Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2476/17.8TBBCL.G1
Relator: RAQUEL BATISTA TAVARES
Descritores: COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
RATIFICAÇÃO JUDICIAL
EMBARGO DE OBRA NOVA
DIREITO DE PROPRIEDADE
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
EMPRESA PÚBLICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/22/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10 veio alargar o âmbito da competência da jurisdição dos tribunais administrativos à apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime (alínea i) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF).

II - Com a reforma de 2015 os tribunais administrativos passaram a ter jurisdição sobre os litígios decorrentes de situações de via de facto, onde são enquadráveis as acções de reivindicação que têm por objecto situações em que entidades como a Requerida (empresa pública) ocupam imóveis de propriedade privada sem para o efeito estarem munidas de título que as habilite ou legitime, nomeadamente sem proceder à respectiva expropriação.”
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I. Relatório

LUÍS e esposa ROSA intentaram o presente procedimento cautelar de ratificação judicial de embargo de obra nova contra ÀGUAS X, S.A. peticionando que o Tribunal ordene a ratificação do embargo efectuado no dia 17 de Outubro de 2017 pelos Requerentes às obras que a Requerida está a efectuar no prédio descrito no artigo 1º da petição inicial.

Alegam, para o efeito, que são donos de um prédio rústico sito na União de Freguesias de AV e ED, concelho de Barcelos, com área total de 1.450 m2, inscrito na matriz rústica respectiva com o n.º ... e de um prédio rústico sito também na União de Freguesias de AV e ED, inscrito na matriz rústica respectiva com o n.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .../AV, os quais confinam entre si.

Que a Requerida é concessionária do Sistema Multimunicipal de Abastecimento de Água e de Saneamento do Norte de Portugal, competindo-lhe a exploração e gestão do sistema multimunicipal de abastecimento de água e de saneamento do Norte de Portugal que consubstancia um serviço público a exercer em regime de exclusivo, nos termos Decreto-lei 93/2015, de 29 de Maio e que com vista à construção da obra do entroncamento da EN 103, com acesso à ETA de AV, foi declarada de utilidade pública, com carácter de urgência, da expropriação de uma parcela de terreno com a área de 555,78 m2 a desanexar do prédio identificado no artigo 4.º da petição inicial.

Que no dia 17/10/2017 a empresa Irmãos M., S.A, incumbida pela Requerida de efectuar a construção da referida obra, realizava o trabalho de abertura de uma vala no prédio rústico identificado no artigo 1.º desta peça, do qual os Requerentes são proprietários, e que confronta a poente com o prédio rústico objecto de expropriação e que é a continuação da vala que está a ser executada no prédio expropriado tendente à execução do aludido entroncamento.

Mencionam, então, que os Requerentes, nessa data, procederam verbalmente ao embargo extrajudicial da obra pois não autorizaram ou cederam, gratuita ou onerosamente, à Requerida a parcela do seu prédio rústico para realizar parte da obra em causa e que a obra em causa amputa ao terreno rústico identificado no artigo 1 de uma faixa de terreno com sensivelmente 12 m2 na sua confrontação, a mais importante, com a estrada nacional, o que desvaloriza, e muito, o valor do imóvel em causa.

Citada, veio a Requerida invocar a excepção de incompetência absoluta deste Tribunal uma vez que para apreciar a presente causa são competentes os Tribunais Administrativos.
Os Requerentes responderam a tal excepção, pugnando pela respectiva improcedência.

Foi proferida decisão que julgando procedente a excepção de incompetência material deste tribunal absolveu a Requerida Àguas X, S.A. da instância.

Não se conformando com a decisão proferida vieram os Requerentes recorrer concluindo as suas alegações da seguinte forma:

1. Nos presentes autos de providência cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova não se verifica a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal a quo.
2. O despacho n.º 5082/2017 de Sua Ex.cia o Secretário de Estado das Infraestruturas, publicado no Diário da República, II Série, n.º 110, de 07.06.2017, tem por objecto somente uma parcela de terreno com a área de 555,78 m2 a desanexar do prédio identificado no artigo 4.º da petição inicial pertencente aos ora Recorrentes.
3. O presente procedimento cautelar visa exclusivamente a violação do direito de propriedade, por parte da Requerida, quanto ao prédio rústico identificado no artigo 1.º da petição inicial - que também pertence aos Recorrentes.
4. A relação jurídica administrativa estabelecida entre os Requerentes e a Requerida em virtude do ato expropriativo restringe-se ao prédio identificado no artigo 4.º da petição inicial.
5. Relativamente ao prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial, não existe qualquer relação administrativa fundada entre os Requerentes e a Requerida.
6. Não está, assim, aqui em causa a relação jurídica que se estabelece entre a Administração e um particular por força da execução de uma obra pública (relação jurídica administrativa), mas sim a relação jurídica que se estabelece entre alguém que é lesado no seu direito de propriedade e a pessoa (que, por acaso, é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos) que lesa aquele direito através de uma determinada conduta, que se consubstancia na execução de uma obra pública.
7. A violação do direito de propriedade dos ora Recorrentes não decorreu de qualquer ato (de expropriação ou de outra natureza) em cuja prática, a Requerida apareça investido do seu poder de autoridade e regulado pelo direito administrativo, isso aconteceu somente quanto prédio rústico id. no artigo 4º da petição inicial.
8. A Requerida violou o direito de propriedade dos Recorrentes ao arrepio de qualquer título ou ato administrativo que o justificasse e ao arrepio de qualquer norma de direito público que o legitimasse, actuando, por isso, em posição de paridade com um qualquer particular que praticasse esse ato lesivo, despido do seu poder público e com submissão às normas de direito privado.
9. O presente procedimento cautelar emerge não de uma relação jurídica administrativa mas sim de uma relação jurídica privada, que é relação que se estabelece entre o titular do direito real e o dono da obra, que a estava em violação desse direito.
10. Os Requerentes com este procedimento cautelar pretendem que seja ratificado judicialmente o embargo que efectuaram em 17.10.2017, de modo a que a Requerida se abstenha de continuar com as obras do entroncamento da EN 103, Km 29+00 com acesso à ETA de AV, em violação do direito de propriedade que detêm sobre o prédio rústico identificado no artigo 1º do requerimento inicial e não sobre o prédio expropriado (id. artigo 4.º do requerimento inicial), ou seja de continuar a apropriar-se da faixa de terreno, sua propriedade não objecto de qualquer expropriação.
11. Na verdade, estipula o artigo 373°, n.º 1, alínea a), do CPC, que, posteriormente à ratificação deve a Requerente propor a acção da qual os “Embargos” dependem, sob pena de, não a propondo, caducar a providência cautelar, ou seja de se extinguir.
12. In casu, essa acção só pode ser real ou possessória, como resulta do disposto do n.º 1, do artigo 397°, do CPC “aquele que se julgue ofendido no seu direito de propriedade, singular ou comum, em qualquer outro direito real ou pessoal de gozo ou na sua posse”.
13. Ora, o alegado e a factualidade ínsita no requerimento inicial indicam que a acção a propor será a “acção de reivindicação” prevista no artigo 1311º, do Código Civil.
14. Ao contrário do que defende o Tribunal recorrido, não estamos perante uma situação de responsabilidade civil extracontratual.
15. De acordo com o disposto nos artigos 21º, n.º 3, da CRP, e 1º, n.º 1, e 4º, estes do ETAF, compete aos tribunais de jurisdição administrativa [tribunais administrativos] administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, ou dito de outra forma, compete-lhes o julgamento de acções e recursos contenciosos que tenham objecto dirimir litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
16. A relação jurídica administrativa na sua definição, é aquela em que “um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido” [A Justiça Administrativa, Lições, 2016 - 15ª edição, Almedina, página 51].
17. O ETAF, no artigo 1º, reafirma a cláusula geral, estabelecida no artigo 212º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, definindo a competência dos tribunais administrativos de um ponto de vista substancial, ou seja, estabelecendo que os tribunais de jurisdição administrativa são aqueles que detêm competência para administrar a justiça nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas.
18. No seu artigo 4 enuncia-se, exemplificativamente, os litígios e questões, sujeitos [n.º 1] ou excluídos [n.ºs 2 e 3], do âmbito da jurisdição administrativa.
19. O ETAF deixou de excluir, expressamente, da jurisdição administrativa “as questões de direito privado, ainda que qualquer das partes seja uma pessoa de direito público”.
20. Contudo, apesar de nele existir uma cláusula de definição positiva do âmbito da justiça administrativa tais questões não foram aí incluídas.
21. O que significa que a competência para apreciação de relações jurídicas disciplinadas pelo direito civil, inexistindo norma expressa que a atribua aos tribunais administrativos, pertence aos tribunais judiciais, ou seja as questões de direito privado, por natureza, estão excluídas da jurisdição administrativa, desde que não haja uma atribuição expressa aos tribunais administrativos.
22. Atenta a doutrina acabada de exarar e revertendo ao caso concreto, apesar de a Requerida ser concessionária de um serviço público, não estamos, conforme o supra alegado, perante uma relação jurídica administrativa a regular pelas regras de direito público.
23. Pelo contrário, in casu estamos perante uma relação jurídica de natureza privada, consistente na ofensa do direito de propriedade particular e a decidir por aplicação de normas de direito privado.
24. Não havendo no ETAF qualquer norma que atribua competência à jurisdição administrativa, para o conhecimento de acções de reivindicação e dos Embargos que são sua dependência - artigo 4º -, o seu conhecimento pertence aos tribunais judiciais.
25. Deste modo, são os tribunais comuns - e não os administrativos - os competentes para conhecer duma providência cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova, à qual se seguirá a propositura de uma acção real, com fundamento em pretensa ofensa do direito de propriedade dos Requerentes, por obras realizadas por uma concessionária de um serviço público num prédio que não objecto de expropriação, por se tratar de questões que não emergem de uma relação jurídica administrativa, mas que se traduz na reivindicação de propriedade privada.
26. O Juízo Local Cível de Barcelos – Juiz 1, Comarca de Braga é assim o Tribunal competente para conhecer da presente providência cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova.
27. A decisão recorrida violou, entre outras normas, os artigos 212º, n.º 3, da CRP, e 1º, n.º 1, e 4º, do ETAF, n.º 1, do artigo 373º, n.º 1, alínea a) do 397°, 576º, 577º, todos do CPC.”
Pugnam os Recorrentes pela integral procedência do recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que, não considerando existir a excepção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal a quo considere que este tribunal é o competente em razão da matéria para conhecer a presente providência cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova.
Requerida apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência do recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar e decidir.
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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente não podendo este tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (artigo 639º do CPC).
A única questão a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos Recorrentes, é a de saber se o presente Procedimento Cautelar de Ratificação Judicial de Embargo Extrajudicial de Obra Nova se enquadra na competência dos tribunais judiciais comuns ou dos tribunais administrativos.
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III. FUNDAMENTAÇÃO

Os Recorrentes vieram interpor o presente recurso por se não conformarem com a decisão proferida pelo tribunal a quo que, julgando-se incompetente, considerou encontrar-se atribuída aos tribunais administrativos a competência para apreciar e decidir o presente procedimento cautelar.

Relembra-se o teor do despacho recorrido:

Assim sendo, e apesar de nos encontramos perante a violação de direitos privados, a consumar-se a lesão dos direitos que com a presente providência se pretende acautelar, dúvidas não haverá de que a reparação de tais danos através da atribuição da correspondente indemnização incumbirá claramente à jurisdição administrativa, ao abrigo da referida al. g), do nº1 do artigo 4º do ETAF.

A responsabilidade civil extracontratual prevista nas referidas alíneas g) e h), consiste na obrigação que recai sobre uma entidade envolvida em actividade de natureza pública que tiver causado prejuízos aos particulares, fora do contexto de uma relação contratual.
Sendo o objectivo da responsabilização do Estado e outras entidades envolvidas no exercício de actividades de natureza pública “a transferência do dano sofrido pelo cidadão para o seu causador”, com uma clara preferência pela reparação in natura, isto é, pela reconstituição hipotética que se verificaria no caso de não ocorrência do dano, a reposição da situação ao estado anterior constituirá ainda um modo de reparação do dano. (…)
A obra a cujo embargo extrajudicial os Requerentes procederam está a ser executada pela Requerida ao abrigo do ius imperium decorrente da concessão da exploração e da gestão em regime de exclusividade, os quais abarcam a concepção, a construção de obras e equipamentos do Norte de Portugal, atribuída à Requerida através do disposto no artigo 5º, nºs 1 e 2, do Decreto – Lei nº 93/2015, de 29 de Maio. Trata-se, assim, de uma obra de carácter público. Resulta, com clareza, do alegado em sede de petição inicial que a pretensão formulada pelos Requerentes funda-se, assim, na responsabilidade civil extracontratual, já que esta invoca a prática, pela Requerida, de um facto ilícito e culposo – a alegada ocupação de uma parcela de terreno -, causador de prejuízos patrimoniais.

Assim sendo, a questão em apreço nos autos não pode ser apreciada por este tribunal judicial, dado que, competente para o efeito, é a ordem jurídica administrativa”.

A única questão a decidir consiste, conforme já referimos, em saber se a competência se mostra atribuída aos tribunais comuns ou aos tribunais administrativos, sendo os fundamentos de facto a considerar os descritos no relatório.

E na apreciação desta questão não podemos deixar de começar por referir que um dos pressupostos mais importantes, relativo aos tribunais, é o da sua competência, resultando tal requisito do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por vários tribunais, tendo depois, cada um, competência para determinadas matérias do direito.

A competência em razão da matéria distribui-se assim por diferentes espécies de tribunais, situados no mesmo plano horizontal, sem nenhuma relação de hierarquia, subordinação ou dependência entre eles, estando na base desta repartição de competência o princípio da especialização, que se traduz na vantagem de reservar para órgãos judiciários diferenciados o conhecimento de certos sectores do direito (v. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª Edição, página 194, 195 e 207).

Dispõe o n.º 1 do artigo 209º da Constituição da República Portuguesa, nas suas várias alíneas que, “além do Tribunal Constitucional, existem as seguintes categorias de tribunais: a) O Supremo Tribunal de Justiça e os tribunais judiciais de primeira e de segunda instância; b) O Supremo Tribunal Administrativo e os demais tribunais administrativos e fiscais; c) O Tribunal de Contas”; e o artigo 211º n.º 1 que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”, cabendo, por usa vez, aos tribunais administrativos, segundo o artigo 212º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa, “o julgamento das acções e recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Em conformidade, decorre também do artigo 64º do Código do Código de Processo Civil que os tribunais judiciais são competentes, em razão da matéria, para conhecer das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, e em sentido idêntico dispõe o artigo 40º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei nº 62/2013 de 26/01) que “os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Por outro lado, é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que a competência se afere pelo pedido do autor, considerando a pretensão formulada e os fundamentos em que a mesma se baseia, sendo irrelevante qualquer juízo de prognose que se possa fazer relativamente à sua viabilidade (v. Alberto dos Reis, Comentário ao Código de Processo Civil, Volume I, página 111, Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, 1979, página 91) e que não cabendo uma causa na competência de outro tribunal ela será do tribunal comum por uma questão de competência residual (cfr. entre outros, Acórdãos da Relação de Guimarães de 05/03/2009 e de 18/01/2018, da Relação do Porto de 22/02/2011 e de 07/04/2016, da Relação de Lisboa de 13/07/2010 e do STJ de 02/03/2017, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt).

A competência material dos tribunais comuns é assim fixada em termos residuais.

E quanto aos tribunais administrativos, consta do artigo 4º n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19/2, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10, vigente à data da propositura da presente providência cautelar e actualmente em vigor, que lhes compete a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas a:

a) Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais;
b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por órgãos da Administração Pública, ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;
c) Fiscalização da legalidade de actos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública;
d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por quaisquer entidades, independentemente da sua natureza, no exercício de poderes públicos;
e) Validade de actos pré-contratuais e interpretação, validade e execução de contratos administrativos ou de quaisquer outros contratos celebrados nos termos da legislação sobre contratação pública, por pessoas colectivas de direito público ou outras entidades adjudicantes;
f) Responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício das funções política, legislativa e jurisdicional, sem prejuízo do disposto na alínea a) do n.º 4 do presente artigo;
g) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes, trabalhadores e demais servidores públicos, incluindo acções de regresso;
h) Responsabilidade civil extracontratual dos demais sujeitos aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;
i) Condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime;
j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, reguladas por disposições de direito administrativo ou fiscal;
k) Prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, habitação, educação, ambiente, ordenamento do território, urbanismo, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas;
l) Impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por violação de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo;
m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;
n) Execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de actos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração;
o) Relações jurídicas administrativas e fiscais que não digam respeito às matérias previstas nas alíneas anteriores.

Analisemos então a questão colocada no caso concreto à luz dos considerandos acabados de enunciar, começando por verificar o pedido formulado na presente providência pelos Requerentes e os fundamentos em que a mesma se baseia uma vez que a determinação da competência em razão da matéria assim deve ser aferida.
E no caso em apreço, os Requerentes peticionam a ratificação do embargo que efectuaram em 17/10/2017 quanto às obras que a Requerida se encontrava a efectuar no prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, invocando o seu direito de propriedade sobre o prédio rústico sito na União de Freguesias de AV e ED, concelho de Barcelos, inscrito na matriz rústica respectiva com o n.º ... e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …-AV no qual alegam ter a Requerida realizado trabalhos de abertura de uma vala, que é a continuação da que está a ser executada no prédio expropriado pela Requerida.

Analisada a decisão recorrida conclui-se que a mesma fundamenta a atribuição da competência aos tribunais administrativos por entender que a pretensão dos Requerentes se baseia na responsabilidade civil extracontratual da Requerida e enquadrar a situação concreta na alínea g) do n.º1 do artigo 4º do ETAF.
Em sentido contrário sustentam os Recorrentes que a acção principal a instaurar só pode ser real ou possessória como resulta do disposto do n.º 1, do artigo 397° do Código de Processo Civil e que o alegado e a factualidade ínsita no requerimento inicial indicam que a acção a propor será a “acção de reivindicação” prevista no artigo 1311º, do Código Civil, não sendo por isso uma situação de responsabilidade civil extracontratual.

Entendem que são os tribunais comuns, e não os administrativos, os competentes para conhecer duma providência cautelar de ratificação de embargo extrajudicial de obra nova, à qual se seguirá a propositura de uma acção real, com fundamento em ofensa do direito de propriedade, por obras realizadas por uma concessionária de um serviço público num prédio que não foi objecto de expropriação, por se tratar de questões que não emergem de uma relação jurídica administrativa, mas que se traduz na reivindicação de propriedade privada.

No caso concreto, e porque efectivamente o procedimento cautelar é dependência de uma causa que tenha por fundamento o direito acautelado, podendo ser instaurado como preliminar ou como incidente de acção declarativa (cfr. artigo 364º n.º 1 do Código de Processo Civil) importa caracterizar o objecto do litígio da acção principal a intentar pelos Recorrentes: sem dúvida está em causa a violação (por força da obra em causa) pela Requerida do direito de propriedade dos Requerentes, violação que os Requerentes pretendem fazer cessar com a suspensão imediata da obra, pretendendo dessa forma evitar o prejuízo decorrente da ocupação do seu prédio pela Requerida.

É certo que para além do seu direito de propriedade os Requerentes alegam no requerimento inicial a existência de obra executada pela Requerida em violação daquele direito e, por isso, a prática de facto ilícito por esta, o que decorre aliás dos próprios pressupostos da providência de embargo de obra nova (artigo 397º do Código de Processo Civil).

Mas tal não obsta a que se conclua que a acção principal a instaurar, e da qual os presentes autos são dependência, seja uma acção de reivindicação conforme referem os Recorrentes (cfr. artigo 1311º do Código Civil), na qual poderão até pedir a condenação da Requerida no pagamento de uma qualquer indemnização para ressarcimento de eventuais prejuízos causados, pois nada obsta a que com o pedido de reconhecimento do direito de propriedade e de entrega da coisa se cumule o pedido de indemnização; tal não descaracteriza a acção de reivindicação e não a torna sem mais numa uma acção de responsabilidade civil extra-contratual onde, não obstante a invocação do direito de propriedade, o objectivo principal é o da obtenção de indemnização.

Pensamos por isso que a pretensão dos Requerentes se baseia primordialmente no seu direito de propriedade e na defesa deste pelo que a acção principal a propor será a acção de reivindicação, conforme os próprios Recorrentes referem, e não uma acção de responsabilidade civil extracontratual.

No entanto, tal conclusão, distinta da que consta da decisão recorrida, levará à alteração desta e à atribuição da competência ao tribunal a quo?

Pensamos que não.
É que com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10 o legislador alargou, em nosso entender, o âmbito da competência da jurisdição dos tribunais administrativos ao caso presente.

De facto, e em sentido distinto do que pensamos ser até então a posição jurisprudencial maioritária, de atribuição da competência aos tribunais judiciais, o artigo 4º do ETAF passou a prever na alínea i) do n.º 1 que compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime.

E o artigo 2° do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) prevê que no seu n.º 1 que o princípio da tutela jurisdicional efectiva compreende o direito de obter, em prazo razoável, e mediante um processo equitativo, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, cada pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar e de obter as providências cautelares, antecipatórias ou conservatórias, destinadas a assegurar o efeito útil da decisão; e no seu n.º 2 que a todo o direito ou interesse legalmente protegido corresponde a tutela adequada junto dos tribunais administrativos, designadamente para o efeito de obter a condenação da Administração à adopção das condutas necessárias ao estabelecimento de direitos ou interesses violados, incluindo em situações de via de facto, desprovidas de título que as legitime (alínea i).

A propósito desta alteração introduzida pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015 Mário Aroso de Almeida (Manual do Processo Administrativo, Almedina, 2016, 2ª Edição, página 171) pronuncia-se no sentido de que o ETAF “passou a atribuir à jurisdição administrativa e fiscal a competência para dirimir os litígios decorrentes de situações de vias de facto, em que a Administração actue sem título que a legitime, designadamente ocupando imóveis de propriedade privada sem proceder à respectiva expropriação. No passado, como a competência para as acções de defesa da propriedade e de delimitação da propriedade pública em relação à propriedade privada era reservada aos tribunais judiciais, também estas situações eram atribuídas à competência destes tribunais. Diferentemente, a nova alínea i) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF atribui a competência aos tribunais administrativos, atenta a natureza claramente administrativa dos litígios em causa, que têm por objecto pretensões de restituição e restabelecimento de situações enquadradas no exercício, ainda que ilegítimo, do poder administrativo”.

Pode ler-se também no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 214-G/2015 que no que “respeita ao ETAF, clarificam-se, desde logo, os termos da relação que se estabelece entre o artigo 1.º e o artigo 4.º, no que respeita à determinação do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, e, por outro lado, dá-se mais um passo no sentido, encetado pelo actual ETAF, de fazer corresponder o âmbito da jurisdição aos litígios de natureza administrativa e fiscal que por ela devem ser abrangidos. Neste sentido, estende-se o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal às acções de condenação à remoção de situações constituídas pela Administração em via de facto, sem título que as legitime (…)”.
Parece-nos pois que a actual alínea i) do artigo 4º do ETAF (e do nº 2 do artigo 2º do CPTA), veio consagrar a atribuição de jurisdição aos tribunais administrativos para as acções de reivindicação que têm por objecto situações em que entidades como a Requerida (empresa pública, concessionária, em regime de exclusividade, da exploração e gestão do Sistema Municipal de Abastecimento de Água e de Saneamento para Captação, Tratamento e Distribuição de água para consumo público e para recolha, tratamento e rejeição de efluentes de vários municípios) ocupam terrenos de particulares sem para o efeito estarem munidas de título que as habilite ou legitime; trata-se de situações enquadráveis ainda no exercício do poder administrativo, mas em que este é exercido de forma ilegítima (veja-se no caso concreto que a abertura da vala no prédio do qual os Requerentes são proprietários é a continuação da vala que está a ser executada no prédio expropriado tendente à execução do entroncamento da EN 103).
Em face da actual alínea i) do artigo 4º do ETAF (e do nº 2 do artigo 2º do CPTA) temos de concluir que a competência para julgar a presente providência cautelar se encontra atribuída aos tribunais administrativos.
Não há assim razão nem fundamento, em face do exposto, para alterar a decisão proferida, ainda que a sua confirmação resulte de distinta fundamentação.
Improcede, pois, a apelação.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - O Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 02/10 veio alargar o âmbito da competência da jurisdição dos tribunais administrativos à apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas à condenação à remoção de situações constituídas em via de facto, sem título que as legitime (alínea i) do n.º 1 do artigo 4º do ETAF).
II - Com a reforma de 2015 os tribunais administrativos passaram a ter jurisdição sobre os litígios decorrentes de situações de via de facto, onde são enquadráveis as acções de reivindicação que têm por objecto situações em que entidades como a Requerida (empresa pública) ocupam imóveis de propriedade privada sem para o efeito estarem munidas de título que as habilite ou legitime, nomeadamente sem proceder à respectiva expropriação.
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IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se, ainda que com distinta fundamentação, a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.

Guimarães, 22 de Fevereiro de 2018
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

(Raquel Baptista Tavares)
(Margarida Almeida Fernandes)
(Margarida Sousa)