Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
121/06.6TUBRG.3.G1
Relator: FRANCISCO SOUSA PEREIRA
Descritores: REVISÃO DE PENSÃO
CADUCIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
Não é inconstitucional a norma que estabelece - ressalvados os casos em que tenham ocorrido alterações da incapacidade ou intervenção médica, no decurso desse prazo de dez anos - o prazo de 10 anos para requerer a revisão das prestações/pensão, do artigo 25.º, n.º 2, da Lei 100/97, de 13.09, nem é inconstitucional a norma do artigo 187.º, n.º 1, da Lei 98/2009, de 04.9, ao prescrever que o disposto no art. 70.º da mesma Lei aplica-se apenas a acidentes de trabalho ocorridos após a entrada em vigor dessa Lei 98/2009, por pretensa violação do princípio da igualdade e da justa reparação das vítimas de acidente de trabalho, ínsitos aos art.s 13.º e 59.º n.º 1, alínea f), da CRP.
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

Apelante: AA
Apeladas: F..., S.A.
                 ... – Hotelaria e Restauração, S.A.

I – RELATÓRIO

AA, vítima de acidente de trabalho ocorrido a 9 de Julho de 2005, em ..., e por via do qual viu fixada a seu favor, por sentença proferida a 26 de Novembro de 2007, uma pensão anual e vitalícia, com base numa IPP de 2,5% (de cujo pagamento figuram como responsáveis “F..., S. A.” e “... – Hotelaria e Restauração, S.A.”), veio requerer a revisão da aludida incapacidade por requerimento entrado em juízo a 22.6.2022.

Na sequência do despacho proferido a 21.9.2022 (do qual nomeadamente consta: uma vez que o Tribunal pretende conhecer da eventual caducidade do direito do autor, excepção peremptória que, considerando a matéria de facto subjacente ao presente incidente, pode ser já decidida, concedo às partes (autor e rés) o prazo de mais 10 dias para, querendo, exercerem o contraditório quanto a tal questão. – cfr. art. 3.º, n.º 3 do C.P.Civil, de novo ex vi art. 1.º, n.º 2, al. a), do C.P.Trabalho) pronunciaram-se:
- a 28.9.2022 a “... – Hotelaria e Restauração, S.A” no sentido de se dever considerar extinto, por caducidade, o direito do sinistrado a requerer exame de revisão da sua incapacidade;
- a 3.10.2022 o sinistrado no sentido de não se verificar a excepção peremptória de caducidade, devendo prosseguir o incidente, mais invocando ser inconstitucional o art. 186.º, n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 4.9, quando interpretado no sentido de que não é aplicável aos acidentes ocorridos em data anterior à entrada em vigor desse diploma.

Foi, após, proferida despacho com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, decido declarar caducado o direito do sinistrado a requerer a revisão da incapacidade ou pensão.”

Inconformado com esta decisão, dela veio o requerente/sinistrado interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam com a formulação das seguintes conclusões (transcrição):
“Conclusões:

1. O ora recorrente foi vítima de acidente de trabalho, ocorrido a 9 de julho de 2005, pelas 22.00 horas, em ....
2. Por douta sentença, nos presentes autos a 26 de novembro de 2007, foi fixado a seu favor, uma pensão anual e vitalícia, com base numa IPP de 2,5%.
3. Ademais, o ora recorrente veio requerer a revisão da aludida incapacidade, por requerimento datado de 22/6/2022.
4. A douta decisão, ora em crise, julgou, caducado, o direito do sinistrado a requerer a revisão da incapacidade ou pensão, nos termos do artigo 25.º da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro.
5. No dia 1 de janeiro de 2010, entrou em vigor a Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, a qual veio regulamentar o regime de reparação de acidentes de trabalho, passando a permitir, através do seu artigo 70º, a revisão da incapacidade, a todo o tempo, com o limite de ser requerida uma vez em cada ano civil.
6. Invoca-se a inconstitucionalidade do artigo 186.º, n.º 1 da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, no sentido de aplicar o diploma, apenas aos sinistros ocorridos, após a sua entrada em vigor, por violação expressa do artigo 13.º e 59.º n.º 1, alínea f) da CRP.
7. Noutra temática correlacionada, grosso modo, é fundamento invocado pela jurisprudência, para determinação da constitucionalidade do artigo 25.º da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, e não aplicação do artigo 70.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, que tal “ofenderia, gravemente, a certeza e segurança do direito consolidado da seguradora”.
8. O artigo 64.º, n.º 1 da Constituição impõe que “1. Todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e promover.”
9. O legislador percebeu o quão inconstitucional (e imoral) era norma do artigo 25.º da Lei n.º 100/97, de 13 de setembro, que, muito bem, alterou-a, passando a não existir prazo para a reavaliação da incapacidade ou pensão.
10. Todavia, os honrosos tribunais, em casos como o sub judice, continuam a aplicar tal norma, permitindo a existência de dois regimes diferentes, com aplicação directa a circunstâncias idênticas, mas com desfechos diferentes.
11. O princípio Dura Lex, Sed Lex, não deveria imperar, dando lugar ao Princípio de Protecção da Parte mais Fraca, o qual deverá ser aplicado ao caso, pese embora, não esteja em causa a interpretação hermenêutica de uma norma.
12. Nestes termos, deverá o douto despacho ser revogado, por violação dos artigos 13.º e 59.º n.º 1, alínea f) da CRP, devendo ser substituída por decisão que determine o prosseguimento dos autos, designadamente, com a realização de perícia médico-legal.”

A recorrida Seguradora apresentou contra-alegação, concluindo pela improcedência do recurso.

Nomeadamente, alegou:
“Houve, de facto, arestos a declarar a inconstitucionalidade, mas sem que tal signifique divergência no entendimento. As situações é que se afirmavam de diferente ordem, melhor precisando, com intercorrências no decurso dos dez anos, designadamente, revisões intercalares da incapacidade que admitiam a refutação da presunção de consolidação e estabilização da situação clínica – o que não é de todo o caso no presente processo de revisão.
(…)
Este é o caso dos autos, no qual decorreram mais de dez anos entre o momento da fixação da pensão e o momento do agora pedido de revisão. Quer isto dizer que tanto a lei como a jurisprudência, em face da inexistência de qualquer facto que altere esta presunção de consolidação das lesões e o respectivo quadro sequelar, consideram não ser de aplicar a Lei 98/2009, de 4 de setembro, devendo os trâmites do processo manter-se inteiramente dentro do regime da LAT que se encontrava em vigor à data do acidente de trabalho.
Assim sendo, nos termos do preceituado aplicável ao acidente, designadamente o art.º 25, nº 2 da Lei 100/97, o direito do sinistrado a pedir revisão da sua incapacidade encontra-se extinto pelo decurso do prazo de dez anos entre a data da fixação da pensão e o pedido de revisão da incapacidade, pelo que se considera exímia a decisão a quo que, confrontada com um novo pedido de revisão, declara verificada a excepção da caducidade do mesmo.”

Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.

Tal parecer não mereceu qualquer resposta.

Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.

II OBJECTO DO RECURSO

Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 640.º, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enuncia-se então a única questão que cumpre apreciar:
a) Inconstitucionalidade do artigo 186.º, n.º 1, da Lei 98/2009, de 04.9, e inconstitucionalidade da norma que estabelece o prazo de 10 anos para requerer a revisão das prestações/pensão, a saber artigo 25º, 2, da Lei 100/97, de 13-09

III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos relevantes para a decisão da causa são os que resultam do relatório supra.

Ainda:
Correu termos o incidente de revisão iniciado a 19.3.2010 (apenso 2 – fls. 363 a 366 e 400), onde foi proferida decisão a 12.10.2010, a manter a IPP e pensão fixadas.

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

- Da inconstitucionalidade da norma que estabelece o prazo de 10 anos para requerer a revisão das prestações/pensão, artigo 25.º, n.º 2, da Lei 100/97, de 13.09, e da norma do artigo 187.º, n.º 1, da Lei 98/2009, de 04.9 (crê-se que só por manifesto lapso, quer pela referência que faz ao conteúdo da disposição, quer porque este artigo não está sistematizado por números, refere o art.º 186.º, n.º 1), ao prescrever que o disposto no art. 70.º da mesma Lei aplica-se apenas a acidentes de trabalho ocorridos após a entrada em vigor dessa Lei 98/2009.

Na decisão recorrida fundamentou-se assim a posição adoptada:
«A caducidade, como figura do Direito Substantivo, consiste na extinção de vigência e eficácia dos efeitos de um acto, em virtude da superveniência dum facto com força bastante para tal, ou, por outras palavras, no “desaparecimento dos efeitos jurídicos em consequência de um facto jurídico stricto sensu, sem necessidade, pois, de qualquer manifestação de vontade tendente a esse resultado.”. - cfr. Galvão Telles, "Manual dos Contratos em Geral", pág. 351.
E, como forma extintiva de direitos, a caducidade opera quando o direito não é exercido dentro de um dado prazo, fixado por lei ou convenção, encontrando-se o seu regime, no Direito Civil, estabelecido nos arts. 328.º e seguintes do Cód. Civil.
É do conhecimento oficioso do Tribunal e pode ser alegada em qualquer momento do processo, “se for estabelecida em matéria excluída da disponibilidade das partes”, segundo o art. 333.º, n.º 1, do Cód. Civil, sendo certo que, conforme entende a jurisprudência, se encontram excluídas da disponibilidade das partes as matérias em que haja predominância do interesse público.
O prazo de caducidade inicia-se, em princípio, “se a lei não fixar outra data”, no momento em que o direito possa ser legalmente exercido (cfr. art. 329.º do Cód. Civil).
No âmbito do Direito Adjectivo é de referir que o direito da acção caduca pelo decurso do prazo sem que tenha sido exercido pelo seu titular. De facto, o prazo para a propositura de acções está sujeito, em regra, ao regime da caducidade, tal como estabelece o n.º 2 do art. 298.º do Cód. Civil.
Ora, no caso, estando assente nos autos que o acidente que esteve em discussão ocorreu a 26 de Novembro de 2007, é aplicável à situação o regime dos acidentes de trabalho constante da Lei n.º 100/97 de 13 de Setembro.
Nos termos do art. 25.º, n.º 2 desta lei, a revisão da incapacidade apenas pode ser requerida dentro dos dez anos posteriores à data da fixação da pensão, uma vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano, nos anos imediatos.
Sendo este um prazo de caducidade, se não for o mesmo observado, tal implica a extinção do direito a requerer a revisão da incapacidade ou pensão, poia decorrido que seja aquele período de tempo, presume-se que a situação jurídica entre as partes fica definida.
Ora, é consabido que a Lei n.º 98/2009, de 4.9, no seu art. 70.º, deixou de estabelecer um limite temporal de 10 anos para a revisão da incapacidade, podendo esta agora ser requerida sem limite de tempo. Porém, à luz do regime legal aplicável ao caso dos autos, não é possível proceder à sua revisão, nos termos do citado art. 25.º, n.º 2.
Poder-se-ia colocar (e tem sido colocada na jurisprudência) a questão da eventual inconstitucionalidade da não aplicação retroativa do novo regime aos acidentes de trabalho ocorridos em data anterior à do início da sua vigência, como sucede no nosso caso. Embora as decisões proferidas a este propósito sejam maioritariamente relativas ao disposto na anterior Base XXII n.º 2 da Lei n.º 2127 de 3 de Agosto de 1965, elas são inteiramente aplicáveis ao regime do art. 25.º, n.º 2 da Lei n.º 100/97 de 13.9, porquanto se trata de preceitos em tudo idênticos.
O Tribunal Constitucional foi assim chamado já a pronunciar-se sobre essa questão, tendo chegado a conclusões diferentes:
- nos acórdãos 155/2003, 612/2008, 411/2011, 219/2012, 111/2014, 136/2014, 205/2014 e 583/2014, o Tribunal Constitucional decidiu pela não inconstitucionalidade quando no período de 10 anos não tenha sido formulado qualquer pedido de revisão da pensão ou quando tal pedido tenha sido indeferido por não ter havido agravamento das lesões;
- já nos acórdãos 161/2009, 548/2009 e 433/2016, foi aquela não aplicação retroactiva julgada inconstitucional, por violação do art. 59.º, n.º 1, al. f), da Constituição da República Portuguesa, que garante o direito à justa reparação dos acidentes de trabalho, mais se entendendo que a norma do n.º 2 do art. 25.º da Lei n.º 100/97, não pode ser interpretada no sentido de consagrar um prazo preclusivo de 10 anos, contados a partir da data da fixação inicial da pensão, nos casos em que desde a fixação inicial e o termo do prazo de 10 anos tenham ocorrido actualizações da pensão, ou tenham sido feitas cirurgias ou tratamentos a cargo da seguradora.
Conforme neste último acórdão se referiu, a contradição entre decisões é meramente aparente, pois todos se basearam num mesmo entendimento, segundo o qual o que releva é a presunção que esteve na base da consagração do prazo limite - ao fim de 10 anos presume-se ter a situação do sinistrado decorrente do acidente estabilizado, não estando sujeita a mais agravamentos.
Nos casos subjacentes aos primeiros acórdãos não tinha havido qualquer facto que levasse a concluir estar tal presunção errada, ao passo que no segundo tal já não ocorria, não se podendo afirmar ter a situação do sinistrado estado imutável ao longo de todo aquele tempo.
Veja-se que o raciocínio subjacente aos diversos acórdãos citados em relação à revisão da incapacidade, assenta na constatação médica de que os agravamentos ou as melhorias da situação dos sinistrados ocorrem, em regra, nos primeiros anos após o acidente, o que permite que, tendo decorrido vários anos desde o acidente sem qualquer alteração, se presuma que as lesões estão estabilizadas.
Era também este o entendimento de Carlos Alegre para quem o estabelecimento de um prazo para a revisão da incapacidade “surge da verificação da experiência médica quotidiana de que os agravamentos, como as melhorias, têm uma maior incidência nos primeiros tempos (...), decaindo até decorrer um maior lapso de tempo (que o legislador fixou generosamente em dez anos)”. – in Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Regime Jurídico Anotado, pág. 124.
Partindo desta presunção, aquilo que o tribunal constitucional entendeu foi que o estabelecimento de um prazo para a revisão da incapacidade não era inconstitucional nas situações em que entre a data em foi fixada a pensão e a data em que foi requerida a revisão não ocorreu qualquer facto que ilidisse a presunção de estabilização da situação clínica do sinistrado. Em contrapartida, nas situações em que em que entre a data em foi fixada a pensão e a data em que foi requerida a revisão tinham ocorrido factos que ilidissem esta presunção, o estabelecimento de um prazo para a revisão da incapacidade era inconstitucional. Entre estes factos estava a existência de revisões anteriores, o que permitia afirmar que, pese embora o período de tempo decorrido, a situação clínica do sinistrado não estava estabilizada.
Transpondo estes princípios para o caso dos autos, temos que não é possível afirmar a inconstitucionalidade do art. 25.º, n.º 2 da Lei n.º 100/97, já que desde a data em que foi fixada a pensão e, ainda, desde a data em que foi pedida a 1.ª revisão e foi a mesma julgada improcedente, decorreram mais de dez anos, sem que tenha ocorrido qualquer facto que permita ilidir a presunção de estabilização da situação clínica do sinistrado, designadamente não existiu qualquer revisão anterior procedente, nem a seguradora não foi condenada a prestar-lhe tratamentos médicos.
Na situação presente entre a data da alta (ocorrida a 2.5.2006) e a data do pedido de atribuição da prestação suplementar (de 22.6.2022) nunca foi trazida aos autos pelo sinistrado qualquer informação sobre um eventual agravamento da sua situação. É que o anterior incidente de revisão da incapacidade, iniciado a 19.3.2020, despoletado mediante requerimento em que se falava de aumento das dores e da incapacidade funcional dos movimentos do sinistrado, sem qualquer documentação clínica anexa, foi julgado improcedente após exame do sinistrado por junta médica realizada a 7.10.2010 (cfr. auto de fls. 399 do apenso 2).
Acresce que, desde a prolação da mencionada sentença a 12.10.2020, também nenhuma notícia foi trazida aos autos quanto a eventual alteração e agravamento da situação do sinistrado, pelo que não se pode dizer que a aplicação do prazo de caducidade do art. 25.º, n.º 2 da Lei n.º 100/97 de 13.9 (e não, retroativamente, o disposto no art. 70.º da Lei n.º 98/2009, de 4.9) seja inconstitucional por violação do direito à justa reparação dos acidentes de trabalho, consagrado no art. 59.º, n.º 1, al. f) da Constituição da República Portuguesa.
Na jurisprudência foi ainda apreciada a possibilidade de aplicar o disposto no art. 297.º, n.º 2 do Cód. Civil a esta alteração, considerando que o art. 70.º da Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro se traduziu numa norma que estabeleceu um prazo mais longo para a revisão da incapacidade. Tal poderia ocorrer nas situações em que, quando entrou em vigor o art. 70.º da Lei n.º 98/2009, o que ocorreu a 1 de Janeiro de 2010, ainda não tinha decorrido o prazo de dez anos previsto no art. 25.º, n.º 2 da Lei n.º 100/97. Neste sentido decidiu o Ac. da Relação de Évora de 23.2.2016, que “de acordo com a regra do art. 297º nº2 do Cód. Civil, deve ser admitido o incidente de revisão da incapacidade deduzido mais de dez anos após a fixação da pensão se esse prazo não estava ainda esgotado quando entrou em vigor a Lei n.º 98/2009 de 4 de Setembro” in www.dgsi.pt.
Sucede que, o aludido art. 297.º, n.º 2 do Cód. Civil tem natureza supletiva, não sendo aplicável quando foi prevista uma solução diferente pelo legislador.
Ora, a Lei n.º 98/2009 adoptou uma solução que afasta expressamente a aplicação daquele preceito da lei civil, uma vez que só é aplicável aos acidentes ocorridos depois da sua entrada em vigor, como decorre do art. 187.º, n.º 1 e 188.º desse mesmo diploma.
Ao fazê-lo afastou a aplicação do art. 70.º aos acidentes anteriores, mesmo que, quando entrou em vigor, ainda não tivesse decorrido o prazo de dez anos previsto no art. 25.º, n.º 2 da Lei n.º 100/97.
No essencial, o legislador considerou que relativamente aos acidentes anteriores podia manter-se o prazo previsto no art. 25.º, n.º 2 da Lei n.º 100/97 de 13.9 porque, atendendo à jurisprudência do Tribunal Constitucional a que fizemos referência, os direitos dos sinistrados estavam suficientemente acautelados.
A isto acresce que a possibilidade de aplicar o art. 70.º da Lei n.º 98/2009 de 4.9 aos acidentes ocorridos antes da sua entrada em vigor tem sido sucessivamente recusada pelo Supremo Tribunal de Justiça, podendo ver-se, a título de exemplo, os Acórdãos de 22 de Maio de 2013, 5 de Maio de 2013 e 29 de Outubro de 2014. Em todos estes Acórdãos foi decidido que aquela possibilidade não pode ser aceite porque “ofenderia, gravemente, a certeza e segurança do direito consolidado da seguradora”.»

Concordamos com esta decisão, que entendemos estar bem sustentada.

Como consta da resenha efectuada no douto parecer do Ministério público:

“O acidente ocorreu no âmbito da Lei nº 100/97, que estabelece no art. 25º nº 1 e 2:

1- “Quando se verifique modificação da capacidade de ganho do sinistrado proveniente de agravamento, recidiva, recaída ou melhoria da lesão ou doença que deu origem à reparação, ou de intervenção clínica ou aplicação de prótese ou ortótese, ou ainda formação ou reconversão profissional, as prestações poderão ser revistas e aumentadas, reduzidas ou extintas, de harmonia com a alteração verificada.
2- A revisão só poderá ser requerida dentro dos 10 anos posteriores à data da fixação da pensão, uma vez em cada semestre, nos dois primeiros anos, e uma vez por ano nos anos imediatos.”
A Lei nº 98/2009 de 04/09, em vigor desde 01/01/2010, no seu art. 70º deixou de estabelecer qualquer prazo para a revisão da IPP, prevendo apenas que a revisão pode ser requerida uma vez em cada ano civil (nº 3).
Porém, aplica-se apenas aos acidentes de trabalho ocorridos após a sua entrada em vigor - arts. 187º e 188º.”

Só na conclusão 9.ª o recorrente alude, um tanto en passant, à inconstitucionalidade da norma do art. 25.º da Lei 100/97, de 13.9.
Em recente acórdão desta Relação, que como Adjunto subscrevemos, defende-se que “O instituto da revisão de pensões/prestações resulta da verificação prática de que, em muitas situações, o estado de saúde do sinistrado evolui, agravando-se ou melhorando, em todo o caso modificando a sua capacidade de ganho. Surge, assim, a necessidade de adaptar as prestações à evolução do estado de saúde do titular da pensão. A revisão das prestações permite, portanto, quer ressarcir danos futuros não considerados no momento da fixação da pensão, quer, ao contrário, reduzir as prestações que se anteciparam em relação a danos que, afinal, não se chegaram a produzir. Finalmente, não obstante a presunção de estabilização das lesões subjacente ao estabelecimento do prazo de caducidade de 10 anos, na prática podem ocorrer casos de progressão da lesão ou da doença uma vez decorrido tal período.
Historicamente a possibilidade de revisão das prestações, em espécie e/ou em dinheiro, foi legislativamente enquadrada de modo diferente, desde a inexistência de prazo (em 1918), passando depois pela subordinação a prazos mais curtos de 5 anos  (em 1936), depois mais longos de 10 anos  (a partir de 1971 em diante), até finalmente, no sistema vigente, o prazo ser abolido e a revisão das prestações poder ser requerida a todo o tempo .
Tem sido referido que o estabelecimento do prazo para requer a revisão das prestações se relaciona com a experiência e constatação médica que os agravamentos e melhorias na saúde dos sinistrados têm maior incidência nos primeiros tempos, decaindo progressivamente até ao limite de tempo que se convencionou ser o tecto de 10 anos, momento a partir do qual o legislador presumiu que já não irá haver evolução - Carlos Alegre, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Almedina, 2º ed., p. 128.
Ou seja, o que sustenta a norma é uma presunção sobre uma determinada normalidade das coisas.
Em consonância, diversos arestos do Tribunal Constitucional concluem pela inconstitucionalidade da norma, caso existam circunstâncias que indiciam a não estabilização da lesão no decurso do prazo legal de 10 anos. São disso exemplo a ocorrência de revisões intercalares da pensão fixada ou de outro circunstancialismo que possa indiciar uma evolução desfavorável pelo agravamento, ou favorável pela melhoria da lesão. Se a impossibilidade de pedir a revisão após aquele prazo tem a sua razão de ser na presunção de que, findo aquele período, se dá a consolidação da lesão, consequentemente, nos referidos contextos, a presunção está ilidida - Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs: 147/2006, de 26-02; 59/07, de 30-01;161/09, de 25-03; 583/2014, de 17-09.
Mas também os acórdãos que concluem pela conformidade da norma que estabelece um prazo de 10 anos para requer a revisão das prestações por acidente de trabalho, não deixam de salientar que o juízo de constitucionalidade pressupõe que não “… se tenha registado qualquer evolução justificadora de pedido de revisão”. Estes acórdãos abordam casos em que nunca foram requeridas revisões de pensões dentro do prazo legal, ou foram requeridas, mas indeferidas e aí tudo se passa como se não houvesse evolução desfavorável, ou em que a revisão é pedida passados que estão mais de 10 anos sobre a última deferida - Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs: 155/2003, de 19-03; 612/2018, de 10-12; 219/2012, de 26-04.
Da leitura dos acórdãos do Tribunal Constitucional, mormente dos acima citados, flui que sempre que esta presunção de estabilização da situação clínica do sinistrado, no período temporal estabelecido pelo legislador, for abalada, a revisão deve ser permitida para além dos 10 anos, sob pena de inconstitucionalidade por violação do direito a assistência e justa reparação a que o trabalhador vitima de acidente de trabalho tem direito - 59º, 1, f), CRP. Mormente, a presunção foi considerada afastada nos casos em que, durante o decurso dos 10 anos, ocorreram revisões de pensões em que se provou o agravamento de lesões, o que permitiria a dedução de nova revisão fora do prazo inicial.[1]

Com efeito, não se pode apodar de flagrantemente desrazoável o entendimento de que decorridos dez anos sobre a data da fixação da pensão, sem que se tenha registado qualquer evolução justificativa de pedido de revisão, a situação se deva ter por consolidada.

Ora, no caso dos autos, a pensão que foi atribuída ao sinistrado foi fixada em 26.11.2007 e o sinistrado apresentou o requerimento de revisão em 22.06.2022, quando já haviam decorrido mais de dez anos desde a data da fixação da pensão.
E sendo certo que já tinha requerido revisão da incapacidade em 19.03.2010, nada foi então alterado, mantendo-se a IPP fixada.

Rebela-se também o apelante contra a aplicação do art. e do artigo 186.º, n.º 1, da Lei 98/2009, de 04.9, invocando-se a inconstitucionalidade do mesmo artigo no sentido de aplicar esse diploma legal, nomeadamente o art. 70.º dessa Lei, apenas aos sinistros ocorridos após a sua entrada em vigor, por violação expressa dos artigos 13.º e 59.º n.º 1, alínea f) da CRP.

Também sobre este prisma a questão foi bem analisada na decisão recorrida.

Em primeiro lugar, e repisando o que se diz na decisão recorrida, resulta da citada jurisprudência do Tribunal Constitucional que ficam ressalvados do prazo preclusivo previsto no n.º 2 do art. 25.º da Lei 100/97, de 13.9, os casos em que tenha ocorrido alterações da incapacidade/intervenção médica/tratamento médico, no decurso do aludido prazo de dez anos, sendo com essa ressalva que se tem afirmado a conformidade constitucional do art. 25.º n.º 2 da Lei 100/97 aos princípios constitucionais, mormente da proporcionalidade, daí que este entendimento não  tenha postergado o direito das vítimas de acidente de trabalho à assistência e justa reparação.

Por outro lado, o art. 13.º da CRP estabelece o Princípio da igualdade inscrevendo-o na nossa Lei Fundamental nos seguintes termos:

“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
E o artigo 59.º da CRP, no segmente trazido à colação pelo recorrente, prescreve:
“(Direitos dos trabalhadores)
1.Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, têm direito:
(…)
f) A assistência e justa reparação, quando vítimas de acidente de trabalho ou de doença profissional.
(…)”

A propósito da proibição de discriminações, lê-se na CRP Anotada de J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira[2] que “O que se exige é que as medidas de diferenciação sejam materialmente fundadas sob o ponto de vista da segurança jurídica, da proporcionalidade, da justiça e da solidariedade e não se baseiem em qualquer motivo constitucionalmente impróprio. As diferenciações de tratamento podem ser legítimas quando: (a) se baseiem numa distinção objectiva de situações; (b) não se fundamentem em qualquer dos motivos indicados no n.º 2; (c) tenham um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo; (d) se revelem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objectivo.”

Contendendo com esta questão, pronunciou-se já o STJ, em acórdão de 22-05-2013 (ainda referente à Lei 2127, de 3.08.1965, mas cuja pertinência se mantém no âmbito da aplicação da Lei 100/97, de 13.9) no sentido que «“Temos porém que ponderar que, ao abrigo do nº 2 da base XXII da Lei 2127, o prazo para requerer o pretendido exame de revisão já se tinha extinguido quando a Lei 98/2009 entrou em vigor, pois mediaram mais de 10 anos contados desde a data da fixação da incapacidade (23 de Abril de 1998), até à sua entrada em vigor e que ocorreu em 1 de Janeiro de 2010, conforme determinou o seu artigo 188º.
Por isso, e tratando-se duma situação em que se tem de presumir que as sequelas resultantes do acidente sofrido pela sinistrada se estabilizaram e consolidaram por esta ter deixado passar o prazo de 10 anos sem ter requerido qualquer exame de revisão, aplicar aqui o princípio da igualdade iria conflituar com o princípio da confiança, a que alude o artigo 2.º da Constituição da República.
Efectivamente, no Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 574/98, de 13-10-1998, DR, II Série, n.º 111 de 13-5-1999, pág. 7159, referiu-se a este propósito que:
“(…) a protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica na actuação do Estado obriga este, para que a vida em comunidade decorra com normalidade e sem sobressaltos, à garantia de um mínimo de certeza e de segurança do direito das pessoas e das expectativas que lhes são juridicamente criadas, pelo que uma alteração legislativa que modifique de forma intolerável, arbitrária ou demasiado opressiva aqueles mínimos de certeza e segurança que devem ser respeitados não pode deixar de contender com tal princípio constitucional.
O cidadão deve poder prever que as intervenções legislativas do Estado se façam segundo uma certa lógica racional e por forma a que ele se possa preparar para adequar a sua futura actuação a tais intervenções e de tal modo que uma tal actuação possa ser reconhecida na ordem jurídica e tenha os efeitos e consequências que são previsíveis face à decorrência lógica da modificação realizada”.
Face ao exposto, temos de considerar que a aplicação do novo regime da Lei 98/2009 ao acidente dos autos ofende gravemente a certeza e segurança do direito consolidado da seguradora, pois é inaceitável que esta seja confrontada com a realização dum exame de revisão da incapacidade, quando se trata dum acidente de trabalho com incapacidade permanente fixada há mais de dez anos, o que face ao regime legal vigente acarretou a perda/extinção do direito de requerer tal revisão.
Por isso, ver-se agora a entidade responsável confrontada com o ressurgir desse direito, quando ele estava juridicamente extinto, constitui uma violação da garantia daquele mínimo de certeza e de segurança do direito das pessoas, consagrada no artigo 2º da CRP.
Tendo razão a recorrente nesta sua alegação, não podemos sufragar o entendimento seguido no acórdão recorrido, por violação do nº 2 da base XXII da Lei 2127, norma que não viola o princípio constitucional da igualdade por a sua aplicação contender, no caso, com o princípio constitucional da confiança resultante do mencionado preceito constitucional.”[3]»

O Tribunal Constitucional também já se pronunciou no sentido que “(…) não tem aqui aplicação a ideia – já expressa pelo Tribunal Constitucional em diversas ocasiões – segundo a qual a alteração legislativa resultante da mera sucessão das leis no tempo (ainda que relativa a direitos sociais) não afeta, por si, o princípio da igualdade, o que só poderia verificar-se se a nova lei vier a estabelecer tratamento desigual para situações iguais e sincrónicas (veja-se o acórdão n.º 188/2009 e a jurisprudência nele citada).”[4]

Também no acórdão TCAN 02880/12.8BEPRT de 17-01-2014[5] a propósito desta temática e com assertividade se escreveu que, “Com efeito, uma desigualdade no tratamento normativo de assuntos iguais («rectior», semelhantes) propicia uma desaplicação dos preceitos discriminatórios ou desfavoráveis, «ex vi» do art. 13.º da CRP. Mas essa desigualdade entre regimes jurídicos só pode ser atendível se eles forem coexistentes no tempo; e nunca o será se eles forem sucessivos, pois é inerente à sucessão de regimes alguma mudança e, portanto, uma fatal desigualdade - que só por absurdo se diria coberta pelo princípio acolhido naquele art. 13.º. (…)”

No caso em apreciação as apontadas diferenças de regimes são decorrentes da normal sucessão de leis.

Assumindo o princípio da igualdade nesta sede a proibição do arbítrio legislativo, de tratamento diferenciado injustificado[6], entendemos que não é nada disso que transparece das identificadas Leis – Lei 100/97 e Lei 98/2009 -, pretendendo-se com esta nova Lei reforçar e actualizar a protecção social conferida em matéria de reparação dos danos decorrentes de acidentes de trabalho e de doenças profissionais.

V - DECISÃO

Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo do recorrente.
Notifique.
Guimarães, 27 de Abril de 2023

Francisco Sousa Pereira (relator)
Antero Veiga
Vera Maria Sottomayor


[1] Ac. RG de 03.11.2022, Proc. 825/08.9//BRG.2.G1, Leonor Barroso, www.dgsi.pt
[2] Vol. I, Coimbra Editora, pág. 340.
[3] Proc. 201/1995.2.L1.S1, GONÇALVES ROCHA, www.dgsi.pt
[4] Acórdão N.º 575/2014, Relator Fernandes Cadilha, consultável em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20140575.html
[5] Consultável in Base de Dados Jurídica BDJUR
[6] Cf. a citada CRP Anotada, pág. 345.