Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1202/18.9T8PTL .G1
Relator: ALEXANDRA ROLIM MENDES
Descritores: REENVIO PREJUDICIAL
DIREITO DA EU
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DEVER DE REENVIO
INOBSERVÂNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/14/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - O juiz nacional está obrigado a reenviar ao Tribunal de Justiça qualquer questão relevante de interpretação e/ou validade de normas do Direito da União Europeia, desde que, segundo as regras processuais internas, decida em última instância, pelo que, na ordem jurídica portuguesa, tal obrigatoriedade tanto pode caber a um juiz do Supremo Tribunal de Justiça, como a um juiz do Tribunal da Relação ou mesmo da 1ª instância.

2 - A inobservância do dever de reenvio poderá configurar uma situação de incumprimento do Estado, podendo este ser demandado na ordem jurídica interna pelo particular lesado e/ou instaurar uma ação de incumprimento prevista nos arts. 258º a 260º do TFUE.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

Relatório:

S. L. e T. M., casados entre si e residentes habitualmente em …, Reino Unido, vieram requerer a sua declaração de insolvência.
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A sentença recorrida declarou a incompetência internacional do Tribunal para apreciação do pedido dos Requerentes por considerar que os mesmos têm o seu centro de interesses no lugar da residência habitual, ou seja, no Reino Unido, em face do disposto no 4º parágrafo do nº 1 do art. 3º do Regulamento 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho.
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Os Requerentes recorreram da mencionada decisão apresentando as seguintes conclusões:

a) Os recorrentes requereram a sua insolvência, alegando a pertinente factualidade, nomeadamente a constante dos artigos 3° a 18° da petição inicial;
b) Dessa factualidade resulta claramente a sua impossibilidade de cumprir as suas obrigações vencidas;
c) Presentemente têm a sua residência sediada no Reino Unido, onde trabalham;
d) Todos os negócios e contratos que originaram a sua situação de insolvência foram realizados em Portugal;
e) É em Portugal onde têm o único bem imóvel de que são proprietários;
f) Não obstante residirem no Reino Unido e o disposto no artigo 84° do Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, o certo é que tal norma não afasta por si só a competência dos tribunais portugueses para conhecer a pretensão dos recorrentes;
g) O Considerando 30 do dito Regulamento confere, no presente caso, competência aos tribunais portugueses para conhecer do pedido formulado pelos recorrentes;
h) E isto porque o único património de que são proprietários situa-se em Portugal, o que equivale a dizer que o centro dos seus interesses radica neste país;
i) Tal situação assegura ipso iure a competência internacional dos tribunais nacionais para conhecer o pedido de insolvência dos recorrentes, na medida em que os tribunais portugueses são os exclusivamente internacionalmente competentes para proceder à apreensão e venda, em sede de liquidação, do imóvel propriedade dos recorrentes;
j) A pretensão dos recorrentes não poderá tomar-se efetiva senão por meio de ação proposta em território nacional pela simples razão do seu património a liquidar situar-se exclusivamente em Portugal;
k) Não há qualquer conexão entre a atual residência dos recorrentes e os factos que geraram a sua insolvência, estes totalmente ocorridos em Portugal;
l) O despacho recorrido fez errada interpretação e aplicação das normas invocadas para indeferir liminarmente o pedido de declaração de insolvência.

Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, ordenando-se o prosseguimento do processo, com as legais consequências.

Não foram apresentadas contra-alegações.
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Tendo em conta o disposto no art. 635º do C. P. Civil, o objeto do recurso delimita-se pelas conclusões do mesmo, pelo que, no presente recurso cabe verificar se os tribunais portugueses têm competência para abrir um processo de insolvência, tal como requerido pelos ora Apelantes
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Cumpre decidir:

No caso não se discute que os Requerentes, desde 2016, têm a sua residência habitual no Reino Unido, onde trabalham por conta de outrem. Em Portugal encontra-se situado o seu único bem imóvel.

Para verificar se os Tribunais portugueses são competentes para a abertura do processo em causa, há que consultar o Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho

No seu art. 3º, nº 1 este Regulamento dispõe que “Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência («processo principal de insolvência»). O centro dos interesses principais é o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros..

(…)
No caso de qualquer outra pessoa singular, presume-se até prova em contrário, que o centro de interesses principais é o lugar de residência habitual (…)”.

Por outro lado, do considerando 30 do mesmo Regulamento consta, nomeadamente, e com interesse para o caso em apreço que “No caso de uma pessoa singular que não exerça uma atividade comercial ou profissional independente, essa presunção deverá poder ser ilidida, por exemplo, se a maior parte dos bens do devedor estiver situada fora do Estado-Membro onde este tem a sua residência habitual”.

A sentença recorrida defendeu que os tribunais portugueses não seriam competentes para abrir o processo de insolvência uma vez que os Requerentes têm o seu centro de interesses no local da sua residência habitual, ou seja no Reino Unido.

Os Requerentes defendem que, sendo em Portugal que têm o seu único bem imóvel, o considerando 30 do mencionado Regulamento confere competência aos tribunais portugueses para abrirem o processo principal de insolvência.

Existe assim uma dúvida interpretativa que os escassos elementos jurisprudenciais e doutrinais existentes não permitem resolver.

Tal como salienta a Srª Juiz Conselheira Rosa Tching (in Revista Julgar, nº 14), é da aplicação correta e uniforme do Direito da União Europeia pelos juízes nacionais que depende a eficácia do Direito Europeu e, em larga escala, o sucesso da sua própria existência e evolução.

Ora, nos termos do disposto no art. 267º - a) e b) do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir sobre a interpretação dos Tratados e sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas Instituições, órgãos ou organismos da União e sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.

Apenas está dispensado desse dever se concluir que “a questão não é pertinente ou que a disposição do direito da União em causa foi objeto de uma interpretação por parte do TJUE, ou que a correta aplicação do direito da União se impõe com tal evidência que não dá lugar a qualquer dúvida interpretativa razoável” (v. Alessandra Silveira, em revista Julgar online, Anotação aos acórdãos (TEDH) Ferreira Santos Pardal c. Portugal e (TJUE) Ferreira da Silva e Brito (ou do “grito do Ipiranga” dos lesados por violação do direito da União Europeia no exercício da função jurisdicional), out. 2105, pág. 14).

A inobservância do dever de reenvio poderá configurar uma situação de incumprimento do Estado, podendo este ser demandado na ordem jurídica interna pelo particular lesado e/ou instaurar uma ação de incumprimento prevista nos arts. 258º a 260º do TFUE (v. sobre a questão da responsabilidade do Estado por violação do Direito da União Europeia através da atividade jurisdicional, Acs. do TJUE: Köbler (de 30/09/2003, C-224/01), Comissão contra a República Italiana (de 9/12/2003, C-129/00) e Traghetti del Mediterraneo (de 13/06/2006, C-173/03).

Assim, o juiz nacional está obrigado a reenviar ao Tribunal de Justiça qualquer questão relevante de interpretação e/ou validade de normas do Direito da União Europeia, desde que, segundo as regras processuais internas, decida em última instância, pelo que, na ordem jurídica portuguesa, tal obrigatoriedade tanto pode caber a um juiz do Supremo Tribunal de Justiça, como a um juiz do Tribunal da Relação ou mesmo da 1ª instância.

No caso, tendo em conta o disposto no art. 14º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (Lei nº 39/2003 de 22/8, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 26/2015 de 6 de fevereiro) no processo de insolvência, por regra não é admitido recurso dos acórdãos proferidos por tribunal da relação, já que tal recurso só é permitido quando o acórdão da Relação estiver em oposição com outro proferido no âmbito da mesma legislação, não tendo sido fixada jurisprudência pelo STJ.

Deste modo, a não ser que se verifique a mencionada exceção, este Tribunal decide em última instância.

Em face do que se acaba de expor, entende-se adequado suspender a instância nos presentes autos, ao abrigo do disposto nos arts. 269, nº 1 – c), 1ª parte e 272º, nº 1 do C. P. Civil, submetendo-se, nos termos do preceituado no art. 234º do Tratado CE, ao Tribunal de Justiça a questão de interpretação que se enunciará de seguida.

Questão:

- No âmbito do Regulamento (EU) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, o tribunal de um Estado-Membro é competente para proceder à abertura de um processo principal de insolvência de um cidadão que aí tem o seu único bem imóvel, embora tenha residência habitual, juntamente com o seu agregado familiar, noutro Estado-Membro, onde tem ocupação laboral por conta de outrem?
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DECISÃO:

Nos termos expostos, decide-se suspender a instância a fim de submeter ao Tribunal de Justiça da União Europeia a questão acima enunciada.
Notifique.
Oportunamente, remeta-se certidão deste Acórdão ao Tribunal de Justiça da União Europeia, bem como de certidão da sentença, requerimento inicial, respetivos documentos e alegações de recurso.
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Guimarães, 14 de fevereiro de 2019

Alexandra Rolim Mendes
Maria de Purificação Carvalho
Maria dos Anjos Melo Nogueira