Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3539/19.0T8VCT-A.G1
Relator: ANTÓNIO FIGUEIREDO DE ALMEIDA
Descritores: DILIGÊNCIAS DE PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1) As partes têm direito, como manifestação do princípio do contraditório, à admissão de todas as provas relevantes para o objeto da causa;
2) Constitui um poder-dever do juiz ordenar as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO

A) A Caixa ..., CRL, veio intentar ação declarativa, com processo comum, contra H. C. e F. I., onde conclui pedindo que a ação seja julgada procedente, por provada e, em consequência, declarar-se nulos, por vício de simulação, os reconhecimentos de dívida e, consequentemente, igualmente nulas as letras de câmbio que visavam garantir os supostos valores mutuados pela 2ª ré ao 1º réu.
Na petição inicial foi requerido para prova dos pontos 46º a 130º da mesma peça, além do mais, a notificação da ré F. I. para que junte aos autos os seguintes documentos:
- declarações de IRS dos últimos três anos;
- comprovativos de transferência da quantia de €88.062,42 a favor do 1º réu;
- extratos das suas contas bancárias entre 1 de janeiro de 2018 a 1 de julho de 2019;
- recibos de vencimento de janeiro de 2017 a janeiro de 2019.
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Foi elaborado despacho saneador, identificado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova.
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A autora veio reiterar o requerimento de prova, acima referido, em 18/10/2021 (ref. 40172889).
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B) Foi proferido o seguinte despacho (fls. 75):
A autora apresentou requerimento dizendo que, em 18.10.2021, explicou julgar particularmente pertinente que fossem juntos aos autos os documentos que, já na sua petição inicial, havia solicitado à ré F. I., a saber:
- declarações de IRS dos últimos três anos;
- comprovativos de transferência da quantia de €88.062,42 a favor do 1º réu;
- extratos das suas contas bancárias entre 1 de janeiro de 2018 a 1 de julho de 2019 - recibos de vencimento de janeiro de 2017 a janeiro de 2019.
A autora pretende assim a junção de ditos documentos aos autos.
Ora, o Tribunal, atentos os temas de prova, entende que a junção de tal documentação não reveste interesse para a justa decisão da causa, motivo pelo qual se indefere o solicitado.
Notifique.
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C) Inconformada com esta decisão, veio a autora Caixa ... interpor recurso, o qual foi admitido como sendo de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito devolutivo (cfr. fls 27).
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Nas alegações de recurso da apelante Caixa ..., são formuladas as seguintes conclusões:

1ª As declarações de IRS da ré dos últimos três anos, os seus recibos de vencimento de janeiro de 2017 a janeiro de 2019, os comprovativos da alegada transferência da quantia de €88.062,42 a favor do 1º réu, assim como os extratos bancários requeridos, são elementos de prova pertinentes e de imprescindível importância para a descoberta da verdade material, pois permitirão apurar se a ré efetivamente mutuou ao réu o valor global de €88.062,42 que está na base das 3 letras de câmbio emitidas em 04.04.2018
- vd. art.º 411º e nº 2 do art.º 429º do CPC e art.º 341º CC
2ª A não admissão da junção desses documentos impossibilita a autora de fazer prova em juízo da simulação dos reconhecimentos de dívida e, consequentemente, das letras de câmbio emitidas para garantia dos valores alegadamente mutuados pela ré ao réu
-vd. nº 1 art.º 7º CPC e art.ºs 341º e 342º CC .
De harmonia com as razões expostas deve conceder-se provimento ao recurso e por tal efeito:
- determinar-se a junção aos autos dos documentos requeridos, ou seja, das declarações de IRS da ré dos últimos três anos, dos comprovativos de transferência da quantia de €88.062,42 a favor do 1º réu, dos extratos das contas bancárias da ré entre 1 de janeiro de 2018 a 1 de julho de 2019 e dos recibos de vencimento da mesma de janeiro de 2017 a janeiro de 2019.
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Pela apelada F. I. foi apresentada resposta, onde conclui:
1. Em 14 de abril de 2021 foi proferido despacho saneador no qual se fixou o objeto do litígio e os temas de prova, despacho que não mereceu qualquer reparo por parte da recorrente.
2. Já em 20 de maio de 2021 foi proferido despacho quanto aos meios de prova requeridos, sem que a recorrente tenha invocado o que quer que fosse. Nada fez!
3. Não arguiu qualquer nulidade ou apresentou recurso, nos termos no artigo 195º, 199º, nº 1 e 615º, nº 4, do C.P.C., devendo considerar-se sanados todos e quaisquer vícios que a recorrente considerasse poderem existir.
4. A recorrente sequer invocou que a prova já junta aos Autos se mostra insuficiente para a boa decisão do litígio, omitindo por completo, tal alegação, que se afigurava essencial para a procedência do que ora peticiona.
5. O direito à prova será sempre sujeito ao dever de gestão processual que cabe ao Tribunal, nos termos previstos no artigo 6º do C.P.C., tanto mais, quando o que está em causa é a junção aos Autos de prova documental que coloca em crise a reserva da vida privada da aqui recorrida.
6. No caso vertente, ao princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva na vertente do direito à produção de prova, contrapõe-se o princípio da reserva da intimidade da vida privada, protegido no artigo 26º, nº 1, da CRP, com a garantia ínsita no nº 2 de que a lei estabelecerá garantias efetivas contra a obtenção e utilização abusivas, de informações relativas às pessoas e famílias, cfr. Ac. TRE, de 13-07-2017, P. 1860/15.6T8FAR.E1, no site da DGSI.
Termos em que o recurso apresentado deve ser declarado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
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D) Foram colhidos os vistos legais.
E) A questão a decidir no recurso é a de saber se deverá ser alterada a decisão que indeferiu a junção de documentos requerida pela autora/apelante.
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II. FUNDAMENTAÇÃO

A) Os factos a considerar são os que constam do relatório que antecede.
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B) O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos recorrentes, não podendo o tribunal conhecer de outras questões, que não tenham sido suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras (artigos 608º nº 2, 635º nº 2 e 3 e 639º nº 1 e 2, todos do NCPC).
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C) A apelante veio impugnar o despacho recorrido entendendo que os elementos probatórios solicitados, as declarações de IRS da ré dos últimos três anos, os seus recibos de vencimento de janeiro de 2017 a janeiro de 2019, os comprovativos da alegada transferência da quantia de €88.062,42 a favor do 1º réu, assim como os extratos bancários requeridos, são elementos de prova pertinentes e de imprescindível importância para a descoberta da verdade material, pois permitirão apurar se a ré efetivamente mutuou ao réu o valor global de €88.062,42 que está na base das 3 letras de câmbio emitidas em 04.04.2018.
O tribunal a quo entendeu que, atentos os temas de prova, a junção de tal documentação não reveste interesse para a decisão da causa, razão pela qual indeferiu tal pretensão.

Se atentarmos no despacho de fls. 67 e segs, concretamente a fls. 69 vº, aí se refere que os temas de prova são os seguintes:

1. Crédito da autora sobre o 1º réu.
2. Os reconhecimentos de dívida invocados pela 2ª ré para justificar o seu crédito sobre o 1º réu, tal como as letras de câmbio, concretizam uma estratégia delineada pelos dois réus para enganar a autora.
3. Os réus quiseram enganar os credores de H. C., sendo que as declarações que prestaram divergem das suas vontades reais.
4. O 1º réu socorreu-se da 2ª ré porque já não dispunha de crédito na Banca para satisfazer as suas dívidas.
Importa notar que a autora pretende que se declarem nulos, por vício de simulação, os reconhecimentos de dívida e, consequentemente, igualmente nulas as letras de câmbio que visavam garantir os supostos valores mutuados pela 2ª ré ao 1º réu.
E se conjugarmos esta pretensão da autora com os temas de prova, particularmente com os pontos 2, 3 e 4 supra, bem como da matéria alegada nos pontos 46 a 130, da petição inicial, verificamos a relevância da diligência probatória requerida.
Ora, as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos (artigo 341º Código Civil) e constitui objeto da instrução do processo os temas de prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova (artigo 410º NCPC).
Por outro lado, “incumbe ao juiz realizar ou ordenar, mesmo oficiosamente, todas as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer” (artigo 411º NCPC).
Conforme referem José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 3ª Edição, Volume 2º, a páginas 213, “… as partes têm também direito, como manifestação do princípio do contraditório, à admissão de todas as provas relevantes para o objeto da causa (art. 410), pelo que o juiz não pode, em despacho de admissão das provas ou na fase da instrução, rejeitar um meio de prova, por irrelevância, baseado na convicção que já tenha formado quanto à não verificação do facto que se pretende provar através desse meio; apenas é admissível que o faça quando, ao invés, esteja já convicto da verificação do facto que a parte pretende provar, sem que haja meios de prova ainda a produzir que possam vir a abalar essa convicção.”
Por sua vez António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, no seu Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2ª Edição, referem que “como um dos seus objetivos principais, o nosso sistema processual civil procura que a solução judicial seja a que melhor se ajuste à real situação que é objeto de disputa. Por isso, as regras sobre o ónus da prova dos factos contidos no art. 342º do Código Civil têm uma feição marcadamente objetiva, significando que ao exercício da atividade jurisdicional interessa acima de tudo saber se determinado facto, está ou não demonstrado, uma vez concluída a instrução, e não tanto averiguar qual das partes estava onerada com o respetivo ónus da prova (Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2ª ed., p. 450)”.
Conforme se refere no Acórdão da Relação do Porto de 23 abril 2020, no processo 6775/19.6T8PRT-A.P1, relatado pelo Desembargador Filipe Caroço, in jurisprudência.pt “nos termos gerais e à semelhança do que acontecia no Código de Processo Civil de 1961, mesmo antes da reforma de 1995/1996, o juiz continua a poder determinar amplamente a junção de documentos ao processo, quer estejam em poder da parte contrária, de terceiro ou de organismo oficial (atuais art.ºs 429º, 432º e 436º do Código de Processo Civil).
Trata-se de uma evidente manifestação do princípio do inquisitório, que constitui anverso do princípio da controvérsia: ao juiz cabe, no campo da instrução do processo, a iniciativa e às partes incumbe o dever de colaborar na descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados (art.º 417º, nº 1, do Código de Processo Civil) [J. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Coimbra, 3ª edição, pág. 176]; tudo sem prejuízo das regras do ónus de alegação dos factos essenciais e da prova (art.º 5º do Código Civil e art.ºs 342º e seg. do Código Civil).
É, em tese geral, um poder-dever do juiz: tem a obrigação de ordenar as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
Todavia, os poderes/deveres inquisitórios do juiz não são ilimitados quanto à determinação de provas. “Se fosse este o alcance, então teríamos de admitir que as partes estavam dispensadas de indicar provas, já que o juiz tinha o dever de procurá-las, de diligenciar, por exemplo, quem residia nas imediações onde ocorreram os factos para verificar se alguém os tinha constatado, ou procurar entre familiares e amigos das partes as possíveis provas que poderiam existir e, claro está, as contraprovas” [Acórdão da Relação de Coimbra de 12.3.2019, proc. 141/16.2T8PBL-A.C1, in www.dgsi.pt].
Não obstante esta possibilidade/dever de iniciativa instrutória do juiz, como manifestação do princípio do dispositivo, as provas devem, em princípio, ser requeridas pelas partes e no momento processual em que tal lhes é facultado, já que é de cada uma delas a defesa do interesse que visa acautelar no processo, tendo o ónus de demonstrar os factos cujo efeito a favorece.
Como expõe Paulo Pimenta [Processo Civil declarativo, Almedina 2014, pág. 342], “(…) não deve ser confundido aquilo que é próprio do princípio do inquisitório, em que a atuação do juiz é vinculada desde que se convença da necessidade de certa diligência probatória, com uma pretensa auto-responsabilidade das partes em sede probatória”.
A atividade que o juiz desenvolve no exercício dos poderes conferidos pelo citado art.º 411º há de ter em mira a prevalência da verdade material sobre uma verdade meramente formal, e a justa composição do litígio, mas não pode deixar de ter presente os ónus que a lei especialmente impõe às partes, o que se torna evidente nas situações em que seria uma ofensa a estes imperativos que o juiz oficiosamente determinasse a realização de meios de prova que a parte, a quem incumbia a sua apresentação, não o tivesse feito nas condições em que o deveria ter efetuado.
Por todo o exposto afigura-se-nos que, para a justa composição do litígio e para a prevalência da verdade material, o requerimento de prova em questão se mostra relevante, dada a natureza e especificidade da matéria em questão, motivo pelo qual deverá ser atendido e, como tal deferido, notificando-se a ré F. I. para proceder à junção aos autos dos documentos requeridos, assim devendo proceder a apelação e ser revogado o despacho recorrido.
Face ao procedimento do recurso e ao decaimento da ré e apelada, sobre esta recai o encargo de suportar as inerentes custas (artigo 527º nº 1 e 2 NCPC).
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D) Em conclusão e sumariando:

1) As partes têm direito, como manifestação do princípio do contraditório, à admissão de todas as provas relevantes para o objeto da causa;
2) Constitui um poder-dever do juiz ordenar as diligências necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio, quanto aos factos de que lhe é lícito conhecer.
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III. DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente, revogando-se o douto despacho recorrido, determinando-se a notificação da ré F. I. para proceder à junção aos autos dos documentos requeridos pela autora.
Custas pela apelada.
Notifique.
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Guimarães, 30/06/2022

Relator: António Figueiredo de Almeida
1ª Adjunta: Desembargadora Raquel Baptista Tavares
2ª Adjunta: Desembargadora Margarida de Almeida Fernandes