DE ANDRADE
Descritores: GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CIRE
PRIVILÉGIO IMOBILIÁRIO ESPECIAL
CONSTRUÇÃO AFETA À ORGANIZAÇÃO EMPRESARIAL DA INSOLVENTE
DIREITO DE RETENÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÕES
Decisão: IMPROCEDENTE/PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A existência de uma construção precária em madeira (vulgo barracão) no terreno onde está implantado o edifício em construção, para aí serem guardados materiais, máquinas, projetos, chaves e outros equipamentos necessários à realização das obras, sendo ainda utilizada essa construção em madeira para serem realizados pagamentos de salários aos trabalhadores, não permite concluir que essa construção se encontrava afeta à organização empresarial da insolvente, para efeitos de afastar a aplicabilidade do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/2016, e logo, esse imóvel, construído por empresa de construção civil, destinado a comercialização, está excluído da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003.

2. O simples facto de ser entregue a chave de um apartamento em construção, inacabado e sem licença de habitabilidade, ao promitente-comprador, que nele não reside, mas que se desloca ao mesmo para ver o seu estado de conservação, e que apenas pagou a título de sinal cerca de ¼ do valor do preço total não permite afirmar que ocorreu a tradição do imóvel, para efeitos de poder beneficiar do direito de transmissão consagrado no art. 755º, nº1, al. f), do Código Civil.

3. A identificação da parte requerente é feita no cabeçalho e texto propriamente dito do requerimento apresentado, e não no formulário imposto pelo Citius, pelo que em caso de incongruência entre os dois, estaremos perante uma situação a tratar como de mero lapso de escrita, e a resolver com a prevalência da primeira.

4. A interpretação imposta pelo Acórdão Uniformizador do STJ nº 8/2016 não padece de inconstitucionalidade material, por violação do art. 56º, nº3 CRP.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Sumário: 1. A existência de uma construção precária em madeira (vulgo barracão) no terreno onde está implantado o edifício em construção, para aí serem guardados materiais, máquinas, projectos, chaves e outros equipamentos necessários à realização das obras, sendo ainda utilizada essa construção em madeira para serem realizados pagamentos de salários aos trabalhadores, não permite concluir que essa construção se encontrava afecta à organização empresarial da insolvente, para efeitos de afastar a aplicabilidade do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 8/2016, e logo, esse imóvel, construído por empresa de construção civil, destinado a comercialização, está excluído da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003. 2. O simples facto de ser entregue a chave de um apartamento em construção, inacabado e sem licença de habitabilidade, ao promitente-comprador, que nele não reside, mas que se desloca ao mesmo para ver o seu estado de conservação, e que apenas pagou a título de sinal cerca de ¼ do valor do preço total não permite afirmar que ocorreu a tradição do imóvel, para efeitos de poder beneficiar do direito de transmissão consagrado no art. 755º,1,f CC. 3. A identificação da parte requerente é feita no cabeçalho e texto propriamente dito do requerimento apresentado, e não no formulário imposto pelo Citius, pelo que em caso de incongruência entre os dois, estaremos perante uma situação a tratar como de mero lapso de escrita, e a resolver com a prevalência da primeira. 4. A interpretação imposta pelo Acórdão Uniformizador do STJ nº 8/2016 não padece de inconstitucionalidade material, por violação do art. 56º,3 CRP.


I- Relatório

Nos autos principais, por sentença proferida em 25/02/2014, foi decretada a insolvência de J. S., IRMÃO & COMPANHIA, LDA., nos termos e para os efeitos previstos no artigo 39º,1 do C.I.R.E., após o que em 19/03/2014 foi determinado o complemento da sentença (artigo 39º,2,a do C.I.R.E.), fixando-se o prazo de 30 dias para apresentação das reclamações de créditos.
A fls. 4-13 foi apresentada a lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos – cfr. artigo 129º,1 do C.I.R.E.

A) O BANCO ... S.A., apresentou impugnações à lista prevista no artigo 129º,1 do C.I.R.E., quanto aos créditos:

a) respeitantes a J. P., J. V., J. A., L. O. e L. D., cuja constituição impugna, para além de refutar a sua qualificação como privilegiados;
b) relativos a A. P., A. C. e M. M., cuja constituição impugna, para além de refutar a sua qualificação como privilegiados;
c) referentes a J. C. e A. M., cuja constituição impugna, para além de refutar a sua qualificação como privilegiados;
d) concernente à Fazenda Pública, cuja qualificação como privilegiado contesta.

B) M. B. também impugnou a lista a que alude o artigo 129º,1 do C.I.R.E., quanto à qualificação como subordinado do crédito que lhe foi reconhecido, pugnando que este deve ser qualificado como privilegiado.

Foi proferido despacho saneador, no qual se decidiu:

a) julgar verificados os créditos de: 1) X, Aquecimento Central e Serviços de Pichelaria, Lda., 2) A. J., Lda., 3) Banco ..., S.A., 4) Banco … Portugal, S.A., 5) I. G. & C.ª, Lda., 6) ... – Artigos Sanitários, S.A., 7) Instituto de Segurança Social, I.P., 8) J. G. e I. M., 9) J. B., 10) … – Serviços de Comunicações e Multimédia, S.A., 11) … – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., 12) … – Locação de Máquinas para Construção e Engenharia Civil, Lda., 13) Telecomunicações Portugal, S.A., 14) A. P., A. C., M. M., J. C. e A. M., Fazenda Nacional e M. B.;
b) não reconhecer os créditos relativos a J. P., J. V., J. A., L. O. e L. D.;
c) relegar a qualificação e graduação de créditos para a sentença – cfr. artigo 136º,7 do C.I.R.E.

Foram proferidas sentenças de verificação ulterior de créditos, nas quais foram reconhecidos créditos de: 1) … – Distribuição Global de Materiais, S.A. (ap. C), 2) Estado Português (ap. G e H) e 3) Banco …, S.A. (ap. D), sendo ulteriormente habilitada a … Invest, SARL, para intervir em substituição deste último credor (ap. I).
*
Realizou-se a audiência de julgamento, com inteira observância do legal formalismo.

A final foi proferida sentença que decidiu:

a) Quanto aos veículos tributáveis que venham a ser apreendidos GRADUAM-SE em primeiro lugar os indicados créditos da Fazenda Pública, referentes ao I.U.C. em dívida, seguidos dos créditos de que são titulares A. P., A. C., M. M. e M. B., seguindo-se os mencionados créditos reconhecidos à Fazenda Pública a título de I.V.A. e I.R.S, seguindo-se 1/4 do crédito da credora I. G. & C.ª, Lda., ao qual se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;
b) No que respeita aos demais bens móveis que venham a ser apreendidos, GRADUAM-SE em primeiro lugar os créditos de que são titulares A. P., A. C., M. M. e M. B., seguindo-se os indicados créditos reconhecidos à Fazenda Pública a título de I.V.A. e I.R.S., seguindo-se 1/4 do crédito da credora I. G. & C.ª, Lda., ao qual se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;
c) Quanto ao prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de W, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo ....º, GRADUAM-SE em primeiro lugar os créditos laborais reconhecidos a A. P., A. C., M. M. e M. B., seguindo-se o crédito garantido do Banco ..., S.A., seguido dos indicados créditos reconhecidos à Fazenda Pública a título de I.V.A. e I.R.S., aos quais se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;
d) Quanto aos imóveis identificados no facto provado n.º 4, sob as verbas n.ºs 2 a 8 e 17 a 20, GRADUA-SE em primeiro lugar o crédito garantido do Banco ..., S.A., seguido dos indicados créditos reconhecidos à Fazenda Pública a título de I.V.A. e I.R.S., aos quais se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;
e) Quanto aos imóveis identificados no facto provado n.º 4, sob as verbas n.ºs 9 a 11, GRADUAM-SE em primeiro lugar os créditos da Fazenda Nacional a título de I.M.I. relacionados no facto provado n.º 8, seguidos dos aludidos créditos reconhecidos a essa entidade a título de I.V.A. e I.R.S., aos quais se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;
f) Quanto aos imóveis identificados no facto provado n.º 4, sob as verbas n.ºs 12 a 15, GRADUAM-SE em primeiro lugar os créditos da Fazenda Nacional a título de I.M.I. relacionados no facto provado n.º 8, seguindo-se o crédito garantido do Banco ..., S.A., seguido dos aludidos créditos reconhecidos à Fazenda Pública a título de I.V.A. e I.R.S., aos quais se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;
g) No que se refere aos demais bens imóveis, GRADUAM-SE em primeiro lugar os aludidos créditos reconhecidos à Fazenda Pública a título de I.V.A. e I.R.S., aos quais se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;

Desta sentença foram interpostos os seguintes recursos:

I- BANCO ..., SA, que não se conformou com a sentença, no que concerne ao privilégio imobiliário especial reconhecido aos trabalhadores A. P., A. C., M. M. e M. B., sobre o prédio urbano, correspondente ao lote nº 1 -terreno para construção-, da freguesia de ..., concelho de W, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ... (verba nº 1 do auto de apreensão) e, em consequência, graduou os créditos laborais, no que concerne ao referido imóvel, com primazia sobre o crédito hipotecário do Banco ..., SA - detentor de hipoteca constituída em 5-9-2007, sob a Ap. 16, em 18-10-2010, sob a Ap. 4620 e em 9-3-2011, sob a Ap. 2856;

Termina com a apresentação das seguintes conclusões:

1. A sentença objecto do presente recurso merece censura ao atribuir privilégio
imobiliário especial aos trabalhadores sobre o terreno, destinado a construção, sito em
..., descrito na C.R. predial sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ....º, da freguesia de ..., W.
2. A Sentença proferida pelo Tribunal a quo é juridicamente censurável e deve revogar-se da ordem jurídica.
3. O objecto do presente recurso prende-se com (i) a alteração da decisão proferida quanto à matéria de facto, através da inclusão do seguinte facto, que deve ser dado como provado, não só por essencial para a boa decisão da causa, como decorre da prova produzida nos autos: o prédio urbano, correspondente a um terreno para construção (lote nº 1), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia de ..., W, correspondente à verba 1 do auto de apreensão, destinava-se a ser comercializado pela insolvente. Em todo o caso, (ii) ainda que a decisão sobre a matéria de facto não seja alterada, impõe-se, desde logo, face à fundamentação decorrente da mesma, e às presunções aí plasmadas, a revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que gradue o crédito hipotecário do Banco ..., SA relativamente ao citado imóvel com primazia sobre os créditos laborais, não reconhecendo a estes privilégio imobiliário especial sobre o imóvel em crise (respeitando-se, assim, a jurisprudência uniformizada).
4. Do depoimento de todas as testemunhas, dos documentos juntos aos autos, bem como, inclusive, da motivação da Sentença dada à matéria de facto resulta, à evidência, que o prédio urbano, correspondente a um terreno para construção (lote nº 1), inscrito na matriz sob o artigo ..., descrição predial nº ..., onde estava a ser edificado um prédio habitacional (12 fracções habitacionais), em propriedade horizontal, destinava-se a ser comercializado pela insolvente.
5. A sociedade tinha como objecto social a compra e venda de imóveis para revenda e indústria de construção civil; (vide artigo 5º matéria assente);
6. A sede da sociedade foi desde a sua constituição e até ao Verão de 2012 na Rua …, W, e após tal data e até à data da sentença declaratória da insolvência na Quinta …, fracção …, cave nível .., W (vide ponto 5 dos factos assentes);
7. O prédio estava a ser construído para comercialização, sendo que uma das fracções havia sido prometida vender a J. C. e mulher (vide artigo 22 da matéria assente). Assim depôs o sócio gerente da insolvente constante da gravação áudio registada com o título I. V., da audiência de 10.05.2017, entre os minutos 00:03:05 a 00:03:18 e os minutos 00:22:50 a 00:23:15. Neste sentido, ainda, veja-se o depoimento constante da gravação áudio registada com o título A. C. da audiência de 24.10.2017, entre os minutos 00:16:40 a 00:17:07 e o depoimento de M. M. entre os minutos 00:25:55 a 00:26:15, da audiência de 24/10/2017, onde todos perentoriamente, disseram que as fracções a edificar no prédio em crise se destinavam a comercialização.
8. O trabalhador A. C. veio a fls. do processo indicar que prestava a sua actividade nos imóveis construídos para serem vendidos (como de resto, refere, expressamente, o Tribunal na sentença – vide pag. 23)
9. O Tribunal de 1ª instância dispunha de elementos suficientes para dar como provado um facto que é essencial para a boa decisão da causa desde logo face ao acórdão uniformizador de jurisprudência nº 8/2016.
10. Importa levar à matéria assente que o prédio urbano, terreno para construção, correspondente ao lote nº 1, descrito na C.R. Predial sob o nº ..., e inscrito na matriz sob o artigo ....º, destinava-se a comercialização.
11. Tal facto é essencial para a correcta aplicação do Direito.
12. O prédio em causa destinava-se a ser comercializado pela insolvente e integrava a actividade da insolvente em si mesma considerada, não fazendo parte da unidade produtiva da insolvente, mas antes do seu objecto de comércio.
13. Nos termos da jurisprudência uniformizada, “os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no artigo 377º,1,b do Código do Trabalho de 2003” (Acórdão Uniformizador de Jurisprudência nº 8/2016, de 23 de Fevereiro de 2016).
14. É imprudente atribuir-se privilégio imobiliário especial aos trabalhadores sobre um determinado imóvel apenas porque nele está colocado um contentor (em madeira) onde alegadamente alguns materiais de construção eram guardados, onde por vezes eram pagos os salários.
15. Trata-se de um contentor, amovível, utilizado em varias obras, em madeira, que alegadamente estaria colocado na superfície descoberta do prédio em causa [(dizemos alegadamente porque, na verdade, não resulta da prova produzida que o contentor tivesse sido colocado no lote 1, no 2, ou na via pública (estamos perante um loteamento todo ele propriedade da insolvente)]. Assim depôs o sócio gerente da insolvente constante da gravação áudio registada com o título I. V., entre os minutos 00:06:28 a 00:06:33 e entre os minutos 00:08:22 a 00:08:50 e os minutos 00:08:50 a 00:23:15
16. Carece de sentido o decidido pelo Tribunal “a quo”, sob pena de se colocar um contentor em cada prédio para comercialização, e, assim, se afastar a jurisprudência uniformizada.
17. A existência de contentores em obras de construção civil é habitual, seja para guardar material, seja para funcionar como stand de vendas … [Assim depôs o sócio gerente da insolvente constante da gravação áudio registada com o título I. V., entre os minutos 00:21:59 a 00:22:48.], contudo daí a entender-se que a dita “construção precária em madeira” se encontra afecta à organização empresarial da insolvente, e, nessa medida, sobre o prédio onde a mesma se encontra colocada passará a incidir privilégio imobiliário especial dos trabalhadores é, no mínimo, bizarro – e, não exista receio de se chamar contentor à dita construção, pois o Tribunal questionou (expressamente) o gerente da insolvente no sentido de saber se se tratava de um contentor e este respondeu afirmativamente (vide gravação áudio registada entre os minutos 00:06:10 a 00:06:21), sendo que o trabalhador A. C. chamou-lhe barraco e pré-fabricado (vide gravação do minuto 7:08 ao minuto 09:00)
18. Decidindo como decidiu, o Mm.º Juíz "a quo" não fez adequada aplicação do Direito, violando frontalmente a jurisprudência fixada.

Pretende assim a revogação da douta sentença recorrida e a substituição por outra que não atribuía privilégio imobiliário especial aos trabalhadores sobre o imóvel sito em ..., W, descrição predial ... e artigo urbano ....º, e, consequentemente, gradue o credito hipotecário do banco sobre o referido imóvel com primazia face a qualquer outro.

M. M., recorrida, apresentou contra-alegações, nas quais, não formulando conclusões, suscita todavia as seguintes questões:

a) O recorrente não tem legitimidade processual, para recorrer, e/ou tal recurso foi interposto fora do prazo que a lei para tal interposição concedia (artigos 641.º-2-a), do CPC 2013 e 14.º e 17.º, do CIRE);
b) O presente recurso, por não terem sido feitas todas as especificações a que aludem os artigos 640º,1,a,b,c do CPC 2013, e 14º e 17º, do CIRE, deve ser rejeitado, ou então, e por serem, como são, destituídos de qualquer fundamento, fáctico e/ou de direito, todos os argumentos avançados pelo recorrente, para peticionar, como peticionou “a revogação” (tecnicamente deveria ser antes anulação – artigo 639º,1 do CPC 2013), da sentença recorrida, ser julgado total e completamente improcedente.
c) Ampliação do âmbito do presente recurso, a requerimento da recorrida, ao abrigo dos artigos 636.º-1, do CPC, 14º e 17º, ambos do CIRE: a atrás referida interpretação da alínea b), do número 1 do artigo 333º, do CT 2009, segundo a qual o privilégio imobiliário especial em tal normativo referido não se aplica aos imóveis construídos pelas empresas de construção civil para comercialização, muito embora tenha sido, como foi, na verdade consagrada no atrás referido Acórdão de Uniformização de Jurisprudência N.º 8/2016, se tem que ter, como a recorrida tem, por materialmente inconstitucional, por violação do artigo 59.º-3, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

II- J. C., e mulher A. M., credores reclamantes, inconformados com a referida sentença, interpuseram recurso, no qual formulam as seguintes conclusões:

A) Com o devido respeito que é muito, discordam os apelantes da decisão do Tribunal a quo que julgou parcialmente procedente a Impugnação de Créditos do "BANCO ... S.A.".
B) E, em consequência, decide: 3. "Nesta decorrência, não se pode reconhecer a J. C. e A. M. a titularidade de um direito de retenção, por não, terem beneficiado da "traditio rei", pelo que o seu direito de crédito será de qualificar como comum, (cfr. Artigo 47º,4,c do CIRE) por ausência de verificação de um dos pressupostos exigidos pela jurisprudência uniformizada através do A.U.J. n.º 4/2014, (v.g. A tradição da coisa objecto do contrato-promessa), ficando prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas nos articulados a esse respeito (cfr. Artigo 608, n.º 2 do CPC).
C) Os apelantes recorrem de facto e de direito, da douta decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de W, Juízo Local Cível, J2, a que se reportam os autos supra, porquanto:

a) no processo foi produzida prova que impunha decisão diversa daquela que foi
tomada, ou seja, impunha que a impugnação aos créditos reconhecidos de J. C. e A. M., fosse julgada totalmente improcedente, reconhecendo-se, em consequência, como privilegiado, garantido pelo direito de retenção.
b) o Tribunal a quo fez uma errada aplicação ou interpretação das normas jurídicas - artigos 755º,1,f; artigo 442º; artigo 759º,2; artigo 1263º, todos do Código Civil - à situação fáctica que se traz à douta apreciação de V.ªs Ex.ªs.
c) a sentença do Tribunal a quo, por ser injusta, carece de ser revogada e substituída por outra que qualifique o crédito como privilegiado, garantido pelo privilégio do direito de retenção.
D) Ora, com o devido respeito que é muito, discordam os apelantes da decisão do Tribunal a quo em qualificar como comum, o crédito reconhecido, no montante de € 63.440,00 (sessenta e três mil, quatrocentos e quarenta euros).

Por um lado, entendem os apelantes que o Tribunal a quo fez um incorrecto enquadramento jurídico da matéria de facto, já que, desde logo, não qualificou devidamente o crédito reconhecido dos apelantes, no montante de € 63.440,00, como beneficiado, com direito de retenção.
Por outro lado, o Tribunal a quo fez uma incorrecta aplicação do direito aos factos que se trazem à douta apreciação de V.ªs Ex.ªs.
Por último, foi produzida prova no sentido de terem os apelantes a titularidade do direito de retenção, bem como, a existência de todos os pressupostos legais exigidos pela Jurisprudência Uniformizada – tradição da coisa, objecto de contrato-promessa.

Senão vejamos:

E) Refere o Tribunal a quo na douta sentença recorrida, na parte que dispõe sobre “III. Fundamentação de Direito - E) Do Direito de Retenção” que “«(…) o direito de retenção apresenta como pressuposto para o seu exercício (...) a existência de uma detenção licita de uma coisa (...) a detenção deve, contudo, implicar que o credor detentor tem o controlo de facto da coisa, (directamente ou através de um representante, excluindo o devedor desse controlo material da coisa,» mas tal pressuposto não se verifica quanto aos indicados credores."
F) Sempre com o devido respeito, tal não corresponde à verdade, porquanto, consta dos autos matéria factual que permite verificar a existência de tal pressuposto, na esfera jurídica dos aqui credores/apelantes.
G) Pelo que, deveria ter sido considerado provado que J. C. e A. M., preenchem todos os pressupostos da verificação do direito de retenção, pelo que, são estes retentores, da fracção sita no 1º andar, do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ....24.
H) Além de que, deveria ter sido dado como provado que "A chave do apartamento foi entregue a J. C. para que este se sentisse seguro de que a fracção autónoma era sua, apesar de não se ter realizado a escritura pública de compra e venda, passando aquele a referir-se como proprietário do apartamento."
I) Considerando os factos considerados como provados nos pontos 26; 27; 28; 29; 30; 31; 32; 33, da douta sentença, e supra transcritos, estes obrigatoriamente, demonstram, sem margem para dúvidas, que os apelantes actuam como possuidores da fracção, no estado em que ela se encontrava, ou seja, inacabada.
J) Na medida em que, se encontra provado nos presentes autos que os apelantes
exerceram actos materiais sobre a fracção como se proprietários dela já fossem.
K) Sendo que tais actos materiais são os seguintes: “J. C. foi acompanhando a evolução dos trabalhos no apartamento sito no 1.º andar”; “J. C. entregou um exemplar dessa chave à Sr.ª Administradora de Insolvência, mas ficou com uma cópia da mesma chave”; “(...) continuando a deslocar-se ao apartamento para ver o seu estado de conservação.”; “Em 15/12/2014 J. C. participou à PSP a ocorrência de uma intrusão ilícita no apartamento sito no 1.º andar do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ...”; “(...) tendo custeado as despesas de reparação da porta do apartamento, no montante de € 61,50.”
L) Nesses termos, o apelante J. C., acompanhou a evolução dos trabalhos, como proprietário, para ver se os trabalhos estavam a correr de acordo com as boas técnicas. Pelo que, não se limitou a aguardar a entrega do apartamento pela insolvente. Participou, activamente nos arranjos interiores da fracção. Até à data, sempre se mostrou preocupado pelo estado de conservação da aludida fracção. Fez reparações na porta de entrada da fracção, que custeou.
M) Todos estes actos, demonstram inequivocamente que o Apelante detinha o controlo de facto da coisa, e que excluiu o devedor desse controlo material.
N) Para tanto, veja-se o depoimento de J. C., (cujo depoimento se encontra gravado em CD com recurso ao programa informático, no dia 16/11/2017, referência identificadora da gravação 20171024102539), refere: "Ia lá sempre, tinha que acompanhar a obra, ver se estavam bem feitas" (15:55 a 16:02).
O) Assim, dos factos dados como provados, supra expostos, impunha-se, desde já, decisão diversa. Pelo que, incorreu o Tribunal a quo em erro, pois, face aos factos provados, nunca poderia ter julgado parcialmente procedente a Impugnação de Créditos do "BANCO ... S.A.", como incorrectamente fez, sempre com o devido respeito;
P) Além de que, deveria ter sido dado como provado que "A chave do apartamento foi entregue a J. C. para que este se sentisse seguro de que a fracção autónoma era sua, apesar de não se ter realizado a escritura pública de compra e venda, passando aquele a referir-se como proprietário do apartamento."
Q) Ou seja, que J. C. e A. M. preenchem todos os pressupostos da verificação do direito de retenção, pelo que, são estes retentores, da fracção, em construção sita no 1º andar, do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ....
R) Ademais, a Administradora de insolvência, C. D., (cujo depoimento se encontra gravado em CD com recurso ao programa informático, no dia 16/11/2017, referência identificadora da gravação – 20171024102539), no seu depoimento, referiu: À pergunta "No decurso dos cinco anos, qual a atitude do Sr. J. C., nos contactos estabelecidos consigo, foram no sentido de que estaria na posse do imóvel(...) ?" (11:53 a 11:54). Respondeu: "Sim , Sim, Sim, ele estava na posse..."(12:13 a 13:18).
S) Ora, tais afirmações/convicções da Sra. Administradora de Insolvência, baseiam-se nos contactos directos que esta manteve com o apelante J. C., no decurso destes cinco anos. Motivo pelo qual, que na lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos qualificou o crédito como privilegiado, com direito de retenção.
T) Acresce que, J. C., (cujo depoimento se encontra gravado em CD com recurso ao programa informático, no dia 16/11/2017, referência identificadora da gravação 20171024102539), no seu depoimento, refere, por várias vezes, que a chave tinha-lhe sido entregue, pelo representante legal da empresa insolvente, com o intuito de lhe assegurar que o apartamento iria ser acabado. Assim, a instâncias do Meritíssimo Juiz, o credor/reclamante responde: "Disse-me que ia acabar o apartamento, e que ficava desde já com a chave." (02:39 a 02:40).
U) Ao longo de todo o seu depoimento, J. C. refere-se ao apartamento como sendo já seu: "Já era como se fosse meu. Ele disse que acabava o apartamento." (12:58 a 12:60); "Senão roubavam-me tudo" (15:21 a 15:22); "Já tinha um compromisso" (19:44 a 19:45); "estava a tratar do que era meu, ver como estão as minhas coisas" (21:14 a 21:15);"disse-me não se preocupe que eu acabo o apartamento" (24:52 a 24:53); "ia lá ver como estavam as coisas, a partir de determinada altura o apartamento ficou fechado" (25:08 a 26:54).
V) Face a todo o exposto, desde que, o contrato promessa de compra e venda foi assinado, os Apelantes sempre se referiram à fracção e actuaram como sendo o seu novo apartamento, posição reforçada pela entrega das respectivas chaves.
X) Ora, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 4/2014 determina que: "No âmbito da graduação de créditos em processo de insolvência, o promitente-comprador consumidor, em contrato com eficácia meramente obrigacional, em que tenha havido tradição da coisa, goza do direito de retenção, nos termos estatuídos no art. 755º,1,f do CC, como garantia do pagamento do seu crédito, no caso do administrador da insolvência optar pelo seu não cumprimento”.
Z) Sendo certo que, na douta sentença, de que ora se recorre, o Meritíssimo Juiz
entendeu que não se verificou a "traditio rei".
AA) Porém, divergem os aqui apelantes desse entendimento, porquanto, de acordo com o artigo 1263º, a posse adquire-se, entre outras, pela “prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito”; ou, “pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor”.
AB) Assim, J. C. e A. M., praticaram, com publicidade, actos materiais correspondentes ao exercício do direito correspondente. Cfr. artigo 1263º, al. a). Praticaram, os apelantes, com conhecimento de todos, inclusive do “Banco ..., SA”, actos de proprietários correspondentes aquela fracção inacabada. E, praticaram os apelantes tais actos sobre a fracção convencidos de que a fracção já era sua, convicção que foi reforçada com a entrega das chaves, pelo representante legal da Insolvente.
AC) Mais, a posse também pode ser adquirida, de acordo com aquele normativo, pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor (entrega
das chaves).
AD) Conclui-se por todo o exposto, que os apelantes adquiriram a posse da supra citada fracção, ainda, em construção.
AE) Mais, extrai-se, do Acórdão do Pleno das Secções Cíveis que: “Nos termos do nº 3, do artigo 442º do Código Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-lei n.º 236/80, de 18 de Julho, tendo havido tradição da fracção de prédio urbano, o promitente-comprador goza do direito da sua retenção, mesmo que o edifício ainda não esteja submetido ao regime da propriedade horizontal. Cfr- Acórdão datado de 12.03.1996, Proc. n.º 84 119, 2.ª secção, em que foi relator José Pereira da Graça, publicado in www.dgsi.pt.
AF) Pelo que, incorreu o Tribunal a quo em erro, pois, face à prova produzida em sede de audiência de julgamento, nunca poderia ter julgado como não provado que "A chave do apartamento foi entregue a J. C. para que este se sentisse seguro de que a fracção autónoma era sua, apesar de não se ter realizado a escritura pública de compra e venda, passando aquele a referir-se como proprietário do apartamento."
Deveria o tribunal a quo, dado como provado que: "A chave do apartamento foi entregue a J. C. para que este se sentisse seguro de que a fracção autónoma era sua, apesar de não se ter realizado a escritura pública de compra e venda, passando aquele a referir-se como proprietário do apartamento."
AG) Consequentemente, deveria ter o Tribunal a quo, qualificado o crédito dos apelantes como privilegiado, garantido com direito de retenção, seguindo-se os ulteriores termos de direito, a graduação.
AH) A título de cautela, desde já se diga que, a traditio exigida para que se constitua o direito de retenção reclama apenas a detenção material lícita da coisa – não sendo necessário para esse efeito, uma posse.
AI) Ora, a posse adquire-se: a) Pela prática reiterada, com publicidade, dos actos
materiais correspondentes ao exercício do direito; b) Pela tradição material ou simbólica da coisa, efectuada pelo anterior possuidor; c) Por constituto possessório; d) Por inversão do título da posse.
AJ) Sucede que, tal como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 15/01/2013, publicado in www.dgsi.pt “Para que o direito de retenção se deva reconhecer ao promitente, é suficiente uma “traditio ficta – a entrega de um objecto que representa simbolicamente a coisa e permita a actuação material sobre ela. É o que ocorre, frequentemente, no caso de prédios urbanos ou de fracções de prédio urbano, em que basta para a realização da traditio a entrega das chaves – ainda que não ocorra no local – que permita aceder aqueles bens.”
AK) Deste modo, os aqui apelantes são retentores da fracção supra aludida. Porquanto, estão reunidas, no caso em apreço, todos os pressupostos na esfera jurídica dos Apelantes, para se aplicar o artigo 755,1,f, ou seja, verificou-se a traditio da coisa (com a entrega das chaves que reforçou a posição dos apelantes como possuidores); o incumprimento definitivo do contrato promessa pelo promitente alienante e a titularidade pelo promitente comprador.
AL) Neste conspecto o douto tribunal, fez uma errada aplicação ou interpretação das normas jurídicas - artigos 755º,1,f; artigo 442º; artigo 759º,2; artigo 1263º, todos do Código Civil - à situação fáctica que se traz à douta apreciação de V.ªs Ex.ªs.
AM) Por tudo quanto ficou exposto, o Tribunal a quo só poderia e deveria ter julgado totalmente improcedente a impugnação de créditos reconhecidos e não reconhecidos da impugnante/credora “Banco ...” e, em consequência, qualificado o crédito dos apelantes, no montante de € 63.440,00, como privilegiado, (e não comum), garantido com direito de retenção.

Termos em que deve ser revogada a douta sentença recorrida, devendo, em consequência, ser substituída por outra que julgue totalmente improcedente a impugnação de créditos e, em consequência, qualifique o crédito reconhecido como privilegiado, garantido por direito de retenção, seguindo-se os ulteriores termos de direito.

O recorrido BANCO ... SA contra-alegou, dizendo em síntese:

1. Entendem os Recorrentes que o Tribunal “a quo” deveria ter dado como provado que “a chave do apartamento foi entregue a J. C. para que este se sentisse seguro de que a fracção autónoma era sua, apesar de não ter realizado a escritura de compra e venda, passando aquele a referir-se como proprietário do apartamento”.

A pretensão dos Recorrentes carece de sentido, uma vez que nenhuma prova foi efectuada que permitisse ao Tribunal considerar provado os factos supra. A única testemunha indicada pelos Recorrentes, o Sr. J. E., apenas sabe informar que J. C. celebrou contrato promessa de compra e venda com a insolvente com vista a adquiriu um apartamento, tipo t3, que se encontrava a ser edificado no prédio sito em ..., W; referiu que para a aquisição da fracção os Recorrentes iriam recorrer a financiamento bancário junto da Caixa … sendo que, inclusive, haviam instruído o referido processo junto da citada instituição bancária. Mais referiu que a fracção estava em construção, inabitável, nunca tendo sido habitada pelos recorrentes. Que se encontra por concluir, não tendo condições de habitabilidade. Referiu, ainda, que os Recorrentes tinham consciência que apenas com a outorga da escritura se tornariam proprietários da fracção. Nesse sentido, veja-se o depoimento constante da gravação áudio registada com o título J. E., da audiência de 16.11.2017, entre os minutos 00:09:26 a 00:09:44.

As testemunhas indicadas pelo Banco confirmaram que o prédio estava em construção, inabitável, sem condições de utilização (não havia saneamento, eletricidade, louças sanitárias, etc.), designadamente a fracção prometida vender aos Recorrentes. Nesse sentido, veja-se o depoimento constante da gravação áudio registada com o título M. Q., da audiência de 24.10.2017, entre os minutos 00:02:40 a 00:05:10, e sob o título J. V., 16.11.2017, entre os minutos 00:01:40 a 00:04:00.
No mesmo sentido, veja-se depoimento da Sra. Administradora de Insolvência, na audiência de 24.10.2017, entre o minuto 00:02:55 e o minuto 00:03:25.

O Recorrente J. C. em declarações de parte referiu expressamente que um dos exemplares das chaves de obra (ter-se-ia de alterar o canhão aquando da conclusão do apartamento, pois aquelas eram chaves provisórias) foi-lhe entregue, pelo sócio gerente da insolvente, por forma a permitir que ele acompanhasse a obra e fosse vendo como as coisas corriam. Nesse sentido, veja-se o depoimento constante da gravação áudio registada com o título J. C., da audiência de 16.11.2017, entre os minutos 00:23:43 a 00:28:15.

O trabalhador da Insolvente A. C. referiu que à data da insolvência prestava serviços, bem como os demais Colegas pintores e trolhas, no prédio sito em ..., descrição predial ..., onde estava a ser edificado um prédio em regime de propriedade horizontal. Neste sentido, vide, matéria assente.

Em síntese, nenhuma prova foi produzida no sentido defendido pelos Recorrentes, os quais estavam cientes que apenas com o pagamento do remanescente do preço - Eur. 85.000,00 (oitenta e cinco mil euros) - (para o efeito haviam instruído pedido de financiamento bancário junto da Caixa …), e a outorga da escritura pública de compra e venda, se tornariam proprietários do apartamento; e que as chaves (de obra), que lhes foram entregues, visavam apenas permitir que aqueles acompanhassem o desenrolar dos trabalhos, uma vez que a obra estava em curso (inacabada).

Tal como resulta dos factos provados, os Recorrentes J. C. e A. M. não gozavam a coisa, onde aliás nunca residiram, pois o apartamento encontrava-se em construção. O prédio não se encontra constituído em regime de propriedade horizontal. A entrega das chaves foi, apenas, como referiu o Recorrente em declarações de parte, para que este pudesse acompanhar as obras e ver como as coisas corriam. A promitente vendedora, e construtora, mantinha em seu poder chaves do apartamento onde diariamente acedia, através dos seus representantes e trabalhadores, para executarem os mais diversos serviços de construção civil. A entrega da chave revela-se, pois, pouco relevante, pois esta apresenta-se provisória, carecendo de ser substituída quando viesse a ser concluída a construção do edifício pela insolvente e visava, apenas, permitir que o Recorrente acompanhasse as obras. O mesmo se devendo dizer da escolha dos materiais a colocar no apartamento, cuja possibilidade já se encontrava consagrada no contrato promessa de compra e venda, o que, de resto, é normal acontecer em prédios em construção.

Por outro lado, os demais actos praticados pelo Recorrente J. C., e referidos nas doutas alegações de recurso, revelam-se indevidos, ilícitos. Veja-se que o mesmo entregou as chaves que possuía à Sra. Administradora de Insolvência, contudo e ao arrepio de autorização da Administradora e/ou credores, tirou uma cópia das mesmas que manteve em seu poder. E, como se tal não fosse suficiente, continuou a aceder à fracção, após a declaração de insolvência, estando o prédio onde a mesma se insere apreendido para a massa insolvente, bem como continuou indevidamente a aceder à mesma após a aquisição do prédio pelo Banco ..., no âmbito da liquidação do activo.

Posto isto, no caso dos autos não pode concluir-se pela posse em termos de um direito real de propriedade, já que a entrega das chaves para acompanhamento das obras ao promitente-comprador não foi realizada em consequência de um acto de alienação do direito de propriedade, tendo em vista uma futura alienação, não tendo ocorrido qualquer inversão do título. Os Recorrentes eram meros detentores das chaves do imóvel (chaves provisórias / chaves de obra), ou seja a promitente vendedora tolerava que estes acompanhassem a obra, na pura expectativa da futura celebração do contrato prometido, sem nunca esta perder o domínio da coisa - a qual estava a ser construída. Os promitentes-compradores sabiam, como ninguém, que o apartamento prometido vender só lhes pertencia depois de realizarem o contrato translativo da propriedade (escritura notarial e compra e venda) e pagaram o preço em falta (faltava pagar mais de 75% do preço ajustado), pelo que nunca agiram seriamente com a intenção de um titular da propriedade ou de qualquer outro direito real sobre a coisa.

Falta, pois, desde logo, aos promitentes-compradores o “animus”, ou intenção de exercer o poder de facto em termos de direito real de propriedade ou outro, para que possa ser considerado possuidor.

Em síntese: no caso em apreço (i) não se pode concluir pela posse dos Recorrentes em termos de um direito real de propriedade; (ii) a entrega das chaves da obra não foi realizada em consequência de um acto de alienação, a realizar a quando da feitura da escritura, não tendo ocorrido qualquer inversão do título.

Bem andou, assim, o Tribunal “a quo” ao reconhecer os créditos dos Recorrentes sobre a Insolvente como um crédito de natureza comum.

O Ministério Público, notificado das alegações de recurso dos referidos recorrentes, veio apresentar as respectivas alegações de resposta.

A) Do recurso interposto pelo Banco ...

Considera o recorrente Banco ... que não deveria ter sido reconhecido a A. P., A. C., M. M. e M. B. privilégio imobiliário especial sobre o imóvel em crise (respeitando-se, assim, a jurisprudência uniformizada) já que, em seu entender, foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento que demonstrava que o prédio urbano, terreno para construção, correspondente ao lote nº 1, descrito na C.R. Predial sob o nº ..., e inscrito na matriz sob o artigo ....º, se destinava a comercialização facto que, na sua ótica, se revela essencial para uma correcta aplicação do direito e boa decisão da causa.

Ora, muito embora a circunstância dos imóveis terem sido construídos para ulterior comercialização afaste em princípio a subsunção dos referidos créditos à previsão do artigo 333º,1,b do Código do Trabalho, o certo é que se nos afigura, na esteira do que aliás entendeu o Tribunal a quo, que a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento foi claramente demonstrativa que a construção em madeira erigida junto ao prédio descrito sob o nº ... estava efectivamente afecta à organização empresarial da insolvente, independentemente de se tratar, como parece ser o caso, de uma construção precária, em madeira.

Na verdade, era ali que eram guardados os materiais, máquinas, projectos e chaves e outros materiais necessários à construção dos imóveis. Era também ali que eram realizados (ainda que em precárias condições) os pagamentos dos salários aos trabalhadores da insolvente, os quais eram realizados, para além do mais, por M. M..

Concordamos assim com a conclusão alcançada pelo tribunal a quo de qualificar os créditos titulados por A. P., A. C., M. M. e M. B. como privilegiados relativamente ao produto da venda do prédio urbano situado na freguesia de ..., W descrito na Conservatória do Registos Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o n.º ...º.

B) Do recurso interposto por J. C. e A. M.

Como bem considerou o M.mº Juiz a quo muito embora não se ponha em causa a tradição da chave do imóvel aos ora apelantes J. C. e A. M. nem tão pouco que estes tivessem assumido relativamente à fracção em causa uma posição activa, escolhendo materiais e até participando de actos de vandalismo / actos de origem criminosa praticado naquela fracção, estamos em crer também que do ponto de vista da representação da sua posição jurídica face àquele nunca os ora apelantes se chegaram verdadeiramente a sentir proprietários do imóvel.

Para tal conclusão imposta considerar que apesar de terem uma chave na sua posse tinham os apelantes noção de que aquela seria sempre e necessariamente uma chave provisória que teria de ser trocada finda a construção, já inúmeros trabalhadores tinham acesso ao imóvel e portanto teriam porventura cópias de chaves para aquela fechadura.

Além disso, nunca os ora apelantes poderiam considerar-se já verdadeiros proprietários do imóvel em causa atento quer o nível de construção já finalizada (apenas 62% como resultou do depoimento prestado pelas testemunhas M. Q. e J. V.) quer o facto de a efectivação da aquisição daquele imóvel estar dependente de financiamento (ainda que já pré-aprovado).

II
As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635º,3 e 639º,1,3 do Código de Processo Civil, delimitam os poderes de cognição deste Tribunal, sem esquecer as questões que sejam de conhecimento oficioso. Assim, e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, as questões a decidir são as seguintes:

a) alteração da matéria de facto provada, com aditamento de mais factos;
b) atribuição dos credores A. P., A. C., M. M. e M. B. de privilégio imobiliário especial sobre o imóvel em causa;
c) existência de um direito de retenção na esfera jurídica de J. C. e A. M.;
d) intempestividade do recurso de apelação e eventual ilegitimidade do recorrente Banco ...
e) inconstitucionalidade da interpretação da alínea b) do nº 1 do art. 333º Código do Trabalho.

As alíneas d) e e) acabadas de referir contêm questões suscitadas pela recorrida M. M., nas suas contra-alegações (1). Cumpre agora conhecer das mesmas, conforme determinado pelo STJ.

Por razões práticas e de precedência lógica, as questões de (in)tempestividade do requerimento de interposição do recurso e da falta de legitimidade do recorrente assumem-se como prévias ao conhecimento do recurso propriamente dito.

Vamos pois começar pelas mesmas.

a) da alegada intempestividade do requerimento de interposição do recurso: a sentença recorrida foi proferida em 20/11/2017. O ofício de notificação das partes foi enviado nessa mesma data. Como é sabido presume-se efectuada essa notificação no terceiro dia posterior ao da elaboração, ou no 1º dia útil seguinte a esse, quando aquele não o seja. No caso dos autos, o dia 20/11/2017 foi uma segunda-feira, pelo que a notificação se presume efectuada no dia 23/11/2017.

A 27/11/2017 veio o Banco ..., para efeitos de recurso, requerer a confiança dos registos fonográficos dos depoimentos prestados na audiência de julgamento, bem como cópia das actas das sessões da audiência de julgamento. A 29/11/2017 foi tal parte notificada do envio do CD de gravação. Em 18/12/2017 dá entrada nos autos o requerimento de interposição de recurso, no qual se afirma que é impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto.

Entende a recorrida M. M. que quando no dia 18/12/2017 deu entrada nos autos o requerimento de interposição de recurso, já tinha decorrido, e isto mesmo levando em conta os 3 dias de complacência a que aludem os artigos 139º,5 CPC e 17º CIRE, o prazo de que para essa apresentação o recorrente dispunha. Esse prazo, atenta a natureza urgente do processo de insolvência, é de 15 dias (art. 9º,1, 14º e 17º CIRE, e 642º,1 CPC). E mais entende que o referido prazo de 15 dias terminava a 11/12/2017.
E como argumento central, acrescenta a recorrida que o recorrente não especificou nem podia especificar na sentença sob recurso nenhum ponto de facto que considerasse incorrectamente julgado. O recorrente, no recurso dele, alegou estar a impugnar matéria de facto, sem na verdade o fazer, nem disso ter necessidade, apenas e unicamente para ganhar o prazo adicional de 10 dias, a que aludem os artigos 638.º-7, do CPC 2013 e 17.º, do CIRE.

Ora bem. Ao prazo de 15 dias para interposição de recurso (art. 638º,1 CPC) só acrescem mais 10 dias se o recurso tiver por objecto”a reapreciação da prova gravada (art. 638º,7 CPC). Lendo as alegações de recurso, encontramos a referência ao facto que se pretende seja aditado aos factos provados, bem como referência aos depoimentos testemunhais para tal relevantes.

Estamos em crer que a interpretação correcta da norma do art. 638º,7 CPC é a que é indicada por Abrantes Geraldes (Recursos no novo Código de Processo Civil, 2017, anotação a este artigo). Citando vária jurisprudência dos Tribunais superiores, entre a qual o acórdão do STJ de 28/4/2016, de que o próprio foi Relator, defende este autor que “a extensão do prazo de 10 dias previsto no art, 638º,7 para apresentação do recurso de apelação quando tenha por objecto a reapreciação da prova gravada depende unicamente da apresentação de alegações em que a impugnação da decisão da matéria de facto seja sustentada, no todo ou em parte, em prova gravada, não ficando dependente da apreciação do modo como foi exercido o ónus de alegação. Tendo o recorrente demonstrado a vontade de impugnar a decisão da matéria de facto com base na reapreciação da prova gravada, a verificação da tempestividade do recurso de apelação não é prejudicada ainda que houvesse motivos para rejeitar a impugnação da decisão da matéria de facto com fundamento na insatisfação de algum dos ónus previstos no art. 640º,1”.

Ou seja, o recorrente manifestou vontade em impugnar a decisão da matéria de facto, e sustentou essa sua posição em, entre outra, prova gravada. De acordo com a orientação claramente maioritária da jurisprudência, é quanto basta para que o prazo de interposição de recurso se alargue em 10 dias, passando, no caso, para 25 dias. Assim, o requerimento de interposição do recurso deu entrada nos autos 1 dia antes do fim do prazo.

Concluímos assim que não assiste razão à recorrida, e que o requerimento de interposição do recurso foi tempestivo.

Mas a recorrida impugna também a legitimidade do Banco ... para interpor este recurso. Em síntese, argumenta que há uma desconformidade entre o recorrente, que figura no requerimento de interposição de recurso, que é o Banco ... S.A. (CIPC …), e aquele que consta do respectivo formulário, que é o BANCO ... S.A. (CIPC …), da qual decorre que o Banco ... SA não tem legitimidade processual para interpor recurso.

Julgamos não ser necessário perder tempo a enunciar mais desenvolvidamente a questão, pois basta isto para se perceber que não estamos perante uma verdadeira questão de ilegitimidade do recorrente, mas sim perante um mero lapso, um erro de formalismo que não pode, ao contrário do que pretende a recorrida, ter qualquer repercussão no julgamento da lide. Ninguém, parte ou não parte na acção, pode ter dúvidas de que é o Banco ... SA, credor reclamante, o recorrente, pois é ele que é afectado com a decisão recorrida e com a graduação que esta fez; são os seus créditos que a sentença identifica, reconhece e gradua. É o que resulta do teor literal do requerimento de interposição de recurso, entrado em Juízo, recordemos, em 18/12/2017. O facto de no formulário surgir a identificação da parte ainda como Banco ..., SA, não tem nem pode ter qualquer relevo, e nem devia ter sido usado como argumento. Porque é público e pacífico que:

a) o Banco Central Europeu, por deliberação de 13/07/2016, revogou a autorização para o exercício da actividade de instituição de crédito ao Banco ... S.A. (…) a partir das 19:00 horas desse dia.
b) Na sequência de tal deliberação, veio o Banco de Portugal requerer a liquidação judicial do Banco …, tendo em 21/07/2016 sido proferido o despacho de prosseguimento cuja cópia foi junta com a contestação do réu Banco ..., S.A..
c) Nos termos do artigo 8º, nº 2, do Decreto-Lei nº 199/2006 de 25 de Outubro, a decisão de revogação da autorização produz os efeitos da declaração de insolvência.
d) Por deliberação tomada a 3 de Agosto de 2014, às 20h00, o Banco de Portugal decidiu: Ponto Um: “É constituído o Banco ..., SA, ao abrigo do nº 5 do artigo 145º-G do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, cujos Estatutos constam do Anexo 1 à presente deliberação.” Ponto Dois: “São transferidos para o Banco ..., SA, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 1 do artigo 145º-H do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 298/92, de 31 de Dezembro, conjugado com o artigo 17º-A da Lei Orgânica do Banco de Portugal, os activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do Banco ..., SA, que constam dos Anexos 2 e 2A à presente deliberação”.

Assim, só por um formalismo desmesurado e cego se pode querer pretender que o recorrente é não o Banco ... S.A., mas sim o Banco ... S.A.

Para não perder mais tempo, é para nós evidente que, nos termos e para os efeitos do art. 631º CPC, é o Banco ... que é parte principal na causa, são os seus créditos que foram apreciados na sentença, é ele que ficou vencido na sentença, e é ele quem vem interpor recurso, como resulta da literalidade mais óbvia do texto do requerimento de interposição de recurso.

Donde, improcede igualmente esta pretensão da recorrida M. M..

III
A decisão recorrida considerou provados os seguintes factos:

1. Em 03/12/2013, I. G. & Companhia, Lda., requereu a insolvência de J. S., Irmão & Companhia, Lda.
2. Por sentença proferida em 25/02/2014 foi declarada a insolvência de J. S., Irmão & Companhia, Lda, nos termos preceituados no artigo 39º do C.I.R.E.
3. Por sentença proferida em 19/03/2014, foi determinado o complemento da sentença de insolvência.
4. Foram apreendidos para a massa insolvente os seguintes prédios urbanos sitos no concelho de W:

Verba n.ºFreguesiaFracção AutónomaDescrição PredialMatrizComposição
1...-......ºLote nº 1
2...-16441463ºLote nº 2
3...-16451464ºLote nº 3
4...-16461472ºLote nº 4
5...-16511465ºLote nº 9
6...-16521470ºLote nº 10
7...-16531472ºLote nº 11
8...-16541473ºLote nº 12
9WAO6183249ºEstab. com.
10WL6183249ºLugar de garagem
11WE9273461º2º andar esq
12WA15073770ºLugar de garagem
13WB15073770ºLugar de garagem
14WC15093830ºEstab. com.
15WD15093830ºEstab. com.
17WC15103863ºlugar de garagem
18WQ15103863º2.º andar dir
19WR15103863º3.º andar esq
20WS15103863º3.º andar dir

5. Relativamente à insolvente encontram-se inscritos no R.N.P.C. os seguintes factos, com relevo para a boa decisão da causa:

-constituição de sociedade e designação de membros de órgãos sociais (Ap. 15/19800919):
-objecto social: compra e venda de imóveis para revenda e indústria da construção civil;
-sede: Rua …;
-capital social: € 57.361,75, repartido por uma quota no valor de € 31.548,97, de que é titular J. S., uma quota no valor de € 8.604,26, de que é titular L. C., uma quota no valor de € 8.604,26, de que é titular J. R. e uma quota no valor de € 8.604,26, de que é titular I. V.;
-forma de obrigar: a assinatura do sócio J. S. em conjunto com a assinatura de qualquer um dos outros gerentes;
-gerência: J. S., J. R. e I. V..
-Cessação de funções de membro do orgão social: (Ap. 1/20120720):
-Renúncia à gerência: J. S..
-Alterações ao contrato de sociedade e mudança da sede: (Ap. 2/20120720):
-Sede: Quinta …, Cave Nível Um, … W;
-capital social: € 57.361,75, repartido por uma quota no valor de € 28.680,88, de que é titular J. R. e uma quota no valor de € 28.680,88, de que é titular I. V..
6. M. B. contraiu casamento com I. V. em 17/01/1988, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 24/11/2008, transitada em julgado em 14/01/2009, nos autos que correram termos sob o n.º 1290/08.6TBVRL, no 2.º Juízo do Tribunal Judicial de W.
7. M. M. contraiu casamento com J. R. em 25/06/1981, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado por decisão proferida em 30/06/2011, transitada em julgado nessa data, no processo n.º 2667/2011 que correu termos na Conservatória do Registo Civil de ….
8. Por reporte ao período de um ano anterior ao início do processo de insolvência, encontram-se em dívida os seguintes quantitativos, referentes às prestações tributárias infra identificadas:
-a título de I.R.S., € 393,75;
-a título de I.V.A., € 5.541,13;
-a título de I.U.C., € 414,05;
-a título de I.M.I., € 18,86, € 17,70, 347,70, € 345,76, € 187,56, € 8,16 e € 224,92, quanto aos prédios identificados em 4, sob as verbas n.ºs 12, 13, 14, 15, 9, 10 e 11, respectivamente.
9. No processo n.º 153/13.8TTVRL, que correu termos no Tribunal do Trabalho de W, em 31/05/2013 foi proferida sentença, transitada em julgado, na qual a insolvente foi condenada a pagar a M. M. o montante global de € 38.784,00, a título de créditos laborais e de indemnização pela cessação do seu vínculo laboral e nos demais termos constantes de fls. 36-37 (apenso por linha contendo os articulados de reclamação de créditos), que se dão aqui por integralmente reproduzidos.
10. No processo n.º 550/12.6TTVRL, que correu termos no Tribunal do Trabalho de W, em 10/05/2013 foi proferida sentença, transitada em julgado, na qual a insolvente foi condenada a pagar a A. P. e A. C. os montantes globais de € 15.303,75 e € 17.361,25, a título de créditos laborais e de indemnização pela cessação dos seus vínculos laborais e nos demais termos constantes de fls. 180-180v, que se dão aqui por integralmente reproduzidos.
11. Mediante documento com a epígrafe “Termo de Cessação do Contrato de Trabalho”, datado de 05/11/2012, a insolvente a M. B. declarou acordar na revogação, com efeitos imediatos, do contrato de trabalho celebrado em 01/01/1995, tendo ainda a insolvente reconhecido ser devedora de M. B. do montante global de € 13.580,00, o qual compreende os seguintes montantes:
-€ 1.940,00, vencimentos em atraso desde Julho de 2012;
-€ 485,00, subsídio de férias de 2011;
-€ 485,00, subsídio de Natal de 2012;
-€ 404,00, proporcionais de subsídio de férias de 2012;
-€ 10.266,00, indemnização por antiguidade.
12. Relativamente aos imóveis identificados em 4, sob os n.ºs 12 e 13, encontram-se registadas hipotecas constituídas pela insolvente, para garantia de créditos do Banco ..., S.A., nos termos narrados nas apresentações n.ºs 17 de 07/06/2002, 2 de 02/10/2003, 7 de 13/05/2004, 13 de 20/10/2005 e 10 de 29/05/2006 (que se dão aqui por integralmente reproduzidos).
13. Relativamente aos imóveis identificados em 4, sob os n.ºs 14 e 15, encontra-se registada hipoteca constituída pela insolvente, para garantia de créditos do Banco ..., S.A., nos termos narrados na apresentação n.ºs 4 de 03/05/2007, (que se dão aqui por integralmente reproduzidos).
14. Relativamente aos imóveis identificados em 4, sob os n.ºs 17 a 20, encontra-se registada hipoteca constituída pela insolvente, para garantia de créditos do Banco ..., S.A., nos termos narrados na apresentação n.º 4379 de 17/04/2009 (que se dão aqui por integralmente reproduzidos).
15. Relativamente aos imóveis identificados em 4, sob os n.ºs 1 a 8, encontram-se registadas hipotecas constituídas pela insolvente, para garantia de créditos do Banco ..., S.A., nos termos narrados nas apresentações n.ºs 16 de 05/09/2007, 4620 de 18/10/2010 e 2856 de 09/03/2011 (que se dão aqui por integralmente reproduzidos).
16. Relativamente ao prédio descrito sob o n.º ... não se encontra inscrita no registo a constituição da propriedade horizontal.
17. J. C. e A. M. não residem no apartamento sito no 1º andar do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ..., aí não fazendo refeições, nem dormindo e não tendo aí o seu domicílio fiscal.
18. O edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ... encontra-se inacabado e não dispõe de licença de habitabilidade.
19. No processo n.º 550/12.6TTVRL o Ministério Público reclamou em nome de A. P. os seguintes montantes parcelares:
-€ 14.170,00, a título de indemnização, por rescisão do contrato de trabalho com justa causa;
-€ 1.965,00, a título de salários;
-€ 1.226,25, a título de férias, subsídio de férias e de natal, proporcionais ao trabalho prestado.
20. No processo n.º 550/12.6TTVRL o Ministério Público reclamou em nome de A. C. os seguintes montantes parcelares:
-€ 12.705,00, a título de indemnização, por rescisão do contrato de trabalho com justa causa;
-€ 1.485,00, a título de salários;
-€ 1.113,75, a título de férias, subsídio de férias e de natal, proporcionais ao trabalho prestado.
21. No processo n.º 153/13.8TTVRL o Ministério Público reclamou em nome de M. M. os seguintes montantes parcelares:
-€ 12.705,00, a título de indemnização, por rescisão do contrato de trabalho com justa causa;
-€ 1.485,00, a título de salários;
-€ 1.113,75, a título de férias, subsídio de férias e de natal, proporcionais ao Trabalho prestado.
22. J. R. e I. V. (na qualidade de representantes da insolvente) e J. C. e A. M. subscreveram um documento, denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda”, datado de 29/02/2012, tendo os primeiros declarado, na qualidade em que intervinham, prometer vender a estes últimos, os quais prometerem adquirir em tais condições, “um apartamento tipo T3 e garagem, que se irão situar respectivamente, no 1.º andar do edifício edificado no lote 1, do Loteamento da Quinta …, descrito na Conservatória sob o número ... (…) devolutos de pessoas e bens, completamente concluídos e em condições de imediata habitabilidade”, mediante o pagamento do preço global de € 115.000,00, entregando na data da outorga do contrato o montante de € 30.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento, ficando o remanescente por liquidar na data da outorga do contrato definitivo, a celebrar até Maio de 2012, inclusive, sendo “os móveis de cozinha, o forno, a placa de fogão, o microondas e o equipamento sanitário a colocar no apartamento” bem como “o material para revestir o pavimento”, escolhidos por J. C. e A. M..
23. Enquanto decorreram os trabalhos de construção do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ..., foi utilizada pelos colaboradores da insolvente uma construção precária em madeira, para aí serem guardados materiais, máquinas, projectos, chaves e outros equipamentos necessários à realização das obras.
24. (…) sendo ainda utilizada essa construção em madeira para serem realizados pagamentos de salários aos trabalhadores da insolvente, mormente por M. M..
25. Os gerentes da insolvente acompanhavam os clientes na visita ao edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ....
26. J. C. foi acompanhando a evolução dos trabalhos no apartamento sito no 1.º andar do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ....
27. (…) o qual se encontrava em fase de realização de obras interiores.
28. (…) tendo J. C. e A. M. escolhido a cor e o revestimento do chão do apartamento, bem como os azulejos da casa-de-banho e da cozinha.
29. Em data não concretamente apurada, mas que se determinou ser posterior à colocação de porta e janelas no apartamento sito no 1.º andar do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ..., o gerente da insolvente entregou uma chave da porta desse apartamento a J. C., não obstante aí prosseguirem os trabalhos de acabamentos interiores. 30. (…) em 15/05/2014 J. C. entregou um exemplar dessa chave à Srª. Administradora da Insolvência, mas ficou com uma cópia da mesma chave.
31. (…) continuando a deslocar-se ao apartamento para ver o seu estado de conservação.
32. Em 15/12/2014 J. C. participou à P.S.P. a ocorrência de uma intrusão ilícita no apartamento sito no 1º andar do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ....
33. (…) tendo custeado as despesas de reparação da porta do apartamento, no montante de € 61,50.
34. A chave entregue pelo gerente da insolvente a J. C. era provisória, carecendo de ser substituída quando viesse a ser concluída a construção do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ....
35. No processo n.º 550/12.6TTVRL o Ministério Público alegou que A. P. e A. C. possuíam as categorias profissionais de servente e de trolha de 1ª, respectivamente.
36. No processo nº 153/13.8TTVRL o Ministério Público alegou que M. M. possuía a categoria profissional de escriturária.
37. No documento com a epígrafe “Termo de Cessação do Contrato de Trabalho”, datado de 05/11/2012, foi declarado que M. B. desempenhava a actividade profissional correspondente a Engenheira Civil.
***
Matéria de facto não provada:

1. A construção referida em 23 dos factos provados foi utilizada para a prossecução das tarefas administrativas da insolvente nos últimos meses em que esta desenvolveu a sua actividade, após a deslocalização das suas sedes sociais, sitas na Rua … e na Quinta de …, nomeadamente para pagamento de facturas e contactos com os bancos e fornecedores.
2. M. M. mostrava a clientes o edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ....
3. A chave do apartamento foi entregue a J. C. para que este se sentisse seguro de que a fracção autónoma era sua, apesar de não se ter realizado a escritura pública de compra e venda, passando aquele a referir-se como proprietário do apartamento.

IV
Conhecendo do recurso.

A)
Por óbvias razões de precedência lógica, vamos começar pelas pretensões de alteração da matéria de facto provada e não provada.

1. Assim, e em primeiro lugar, o recorrente Banco ... pretende que seja aditado à matéria de facto provada o seguinte facto: “o prédio urbano, correspondente a um terreno para construção (lote nº 1), descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ... e inscrito na matriz sob o artigo ..., da freguesia de ..., W, correspondente à verba 1 do auto de apreensão, destinava-se a ser comercializado pela insolvente.

Mas logo a seguir acrescenta que “em todo o caso, ainda que a decisão sobre a matéria de facto não seja alterada, impõe-se, desde logo, face à fundamentação decorrente da mesma, e às presunções aí plasmadas, a revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que gradue o crédito hipotecário do Banco ..., SA relativamente ao citado imóvel com primazia sobre os créditos laborais, não reconhecendo a estes privilégio imobiliário especial sobre o imóvel em crise (respeitando-se, assim, a jurisprudência uniformizada)”.

Cumpre começar por dizer que, salvo melhor opinião, não estamos perante um verdadeiro recurso sobre matéria de facto, pois o facto em causa não ficou a constar quer dos factos provados, quer dos factos não provados. E não ficou a constar quer de uns quer de outros pela simples e óbvia razão de que sobre tal facto não existe qualquer controvérsia entre as partes. Tendo ficado provado que esse prédio foi um dos que foram apreendidos para a massa insolvente, que a insolvente tinha como objecto social a compra e venda de imóveis para revenda e indústria da construção civil, que a insolvente, através dos seus legais representantes celebrou com J. C. e A. M. um contrato-promessa de compra e venda de um apartamento que se iria situar no 1º andar do edifício edificado nesse lote, e que os gerentes da insolvente acompanhavam os clientes na visita ao edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ..., dúvidas não existem que esse prédio não só era destinado a ser comercializado, como inclusivamente já estava a ser comercializado através da celebração de contratos-promessa.

Percebe-se que o recorrente pretende que esse facto seja aditado à matéria provada porque o reputa essencial para a boa decisão da causa, desde logo face ao acórdão uniformizador de jurisprudência nº 8/2016. Mas, como o próprio recorrente avança, mesmo sem esse aditamento -que se revela desnecessário- esta Relação pode conhecer da divergência jurídica suscitada, dispondo para tal de todos os factos necessários.

Aliás, não se esqueça que já isso mesmo é afirmado na sentença recorrida, em sede de apreciação de Direito: “…verifica-se que a insolvente tinha como objecto social a compra e venda de imóveis para revenda e a indústria da construção civil, pelo que constituirá uma presunção naturalística que a generalidade dos prédios urbanos e fracções autónomas apreendidos para a massa insolvente foram erigidos pela insolvente com vista à sua ulterior comercialização, tanto mais que as duas sedes sociais da insolvente funcionavam em imóveis não apreendidos”.

Semelhante opinião emerge, e bem, na resposta do MP ao recurso em causa.

Sendo pacífico que assim é, concluímos que não se torna necessário estar a alterar a matéria de facto provada.

2. Os recorrentes J. C. e mulher A. M. consideram que deveria ter sido dado como provado que "a chave do apartamento foi entregue a J. C. para que este se sentisse seguro de que a fracção autónoma era sua, apesar de não se ter realizado a escritura pública de compra e venda, passando aquele a referir-se como proprietário do apartamento".

Com efeito, o Tribunal a quo considerou esse facto como não provado.

E bem.

Se olharmos com a devida atenção para a formulação da frase que se pretende que seja um facto provado, veremos que a mesma não é verdadeiramente um facto, mas uma mistura de factos com conclusões, o que só por si já seria suficiente para sustentar a decisão recorrida.

Acresce que o sujeito da frase, que está omitido, seria a pessoa que entregou a chave a J. C.. E então, o que o recorrente pretende que seja tido como provado é que a pessoa que lhe entregou a chave agiu com o objectivo de que este se sentisse seguro de que a fracção autónoma era sua, apesar de não se ter realizado a escritura pública de compra e venda.

Ora, além de tal não fazer qualquer sentido, uma vez que por definição quem entregou a chave foi o vendedor ou um seu colaborador, e estes, no exercício da sua profissão pretendem uma só coisa, que é vender o imóvel, não que o cliente se sinta proprietário antes de realizar a escritura, percebe-se qual é o objectivo dos recorrentes ao suscitar esta questão. Mas aí já não estamos perante uma questão de matéria de facto, mas sim perante a questão de saber como aplicar o Direito aos factos provados.

Ademais, a fundamentação do Tribunal a quo sobre esta matéria é cristalina e convincente: “no que concerne à temática relacionada com o contrato-promessa outorgado em 29/02/2012, importa recordar que se mostrava assente, por acordo, que o edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ..., incluindo o apartamento do 1.º andar, se encontra inacabado (em coerência com a percepção permitida pelas fotografias de fls. 395 ap. B), nunca aí tendo residido A. M. e J. C., tendo este acrescentado, quando prestou declarações, que decorriam as obras no interior do apartamento, que nunca foram concluídas, mesmo após lhe ter sido disponibilizada uma chave do apartamento pelo gerente da insolvente J. R., em data que não concretizou mas que referiu ser posterior à colocação das janelas e do portão, tendo acompanhado a evolução dos trabalhos (de notar que após a celebração do contrato-promessa a obra apenas prosseguiu até Julho de 2012, como vimos, pelo que se tratou de um acompanhamento que se estendeu somente por 5 meses), escolhendo inclusivamente alguns dos materiais a utilizar nos acabamentos finais. É certo que estando em curso as obras, a entrega da chave da porta do apartamento não é muito compreensível, pois os trabalhadores da insolvente continuariam a executar as obras, entrando necessariamente no apartamento, para além de ser sempre expectável que a chave viesse a ser mudada quando o edifício fosse concluído por naturais razões de segurança dos moradores. Todavia, tal entrega da chave é corroborada pela ulterior disponibilização da mesma à Srª. Administradora da Insolvência, como esta confirmou nos esclarecimentos prestados, em consonância com o auto de entrega de chave de fls. 95 (ap. B), cuja probidade não foi colocada em causa pelas partes no decurso do processo. Por outro lado, foi lavrado o auto de notícia de fls. 96-97 (ap. B), o qual evidencia a participação devida a uma intrusão no edifício e que foi franqueado o acesso ao interior do apartamento do 1º piso ao agente da P.S.P., sendo ainda apresentada a factura de fls. 98 (ap. B), o que é coerente com o relato trazido por J. C. de que preservou uma cópia da chave que lhe fora disponibilizada pela insolvente (a entrega à Srª. Administradora da Insolvência ocorrera alguns meses antes), bem como que foi acompanhando o imóvel após a paralisação dos trabalhos pelos colaboradores da insolvente e que diligenciou pela reparação da porta do apartamento, a qual custeou. No entanto, já se suscitam dúvidas quanto à propalada representação assumida por J. C. de que já seria proprietário do bem objecto de promessa, pois ainda não fora celebrado o contrato definitivo, dependente também da concessão de um financiamento bancário que se encontraria pré-aprovado (como explicou a testemunha J. E.) e tratava-se de um apartamento inacabado num prédio também ele por acabar (as testemunhas M. Q. e J. V. indicaram uma percentagem de realização de cerca de 62 %, apurada pelos serviços de avaliação do Banco ..., S.A., ou seja, faltava por executar um terço da obra). Consequentemente, na ausência de outros elementos probatórios que levassem a juízo distinto, e apelando ao critério consagrado no artigo 414º do C.P.C., concluiu-se de forma positiva quanto à materialidade descrita nos factos provados n.ºs 26 a 34 e negativamente quanto à factualidade relatada no facto não provado n.º 3”.

Assim, e como também está subentendido na resposta do MP a este recurso, será da análise dos factos dados como provados, e da sua subsunção ao Direito positivo, que sairá a resposta à questão que verdadeiramente os recorrentes pretendem ver apreciada, que é se ocorreu ou não a traditio da fracção. E, salvo melhor opinião, saber se o promitente-comprador se sentia já proprietário, ou se lhe foi entregue a chave para que se sentisse como tal, não tem relevo para a decisão. O que interessa para o efeito são os factos objectivos que já estão dados como provados, e que apreciaremos supra.

Concluímos pois que não existe razão para introduzir qualquer alteração na matéria de facto provada e não provada, a qual se mantém na íntegra.

B)
Entrando agora na apreciação da matéria de Direito, a primeira questão que temos para decidir é sobre se deve ser atribuído aos credores A. P., A. C., M. M. e M. B. um privilégio imobiliário especial sobre o imóvel supra identificado e apreendido para a massa insolvente.

Já vimos que a resposta do Tribunal recorrido foi afirmativa.

A argumentação pode ser resumida assim: decorre dos factos provados n.ºs 9 a 11 e 19 a 21 que os créditos reconhecidos a esses 4 trabalhadores emergem de relações jurídico-laborais estabelecidas com a insolvente, compreendendo créditos de natureza remuneratória e indemnizatória.

Dispõe o art. 333º,1,a,b do Código do Trabalho que os créditos do trabalhador, emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, gozam de privilégio mobiliário geral e de privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade.

A constituição de um privilégio imobiliário especial a favor dos créditos laborais demanda, como tem sido salientado maioritariamente pela jurisprudência (2), a existência de uma conexão, em termos funcionais, entre a actividade dos trabalhadores e a integração dos imóveis na estrutura empresarial da insolvente, e não uma conexão naturalística, ficando excluídos os imóveis que integram o património do empregador que não se encontram afectos à sua organização empresarial, mormente por se destinarem à sua fruição pessoal, por estarem afectos a outro estabelecimento, ou por constituírem o resultado da actividade desenvolvida pelo empregador (v.g. os imóveis edificados por empresas de construção civil para serem comercializados), sob pena de tratamento desigual entre trabalhadores da mesma entidade empregadora, ao arrepio do que prescreve o artigo 13.º, n.º 1, da C.R.P.

Na esteira desse entendimento jurisprudencial maioritário foi proferido o A.U.J. n.º 8/2016, o qual uniformizou a jurisprudência no sentido de “os imóveis construídos por empresa de construção civil, destinados a comercialização, estão excluídos da garantia do privilégio imobiliário especial previsto no art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003”, a qual se revela susceptível de ser convocada para a interpretação do artigo 333.º, n.º 1, al. b), do Código do Trabalho, por inexistirem diferenças de relevo na redacção desses dois preceitos.

Porém, apurou-se que enquanto decorreram os trabalhos de construção do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ..., foi utilizada pelos colaboradores da insolvente uma construção precária em madeira, para aí serem guardados materiais, máquinas, projectos, chaves e outros equipamentos necessários à realização das obras, sendo ainda utilizada essa construção em madeira para serem realizados pagamentos de salários aos trabalhadores da insolvente, mormente por M. M.. Temos, pois, que essa construção se encontrava afecta à organização empresarial da insolvente, e, nessa conformidade, deve-se considerar que os trabalhadores prestavam a sua actividade nesse local, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 333º,1,b do Código do Trabalho, independentemente de A. P., A. C. e M. B. estarem directamente ligados à actividade de construção civil propriamente dita e de M. M. possuir a categoria profissional de escriturária, não intervindo na construção do imóvel, pois impõe-se não efectuar tal distinção à luz da interpretação do normativo supra expendida.

Contra-argumenta a recorrente dizendo que “é imprudente atribuir-se privilégio imobiliário especial aos trabalhadores sobre um determinado imóvel apenas porque nele está colocado um contentor (em madeira) onde alegadamente alguns materiais de construção eram guardados, onde por vezes eram pagos os salários. Trata-se de um contentor, amovível, utilizado em várias obras, em madeira, que alegadamente estaria colocado na superfície descoberta do prédio em causa [(dizemos alegadamente porque, na verdade, não resulta da prova produzida que o contentor tivesse sido colocado no lote 1, no 2, ou na via pública (estamos perante um loteamento todo ele propriedade da insolvente)]. Carece de sentido o decidido pelo Tribunal “a quo”, sob pena de se colocar um contentor em cada prédio para comercialização, e, assim, se afastar a jurisprudência uniformizada. A existência de contentores em obras de construção civil é habitual, seja para guardar material, seja para funcionar como stand de vendas; contudo, daí a entender-se que a dita “construção precária em madeira” se encontra afecta à organização empresarial da insolvente, e, nessa medida, sobre o prédio onde a mesma se encontra colocada passará a incidir privilégio imobiliário especial dos trabalhadores é, no mínimo, bizarro.

Ora, temos de dizer que, se vingasse a interpretação feita na sentença recorrida, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência supra citado ficaria quase totalmente esvaziado de conteúdo.

Não vamos obviamente reproduzir aqui toda a argumentação, extensa e exaustiva, constante do referido Acórdão Uniformizador, porque seria repetitivo e inútil.

Não obstante, chamamos a atenção para os seguintes argumentos, que nos parecem apropriados para perceber a solução deste caso:

a) ao referir-se a imóveis nos quais o trabalhador preste a sua actividade, o sentido literal da norma parece apelar à ligação naturalística entre o imóvel do empregador e a actividade do trabalhador, ou seja, seria relevante o espaço físico onde é concretamente exercida essa actividade. Já vimos, porém, que, em geral, fora desta situação específica, não pode ser seguido esse critério, por não ser conciliável com a razão de ser da atribuição do privilégio e propiciar situações de injustificada desigualdade entre trabalhadores de uma mesma empresa.
b) cessada determinada obra, o trabalhador deixa de prestar aí as suas funções, mas continua ao serviço da empresa, vinculado pelo mesmo contrato de trabalho, mantendo uma ligação funcional estável com os demais imóveis afectos à actividade desta. Neste caso, será essa ligação funcional que releva e será sobre estes imóveis que pode incidir o privilégio imobiliário especial de que beneficiam os trabalhadores.
c) no caso da empresa que se dedica à construção civil, os imóveis por esta edificados para comercialização, enquanto não forem vendidos, integram o seu património, mas não essa organização estável de meios com vista ao exercício daquela actividade; representam antes o produto ou resultado desta. Não é nesses edifícios que o trabalhador presta a sua actividade de forma estável e permanente.
d) justifica-se assim que, no caso da empresa de construção civil, como nas empresas de qualquer outro sector, o privilégio se estenda aos imóveis que integram a organização empresarial estável a que os trabalhadores pertencem; não aos demais imóveis, que são produto da actividade da empresa, e que só de forma fugaz e temporária fazem parte desse património.

O Tribunal a quo, para não aplicar a jurisprudência uniformizada, prestou especial atenção à seguinte factualidade: enquanto decorreram os trabalhos de construção do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ..., foi utilizada pelos colaboradores da insolvente uma construção precária em madeira, para aí serem guardados materiais, máquinas, projectos, chaves e outros equipamentos necessários à realização das obras. E foi ainda utilizada essa construção em madeira para serem realizados pagamentos de salários aos trabalhadores da insolvente, mormente por M. M..

Ora, temos de convir que este argumento, pela sua singeleza, ou vale para todos os casos de edifícios em construção para serem vendidos, ou não vale para nenhum. É do conhecimento comum que, se não em todas, pelo menos na esmagadora maioria das obras de construção civil, é sempre montada no local uma construção rudimentar, de apoio, quase sempre em madeira, para servir de apoio ao pessoal, para guardar instrumentos, etc. E assiste total razão à recorrente quando afirma que se a existência destes “barracões” servisse para afastar a aplicação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, então este estaria, na prática, revogado.

Não podemos retirar semelhante significado jurídico do facto de num prédio em construção para ser vendido pelo construtor existir uma construção precária em madeira, onde são guardados materiais, máquinas, projectos, chaves e outros equipamentos necessários à realização das obras. Esse facto não é uma novidade deste caso concreto, pelo contrário é uma constante de todas as obras de construção civil da dimensão das que nos ocupam agora, pode ser incorporado dentro da lógica do acórdão uniformizador, sendo até neutro para a decisão que veio a ser adoptada, pelo que nunca poderá ser usado como um argumento para afastar a aplicabilidade dessa jurisprudência.

Assiste pois razão à recorrente, e a aplicação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do STJ nº 8/2016, de 23/2/2016 ao presente caso leva a que tenhamos de concluir que os credores A. P., A. C., M. M. e M. B. não gozam de um privilégio imobiliário especial sobre o imóvel supra identificado e apreendido para a massa insolvente.

Refira-se ainda que foi suscitada pela recorrida M. M. uma questão sobre a eventual inconstitucionalidade da norma do art. 333º,1,b do Código do Trabalho, que dispõe: “Os créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação gozam dos seguintes privilégios creditórios: a) Privilégio mobiliário geral; b) Privilégio imobiliário especial sobre bem imóvel do empregador no qual o trabalhador presta a sua actividade. 2 - A graduação dos créditos faz-se pela ordem seguinte: a) O crédito com privilégio mobiliário geral é graduado antes de crédito referido no n.º 1 do artigo 747º do Código Civil; b) O crédito com privilégio imobiliário especial é graduado antes de crédito referido no artigo 748º do Código Civil e de crédito relativo a contribuição para a segurança social.

E pretende a recorrida que a interpretação dessa norma segundo a qual o privilégio imobiliário especial em tal normativo referido não se aplica aos imóveis construídos pelas empresas de construção civil para comercialização, muito embora tenha sido consagrada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 8/2016 do STJ, é materialmente inconstitucional, por violação do artigo 59.º-3, da Constituição da República Portuguesa (CRP).

Tenha-se em vista que a norma do texto Fundamental que a recorrida crê ter sido violada com a interpretação imposta pelo Acórdão Uniformizador 8/2016 dispõe, singelamente que “os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei”.

À vista desarmada, das duas normas jurídicas citadas não vemos como se possa defender a referida inconstitucionalidade, atenta a natureza remissiva da norma Constitucional. O legislador Constitucional não disse nem definiu o teor ou o alcance dessas garantias especiais, remetendo essa tarefa para o legislador ordinário.

Por outro lado, a interpretação cuja inconstitucionalidade se quer vislumbrar não é uma interpretação qualquer. É uma interpretação de valor reforçado, consagrada num acórdão que fixa Jurisprudência obrigatória nos termos e para os efeitos dos arts. 686º e seguintes CPC.

Muito sumariamente, os principais argumentos dos quais emergiu a interpretação uniformizada, sustentada pelo voto de 24 Juízes Conselheiros contra 9, e agora sob fogo, são estes:

-“Numa primeira aproximação, pode dizer-se que a alteração introduzida pelo Código do Trabalho de 2003, consagrando um privilégio imobiliário especial, representa um indiscutível reforço da garantia conferida aos trabalhadores, que decorre, desde logo, da extensão do privilégio creditório, não apenas aos créditos salariais, mas também aos créditos decorrentes da violação do contrato ou da sua cessação; por outro lado, passou a ser inquestionável a sua sujeição ao regime do citado art. 751º, assegurando-se a prevalência do privilégio sobre direitos reais de gozo e de garantia de terceiros, ainda que estes sejam anteriores”.
-“Mas, como seria inevitável, por passar a constituir um privilégio especial, a aludida alteração provocou também uma substancial redução do objecto da garantia, por passar a abranger apenas certos e determinados imóveis do empregador e não todos os imóveis que lhe pertençam”.
-“Esta protecção tradicionalmente conferida aos créditos dos trabalhadores concretiza, desde logo, uma imposição constitucional - os salários gozam de garantia especial, nos termos da lei (art. 59º, nº 3) - traduzindo uma «discriminação positiva dos créditos salariais em relação aos demais créditos sobre os empregadores”.
-“Consubstancia uma preocupação evidente do legislador em assegurar uma protecção reforçada dos créditos salariais, tendo em conta a sua dimensão social ou alimentar e não puramente retributiva ou patrimonial, sublinhando a inerência do salário à satisfação das necessidades pessoais e familiares do trabalhador”.
-“A interpretação da norma do art. 377º, nº 1, al. b), do Código do Trabalho de 2003, no que respeita ao âmbito de incidência do privilégio imobiliário especial aí previsto - bens imóveis do empregador nos quais o trabalhador preste a sua actividade -, não tem sido pacífica: que imóveis são abrangidos pelo privilégio? Todos os imóveis afectos à actividade do empregador? Apenas aqueles imóveis em que o trabalhador tenha exercido efectivamente a sua actividade?”
-“O sector da construção civil levanta um problema suplementar específico, que é o de saber se os imóveis construídos para venda, no âmbito da actividade da empresa, são igualmente abrangidos pelo privilégio imobiliário.
-“No caso da empresa que se dedica à construção civil, os imóveis por esta edificados para comercialização, enquanto não forem vendidos, integram o seu património, mas não essa organização estável de meios com vista ao exercício daquela actividade; representam antes o produto ou resultado desta. Não é nesses edifícios que o trabalhador presta a sua actividade de forma estável e permanente”.
-“A protecção que é devida aos créditos salariais não impõe que, na situação em apreço, o privilégio especial incida também sobre os imóveis construídos para venda. Com efeito, mesmo com essa exclusão, os trabalhadores das empresas de construção civil continuam a beneficiar, quanto a imóveis, de tutela idêntica à dos demais trabalhadores das empresas de outros sectores da actividade económica - privilégio sobre os imóveis afectos à actividade empresarial - e, bem assim, do referido privilégio mobiliário geral e dos meios alternativos de protecção da retribuição legalmente instituídos”.
-“Conclui-se, assim, que a protecção dos créditos salariais não exige que o privilégio se estenda aos aludidos imóveis, construídos para venda, não justificando, neste caso, o sacrifício dos referidos direitos dos terceiros e a quebra das suas expectativas assentes no registo”.

Assim, de tudo quanto fica exposto, concluímos que a interpretação obrigatória fixada pelo Acórdão supra citado não padece da inconstitucionalidade que a recorrida lhe quer assacar. Isto porque a Constituição, como já vimos, não impôs no art. 59º,3 sempre e em qualquer circunstância a interpretação que mais favoreça o trabalhador. Impôs, antes, ao legislador ordinário, a obrigação de dotar os créditos salariais de garantias especiais. O que este cumpriu, como ficou abundantemente exposto supra, com a atribuição pelo Código do Trabalho de 2003 de um privilégio imobiliário especial.

Por definição, o privilégio imobiliário especial não pode recair sobre a universalidade dos imóveis propriedade do Empregador, mas só sobre imóveis concretos e determinados.

O que, só por si, retira a interpretação FIXADA do terreno da violação da Constituição, onde a quiseram colocar, e coloca-a inteiramente no terreno da pura interpretação de normas jurídicas, em busca da solução mais justa.

Qual seja a solução mais justa, foi o que o Supremo Tribunal de Justiça disse, por clara maioria, uniformizando a jurisprudência.

Falece assim mais esta questão trazida pela recorrida M. M..

C
A última questão a decidir é saber se existe um direito de retenção na esfera jurídica dos credores J. C. e A. M..

Recordemos que a sentença recorrida considerou que não se podia reconhecer a J. C. e A. M. a titularidade de um direito de retenção, por não terem beneficiado da “traditio rei”, pelo que o seu direito de crédito será de qualificar como comum (cfr. artigo 47º,4,c do C.I.R.E.) por ausência de verificação de um dos pressupostos exigidos pela jurisprudência uniformizada através do A.U.J. n.º 4/2014 (v.g. a tradição da coisa objecto do contrato-promessa).

Os recorrentes J. C. e mulher A. M., credores reclamantes, contra-argumentam que devia ter sido considerado provado que “a chave do apartamento foi entregue a J. C. para que este se sentisse seguro de que a fracção autónoma era sua, apesar de não se ter realizado a escritura pública de compra e venda, passando aquele a referir-se como proprietário do apartamento".

Já vimos que este facto foi, e bem, julgado não provado.

Mas isso não impede a apreciação da questão suscitada, que é saber se os recorrentes, com base nos factos provados, beneficiam de um direito de retenção sobre a fracção.

Vamos começar por traçar uma breve noção desta figura jurídica.

O direito de retenção está consagrado no art. 754º CC nos seguintes termos: “o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”.

Esta é definição básica da figura em causa. Tem na base uma certa ideia de autotutela, de forçar o devedor a solver a obrigação através da retenção de uma coisa que lhe deveria ser entregue pelo seu credor. E a lei exige que exista uma relação estreita entre a coisa retida e o crédito que se pretende garantir.

Mas interessa-nos agora um dos casos especiais previstos no art. 755º,1,f CC: gozam ainda do direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442º”.

Vê-se pois que o direito de retenção consiste na faculdade de o detentor de uma coisa móvel ou imóvel não a entregar a quem lha pode exigir, enquanto não cumprir a obrigação a que está adstrito para com o seu titular. É um direito que resulta directamente da lei e não de negócio jurídico, e não está sujeito a registo (A. Santos Justo, Direitos Reais, fls. 505 e seguintes).

A norma do art. 755º,1, f CC, introduzida pelo DL 236/80 de 18/7 foi, como é por demais sabido, fortemente criticada pela Doutrina. Vamos dar a palavra ao Prof. Antunes Varela (3), um dos autores que com mais contundência e com a clareza que o caracteriza apontou as falhas ao texto legal:

“a terceira das inovações introduzidas pelo DL 236/80 de 18 de Julho, no regime do sinal (ligado ao contrato-promessa), foi a concessão ao promitente-comprador, nos termos do novo preceito incluído no nº 3 do art. 442º do Código Civil, de um direito de retenção sobre a coisa objecto do contrato prometido (que lhe tivesse sido entregue), como garantia do crédito resultante do não cumprimento do contrato pelo promitente-vendedor. (…) Apesar de a occasio legis da modificação legislativa ter sido a fácil e frequente frustração das expectativas do promitente-comprador do imóvel destinado a habitação própria, certo é que o texto da lei (art. 442º, nº 3) se estendia indiscriminadamente a todos os casos de contrato-promessa de compra e venda, fosse qual fosse o seu objecto, contanto que tivesse havido tradição da coisa objecto do contrato, abrangendo por conseguinte tanto a promessa bilateral de venda de imóveis, como de venda de móveis, e no âmbito da promessa de imóveis, sem nenhuma distinção entre a promessa de venda de imóveis para habitação própria e as promessas de venda adstritas a qualquer outro fim”.

E, mais adiante (fls. 129): “quanto ao direito de retenção, o Decreto-Lei nº 379/86 manteve a sua atribuição ao promitente-comprador nos termos em que o consagrou o diploma de 1980 mas deslocando a sede da solução. Eliminou-se o texto do nº 3 incorporado pelo Decreto-Lei nº 236/80 na disposição do artigo 442º, mas incluiu-se, em contrapartida, uma nova alínea (a alínea f) no nº 1 do art. 755º do Código Civil, destinada a fixar, no lugar sistemático mais adequado, o direito de garantia concedido ao beneficiário das promessa de transmissão ou constituição de direito real (…). A verdade é que o direito de retenção, com os caracteres de verdadeiro direito real de garantia privilegiado (cfr. art. 759º, nº 2 do Cód. citado) se pode justificar nos casos excepcionais a que se referem o artigo 755º (em termos específicos) e o artigo 754º (em termos genéricos), atenta a origem e o pequeno montante da generalidade dos créditos garantidos. Mas não tem a menor justificação (sobretudo com a exagerada amplitude que lhe foi atribuída, abrangendo a promessa de alienação ou oneração de bens imóveis ou móveis, seja qual for a afectação negocial de uns e outros), como oportunamente se salientou, em relação ao promitente-comprador. Note-se que o direito de retenção prodigamente atribuído ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real, com base na tradição da coisa objecto do contrato prometido (4), acaba por revestir, na prática, uma eficácia superior àquela de que goza a promessa com eficácia real -o que não deixa de ser profundamente chocante, sobretudo quando, havendo conflito entre os dois promissários, a tradição da coisa feita a um tenha sido posterior ao registo da promessa com eficácia real a favor do outro”.

Ora, atenta a definição da figura do direito de retenção tal como resulta da lei, a única questão que se coloca aqui é saber se se verificou tradição da coisa a favor dos credores recorrentes.

Explicando esta figura, escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 755º, com a redacção dada pelo DL 379/86 de 11/11: “O DL nº 236/80, de 18 de Julho, com o objectivo expresso no respectivo preâmbulo, de reforçar a posição jurídica do promitente-comprador, especialmente no campo das transacções de imóveis urbanos para habitação, conferiu-lhe, no caso de incumprimento do contrato-promessa imputável à contraparte, em alternativa ao direito de reclamar o dobro do sinal, o direito de exigir o valor da coisa, objecto do contrato prometido, à data do incumprimento, sempre que essa coisa lhe haja sido antecipadamente entregue e se encontre, portanto, em seu poder”.

Basta esta explicação para se perceber o que significa o requisito “traditio” da coisa. O significado é claro, quando se trata de bens móveis: aí, existe tradição quando a coisa foi entregue, materialmente ao retentor, e está na sua posse. Não há discussão possível, pois para poder reter a coisa, e optar por não a entregar, naturalmente a coisa tem que estar na sua esfera de influência, e subtraída à esfera de influência do proprietário, ou de quem tem o direito a exigir a sua entrega. Transpondo esta mesma noção para os bens imóveis, pense-se num apartamento, como é o caso dos autos, a tradição da coisa é feita de forma simbólica, mediante a entrega das chaves. Mas tem de ser uma traditio que retire o bem imóvel da disponibilidade do empreiteiro, e o coloque na exclusiva disponibilidade do promitente-comprador. Pois só assim é que faz sentido o conceito de o reter e não o entregar.

A situação que temos perante nós é diversa.

Provou-se que os recorrentes J. C. e A. M. não residem no apartamento sito no 1º andar do edifício implantado no prédio descrito sob o n.º ..., aí não fazem refeições, aí não dormem e aí não têm o seu domicílio fiscal. Provou-se ainda que esse edifício se encontra inacabado e não dispõe de licença de habitabilidade.

Sabemos igualmente que os recorrentes são promitentes-compradores dessa fracção, pois por contrato celebrado em 29/02/2012, prometeram adquirir “um apartamento tipo T3 e garagem, que se irão situar respectivamente, no 1.º andar do edifício edificado no lote 1, do Loteamento da Quinta das …, descrito na Conservatória sob o número ... (…) devolutos de pessoas e bens, completamente concluídos e em condições de imediata habitabilidade”, mediante o pagamento do preço global de € 115.000,00, entregando na data da outorga do contrato o montante de € 30.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento, ficando o remanescente por liquidar na data da outorga do contrato definitivo.

Mais sabemos que o recorrente J. C. foi acompanhando a evolução dos trabalhos no apartamento sito no 1.º andar desse edifício, o qual se encontrava em fase de realização de obras interiores, e escolheram a cor e o revestimento do chão do apartamento, bem como os azulejos da casa de banho e da cozinha. Mais se sabe que em data não concretamente apurada, mas posterior à colocação de portas e janelas, o gerente da insolvente entregou uma chave da porta desse apartamento a J. C., não obstante aí prosseguirem os trabalhos de acabamentos interiores. E em 15/05/2014 J. C. entregou um exemplar dessa chave à Srª. Administradora da Insolvência, mas ficou com uma cópia da mesma chave, continuando a deslocar-se ao apartamento para ver o seu estado de conservação. E que em 15/12/2014 participou à P.S.P. a ocorrência de uma intrusão ilícita no apartamento, tendo custeado as despesas de reparação da porta do apartamento, no montante de € 61,50. Finalmente, sabemos que a chave entregue pelo gerente da insolvente a J. C. era provisória, carecendo de ser substituída quando viesse a ser concluída a construção do edifício.

Perante estes factos, temos por seguro que não existiu verdadeira tradição do imóvel: é verdade que o gerente da insolvente entregou uma chave ao recorrente, mas fê-lo ainda antes de o mesmo estar concluído. O que significa, necessariamente, que os recorrentes tinham uma chave (provisória, como vimos), a empresa insolvente tinha uma chave, e os trabalhadores desta tinham uma chave, para continuar e ultimar os trabalhos de acabamentos da fracção. Não existe pois aquela situação de domínio exclusivo, que permite excluir quaisquer outros, e optar por reter a coisa. Podemos perguntar: como é que A pode reter um apartamento de B, se B também tem a chave do mesmo ?

E como se afirma na sentença recorrida, citando Júlio Gomes, “(…) o direito de retenção apresenta como pressuposto para o seu exercício (…) a existência de uma detenção lícita de uma coisa (…) a detenção deve, contudo, implicar que o credor detentor tem o controlo de facto da coisa (directamente ou através de um «representante»), excluindo o devedor desse controlo material da coisa, mas tal pressuposto não se verifica quanto aos indicados credores. Na realidade, não podemos desconsiderar que o apartamento estava inacabado, num prédio também ele por acabar, que não goza de licença de habitabilidade e não apresenta constituída a propriedade horizontal, pelo que seria forçoso que o construtor do edifício continuasse a fruir do apartamento para prosseguir com as obras, o que evidencia que J. C. e A. M. não gozavam em exclusivo da coisa, onde aliás nunca residiram. Em paralelo, a entrega da chave revela-se pouco relevante, pois esta apresenta-se provisória, carecendo de ser substituída quando viesse a ser concluída a construção do edifício pela insolvente, o mesmo se devendo dizer da escolha dos materiais a colocar no apartamento, pois este continuou a ser detido pela insolvente, sendo certo que também não se apurou que tivessem sido os promitentes compradores quem suportou a aquisição directa desses materiais”.

E se quisermos olhar para a questão do ponto de vista da percepção dos promitentes-compradores, considerando o facto alegado (que não provado) de eles se sentirem proprietários da fracção, mesmo aí veremos que não lhes assiste razão, pois ficou provado que o preço do imóvel era de € 115.000,00, e eles apenas entregaram à vendedora, na data da outorga do contrato, o montante de € 30.000,00, a título de sinal e princípio de pagamento, ficando o remanescente por liquidar na data da outorga do contrato definitivo. Um promitente-comprador que apenas desembolsou cerca de ¼ do valor do preço acordado, por definição, não se sente proprietário.

Em conclusão, falece razão aos recorrentes.

Fazendo a síntese de tudo o que foi dito, a sentença recorrida mantém-se, com excepção da graduação dos créditos dos credores A. P., A. C., M. M. e M. B., que não beneficiam do referido privilégio imobiliário especial que lhes fora reconhecido. Gozam apenas, de acordo com o disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 333.º do Código do Trabalho, de privilégio mobiliário geral.

V- DECISÃO

Por todo o exposto, este Tribunal da Relação de Guimarães decide JULGAR IMPROCEDENTE o recurso interposto por J. C. e mulher A. M., e JULGAR PROCEDENTE o recurso interposto pelo Banco ..., SA, e em consequência declarar que os créditos laborais de que são titulares A. P., A. C., M. M. e M. B. não beneficiam do referido privilégio imobiliário especial que lhes fora reconhecido, sendo a graduação final a seguinte:

a) Quanto aos veículos tributáveis que venham a ser apreendidos graduam-se em primeiro lugar os indicados créditos da Fazenda Pública, referentes ao I.U.C. em dívida, seguidos dos créditos de que são titulares A. P., A. C., M. M. e M. B., seguindo-se os mencionados créditos reconhecidos à Fazenda Pública a título de I.V.A. e I.R.S, seguindo-se 1/4 do crédito da credora I. G. & C.ª, Lda., ao qual se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;
b) No que respeita aos demais bens móveis que venham a ser apreendidos, graduam-se em primeiro lugar os créditos de que são titulares A. P., A. C., M. M. e M. B., seguindo-se os indicados créditos reconhecidos à Fazenda Pública a título de I.V.A. e I.R.S., seguindo-se 1/4 do crédito da credora I. G. & C.ª, Lda., ao qual se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;
c) Quanto ao prédio urbano sito na freguesia de ..., concelho de W, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ... e inscrito na matriz predial sob o artigo ....º, deverá ser pago em primeiro lugar o crédito garantido do Banco ..., S.A., seguido dos indicados créditos reconhecidos à Fazenda Pública a título de I.V.A. e I.R.S., aos quais se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;
d) Quanto aos imóveis identificados no facto provado n.º 4, sob as verbas n.ºs 2 a 8 e 17 a 20, deverá ser pago em primeiro lugar o crédito garantido do Banco ..., S.A., seguido dos indicados créditos reconhecidos à Fazenda Pública a título de I.V.A. e I.R.S., aos quais se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;
e) Quanto aos imóveis identificados no facto provado n.º 4, sob as verbas n.ºs 9 a 11, deverão ser pagos em primeiro lugar os créditos da Fazenda Nacional a título de I.M.I. relacionados no facto provado n.º 8, seguidos dos aludidos créditos reconhecidos a essa entidade a título de I.V.A. e I.R.S., aos quais se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;
f) Quanto aos imóveis identificados no facto provado n.º 4, sob as verbas n.ºs 12 a 15, deverão ser pagos em primeiro lugar os créditos da Fazenda Nacional a título de I.M.I. relacionados no facto provado n.º 8, seguindo-se o crédito garantido do Banco ..., S.A., seguido dos aludidos créditos reconhecidos à Fazenda Pública a título de I.V.A. e I.R.S., aos quais se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;
g) No que se refere aos demais bens imóveis, graduam-se em primeiro lugar os aludidos créditos reconhecidos à Fazenda Pública a título de I.V.A. e I.R.S., aos quais se seguem os créditos comuns e, por último, os créditos subordinados;

Custas pelos recorrentes J. C. e A. M., e pelos recorridos A. P., A. C., M. M. (art. 527º,1,2 CPC).

Data: 10/7/2019

Relator­ (Afonso Cabral de Andrade)
1º Adjunto (Alcides Rodrigues)
2º Adjunto (Joaquim Luís Espinheira Baltar)

1. Nessa peça, como já referimos, não foram formuladas conclusões, ao arrepio da obrigação imposta pelo art. 639º CPC, que, sendo essencialmente dirigida ao recorrente, por razões óbvias, se deve entender que estende os seus efeitos às contra-alegações quando nestas sejam suscitadas questões novas, não incluídas ainda no objecto do recurso, como sucede quando o recorrido lança mão do disposto no art. 636º CPC.
2. Como se dá nota na fundamentação do A.U.J. n.º 8/2016, publicado no D.R.-I, de 15/04/2016, identificando os arestos onde tal solução foi preconizada.
3. Sobre o contrato-promessa, 2ª edição, fls. 106.
4. Destaque nosso.