Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
952/12.8TBEPS-AJ.G1
Relator: MARIA EUGÉNIA PEDRO
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR JUDICIAL
PRESTAÇÃO DE CONTAS DO ADMINISTRADOR
HABILITAÇÃO DE HERDEIROS DO FALECIDO ADMINISTRADOR JUDICIAL
INDEFERIMENTO DO REQUERIMENTO DE INCIDENTE DE HABILITAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (Elaborado pela Relatora, conforme art. 663º, nº7 do CPC)

I. Falecendo o administrador da insolvência na pendência do recurso da sentença proferida no apenso de prestação de contas há lugar à habilitação dos respectivos herdeiros enquanto sucessores daquele nas relações jurídicas de carácter patrimonial inerentes ao cargo.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. Relatório

Nestes autos de insolvência da sociedade C.-Investimentos Imobiliários, Lda. aquando na sentença de declaração da insolvência em 8.1.2013 foi nomeado administrador judicial o Sr. Dr. AA que aceitou o cargo e exerceu as respectivas funções.
*
Em 18.3.2021, o administrador judicial apresentou as contas do exercício do seu cargo, nos termos do art. 62º do CIRE.
As contas apresentadas tiveram o parecer negativo do Ministério Público.

E foram julgadas por sentença de 30.6.2021, com o seguinte teor:

Veio o Senhor Administrador de Insolvência apresentar as respectivas contas. Efectuadas as legais notificações, não foi deduzida qualquer reclamação.
O Ministério Público teve vista do processo, e opinou no sentido de serem julgadas tendencialmente boas as contas apresentadas, opondo-se à aprovação das despesas de honorários com mandatários forenses, no valor global de 50.427,33€.
Compulsados os autos, constata-se que o Sr. AI constituiu mandatários forenses para intentar ações judiciais várias, todas a final julgadas improcedentes, reclamando o reembolso de despesas de honorários com tais patrocínios forenses no valor global de 50.427,33€ (quando o valor total das receitas realizadas é de 13.935,00€).
Não se percebe porque foi pedido apoio judiciário apenas na modalidade de dispensa de taxa de justiça de demais encargos com o processo e não também na modalidade de nomeação de patrono.
Com tal conduta, produz-se grave prejuízo do erário público, mais precisamente no valor de 43.203,97€ (receitas de 13.935,00€ totalmente absorvidas pelas despesas que relacionou no valor de 54.878,97€ acrescidas, obviamente, da sua remuneração fixa a que tem direito no valor de 2.000,00€+Iv À taxa de 23%).
Como bem se refere na douta promoção que antecede, mandava a prudência ao Ex.mo AI que tivesse recorrido ao apoio judiciário também na modalidade de nomeação de patrono para intentar as ações que entendia dever intentar, o que, por certo lhe teria sido concedido (como o foi na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo).
Neste contexto, consideramos as despesas realizadas pelo Ex.mo AI com ilustres mandatários forenses como injustificadas.
Deste modo, na senda do doutamente promovido pelo Ministério Público, julgo boas, com as aludidas excepções, as contas apresentadas pelo Ilustre Adm. de Insolvência.
Custas pela massa.
Registe e notifique.”
*
Inconformado, o administrador judicial interpôs recurso desta sentença, que foi admitido e subiu em separado, correspondendo ao Apenso AI.
*
Nesse apenso de recurso foi em 18.10.2021, preferido o seguinte despacho:

Baixem os autos para fixação do valor, nos termos do art. 306º do CPC que subirão após trânsito e suplementação da taxa de justiça se for caso disso.”
*
Remetidos os autos de recurso à 1ª Instância, em 15.11.2021, foi proferido despacho que fixou o valor da acção em € 13.935,00, sendo os autos remetidos de novo a esta Relação em 30.11.2021.
*
Entrementes, em 22/10/2021, no processo principal, havia sido comunicada a morte, ocorrida em 14/10/2021, do administrador judicial, Dr. AA, e em 3/11/2021, foi proferido despacho a nomear, em sua substituição, como administradora Judicial a Drª BB.
*
Nos autos de recurso (Apenso AI) nesta Relação foi em 3.12.2021, proferido o seguinte despacho:

“Baixem os autos de novo para o cumprimento integral do nosso despacho de 18.10.2021 e o mais que resultar deste despacho, porquanto:
do despacho em que se fixou o valor não se mostram notificados os mais diversos intervenientes processuais que foram por sua vez notificados nomeadamente do despacho recorrido, inclusivamente o MºPº, que até contra-alegou;
dele foi notificada a ilustre advogada signatária do recurso, inclusivamente sendo que nem ainda decorreu o prazo de trânsito relativamente à mesma e não se atentou que no recurso se protestou juntar procuração, pelo que, seria necessário suprir a falta de mandato, considerando o disposto no artº 48º do CPC;
para além disto, essa sanação estava dependente da circunstância de ter falecido o recorrente e da necessidade dos respetivos herdeiros (cfr requerimento de 22.10.2021) requerem a sua habilitação nos termos dos artºs 351º e 353º, máxime nº 1, do CPC, o que para todos os efeitos ainda não ocorreu e assim sendo, tudo sem prejuízo do disposto no artº 269º, nº 1, alª a), 270º, nº 1 do CPC. “
*
Em cumprimento deste despacho, os autos de recurso (apenso AI) foram remetidos à 1ª Instância e, em 7.12.2021, foi notificada a Drª CC, mandatária do falecido Administrador Judicial do teor do antecedente despacho e para os efeitos do disposto no art. 351º e 353º CPCivil.
*
Em 19.1.2022, DD, viúva do falecido administrador judicial, requereu a habilitação dos herdeiros deste, apresentando a respectiva escritura de habilitação notarial, para em seu lugar prosseguirem os termos do processo, tendo tal requerimento sido autuado por apenso (Apenso AJ).

Seguindo tal incidente os seus termos, em 20.6.2022, foi proferida a seguinte

Decisão
“Dispõe o art.º 351 Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Quando tem lugar a habilitação - Quem a pode promover” que:
1 - A habilitação dos sucessores da parte falecida na pendência da causa, para com eles prosseguirem os termos da demanda, pode ser promovida tanto por qualquer das partes que sobreviverem como por qualquer dos sucessores e deve ser promovida contra as partes sobrevivas e contra os sucessores do falecido que não forem requerentes.
2 - Se, em consequência das diligências para citação do réu, resultar certificado o falecimento deste, pode requerer-se a habilitação dos seus sucessores, em conformidade com o que neste capítulo se dispõe, ainda que o óbito seja anterior à proposição da ação.
3 - Se o autor falecer depois de ter conferido mandato para a proposição da ação e antes de esta ter sido instaurada, pode promover-se a habilitação dos seus sucessores quando se verifique algum dos casos excecionais em que o mandato é suscetível de ser exercido depois da morte do constituinte.
Ora, no caso em análise, é requerente do presente apenso de habilitação DD, esposa do falecido Administrador de insolvência, AA, pedindo a sua habitação e a dos seus filhos, para prosseguirem os termos do processo.
Acontece que o Administrador Judicial não se trata de uma parte processual “per se”, mas antes um órgão da insolvência, definido pelo CIRE nos seus artigos 52 a 66.
Tal órgão é nomeado pelo Juiz, e por ele pode ser destituído ou substituído.
Quer isto dizer que o seu papel no processo é de coadjuvação do tribunal nas suas várias competências, mas nunca se pode confundir com uma parte, pois nela não tem interesse próprio.
As razões aduzidas pela requerente para pretender a sua habilitação não podem colher, pois que a decisão tomada no apenso de prestação de contas não é o objecto do processo em si, mas uma decisão lateral, que poderia ser apreciada por tribunal superior, por requerimento autónomo, sem recurso a habilitação.
Assim, e porque nem a requerente nem o finado Administrador de Insolvência se revestem da qualidade de parte nos presentes autos, indefiro o requerido incidente de habilitação.
Custas pela habilitante.”
*
É desta decisão que irresignada recorre a requerente e cabeça de casal DD, terminando as suas alegações com as seguintes
CONCLUSÕES (transcrição)

A. Vem o presente recurso interposto da Douta sentença proferida pelo Meritíssimo Tribunal “a quo”, a qual julgou improcedente o incidente de Habilitação de Herdeiros à margem referenciado, por entender que o Administrador da Insolvência não se trata de uma parte processual “per se”, mas antes de um órgão da insolvência, que não tem interesses próprios.
B. Salvo o devido respeito, a Apelante não pode concordar com os fundamentos de facto e de direito que sustentam a douta sentença proferida, considerando que a mesma, desde logo, se mostra inquinada, fazendo uma desadequada subsunção jurídica dos factos.

- DOS FACTOS:
C. Em 18/03/2021 o Exmo. Sr. Administrador da Insolvência Dr. AA, ora falecido, apresentou por apenso aos autos principais de insolvência, requerimento inicial de prestação de contas.
D. Apenso esse, ao qual foram atribuídas as letras AH.
E. No âmbito das referidas prestações de contas, foram apresentadas pelo Exmo. Sr. Administrador da insolvência despesas com o mandato forense do Advogado da Massa Insolvente, e no montante de Euro 50.427,33 (iva incluído).
F. Após a prestação das referidas contas, o digníssimo representante do Ministério Público veio, em 28.04.2021, proferir a douta promoção, que aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais.
G. Em resposta à referida douta promoção, veio o aqui Apelante, por requerimento datado de 24/05/2021, apresentar a resposta que aqui se dá por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais.
H. Em prol da resposta apresentada pelo Dr. AA, veio o digníssimo Ministério Público, em 27/06/2021, proferir a sua douta promoção, a qual se dá aqui por integralmente reproduzida e para os devidos efeitos legais.
I. Após análise do supra exposto, veio o Meritíssimo Tribunal “a quo” pronunciar-se, proferindo douta decisão que aqui se dá por integralmente reproduzida e para os devidos efeitos legais.
J. Verifica-se que o Exmo. Sr. Administrador da Insolvência, pagou as despesas e honorários do Mandato forense ao Advogado da Massa insolvente, com dinheiro da sua própria atividade, conforme recibos juntos aos autos.
K. Motivo pelo qual, nas contas que prestou, reclamou o reembolso, a título de despesas da Massa Insolvente, dos valores pagos ao Mandatário da Massa Insolvência.
L. Contas essas que foram parcialmente aprovadas, com exceção das referentes a tal Mandato.
M. O Exmo. Sr. Administrador da Insolvência não se conformando com a douta decisão proferida, interpôs recurso, para este Venerando Tribunal “ad quem”, sendo que na pendência do mesmo, o Dr. AA, malogradamente, faleceu.
N. Pelo que este Venerando Tribunal “ad quem” por douto despacho, proferido em 03/12/2021, ordenou o seguinte:
“Baixem os autos de novo para o cumprimento integral do nosso despacho de 18.10.2021 e o mais que resultar deste despacho, porquanto: do despacho em que se fixou o valor não se mostram notificados os mais diversos intervenientes processuais que foram por sua vez notificados nomeadamente do despacho recorrido, inclusivamente o MºPº, que até contra-alegou; dele foi notificada a ilustre advogada signatária do recurso, inclusivamente sendo que nem ainda decorreu o prazo de trânsito relativamente à mesma e não se atentou que no recurso se protestou juntar procuração, pelo que, seria necessário suprir a falta de mandato, considerando o disposto no artº 48º do CPC; para além disto, essa sanação estava dependente da circunstância de ter falecido o recorrente e da necessidade dos respetivos herdeiros (cfr. requerimento de 22.10.2021) requerem a sua habilitação nos termos dos artºs 351º e 353º, máxime nº 1, do CPC, o que para todos os efeitos ainda não ocorreu e assi sendo, tudo sem prejuízo do disposto no artº 269º, nº 1, alª a), 270º, nº 1 do CPC.
Notifique.”
O. Em face do alegado despacho, e em seu cumprimento, a aqui Requerente deduziu o presente incidente de habilitação, requerendo a intervenção dos herdeiros nos autos de insolvência e por forma a poder prosseguir com a aludida instância recursiva (no âmbito das prestações de contas).
P. Não obstante, o incidente de habilitação de herdeiros foi indeferido, dando origem ao presente recurso de apelação.

II - DO OBJECTO DO RECURSO:

Q. Entende o Meritíssimo Tribunal “a quo” que o Administrador Judicial é um órgão da insolvência, nomeado pelo Juiz, e que só pelo mesmo poderá ser nomeado ou substituído não sendo, desse modo, parte nos autos de insolvência, e por forma a que a aqui Apelante se possa habilitar no lugar daquele, ainda que para prosseguir com o respetivo apenso de prestação de contas.
R. Decisão com a qual a Apelante não se conforma.
S. De acordo com o EAJ (Estatuto do Administrador Judicial aprovado pela Lei 22/2013 e alvo já de duas alterações introduzidas pela Lei 17/2017 e 52/2019) o Administrador Judicial, denominado Administrador da Insolvência quando nessa qualidade exerce funções, é um servidor da justiça e do direito devendo atuar com absoluta independência e isenção, estando-lhe vedada a prática de atos que para seu benefício ou de terceiros possam pôr em crise consoante os casos, “a recuperação do devedor, ou, não sendo esta viável, a sua liquidação, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhes sejam confiados.” – vide artigo 12º nºs 1 e 2.
T. Pelo exercício destas funções tem o Administrador Judicial direito a ser remunerado, bem como tem direito a ser reembolsado das “despesas necessárias ao cumprimento das mesmas” – conforme art.º 22º do atual EAJ.
U. Nos termos do disposto no artigo 26º nº 6 da Lei 32/2004 todas as despesas efetuadas pelo Administrador da Insolvência têm de ser justificadas em sede de prestação de contas, estando então sujeitas ao crivo da utilidade e indispensabilidade por referência aos atos que o exercício das funções no processo concreto demandaram.
V. Foram precisamente estas últimas despesas que o Administrador da Insolvência pagou ao Mandatário da Massa insolvente e que pretende que lhe sejam reembolsadas pelo erário público.
W. Com a morte do Administrador da insolvência, verificou-se um vazio no lado ativo da demanda, o qual a Apelante tentou colmatar, de acordo com o douto despacho proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, e mediante a apresentação do incidente de habilitação de herdeiros.
X. Pois, atente-se que o que aqui está em causa, além do resultado das prestação de contas (já prestadas), e que competiam sempre ao Administrador da insolvência cessante ou a quem o Tribunal viesse a entender nomear para o substituir, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts.º 62.º n.º 1 e 63.º do CIRE, é aferir da validade das despesas realizadas e pagas pelo Dr. AA.
Y. Despesas essas, que no caso concreto, só este tem direito a ser reembolsado pelas mesmas, e no caso em concreto, quem o possa legalmente substituir - os seus herdeiros, conforme CIRE art. 60.º.
Z. Motivo pelo qual têm os herdeiros do falecido Administrador da insolvência todo o interesse no incidente de habilitação de herdeiros por si instaurado, e o direito de o substituir na tutela dos seus interesses, e por forma a garantir que o recurso possa prosseguir a sua normal tramitação.
AA. Atente-se que no referido incidente, o Administrador da insolvência atua como órgão da insolvência, mas também como parte, e na medida a que tem direito a ser reembolsado pelas despesas que suportou no exercício da referida atividade profissional, e é nessa específica medida que os herdeiros têm o direito de o substituir.
BB. Aliás atente-se que o referido recurso visa apenas e tão só esse escopo (ver reconhecidas as referidas despesas e, consequentemente, o reembolso do montante que despendeu com as mesmas).
CC. Caso assim não se entenda, poderá dar-se o caso, de a Administradora nomeada nestes autos de insolvência, e a quem poderá ser facultada legitimidade para prosseguir com o recurso interposto, vir a entender desistir do mesmo.
DD. Ora, neste caso, ficariam os herdeiros totalmente desprovidos do direito de crédito que o Dr. AA pretendia ver-lhe reconhecido, e mais grave do que isso, sem qualquer direito que pudessem exercer para o tutelar.
EE. Assim sendo, mal andou o Meritíssimo Tribunal “a quo” ao indeferir o incidente de habilitação de herdeiros apresentado, mostrando-se, desse modo, a douta sentença proferida inquinada, por ter violado o disposto nos arts.º 60.º e 62.º do CIRE e art.º 351.º do Cód. Civil.
FF. Motivo pelo qual deverá a mesma ser revogada e substituída por outra que julgue a Apelante habilitada nos presentes autos.
TERMOS EM QUE DEVERÁ SER CONCEDIDO INTEGRAL PROVIMENTO AO RECURSO
INTERPOSTO, E REVOGADA A DOUTA SENTENÇA PROFERIDA, NOS TERMOS SUPRA EXPENDIDOS, ASSIM SE FAZENDO, TÃO SOMENTE, A HABITUAL E SÃ
JUSTIÇA.
*
Não houve contra-alegações.
*
O recurso foi admitido, a subir imediatamente, os próprios autos do apenso e com efeito meramente devolutivo, o que foi mantido.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. Delimitação do objecto do recurso

Das disposições legais conjugadas dos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (doravante C.P.C.) decorre que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se é legalmente admissível a habilitação dos herdeiros do falecido administrador judicial para em seu lugar prosseguirem a instância recursiva (Apenso AH) da sentença relativa à prestação de contas.

III. Fundamentação de facto

As incidências fáctico-processuais a considerar são as elencadas no antecedente relatório.

IV. Fundamentação de direito

Como vimos, na decisão impugnada indeferiu-se habilitação dos herdeiros do administrador judicial com o fundamento do mesmo não ser parte processual “per se”, mas antes um órgão da insolvência, cujo papel é de coadjuvação do tribunal nas suas várias competências, não se podendo confundir com uma parte.
É verdade que o administrador da judicial é um órgão da insolvência que é nomeado, destituído ou substituído pelo juiz e o exercício das suas funções encontra-se regulado nos artigos 52º a 66º do CIRE e também no respectivo Estatuto aprovado pela Lei 22/2013 de 26 de Fevereiro, com alterações introduzidas pela lei 17/2017 de 16.6, pelo D.L.52/20929 de 17.4 e pela Lei 9/2022 de 11.1 (doravante EAJ.
E como órgão da insolvência que coadjuva o tribunal, desempenhando várias funções, está dotado de um conjunto de direitos e deveres.
De acordo com o art. 12º do EAJ os administradores judiciais devem, no exercício das suas funções e fora delas, considerar-se servidores da justiça e do direito e, como tal, mostrar-se dignos da honra e das responsabilidades que lhes são inerentes, e por essa razão não se permite o acesso à atividade de pessoa considerada não idónea (cfr. art.º 5º do EAJ), devendo também, no exercício das suas funções, atuar com absoluta independência e isenção, estando-lhes vedada a prática de quaisquer atos que, para seu benefício ou de terceiros, possam pôr em crise, consoante os casos, a recuperação do devedor, ou, não sendo esta viável, a sua liquidação, devendo orientar sempre a sua conduta para a maximização da satisfação dos interesses dos credores em cada um dos processos que lhes sejam confiados, e conforme o art. 4º do EAJ devem invocar incompatibilidades, impedimentos e suspeições, quando se verifiquem, e só devem aceitar as nomeações efetuadas pelo juiz caso disponham dos meios necessários para o efetivo acompanhamento dos processos em que são nomeados, sendo que o incumprimento dos seus deveres pode dar lugar a responsabilidade civil disciplinar, contraordenacional e (cfr. art. 59º do CIRE e arts 12º e17º a 20º do EAJ).
Pelo exercício das suas funções, nos termos do art. 60º do CIRE, o administrador da insolvência tem direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.
Findas tais funções, se antes tal não lhe for determinado pelo juiz, deve o administrador da insolvência apresentar as contas relativas ao exercício do cargo, nos termos previstos no art. 62º e segs do CIRE.
Ora, no presente caso, o administrador da insolvência, finda a liquidação dos bens apreendidos, apresentou as respectivas contas, sendo que, como consta na decisão supra transcrita, com excepção das verbas relativas a despesas com honorários forenses, no valor de global de € 50.427,33, tais contas foram julgadas boas.
O administrador da insolvência, inconformado com tal decisão que lhe negou o direito ao reembolso daquelas despesas, interpôs recurso da respectiva sentença. E se no processo de insolvência em geral o administrador da insolvência é um órgão coadjuvante do tribunal e não parte, neste apenso de prestação de contas tem indubitavelmente um interesse directo, é titular um interesse próprio e, por isso, deve ser considerado parte.
E foi durante a pendência do recurso da sentença de prestação de contas que veio a falecer, em .../.../2021.
Trata-se de uma situação incomum que a lei não prevê e, por isso, temos de socorrer-nos da analogia para integrar tal lacuna, nos termos do art.10º do C.Civil, procurar-nos a solução que decorre do espírito do sistema, já que não vislumbramos caso verdadeiramente análogo.
Com o decesso do administrador judicial em funções, não há dúvidas de para o exercício do cargo tem de ser nomeado outro administrador, como já foi. Mas terão cessado todos os efeitos jurídicos decorrentes do exercício de funções pelo falecido?
Como sucede, noutras relações jurídicas com intuitus personae, com a morte extinguem-se os direitos e obrigações de carácter estritamente pessoal. Os direitos e obrigações de natureza patrimonial transmitem-se por via sucessória, como decorre do art. 2025º do C.Civil.
Ora, no recurso pendente estão em discussão efeitos patrimoniais conexos com as funções exercidas pelo falecido administrador que, em nosso modesto ver, se transmitem para os seus herdeiros. Por conseguinte, o recurso deve prosseguir os seus termos e para tal é necessária a habilitação dos respectivos herdeiros, como foi determinado no despacho de 3.12.2021, que transitou em julgado.
É certo que o art. 357º do CPCivil preceitua que a habilitação pode ter lugar perante os tribunais superiores, incumbindo o julgamento ao relator, que pode determinar que o processo baixe com o apenso à 1ª instância, se houver prova lugar a prova testemunhal a produzir, para aí ser julgado o incidente.
No presente caso, tendo a habilitação sido requerida quando o recurso se encontrava na 1ª instância para correcção de deficiências, entendemos que, ao abrigo do princípio de adequação processual, nada impedia que o incidente aí fosse apresentado e julgado.
Porém, como já dissemos, no apenso de prestação de contas o administrador da insolvência é parte interessada e os efeitos patrimoniais decorrentes do exercício do cargo transmitem-se para os respectivos herdeiros, falecendo a argumentação do tribunal recorrido para o indeferimento da habilitação requerida.
Destarte, impõe-se a procedência do recurso e a revogação da decisão recorrida. Assim, tendo em conta a ausência de contestação e o teor da escritura de habilitação notarial de herdeiros junta com o requerimento inicial, verificando-se que o administrador da insolvência AA faleceu em .../.../2021, deixando como únicos e universais herdeiros, a sua mulher, DD, e os filhos, EE e FF, declaram-se estes habilitados, única e exclusivamente, para em seu lugar prosseguirem a instância recursiva relativa à sentença proferida no apenso de prestação de contas (Apenso AI).
A responsabilidade pelas custas recai sobre a recorrente que foi quem tirou proveito do recurso, uma vez que não houve vencimento, nos termos previstos na última parte do nº1 do art. 527º do CPCivil.
*
V. Decisão

Ante o exposto, os Juízes desta 1ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em julgar procedente o recurso e revogando a sentença recorrida, defere-se o incidente de habilitação declarando DD, EE e FF, habilitados como únicos e universais herdeiros do administrador judicial AA, falecido em .../.../2021, para em seu lugar prosseguirem apenas a instância do recurso atinente à sentença proferida no apenso de prestação de contas ( Apenso AI).
*
Custas pela recorrente.
Notifique
*
Guimarães, 15 de Dezembro de 2022

Os Juízes Desembargadores
Relatora: Maria Eugénia Pedro
1º Adjunto: Pedro Maurício
2º Adjunto: José Carlos Duarte