Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2176/14.0TBVFX.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: MEDIDA DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO DE CRIANÇAS E JOVENS
REABERTURA DE PROCESSO JUDICIAL
ARQUIVAMENTO OCORRIDO POR CESSAÇÃO DE MEDIDA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I. O sistema estatal de promoção e protecção de crianças e jovens actua de forma piramidal: a remoção do perigo em que se encontrem, sendo cometida a diferentes entidades, pressupõe a intervenção privilegiada e sequencial daquelas que possuem um carácter menos intrusivo e coercivo face às demais (mercê do reconhecimento da importância fundamental da família); e, por isso, estas só actuarão na comprovada impossibilidade, ou no insucesso, da intervenção das anteriores.

II. O respeito devido pelos princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade impõe que, em cada intervenção suscitada pela denúncia do perigo em que se encontre criança ou jovem, se proceda à prévia mobilização das estruturas de apoio eleitas como preferenciais pelo legislador (entidades com competência em matéria de infância e juventude, e comissões de protecção de crianças e jovens); e nesta cadeia de subsidiariedade vertical, o tribunal apenas será chamado a intervir em última instância.

III. A possibilidade de reabertura de processo judicial de promoção e protecção arquivado, permitida pelo art. 111.º da LPCJP, está exclusivamente prevista para o arquivamento ocorrido sem a prévia aplicação de qualquer medida (por não se ter comprovado a situação de perigo, ou por a mesma já não subsistir); e não existe previsão legal que autorize a dita reabertura quando o arquivamento tenha ocorrido por cessação de medida de promoção e protecção efectivamente aplicada.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada

1.1.1. O Ministério Público, em representação de M. P. (nascido em - de Maio de 2003), propôs em seu benefício o presente processo de promoção e protecção, em que são requeridos V. M., com paradeiro actual incerto (ou em Braga, ou em Oeiras), e M. J., residente em Vila Nova de Gaia (pais de M. P.), pedindo que

· fosse aplicada a M. P. a medida de apoio junto da mãe.

Alegou para o efeito, em síntese, ser o mesmo filho de surdos-mudos, que não são casados entre si, nem vivem juntos, residindo o Jovem habitualmente com o pai, mas de cuja companhia fugiu para viver com a mãe, que trabalha como auxiliar num atelier de tempos livres.
Mais alegou que o Jovem deixou de frequentar a escola, passou a consumir estupefacientes e praticou um furto no interior de um supermercado.
Por fim, o Ministério Público alegou encontrar-se em risco a segurança, saúde e educação do Jovem, podendo porém a sua colocação junto da mãe obstar ao mesmo.

1.1.2. Realizada a instrução, e acordando ambos os progenitores na aplicação da medida de Apoio Junto da Mãe, foi proferida decisão, em 22 de Julho de 2014, homologando a mesma, nos termos do art. 113.º, n.º 2, da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (1) (aprovada pela Lei n.º 147/99, de 1 de Setembro), lendo-se nomeadamente na «ACTA DE DECLARAÇÕES» onde foi exarada:
«(...) Iniciada a diligência, pela Mma. Juiz foram tomadas declarações ao progenitor, tendo pelo mesmo sido dito que:
- O M. P. está com a mãe já há algum tempo.
- Tem outro filho, da relação com a progenitora que reside consigo.
- O M. P. fugiu para a mãe. Eles é que sabem o que pretendem.
- O M. P. furtou coisas de um supermercado, andou a fumar, acompanhava com ciganos e não respeitava as horas da refeição ou de chegar a casa.
- O M. P. não tinha uma boa relação com a sua companheira. Ela ralhava um bocado com ele.
- A sua companheira também é surda-muda.
- Nunca mais teve com o filho a partir da data da fuga.
- Aceita que seja aplicada ao M. P. a medida de apoio junto da mãe
(…)»

1.1.3. Destinando-se a medida aplicada a vigorar por um ano, e sob a conforme promoção do Ministério Público (em sede de revisão respectiva), foi proferida decisão em 03 de Março de 2015, aplicando ao Jovem a medida de Acolhimento Residencial Prolongado, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Do teor do relatório de acompanhamento de fls. 82 a 85, resulta que: a situação vivencial do M. P. permanece inalterada, designadamente persistem os comportamentos que colocam em risco a sua segurança, saúde e educação sem que a mãe consiga implementar estratégias para impor regras e limites ao filho. Com efeito, o menor falta frequentemente às aulas, apesar de se encontrar no recinto escolar, e quando comparece é um aluno desinteressado, tudo a comprometer o aproveitamento escolar. O seu comportamento pauta-se pelo desrespeito e desobediência. Já foi alvo de várias participações disciplinares. No final do mês de Outubro saltou o muro da escola, colocando em risco a sua integridade física. O M. P. comparece na escola com roupa suja e sinais de que não toma banho. A progenitora mantem uma postura permissiva, desculpabilizante e desinteressada do processo educativo do filho - não comparece na escola e não entregou os documentos de matrícula. Em visita domiciliária, as Técnicas da ECJ de Vila Franca de Xira verificaram que a casa estava suja e desarrumada, com roupa amontoada, sem condições de habitabilidade e salubridade.
De todos os factos supra descritos resulta que a medida de apoio junto da mãe não está a produzir os efeitos desejáveis e que o menor continua sujeito aos factores de risco que determinaram a instauração do presente processo.
Cumpre, pois, optar por uma medida que, em definitivo, proteja esta criança da situação de perigo que vivencia há vários anos, medida que, face à inexistência de família alargada que reúna condições para proporcionar a este menino todas as condições de um são desenvolvimento, terá de ser o acolhimento institucional.
(…)»

1.1.4. A medida de acolhimento residencial prolongado foi sendo sucessiva e periodicamente revista, sendo mantida inalterada (por inexistir uma alternativa em meio natural de vida), por decisões de 07 de Setembro de 2015, de 03 de Março de 2016, de 18 de Outubro de 2016 e de 25 de Maio de 2017, lendo-se nomeada e respectivamente nestas duas últimas:
«(…)
Tal como decorre do relatório que constitui fls. 322 a 324, é desconhecido o actual endereço e condições de vida da progenitora que apenas visitou o filho uma vez.
O progenitor não reúne ainda condições para que se possa constituir como alternativa ao acolhimento residencial do filho.
Inexistem alternativas na família alargada.
Apesar de oscilações de comportamento e instabilidade emocional que têm inviabilizado o sucesso do projecto de promoção e proteção, a medida em execução tem-se revelado promotora do bem estar do menor.
(…)»
E
«(…)
Do conteúdo do relatório social junto aos autos a fls. 431 e ss. resulta que o jovem tem muitas dificuldades em cumprir as orientações do TIJ - sendo que dos autos resulta que o mesmo está quase permanentemente em fuga, sendo habitualmente localizado em casa da mãe. O jovem não aceita qualquer apoio psicológico ou psiquiátrico fora da instituição. A progenitora não comunica com a Equipa Técnica da Instituição e o actual agregado familiar do progenitor não está interessado em receber o jovem. O jovem manifestou junto da instituição vontade de ser transferido para outra Casa de Acolhimento onde possa recomeçar a vida. Atentas as fugas recorrentes, tal Casa terá, necessariamente, de possuir características mais contentoras do que aquela em que o jovem se encontra actualmente integrado.
(…)»

1.1.5. Foi proferida decisão, em 14 de Setembro de 2017, autorizando a permanência do Menor junto do agregado familiar materno, autorização que foi revogada por decisão de 19 de Outubro de 2017, lendo-se nomeada e respectivamente nas mesmas:

«(…)
Resulta da informação social ora remetida aos autos, bem como dos sucessivos episódios de fuga do jovem já verificados e das várias comunicações remetidas pela Instituição acerca do seu comportamento, que o M. P. não permite, em sede de acolhimento residencial, qualquer intervenção por parte dos Técnicos da “X”. Por outro lado, afigura-se que o desejo do jovem é permanecer junto da mãe, sendo que aparentemente esta habita numa casa com condições físicas para o acolher. De todos estes elementos resulta que se mostra, neste momento, impraticável o regresso do jovem à instituição, pois que o mesmo aí permanece apenas escassas horas e, quando acolhido, adota comportamentos de fuga, que o colocam em maior risco do que a permanência junto do agregado materno.

Assim, sem prejuízo de se manter a indicação de lar especializado para o jovem, que o possa acolher e seja mais contentor dos seus comportamentos, por ora:

a) Autorizo a permanência do jovem junto do agregado materno, até que seja obtida a vaga já solicitada para Lar Especializado, sem prejuízo de oportuna revisão da medida;
b) Autorizo a instituição a libertar a vaga do M. P., devendo a mesma ser notificada para entrega ao jovem ou à sua progenitora de todos os documentos daquele que ainda estejam à sua guarda, nomeadamente o boletim de vacinas, indispensável à matrícula escolar.
(…)»
E
«(…)
Dado que, na sequência dos factos melhor descritos no Apenso A, o jovem M. P. foi deixado pelos progenitores e residir sozinho com o irmão F., verifica-se que não se poderá manter a autorização de permanência do jovem junto da progenitora que lhe foi concedida a fls. 528, autorização essa que agora se revoga.
(…)»

1.1.6. A medida de acolhimento residencial prolongado foi sendo sucessiva e periodicamente revista, sendo mantida inalterada (por inexistir uma alternativa em meio natural de vida), por decisões de 19 de Janeiro de 2018, 18 de Março de 2019, 29 de Outubro de 2019 e 18 de Maio de 2020, lendo-se nomeadamente na primeira:
«(…)
Do conteúdo do relatório social junto aos autos a fls. 613 e ss. resulta que o jovem está neste momento, conjuntamente com o irmão, integrado no CAT G. P., não havendo possibilidade de integração do mesmo, quer em comunidade terapêutica, quer em CARE.
O CAT informa, a fls. 624 e ss., que o M. P. é por vezes impulsivo, embora por regra cumpra as normas da instituição, está a frequentar a escola (6.º ano de escolaridade do ensino regular), onde cumpre as responsabilidades escolares de assiduidade, pontualidade, e revela aproveitamento satisfatório.
O jovem contacta com a mãe através das redes sociais e, aquando da sua audição, manifestou pretender continuar no CAT, pois sabe que se for residir com a mãe não irá à escola
(…)»

1.1.7. Foi proferida decisão, em 14 de Setembro de 2020, aplicando provisoriamente a medida de Apoio Junto da Mãe, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Por ora aplica-se provisoriamente a medida de apoio junto da mãe, ficando esta responsável por todos os cuidados de saúde, higiene, alimentação e vestuário do jovem, bem como pela realização das tarefas escolares e continuação da desabituação de estupefacientes que o jovem começou, nos termos dos artigos 35.º, n.º 1, al. a), e 37.º da L.P.C.J.P.
Esta medida é válida por três meses.
(…)»

1.1.8. Em 15 de Janeiro de 2021, em sede de conferência, foi proferida decisão, determinando o arquivamento dos autos, lendo-se nomeadamente na respectiva acta:
«(…)
Dra. G. L. (Técnica da Segurança Social)

Ouvida em declarações disse que:
- Os consumos eram esporádicos, mais quando o jovem estava na instituição, porque eram consumos partilhados.
- Desde que está com a mãe consome menos porque a mãe controla-lhe o dinheiro.
- O jovem tem uma ideia dele menos boa que o próprio director de turma.
- Acha que a integração do jovem no agregado da mãe foi benéfica.
- A casa tem condições.
- O jovem é acompanhado também pela psicóloga da associação de surdos.
- Não vê mais valia que se mantenha qualquer medida, acha até do que viu dele que a situação do processo até lhe causa angústia, pois tem a certeza que o jovem a partir da maioridade, aos 23/05/2021 não vai querer a prorrogação da medida, sendo que a própria mãe do jovem pediu várias ajudas.
- Perante a postura do jovem tem dúvidas se é benéfico manter o processo, pois que o jovem, mãe e companheiro desta tem-se organizado.
- Sugere o arquivamento dos autos.
(…)
DESPACHO
De acordo com o doutamente promovido declaramos encerrada a instrução, nos termos do art. 106.º da L.P.C.J.P., e, conforme doutamente promovido, constata-se que agora o jovem não está em perigo, art. 3.º, a contrario, pelo que nos termos conjugados do disposto nos artigos 62.º, 3.º, al. c), e 111.º da L.P.C.J.P., mantendo-se presentes os critérios do art. 4.º, como a subsidiariedade, prevalência da família, atualidade e necessidade, determino o arquivamento os autos.
(…)»

1.1.9. Mediante o envio aos autos, pelo Núcleo de Infância e Juventude da segurança Social, de «INFORMAÇÃO», o Ministério Público requereu, em 17 de Fevereiro de 2021, a reabertura do processo, e promoveu a imediata aplicação de medida de acolhimento residencial, lendo-se nomeadamente na respectiva promoção:
«(…)
Refere a EMAT:
“No dia 15/02/2021 esta equipa foi contactada pela Associação de Surdos do … dado o jovem e a mãe deste - …M. J. - se terem deslocado àquela instituição solicitando ajuda no seguimento de um desentendimento do M. P. com o companheiro da mãe - …A. M. -, pelo que foi efectuada deslocação até ao local.
Na associação, o M. P. expôs que nos últimos meses tem tido alguns desentendimentos com o companheiro da mãe, considerando que a relação da…M. J. com o seu companheiro se tem deteriorado desde que foi viver com estes, referindo que sentia que estes discutiam por sua causa.
Relatou ainda que o último desentendimento havia acontecido porque o M. P. queria ir jogar futebol, mas o…A. M. não permitiu que este saísse de casa face à atual situação pandémica. No seguimento desta proibição, discutiram e o…A. M. pôs o M. P. fora de casa.
Abordada a mãe do menor, esta relatou o mesmo episódio tendo referido que, no seu entendimento e dado ser também a vontade do jovem, este beneficiaria da integração em instituição dado que o regressar a casa não era possível bem como não se observa alternativa familiar.
Dada a esta situação, esta equipa efectuou as diligências necessárias junto da Equipa de Gestão de Vagas tendo sido atribuída vaga de emergência no Centro Juvenil da … (…), local onde o jovem foi integrado no dia 15/02/2021” (sic.).

Assim, r. a reabertura dos presentes autos (artigo 111º da LP).
Está indiciada uma situação de perigo para a saúde física e mental do jovem que impõe uma intervenção judicial urgente, através da aplicação duma medida de intervenção e de protecção - artº 3.º da LPCJP a aplicar de modo urgente e cautelar, de modo a que os seus direitos não sejam negligenciados (artigo 3.º, 2, al. a), b), c) e f), da LP), ou seja, ao invés, actuando em ordem a acautelar os seus direitos fundamentais, garantindo o seu são desenvolvimento físico, afectivo e emocional.
Face às razões inocadas pela EMAT que aqui se dão por integralmente reproduzidas, vista a situação de emergência enunciada e ao perigo actual e iminente em que se encontra o jovem, p. se aplique também ao M. P., cautelarmente, a medida de acolhimento residencial, fundamentalmente ao abrigo do artigo 37.º, da LPCJP, única medida apta a remover o perigo em que o mesmo jovem se encontra exposto, na actualidade.
(…)»

1.1.10. Em 18 de Fevereiro de 2021, foi proferido despacho, indeferindo a reabertura do processo, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Os presentes autos estão findos após a execução da medida, nos termos do art.º 63.º da mesma Lei, tendo sido cumprido o disposto no art.º 63.º, n.º 3, da referida Lei.
A reabertura a que alude o art.º 111.º da L.P.C.J.P. tem lugar nos casos em que os autos foram arquivados nos termos do art.º 106.º, n.º 2, al. b), da mesma Lei, o que manifestamente não é o caso destes autos.
Por outro lado, a intervenção de promoção e proteção desenvolve-se em três linhas sucessivas: em primeiro lugar, a intervenção das instituições com competência em matéria de infância e juventude (art.º 7.º da L.P.C.J.P.), em segundo lugar à C.P.C.J.P. da área da residência (onde poderá até ser obtido acordo pela titular das responsabilidades parentais para a aplicação da medida preconizada), dado que não existe nenhuma ligação do jovem e seus parentes à área de competência deste tribunal; só em terceira e última linha, dados os princípios da necessidade e da subsidiariedade constantes do art.º 4.º da L.P.C.J.P., a intervenção ocorre em sede judicial - no tribunal territorialmente competente.
Assim, deixando cópia arquivada em pasta própria, desentranhe os relatórios que antecedem e remeta-os à C.P.C.J.P. da área da residência do jovem.
Notifique-se, comunique-se e demais D.N., pois estes autos estão findos.
(…)»
*
1.2. Recurso

1.2.1. Fundamentos

Inconformado com esta decisão, o Ministério Público interpôs recurso de apelação, pedindo que se revogasse a decisão recorrida, sendo substituída por outra, ordenando a reabertura do processo de promoção em causa.

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis):

1.º - Foram trazidos factos novos, muito graves, que exigiam a reabertura do processo e aplicação de uma medida cautelar visando a confirmação judicial do procedimento de urgência tomado pelas Equipas Multidisciplinares de AT.

2.º - A questão suscitada prende-se com a não aplicação de uma medida de promoção, de modo urgente e cautelar, o mesmo é dizer, não confirmando o procedimento adoptado – e já em plena execução! – por uma entidade da primeira linha, in casu, a EMAT (Segurança Social).

3.º - Na verdade, face ao relatório da EMAT, com a refª 11131707, o despacho recorrido devia ter confirmado o procedimento de urgência face ao manancial das normas jurídicas chamadas à colação na promoção datada de 17/2/2021 e que a justificavam.

4.º - Sinalizou-se uma situação de perigo actual e iminente e a Equipa Multidisciplinar de Assessoria aos Tribunais tomou a seu peito a aplicação de um procedimento de urgência que fundamentalmente se enxerta nas normas conjugadas dos artigos 91º, 92º e 37º da LPCJP como modo de o remover.

5.º - Por haver evidência clara e segura de que o jovem não recebia o cuidado e a afeição adequada à sua situação existencial em concreto, com expressão de um conflito que o envolvia e susceptível de afectar o seu equilíbrio psicológico e anímico, pelo que o douto despacho recorrido não interpretou correctamente, nesta perspectiva, o disposto no artigo 3º., 2, a) [abandonada], b) [sofre maus tratos] e f) [exposição a comportamentos que afectem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação e desenvolvimento] da LPCJP.

6.º - Face à tomada de uma providência urgente, de natureza imediata e cautelar (artigo 5º., c) e d) e artigo 7º da LPCJP), só se exigia a sua confirmação judicial, subsequente à reabertura do processo de promoção, decisões omitidas, e, posteriormente, se equacionando a questão da competência territorial (o que a promoção em referência já propugnava).

7.º - Sendo que a EMAT (serviços da Segurança Social) é seguramente uma entidade com intervenção privilegiada para a sua integração normativa na interpretação do artigo 7º da LPCJP, como entidades com competência em matéria de infância e juventude (neste sentido, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, Anotada, Paulo Guerra, 3ª Edição, 2017, pág. 43).

8.º - O artigo 111º da LPCJP, face à sua actual formulação aberta, não obsta à reabertura do processo no caso em que haja anteriormente sido aplicada medida de promoção e proteção e após, cessada a medida em execução, o processo foi arquivado.

9.º - O artigo 111º da LPCJP não tem qualquer referência ao artigo 106º., 2, b) dessa mesma LPCJP, em que se estriba o douto despacho recorrido.

10.º - Só a reabertura do processo de promoção permitirá conhecer com plenitude a realidade da situação do jovem e da família onde se insere de modo a uma intervenção judicial eficiente e adequada com vista à garantia do seu interesse.

11.º - Ao não reabrir o processo de promoção como requerido violou o despacho recorrido, desde logo, o artigo 111º e 106º da LPCJP, bem como o artigo 69º da CRP e artigo 19º da Conv. Das NU sobre os Direitos das Crianças (CDC), salvo o devido respeito, que é muito, interpretando incorrectamente o que dispõe artigo 4º., 1,a), c), d), e) e k) da LPCJP (como flui da redacção da Lei 145/2015).

12.º - In casu foi violado, pelo douto despacho recorrido, o princípio da subsidiariedade constante do art.º 4.º da L.P.C.J.P já referido (artigo 4º, al. k) – e, cf ainda: artigos 11º., nºs. 1 e 5, e 27º, nº. 3, do RGPTC (Lei 141/2015, de 08/09).

13.º - No caso, exigia-se que fosse proferido despacho a ordenar a reabertura do processo indo ao encontro do concreto interesse do jovem, o que se R. (como decorre do artigo 1º e ss da LPCJP e das normas e princípios constantes dos arts 1878º.1, 1974º., 1906º, 1776-A, 3, 1875º., 1881º.,2, e 1905º.,1, do CC e ainda artigos 13.º, n.º 2, 18.º, n.º 2, 36.º, n.ºs 5 e 6, 68.º, n.º 2, 69.º e 70.º da CRC os princípios jurídico-constitucionais estruturantes da Família e dos Menores).
*
1.2.2. Contra-alegações

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
*
II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).

Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
*
2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

Mercê do exposto, uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal ad quem:

· QUESTÃO ÚNICA - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do Direito (nomeadamente, ao não permitir a reabertura de processo já arquivado - por execução de medida de promoção e protecção aplicada e extinção do perigo a que obviava -, pertinente ao mesmo jovem e face à notícia de reaparecimento do anterior perigo em que se encontrava), devendo ser alterada a decisão proferida (nomeadamente, ordenando a reabertura dos autos e o seu posterior e normal prosseguimento) ?
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação da questão enunciada, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em «I - RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Processo de promoção e protecção
4.1.1. Necessidade da aplicação de medida de promoção e protecção por exposição de criança ou jovem a perigo relevante

Lê-se no art. 3.º, n.º 1 da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (recorda-se, LPCJP, aprovada pela Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro, com as sucessivas alterações de foi sendo alvo, incluindo as introduzidas pela Lei n.º 26/2018, de 5 de Julho), que a «intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo» (2).
Mais se lê, no nº 2 do preceito citado, que se considera «que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações: a) Está abandonada ou vive entregue a si própria; b) Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais; c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal; d) Está aos cuidados de terceiros, durante período de tempo em que se observou o estabelecimento com estes de forte relação de vinculação e em simultâneo com o não exercício pelos pais das suas funções parentais; e) É obrigada a atividades ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento; f) Está sujeita, de forma direta ou indireta, a comportamentos que afetem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional; g) Assume comportamentos ou se entrega a atividades ou consumos que afetem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto se lhes oponham de modo adequado a remover essa situação».
Por fim, lê-se no art. 34.º da LPCJP que as medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e jovens em perigo (que o próprio diploma consagra) visam: a) Afastar o perigo em que estes se encontram; b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral; c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso».

Deste regime legal protectivo resulta, desde logo: o abandono de uma concepção demasiado restritiva de saúde e bem-estar, fundada apenas, ou centrada apenas, na componente física do indivíduo (estando definitivamente adquirido que a componente psíquica é tão, ou mais, importante para a obtenção daquele desiderato); a necessidade de atender à concreta criança e ao concreto jovem considerados, nomeadamente à sua idade e situação pessoal, que necessariamente diferenciam os cuidados e a afeição de que necessitam (3); e o reconhecimento de que toda a criança e o jovem têm direito a crescer num ambiente familiar, pois é este o meio natural para o desenvolvimento harmonioso da sua personalidade, cabendo aos pais assegurarem a educação e o ensino dos filhos (art. 36.º, n.º 5 da CRP, art. 5.º da Convenção Sobre os Direitos da Criança (4), e arts. 4.º, al. h) e 35.º, ambos da LPCJP), em ordem à realização do supremo interesse da criança e do jovem, que é o direito ao seu desenvolvimento integral (art. 69.º, n.º 1, 1.ª parte, da CRP, e art. 1.º da LPCJP) (5).

Compreende-se, por isso, que constitua conteúdo legal das responsabilidade dos pais, «no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros e administrar os seus bens» (art. 1878.º, n.º 1, do CC); e que seja hoje entendimento unânime que, se os pais têm o direito de exercer as suas responsabilidades parentais, têm sobretudo o dever de as exercer no interesse da criança (as responsabilidades parentais são um poder-dever, que terá de ser exercido altruisticamente no interesse dos filhos, o que desde logo resulta da expressão legal de que «compete aos pais, no interesse dos filhos»).
*
4.1.2. Critério de decisão - Superior interesse da criança

Lê-se no art. 4.º, n.º 1, al. a), da LPCJP que qualquer intervenção para a promoção dos direitos e protecção da criança e do jovem em perigo deverá obedecer sempre ao «interesse superior da criança e do jovem», isto é, a «intervenção deve atender prioritariamente aos interesses e direitos da criança e do jovem, nomeadamente à continuidade de relações de afeto de qualidade e significativas, sem prejuízo da consideração que for devida a outros interesses legítimos no âmbito da pluralidade dos interesses presentes no caso concreto».
É, pois, o «interesse superior da criança» o critério supremo a ter em consideração na decisão judicial, encontrando-se consagrado: na lei ordinária (arts. 1878.º, n.º 1, 1905.º, n.º 1, 1906.º, n.ºs 2, 5, 7 e 1978.º, n.º 2, todos do CC, art. 4.º, n.º 1, al. a) da LPCJP, e arts. 147.º-A, 180.º, n.º 1 e 2 da OTM); na CRP; e na Convenção sobre os Direitos da Criança (arts. 3.º, n.º 1, 9.º e 18.º).
Lê-se nomeadamente nesta última, no seu: art. 3.º, que «todas as decisões relativas às crianças, adoptadas por instituições públicas ou privadas de protecção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança»; e no seu art. 9.º, n.º 1, que «a criança não será separada dos seus pais contra a vontade destes, a menos que a separação se mostre necessária, no interesse superior da criança».
Logo, os «direitos da criança prevalecem sempre sobre os direitos dos pais, sendo a decisão sempre tomada em favor daquela, conforme o seu interesse e não contra os pais» (Paulo Guerra, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, 4.ª edição, Almedina, 2020, pág. 26) (6).

Trata-se, sem dúvida, de um conceito indeterminado, que carece de ser preenchido, por forma a que seja utilmente actuado, em cada caso concreto. «O legislador emite ao tribunal um comando a fim de que este decida de acordo com o interesse do menor. A utilização deste conceito pelo legislador permite uma extensão dos poderes interpretativos do juiz e confere-lhe o poder de decidir em oportunidade» (Maria Clara Sottomayor, Regulação do Exercício das Responsabilidades Parentais nos Casos de Divórcio, 5.ª edição, Revista, Aumentada e Actualizada, Almedina, Abril de 2016, pág. 31, com bold apócrifo).

Importa, porém, que, não obstante se estar perante um «conceito aberto», o mesmo seja objecto de clarificação, por forma a que seja seguramente actuado, já que é «dever da nossa administração da justiça procurar que as decisões não sejam tão díspares com situações concretas e fácticas semelhantes» (Dulce Rocha, «Desjudicializou-se demasiado no caso das crianças», Boletim da Ordem dos Advogados, n.º 67, Junho de 2010, pág. 25).
Torna-se, por isso, necessária uma avaliação rigorosa e interdisciplinar de todos os factores pessoais, e condições ambientais, que rodeiam a criança, a realizar de forma livre de preconceitos ou ideias pré-concebidas (7).
Logo, o interesse da criança «prende-se com uma série de factores atinentes à situação concreta desta que devem ser ponderados à luz do sistema de referências que hoje vigora na nossa sociedade, sobre as necessidades do menor, as condições materiais, sociais, morais e psicológicas adequadas ao seu desenvolvimento estável e equilibrado e ao seu bem-estar material e moral» (Rui António H. L Epifânio, Organização tutelar de menores, contributo para uma visão interdisciplinar do direito de menores e de família, 2.ª edição, Almedina, pág. 326).
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4.1.3. (Demais) Princípios Orientadores

A «intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo obedece» deverá ainda obedecer aos demais princípios enunciados no art. 4.º da LPCJP, nomeadamente: «d) Intervenção mínima - a intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja ação seja indispensável à efetiva promoção dos direitos e à proteção da criança e do jovem em perigo; k) Subsidiariedade - a intervenção deve ser efectuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria da infância e juventude, pelas comissões de proteção de crianças e jovens e, em última instância, pelos tribunais».
Enfatiza-se, porém, que «os demais princípios constantes do referido 4.º são desenvolvimentos e concretizações do interesse superior da criança e do jovem, princípio indicado em primeiro lugar e critério prioritário e prevalente» (Ac. da RP, de 07.05.2018, Manuel Domingos Fernandes, Processo n.º 6242/15.7T8MTS.P1, com bold apócrifo).

Precisando, pretende-se significar com o princípio da «intervenção mínima» que a «intervenção deve ser exercida exclusivamente pelas entidades e instituições cuja acção seja considerada indispensável à efectiva promoção dos direitos e à protecção da criança ou do jovem»; e pretende-se significar com o princípio da «subsidiariedade» que a «intervenção deve ser efectuada sucessivamente pelas entidades com competência em matéria de infância e juventude, pelas Comissões de Protecção de Crianças e Jovens e pelos Tribunais - em rigor, este princípio dever-se-ia chamar “princípio da sucessividade”» (Paulo Guerra, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, 4.ª edição, Almedina, 2020, págs. 36 e 38) (8).

O sistema mostra-se assim organizado a partir do reconhecimento da importância fundamental da família (incluindo não só os progenitores, como os demais membros da comumente reconhecida como «família alargada») no são desenvolvimento da criança e do jovem; e, por isso, o Estado só intervém (só possui legitimidade para o efeito) quando a mesma não assegure cabalmente os seus deveres para com a criança ou o jovem, seja porque não quer (v.g. desinteresse), seja porque não pode (v.g. falta de condições) (9).
Nasce aqui um outro direito da criança e do jovem: o direito à protecção e assistência especiais da sociedade e do Estado (art. 69.º, n.ºs 1 e 2 da CRP e art. 20.º da Convenção Sobre os Direitos da Criança): quando se verifique alguma das situações de perigo que a lei elege para o efeito (que a família biológica, ou terceiros a quem a criança ou o jovem estejam confiados, não consegue debelar), o Estado tem de intervir, para os proteger.

Actuando o sistema estatal de promoção e protecção, fá-lo ainda de forma piramidal: a remoção do dito perigo, sendo cometida a diferentes entidades, pressupõe a intervenção privilegiada e sequencial daquelas que possuem um carácter menos intrusivo e coercivo face às demais; e, por isso, estas só actuarão na comprovada impossibilidade, ou no insucesso, da intervenção das anteriores.
Assim, deverão actuar: primeiro, as entidades com competência em matéria de infância e juventude, o que apenas podem fazer de forma consensual, isto é, se os pais nisso consentirem de forma expressa e escrita e não houver oposição da criança com idade superior a 12 anos, incluindo-se igualmente no consenso o próprio conteúdo da sua concreta intervenção (art. 7.º da LPCJP); depois, as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (10), o que apenas podem fazer de forma consentida, isto é, se os pais nisso consentirem de forma expressa e escrita e não houver oposição da criança com idade superior a 12 anos (arts. 8.º, 9.º e 10.º, todos da LPCJP) (11); e só por fim, em última ratio ou instância, os tribunais, o que necessariamente sucederá quando as outras entidades não existam, não possam actuar, ou a sua prévia actuação seja considerada ilegal ou inadequada à promoção dos direito ou à protecção da criança ou do jovem (art. 11.º da LPCJP).
«Em suma: nesta cadeia de subsidiariedade vertical, intervindo a comissão em apoio da família, ante a incapacidade desta, o Tribunal apenas será chamado a intervir em última instância e em muitos casos já em fim de linha e, agora, sem necessidade de consentimento, impondo, se necessário, a retirada da criança da companhia dos pais como permite o artigo 36.º da CRP» (Beatriz Marques Borges, «O Princípio da Subsidiariedade no Sistema de Proteção das Crianças e Jovens em Portugal e a Intervenção Reservada aos Tribunais», Promoção e Protecção, Coleção Formação Contínua, e-book do CEJ, Novembro de 2018, in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/eb_PromocaoProtecao2018.pdf, consultado em Abril de 2021).
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4.1.4. Tramitação processual
4.1.4.1. Em geral

Actuando os tribunais na promoção e protecção das crianças e jovens em perigo, fá-lo-ão por meio do competente processo judicial, o qual é de jurisdição voluntária (art. 100.º, da LPCJP).
Logo, e nos termos dos arts. 986.º e 987.º, ambos do CPC, o «tribunal pode (…) investigar livremente os factos, coligir as provas, ordenar os inquéritos e recolher as informações convenientes», só sendo, porém, «admitidas as provas que o juiz considere necessárias»; e, nas «providências a tomar, o tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, devendo antes adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna».
Precisa-se, porém, que o referido poder de alargada instrução não significa a atribuição ao juiz de um poder discricionário, mas tão só um poder/dever de orientar o processo, designadamente no que toca à admissão das provas, em função do seu objecto, acautelando o superior interesse da criança (12).
Relativamente à prevalência da equidade sobre a legalidade estrita, também não vai ao ponto de possibilitar ao juiz ultrapassar normas imperativas, significando antes que, no âmbito do direito substantivo, o juiz pode optar fundamentadamente por uma solução que, não respeitando escrupulosamente o seu rigor, satisfaça mais cabalmente os interesses em jogo (13).

A iniciativa processual cabe, em regra, ao Ministério Público (art. 105.º, n.º 1 da LPCJP); e no seu requerimento inicial fará constar os factos de onde resulta a situação de perigo que, nos termos do art. 3.º da LPCJP, fundamenta a intervenção judicial de promoção e protecção.

Este processo judicial é constituído por diversas fases, nomeadamente de instrução, decisão negociada, debate judicial, decisão e execução da medida (art. 106.º, n.º 1, da LPCJP).
Particularizando, e recebido o requerimento inicial, o juiz profere despacho de abertura de instrução ou, se considerar que dispõe de todos os elementos necessários: designa dia para conferência, com vista à obtenção de acordo de promoção e protecção adequado; decide o arquivamento do processo, nos termos do art. 111.º da LPCJP; ou ordena as notificações a que se refere o n.º 1, do art.114.º da LPCJP, seguindo-se os demais termos aí previstos (art. 106.º, n.º 2, als. a), b) e c), da LPCJP).

Dir-se-á que o despacho típico será o do recebimento do requerimento inicial, seguido, ou da abertura da instrução, ou da ordem das notificações a que alude o art. 114.º, n.º 1, da LPCJP. Contudo, a lei admite ainda que o juiz possa rejeitar o requerimento inicial, com base em manifesta falta de fundamento ou desnecessidade da intervenção, desde que tal resulte de forma clara daquele.
«Com efeito, como se assinala no Acórdão da Relação de Lisboa de 31/1/2001, a tarefa prevista no citado artigo 106º, nº 2, pressupõe o acto cognitivo do juiz que o habilite a receber ou não o requerimento inicial, cabendo a este certificar-se que o mesmo se enquadra nos requisitos e objectivos da lei.
Assim, se, por exemplo, os factos relatados no requerimento não configurarem uma situação de perigo legitimadora da intervenção de protecção, à luz do que dispõe o artigo da LPCJP, justifica-se o não recebimento da referida peça, pondo-se termo ao processo nesta fase liminar» (Paulo Guerra, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, 4.ª edição, Almedina, Maio de 2020, pág. 283).

Não tendo o juiz optado liminarmente pelo arquivamento dos autos, e tendo sido realizada a instrução, poderá porém, finda mesma, decidir pelo arquivamento do processo (art. 110.º, n.º 1, al. a), da LPCJP); e fá-lo-á então por «concluir que, em virtude de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir, se tornou desnecessária a aplicação de medida de promoção e proteção, podendo o mesmo processo ser reaberto se ocorrerem fatos que justifiquem a referida aplicação» (art. 111.º da LPCJP).
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4.1.4.2. Reabertura de processo judicial de promoção e protecção (arquivado)

A possibilidade de reabertura de processo judicial de promoção e protecção previamente arquivado foi introduzida pela Lei n.º 142/2015, de 8 de Setembro (14) (que aditou ao art. 111.º em causa a sua expressão final, de «podendo o mesmo processo ser reaberto se ocorrerem fatos que justifiquem a referida aplicação»); e na sua exposição de motivos esclareceu-se que «as alterações introduzidas ao nível do processo judicial de promoção e protecção relevam essencialmente do propósito de agilização do processo, em ordem à oportunidade da resposta de protecção» (com bold apócrifo).

Contudo, com a singela alteração introduzida, permaneceu a lei sem fazer qualquer referência à possibilidade de reabertura de processo judicial de promoção e protecção previamente arquivado, por cessação de medida antes aplicada (nomeadamente, por decurso do respectivo prazo, ou extinção do perigo a que procurava obviar).
Permitem-se, assim, duas interpretações do art. 111.º em causa: uma primeira, que defende que a possibilidade de reabertura de processo judicial de promoção e protecção previamente arquivado está reservada para os casos em que não se tenha chegado a aplicar qualquer medida de promoção e protecção (por arquivamento liminar dos autos, nos termos do art. 106.º, n.º 2, al. b), da LPCJP, ou por arquivamento finda a fase de instrução, nos termos do art. 110.º, n.º 1, al. a), da LPCJP); e uma segunda, que defende que essa reabertura tanto poderá ocorrer quando não tenha sido aplicada qualquer medida, como quando a mesma tenha sido efectivamente aplicada e se haja extinto (por decurso do prazo respectivo) ou tornado supervenientemente desnecessária (por a respectiva execução ter removido o perigo que a justificara).
Pondera-se, no primeiro entendimento exposto, o respeito devido pelos princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade, a imporem em cada intervenção suscitada pela denúncia do perigo em que se encontre criança ou jovem a prévia mobilização das estruturas de apoio eleitas como preferenciais pelo legislador, (atenta a ponderação de valores já referida a propósito da respectiva hierarquização) (15).
Pondera-se, no segundo entendimento exposto, que a «prévia aplicação ou não de medida não pode fazer a diferença», já que «as razões que justificam a reabertura do processo são exactamente as mesmas nos dois casos: aproveitamento dos elementos e dos conhecimentos sobre a realidade da criança ou jovem, com benefícios no que respeita à desnecessidade de novos elementos de prova, em obediência ao princípio orientador da intervenção mínima [artigo 4º, al. d) da LPCJP]» (Paulo Guerra, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, 4.ª edição, Almedina, Maio de 2020, pág. 313, com bold apócrifo).
Assim, o tribunal que anteriormente conheceu a realidade da criança ou do jovem, e o seu respectivo enquadramento familiar e social, poderia reapreciar a sua situação e intervir, pronta e eficazmente, com o aproveitamento dos elementos que já possui (com desnecessidade de novos, ou mais vastos, elementos de prova); e uma mais segura prognose sobre o sucesso das múltiplas medidas à sua disposição.
Acresceria ainda que, tendo já sido atingido o topo da intervenção piramidal do sistema (com a intervenção do tribunal), não faria sentido que, perante a hipótese de reabertura de processo judicial arquivado, se mobilizassem antes as estruturas da base do dito sistema (instituições com competência em matéria de infância e juventude e comissões de protecção e crianças e jovens), já que as mesmas concorreriam então perversamente para um mais prolongado (e quiçá mais acentuado) risco a que, paradoxalmente, qualquer delas pretende obviar.
Precisa-se, porém, que em qualquer um dos entendimentos expostos, defende-se que a ratio da norma apenas justifica a dita reabertura do processo arquivado desde que seja suscitada por notícia do reaparecimento da anterior situação de perigo, pertinente aos mesmos criança ou jovem, e já não se a situação de perigo for nova e distinta, ou pertinente a outros sujeitos (a exigir uma distinta averiguação e comprovação, bem como uma nova ponderação na escolha da concreta e inédita medida a aplicar) (16).

Não obstante a coerência da argumentação usada pelos defensores do segundo entendimento referido (que remete ainda sugestivamente para o princípio do superior interesse da criança, e para a natureza de processo de jurisdição voluntária em causa), e tendo sobretudo bem presentes os critérios legais de interpretação da lei (contidos no art. 9.º do CC (17)), dir-se-á que se sufraga aqui o primeiro entendimento exposto: a possibilidade de reabertura de processo judicial de promoção e protecção previamente arquivado está reservada por lei (no art. 111.º da LPCJP) aos casos em que o arquivamento tenha ocorrido liminarmente, ou concluída a fase de instrução, sem que se tenha chegado a aplicar qualquer medida, por não se ter como comprovada a situação de perigo denunciada, ou por a mesma já não subsistir.
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Com efeito, pondera-se a seu favor:

. a letra da lei

Recorda-se que se lê no art. 111.º, I parte, da LPCJP que o «juiz decide do arquivamento do processo quando concluir que, em virtude de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir, se tornou desnecessária a aplicação da medida de promoção e protecção». Logo, contemplam-se aqui unicamente as situações em que nem mesmo se chegou a aplicar qualquer medida de promoção e protecção, por falta de comprovação da situação de perigo (inicial ou actual) a que se destinava por termo.
Prosseguindo, lê-se ainda, na segunda parte, do mesmo preceito, que «podendo o mesmo processo ser reaberto se ocorrerem fatos que justifiquem a referida aplicação». Logo, o processo arquivado que poderá ser reaberto é o «mesmo» referido antes (isto é, o arquivado sem a aplicação de qualquer medida).
O referido argumento literal ganha ainda mais robustez quando comparada a redacção do art. 111.º da LPCJP com o art. 99.º do mesmo diploma, este último pertinente ao processo nas CPCJ (sendo mesmo o derradeiro artigo do Capítulo VIII, a ele dedicado), onde se lê que, cessando «a medida, o processo é arquivado, só podendo ser reaberto se ocorrerem fatos que justifiquem a aplicação de medida de promoção e proteção».
Logo, e aqui, a possibilidade de reabertura de processo arquivado está expressamente prevista para as hipóteses em que tenha chegado a ser aplicada uma concreta medida de promoção ou protecção, que entretanto cessou; e essa reabertura ocorrerá quando ocorrerem «factos», e já não «novos factos» (18), que justifiquem a reiterada intervenção da CPCJ, isto é, quando a factualidade integradora da situação de perigo é da mesma natureza daquela que dera inicialmente origem ao processo.

. a teologia ou racionalidade da norma

Pretende-se com a possibilidade de reabertura do processo inicialmente arquivado (por falta de verificação da situação de perigo actual antes denunciada) que seja o juiz que já tomou conhecimento dele (ou em fase liminar, ou após a instrução realizada) a decidir sobre a aplicação da medida mais adequada à promoção e protecção da criança ou do jovem: conhecedor (em maior ou menor medida) das suas pessoa e envolvência, bem como das possibilidades de concreto sucesso das abstractas medidas que possam ser aplicadas em seu benefício, previsivelmente mobilizará esse conhecimento para uma mais pronta e eficaz decisão.
Acresce que, tendo o tribunal sido chamado antes a intervir, previsivelmente já estará comprovada a falta de reunião dos pressupostos (legais ou de facto) para a alternativa e preferencial actuação das estruturas de base do sistema. Ora, os princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade apenas se justificam se, e quando, o tribunal não tenha sido ainda solicitado (mercê de um concreto perigo para a criança ou o jovem, a que outras instituições a seu montante não tenham conseguido por termo). Logo, se face ao mesmo identificado e conhecido risco, para o mesmo concreto sujeito, se constatou anteriormente a impossibilidade de prévio recurso a instituições com competência em matéria de infância e juventude ou a CPCJ, ou a respectiva incapacidade para lhe por termo (por múltiplos e variados factores, legais e/ou materiais), tendo sido necessário solicitar a intervenção (mais intrusiva e coerciva) do tribunal, não faz sentido apelar depois a tais princípios, para afastar a reabertura do processo judicial que desse modo justificadamente nele correu: o que se pretendia salvaguardar com os referidos princípios (e nesta estrita medida) não se verifica no caso concreto.
Contudo, uma vez aplicada, executada e declarada a extinta uma concreta medida, esgotou-se a autorizada intervenção do tribunal; e o sistema reassume a sua lógica intrínseca, nomeadamente a plena aplicação dos princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade.
Dir-se-á ainda que o entendimento exposto não invalida a possibilidade de pronta transmissão das informações antes reunidas pelo Tribunal à CPCJ que venha a intervir (art. 13.º da LPCJP); e previne o risco de ser cometida àquele a responsabilidade pela instrução e decisão de um processo entretanto geograficamente distanciado da nova e actual residência da criança ou do jovem, bem como dos seus responsáveis legais ou habituais cuidadores (o que já não sucederá com a CPCJ, conforme art. 79.º, n.º 1, da LPCJP).

. a unidade do sistema jurídico

Contendo a LPCJP um Capítulo VI, de «Disposições processuais gerais», que se aplicam «aos processos de promoção dos direitos e de proteção, adiante designados processo de promoção e protecção, instaurados nas comissões de protecção ou nos tribunais» (art. 77.º), não incluiu no mesmo qualquer disposição relativa à possibilidade de reabertura de processos previamente arquivados por cessação de medida antes aplicada.
Consagrando depois o seu Capítulo VIII ao «processo nas comissões de protecção de crianças e jovens», expressamente previu no seu art. 99.º (reproduzido supra) essa possibilidade; mas outro tanto não fez no subsequente Capítulo IX, pertinente ao «processo judicial de promoção e proteção».
Acresce que, neste último, o art. 111.º (em cuja parte final se prevê, desde 2015, a possibilidade de reabertura de processo judicial de promoção e protecção previamente arquivado) surge logo após o artigo pertinente ao encerramento da instrução, prevendo-se e regulando-se nos preceitos subsequentes as demais fases (incluindo recursos e execução da medida).
Logo, o art. 99.º da LPCJP prevê a reabertura de processo arquivado, por cessação de medida aplicada, de forma exclusiva para o processo de promoção e protecção que corra nas CPCJ; e o art. 111.º da LPCJP prevê exclusivamente a reabertura de processo judicial de promoção e proteção arquivado por falta de comprovação de situação actual de perigo, verificada liminarmente ou no final da instrução.

. as circunstâncias históricas

Perante a redacção inicial do art. 111.º da LPCJP, discutiu-se desde logo a possibilidade de aplicação (mercê de interpretação analógica) do art. 99.º do mesmo diploma, aos processos judiciais de promoção e protecção (face à reconhecida inexistência de um preceito legal que permitisse a sua reabertura, uma vez arquivados), sendo tradicionalmente afastada.
Ora, conhecendo necessariamente o legislador os termos em que a questão era colocada, e presumindo-se que soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, mal se compreenderia que, podendo reproduzir no final do Capítulo IX da LPCJP (recorda-se, exclusivo do processo judicial de promoção e protecção) uma disposição similar ao seu art. 99.º (recorda-se, inserto no Capítulo VIII, exclusivo do processo nas CPCJ), ou passar o dito art. 99.º para o Capítulo VI (recorda-se, relativo às disposições processuais gerais, comuns a ambos os processos), o não tivesse feito.

Por fim, dir-se-á que a interpretação aqui defendida permite ainda afirmar que o pensamento legislativo encontra na lei muito mais do que o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (exigido pelo n.º 2, do art. 9.º, do CC), sendo por isso secundum legem e não contra legem.
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4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)

4.2.1. Concretizando, verifica-se que, tendo então M. P. onze anos de idade, foi o mesmo sinalizado como encontrando-se numa situação de perigo para a sua segurança, saúde e educação, nomeadamente: por não viver de forma estável com qualquer um dos seus progenitores, assumindo os mesmos, ou uma postura desinteressada (pai), ou permissiva e desculpante em relação ao filho (mãe), sendo incapazes de lhe imporem regras elementares de cuidado pessoal e de estudo; por absentismo escolar; por consumo esporádico de estupefacientes; e pela prática de pequenos furtos.
Mais se verifica que, face ao exposto, e já em sede de processo judicial de promoção de direitos e protecção de criança e jovem em perigo, foi-lhe aplicada: inicialmente (em 22 de Julho de 2014), a medida de apoio junto da mãe; posteriormente (em 03 de Março de 2015), face ao comprovado insucesso daquela, a medida de acolhimento residencial prolongado; mantendo-se esta (com maiores ou menores vicissitudes) até 14 de Setembro de 2020, foi então substituída pela provisória medida de apoio junto da mãe por três meses; e em 15 de Janeiro de 2021, foi determinado o arquivamento dos autos, por se ter considerado «que agora o jovem não está em perigo» (conforme se lê no despacho de arquivamento).
Logo, tendo efectivamente existido uma situação de perigo actual para o são desenvolvimento de uma criança e depois jovem, tendo a mesma justificado a instauração e prolongada pendência de um processo judicial de promoção e protecção em seu benefício, e a sucessiva aplicação de diversas medidas com vista à remoção do dito perigo, obtida esta, foi aquele conformemente arquivado, por extinção do seu objecto.
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4.2.2. Concretizando uma vez mais, verifica-se que, vindo o Ministério Público a obter notícia, em 16 de Fevereiro de 2021, da renovação da dita situação de perigo (nomeadamente, por incapacidade da mãe de M. P. se fazer respeitar pelo mesmo, na imposição de regras de convivência familiar, sendo por isso o mesmo expulso de casa pelo seu companheiro), promoveu de imediato a reabertura do processo judicial de promoção e protecção a ele pertinente; a mesma foi-lhe indeferida, por falta de fundamento legal, já que, não só o art. 111.º da LPCJP apenas autorizaria aquela reabertura quando o processo tivesse sido arquivado sem a aplicação de qualquer medida (nos termos dos arts. 106.º, n.º 2, al. b), e 110º, n.º 1, al. a), ambos da LPCJP), como os princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade exigiriam a prévia intervenção de outras instituições que não os tribunais.

Dir-se-á agora, e tal como explicitado supra, que o entendimento do Tribunal a quo se mostra conforme com aquela que se tem como mais correcta interpretação da LPCJP, considerando quer a letra do seu art. 111.º, quer a demais arquitectura do diploma (nomeadamente, a inserção sistemática do concreto preceito em causa, a sua ratio, e a necessária harmonização da ratio com os princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade).

Dir-se-á ainda que, tendo efectivamente M. P. alterado a sua residência para junto da mãe, que reside actualmente em Vila Nova de Gaia, é a CPCJ da sua área de residência a estrutura habilitada a proceder ao acompanhamento mais próximo da sua situação (ao invés do que sucederia com o Tribunal Judicial da Comarca de Braga).
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Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela total improcedência do recurso de apelação interposto pelo Ministério Público, confirmando-se integralmente o despacho recorrido.
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V – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente improcedente o recurso de apelação do Ministério Público e, em consequência, em:

· Confirmar integralmente o despacho recorrido.
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Sem custas, por o Recorrente delas estar isento (art. 4.º, n.º 1, al. a), do RCP).
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Guimarães, 22 de Abril de 2021.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.º Adjunto - António José Saúde Barroca Penha.



1. Doravante no texto como LPCJP.
2. Segundo Beatriz Marques Borges, Protecção de Crianças e Jovens em Perigo, Almedina, 2007, págs. 37 e 38, verifica-se perigo para a criança ou o jovem, relativamente: à sua segurança, «quando se verifica que estes são colocados numa situação de incerteza física ou psicológica sobre o seu bem-estar, não se sentindo garantida nas suas necessidades e desejos»; à sua saúde, quando «está em risco o seu equilíbrio físico/psíquico, a sua capacidade de resistência e o seu próprio equilíbrio mental e social, com diminuição do seu sentido de auto-estima ou o valor e utilidade como membro da comunidade em que se insere»; à sua formação, quando se encontre em «situações que podem fazer distorcer o seu desenvolvimento integral da personalidade, a sua equilibrada maturação afetiva, emocional e social»; à sua educação, quando exista «uma educação incompleta e carente, com a inconsequente incapacidade de o visado se poder afirmar com todo o seu potencial, sendo que uma boa educação escolar é, cada vez mais, imprescindível para obter condições de sucesso na sociedade e no mercado de trabalho futuro, do que, em grande parte, depende a integração e coesão social com todos os reflexos e consequências que daí advêm»; e ao seu desenvolvimento, quando o dito perigo seja «o corolário de todos os anteriores itens visando o crescimento, quer físico quer psíquico das crianças e jovens, com vista ao seu desenvolvimento são e harmonioso».
3. O nível de dependência (física e emocional, face aos cuidadores) da criança e do jovem vai-se alterando ao longo da vida, sendo desejável - e expectável - que se cresça para a autonomia, tornando-se em adulto capaz e responsável, dotado de suficientes auto-estima e competências, idóneas a garantir a plena integração na sociedade em que se viva. Ora, o exposto só será alcançado se, precoce e continuamente, forem prodigalizados à criança e ao jovem todos os cuidados e a afeição que cada etapa do seu crescimento for exigindo, nomeadamente os que se prendem com o seu correcto desenvolvimento físico e psíquico; e aqui avultam não só o afecto (quer dos pais, quer da família alargada), quer uma alimentação saudável, quer a imposição de regras e limites, tanto mais necessários quanto cada vez mais global é a particular sociedade - gregária - em que tenham nascido.
4. A Convenção Sobre os Direitos da Criança foi adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989, sendo assinada por Portugal em 26 de Janeiro de 1990, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, ambos publicados no DR, I Série, de 12 de Setembro.
5. Este direito ao desenvolvimento integral da criança e do jovem pressupõe: por um lado, a garantia da dignidade da criança e do jovem enquanto pessoa humana; e, por outro, a consideração da criança e do jovem como pessoa em formação, cujo desenvolvimento exige o aproveitamento de todas as suas virtualidades.
6. No mesmo sentido, Ac. do STJ, de 16.03.2017, Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, Processo n.º 1203/12.0TMPRT-B.P1.S1, onde se lê que «o tribunal deve assumir (nesse sentido, parcialmente) a defesa do interesse que a lei lhe confia – no caso dos processos de promoção e protecção, o “interesse superior da criança e do jovem”, como expressamente afirma a al. a) do art. 4.º da LPCJP – ainda que essa defesa implique fazê-lo prevalecer sobre outros interesses que eventualmente estejam envolvidos ou mesmo em oposição».
7. Neste sentido, Paulo Guerra, «Confiança Judicial com vista à adopção – Os difíceis trilhos de uma desejada nova vida», Revista do Ministério Público, n.º 194, Ano 26, Outubro/Dezembro, pág. 81, onde se lê que «o superior interesse da criança só poderá ser definido através de uma rigorosa avaliação concreta e objectiva, determinada por uma perspectiva global e sistemática, de natureza interdisciplinar, visando a satisfação da permanente necessidade da criança de crescer harmoniosamente, em ambiente de amor, aceitação e bem-estar, salvaguardando-se a continuidade das suas relações afectivas positivas».
8. Pronunciando-se detalhadamente sobre o princípio da subsidiariedade, Beatriz Marques Borges, «O Princípio da Subsidiariedade no Sistema de Proteção das Crianças e Jovens em Portugal e a Intervenção Reservada aos Tribunais», Promoção e Protecção, Coleção Formação Contínua, e-book do CEJ, Novembro de 2018, in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/familia/eb_PromocaoProtecao2018.pdf, consultado em Abril de 2021.
9. Neste sentido, Paulo Guerra, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, 4.ª edição, Almedina, 2020, pág. 37, onde se lê que a intervenção «deve ser a necessária e a adequada à situação de perigo em que a criança ou o jovem se encontra, nomeadamente em que a decisão é tomada e só deve interferir o estritamente na sua vida e da sua família»; e deve ainda ser escolhida e concretizada «de modo a que os pais assuma os seus deveres para com a criança ou jovem, quanto tal for possível», ou, quando assim não seja, privilegiando na mesma a sua integração numa família (esta «abrangendo qualquer célula familiar, seja biológica ou não»). Ainda Ac. do STJ, de 05.04.2018, Rosa Ribeiro Coelho, Processo n.º 17/14.8T8FAR.E1.S2, onde se lê que a «intervenção para promoção dos direitos da criança ou jovem em perigo só é legítima quando os pais, o representante legal ou quem tenha a sua guarda de facto puserem em situação de perigo atual a sua segurança, saúde, formação educação ou desenvolvimento». Por fim, Ac. da RP, de 07.05.2018, Manuel Domingos Fernandes, Processo n.º 6242/15.7T8MTS.P1, onde se lê que «os princípios da intervenção mínima, proporcional e subsidiária indicam o que se pretende por parte das entidades públicas e privadas que actuam no campo da promoção dos direitos das crianças e dos jovens»; e, por isso, tudo «o que é exterior ao núcleo familiar, porque “anómalo”, deve ser feito com a intervenção mínima, limitado ao menor número possível de interferências e apenas justificado quando e na medida em que dessa intervenção possa resultar a remoção do perigo que afecte ou possa afectar o desenvolvimento físico e psíquico do menor. Devem, assim, apenas intervir as entidades e instituições cuja participação seja indispensável à promoção dos direitos e à protecção da criança ou jovem em perigo, evitando-se actuações excessivas bem como a sobreposição de intervenções na vida do menor e da sua família».
10. Doravante, no texto, CPCJ.
11. A necessidade do consentimento como base da intervenção das duas entidades intermediárias assenta na exigência do cumprimento do princípio constitucional ínsito no artigo 36.º, n.º 6, da CRP, segundo o qual os «filhos não podem ser separados dos pais, salvo quando estes não cumpram os seus deveres fundamentais para com eles e sempre mediante decisão judicial»
12. Neste sentido, Ac. da RG, de 25.02.2016, Francisco Xavier, Processo n.º 2072/15.4T8VCT.G1.
13. Neste sentido, Ac. da RL, de 30.05.2013, Isoleta Almeida Costa, Processo n.º 5720/04.8TBCSC-8.
14. Lia-se na redacção inicial do art. 111.º da LPCJP que o «juiz decide o arquivamento do processo quando concluir que, em virtude de a situação de perigo não se comprovar ou já não subsistir, se tornou desnecessária a aplicação de qualquer medida de promoção e protecção».
15. Neste sentido, Ac. da RP, de 07.05.2018, Manuel Domingos Fernandes, Processo n.º 6242/15.7T8MTS.P1, onde nomeadamente se lê que a «possibilidade de reabertura do processo judicial de promoção e protecção apenas pode ocorrer quando o mesmo tenha sido arquivado logo na fase liminar ou após o encerramento da instrução»; e, assim, se «no âmbito do processo judicial de promoção e protecção foi aplicada uma medida protectiva que mais tarde vem a ser declarada cessada com o consequente arquivamento dos autos, não podem os mesmos ser reabertos ainda que a nova situação de perigo esteja conexionada com a anterior, devendo, portanto, ser iniciado um novo processo perante a Comissão de Protecção de Crianças e Jovens por, só assim, se respeitarem os princípios da intervenção mínima e da subsidiariedade». Ainda Ac. da RL, de 18.03.2021, Teresa Prazeres Pais, Processo n.º 22446/18.8T8LSB-L.L1-8.
16. No sentido do entendimento exposto, veja a síntese conclusiva das questões discutidas no I Encontro das CPCJ e do Ministério Público da área da Procuradoria-Geral Distrital do Porto, realizado em 03 de Março de 2017 (in https://www.ministeriopublico.pt/pagina/i-encontro-das-cpcj-e-do-ministerio-publico-da-area-da-procuradoria-geral-distrital-do-porto), onde se lê que «a nova redação do artigo 111. º, da LPCJggP, permitindo a reabertura de processos judiciais de promoção, deve ser interpretada no sentido de que a nova situação deve ser intrinsecamente relacionada com a primitiva situação de perigo», estando impedida essa reabertura quando a «situação agora vivenciada não tenha qualquer ligação com a anterior (por exemplo, abandono escolar/maus-tratos)». Com efeito, o «respeito pelo princípio da subsidiariedade [cf art. 4. º, k) da LPCJP] obriga a que, tratando-se de uma nova situação de perigo sem qualquer relação com a situação de perigo anterior, a novel intervenção obedeça aos parâmetros previstos no art.º 6.º da LPCJP, competindo sucessivamente às entidades com competência em matéria de infância e juventude, às comissões de proteção e, finalmente, aos tribunais intervir no caso. Neste entendimento, só ocorrerá a reabertura do processo judicial de promoção e protecção quando a nova situação de perigo estiver conexionada com a anterior intervenção protectiva». Ainda no mesmo sentido, Paulo Guerra, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, 4.ª edição, Almedina, Maio de 2020, pág. 268, onde se lê: «Imagine-se que uma CPCJ enviou um processo para tribunal, por retirada de consentimento no momento da aplicação da medida. Tal processo vem a ser arquivado, passado algum tempo, no Tribunal. Passados seis meses entra uma nova sinalização na CPCJ. Se o processo já foi arquivado é reaberto em tribunal, porque esteve lá a correr, ou abre-se um processo novo na Comissão? Deve ser reaberto em tribunal se a nova situação de perigo tiver alguma conexão com a situação anterior (vamos imaginar que o processo estava no tribunal e a situação de perigo resultava de absentismo escolar) - o processo foi arquivado, a criança retomou a escola e agora decorridos seis meses volta a haver nova situação de absentismo escolar. Faz todo o sentido que a reabertura seja no tribunal. Agora, se a nova situação de perigo não tiver nenhuma conexão com a que está no tribunal então aí não há razão nenhuma para que não se esgote o princípio da subsidiariedade e, como tal, o processo deve começar na CPCJ».
17. Lê-se no art. 9.º do CC que a «interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em contra a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º 1); e na «fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.º 3). Contudo, não pode «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínio de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2). Reconhece-se, assim, que «uma interpretação literal é tudo menos correcta hermenêutica jurídica» (Cardona Ferreira, Guia de Recurso em Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 24). Importará, por isso, procurar a ratio legis, a razão de ser, o fim ou objectivo prático que a lei se propõe atingir, por forma a revelar a ponderação dos diversos interesses que a norma disciplina. Fala-se, então, de um argumento racional ou teleológico da interpretação. Acresce que, reconhecendo-se que a ordem jurídica tem unidade e coerência jurídico-sistemáticas, que existe um relacionamento entre normas jurídicas que é pressuposto e exigência de racionalidade do todo unitário que o direito deverá constituir, que a compreensão de uma norma postula a cognição de normas afins e paralelas, procura-se que a norma jurídica a interpretar seja considerada, não de forma isolada, mas antes integrada na mais vasta sede onde se insere. Fala-se, então, de um argumento sistemático da interpretação (conforme Santos Justo, Introdução ao Estudo do Direito, 9.ª edição, Coimbra Editora, págs. 340 e 341).
18. Na redacção inicial do art. 99.º da LPCJP lia-se que o processo arquivado por cessação da medida antes aplicada só podia se reaberto se ocorrerem «novos factos», tendo a Lei n.º 142/2015, de 8 de Setembro, eliminado do preceito a palavra «novos» ficando por isso a possibilidade de reabertura limitada aos factos caracterizadores de um perigo de idêntica natureza ao antes denunciado.