Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1906/20.6T8VCT.G1
Relator: JOAQUIM BOAVIDA
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
MEDIDA DE CONFIANÇA DA CRIANÇA A INSTITUIÇÃO COM VISTA A FUTURA ADOÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 03/25/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- Constituem pressupostos da medida de confiança da criança a instituição com vista a futura adoção a verificação objetiva de uma das situações elencadas nas alíneas a) a e) do nº 1 do artigo 1978º do Código Civil, designadamente a circunstância de os pais colocarem em perigo a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do filho, ou a de terem revelado manifesto desinteresse pela criança, se for possível concluir que não existem ou se encontram seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação.
II- O elemento determinante é a inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afetivos próprios da filiação, constituindo as várias alíneas daquele preceito situações objetivas suscetíveis de revelar aquela inexistência ou comprometimento.
III- A medida de confiança com vista a futura adoção deve ser tomada logo que se encontrem reunidos os respetivos requisitos de aplicação, não sendo exigível que sejam previamente percorridas as demais medidas e que estas se tenham esgotado ou fracassado.
IV- Com base na realidade material provada, o julgador deve formular um juízo de prognose sobre o que se verificaria na hipótese de a criança ser criada e educada pelos pais ou de serem aplicadas outras medidas.
V- Não é condição de aplicação da medida que o perigo, enquanto forte possibilidade de dano grave aos direitos fundamentais da criança, já se tenha consumado em efetiva lesão, como resultado de concreta ação dos progenitores.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães (1):

I – Relatório

1.1. O Ministério Público instaurou processo judicial de promoção e protecção relativamente à criança S. F., nascida a -.03.2020, filha de F. O. e de S. C..
Proferido despacho de abertura de instrução e ouvidos os progenitores, foi homologado acordo de promoção e protecção de acolhimento residencial na instituição “CAT – ...”, pelo período de um ano.
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1.2. Realizado debate judicial, com intervenção de Juízes Sociais, foi proferido acórdão que decidiu:
«1º - Determinamos a colocação da menor S. F. à guarda da instituição CAT ... em vista à futura adopção.
2º - Os progenitores ficam inibidos do exercício das responsabilidades parentais.
3º - Determinamos a cessação de contactos da menor com os familiares.
4º - Nomeamos curador provisório à menor o Ex.o Diretor do CAT “...”, A. N.».
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1.3. Inconformada, a progenitora S. C. interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
«1. O Tribunal recorrido decidiu pela aplicação da medida de promoção e proteção de confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção (artigo 35.º, alínea g) da LPCJP) da menor S. F..
2. Considerando, para tanto, que ambos os progenitores não criaram ligação afetiva, seriam absolutamente incapazes, sem um mínimo de competência, não havendo qualquer possibilidade de poderem melhorar essas condições, aprendendo e tornando-se pais responsáveis e competentes.
3. Não pode a progenitora concordar com o decidido em face de existir uma manifesta errada apreciação de prova e uma evidente violação dos princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade e atualidade, da responsabilidade parental e da prevalência da família.
4. Na verdade, nada resultou dos autos que pudesse levar o Tribunal a quo concluir pela incapacidade dos progenitores e impossibilidade de proverem um crescimento são e sustentado à menor.
5. As conclusões que se retiraram relativamente a esse atributo dos progenitores tiveram apenas por base suposições.
6. É que a nenhum dos progenitores foi dada sequer oportunidade de demonstrar ter vontade e aptidão de cuidar da menor S. F. e criarem laços afetivos, em virtude de logo aos 3 dias de idade ter-lhes sido retirada e colocada numa instituição a mais de 100km de distância, impossibilitando a criação de laços ou uma demonstração de serem capazes.
7. Aliás, relativamente à progenitora, apenas se atenderam a factos que haviam ocorrido num outro processo com outra menor (filha da apelante), inquinado, salvo melhor opinião, por se basear em declarações da mãe da apelante que há vários anos se encontra incompatibilizada com a filha (aqui progenitora/apelante).
8. E assim, no que concerne ao aqui discutido, partiu o Tribunal recorrido para uma decisão tão extrema baseando apenas a sua convicção em suposições, ignorando, outrossim, o que de positivo tem a progenitora, bem como o que comporta para a menor a manutenção dos laços familiares.
9. A progenitora tinha tudo preparado para receber a menor em casa, casa essa com condições mínimas, e demonstrou ter vontade em melhorar as suas condições económicas e sociais, aprendendo ainda a cuidar da filha, assim podendo assegurar tudo o que lhe seria necessário.
10. Além disso, o acórdão ignorou o desespero e a descompensação emocional de que a progenitora padecia, demonstrado por comportamentos criticáveis que possa ter tido, e que teria sempre se relevado a seu favor por evidenciar sofrimento passado por ver ser-lhe retirada a guarda da menor.
11. E se assim tivesse entendido, o Tribunal recorrido evitava de forma tão precoce o corte definitivo dos laços familiares, e seguramente não optava pela aplicação da medida mais extrema e injusta para a progenitora.
12. Mais, mesmo que assim não se entendesse, e se considerássemos que a progenitora, com base nas suposições advindas do outro processo, é realmente é incapaz e se encontra numa situação irresolúvel sem qualquer progressão possível, e não existindo possibilidade de vir a ser criada qualquer relação de afeto, o mesmo nunca se podia ter concluído em relação ao progenitor.
13. Ao progenitor não são conhecidos quaisquer antecedentes, e demonstrou ter vontade de ficar com a guarda da menor, e de aprender a ser pai.
14. E não lhe pode ser reconhecida qualquer incapacidade nem inexistir qualquer laço afetivo, já que mal pode estar com a filha que quando nasceu foi colocada a mais de 100km de distância.
15. Não tendo estado com ela, não tinha o Tribunal como concluir pela sua incapacidade, e tendo visitado a filha, telefonando várias vezes, também não tinha como concluir pela sua falta de interesse ou inexistência de relação afetiva.
16. Tem uma casa com condições mínimas e uma situação económica que tendencialmente irá melhorar, não se podendo ignorar ter familiares dispostos a ajudar monetariamente, se necessário.
17. Demonstrou interesse e vontade em estar com a menor, bem como em aprender junto das técnicas responsáveis a desempenhar a função de pai.
18. Aliás, em sede de debate judicial, a testemunha D. P., arrolada pelo Ministério Público, referiu que via o progenitor com capacidade e que tinha de ser “treinado”.
19. Face a tudo o referido, e em qualquer das circunstâncias expostas, a decisão da aplicação da medida de promoção e proteção de confiança da menor a instituição para futura adoção é inequivocamente precipitada e excessiva.
20. Havendo clara margem de progressão junto dos pais, em conjunto ou individualmente considerados, afigurando-se suficiente para proteger o superior interesse da menor a opção por medidas alternativas e menos extremas, como sendo a medida de apoio junto dos pais, ou a medida de acolhimento residencial (artigo 35.º, alínea a) e f), respetivamente, da LPCJP), durante um período a determinar que permitisse a evolução dos progenitores, ou, ao invés, permitisse perceber se efetivamente o melhor para a menor é realmente ser separada dos seus pais e família.
21. Ao optar pela medida de entrega da menor para adoção, sem esgotar o leque de medidas existentes suscetíveis de acautelar o superior interesse da menor, e que pelo que se explanou se afiguravam suficientes para esse fim, o Tribunal recorrido violou os princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade e atualidade, da responsabilidade parental e da prevalência da família.
22. De acordo com estes princípios, a intervenção do estado nas relações familiares deve ser mínima, proporcional às questões em apreço, e deve privilegiar a manutenção das relações, só em última solução se devendo determinar o corte definitivo e irremediável dessas ligações.
23. Ou, melhor dizendo, a opção pela aplicação da medida de promoção e proteção de confiança da menor a instituição tendo em vista a futura adoção só deve funcionar como ultima ratio – isto é, só após esgotadas as possibilidades de aplicação das restantes medidas existentes e previstas no artigo 35.º da LPCJP.
24. A adoção é “o último recurso”, devendo ser aplicada esta medida apenas quando for comprovado estar comprometida, de forma definitiva, a possibilidade de o desenvolvimento harmonioso da criança ocorrer no seio da sua família biológica – o que nos presentes autos não aconteceu, e onde se decidiu imediatamente pela medida mais grave.
25. Afigurava-se suficiente para proteção do superior interesse da menor a opção pelo apoio junto dos pais, ou o acolhimento instituição, durante um período que permitisse aos progenitores solver os problemas existentes, aprendendo e melhorando, e mantendo sempre o contacto com a filha.
26. Ademais, este necessário esgotar de possibilidades e medidas existentes até se poder sequer ponderar na aplicação da medida de confiança da menor para futura adoção é unânime na nossa jurisprudência, como demonstra a conclusão do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24/01/2013, no processo n.º 6581/09.6TBCSC.L1-2 (acedível em www.dgsi.pt), que concluiu que:
“I - A intervenção pública na educação dos filhos é, em qualquer caso, subsidiária, não podendo contrariar o primado em matéria de educação e manutenção dos filhos conferido constitucionalmente aos pais ou o princípio segundo o qual os filhos não podem, à partida, ser separados dos pais. II – Surge assim como “ultima ratio”, uma decisão judicial que ordene a separação dos filhos dos pais. III – Perante uma situação carecida de intervenção para promoção e proteção, a medida de “Apoio junto dos pais” não deverá ser desde logo descartada, passando-se para medida de acolhimento institucional, quando, à data da decisão, seja manifesto um esforço continuado de reorganização por parte dos progenitores, e não estando em causa a quebra dos vínculos afetivos dos menores com os pais.” (sublinhado nosso).
27. Fica claro e evidente que o acórdão recorrido além de efetuar uma errada valoração da prova, decidiu de forma contrária ao preceituado nos princípios previstos no artigo 4.º da LPCJP, mormente os princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade e atualidade, da responsabilidade parental e da prevalência da família.
28. Em face do exposto, deve este Venerando Tribunal corrigir o decidido em primeira instância, alterando a medida de promoção e proteção aplicada à menor S. F., substituindo-a por medida alternativa que permita a manutenção do vínculo familiar existente, e possibilite aos pais tempo de aprendizagem e melhora das capacidades e condições económicas, sendo suficiente para esse desiderato a aplicação das medidas de promoção e proteção de apoio junto dos pais, ou o acolhimento residencial.

Nestes termos e nos melhores de direito, deve ser concedido provimento ao recurso, sendo substituída a medida de promoção e proteção aplicada por outra que acautele os princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade e atualidade, da responsabilidade parental e da prevalência da família, e, bem assim, proteja o superior interesse da criança, assim se fazendo inteira JUSTIÇA!».
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1.4. Igualmente o progenitor F. O. interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:

«1- Com o presente recurso visa o Recorrente a invocação da nulidade do acórdão por não especificar os fundamentos de direito que justificam a decisão, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, b) do CPP; A impugnação da matéria de facto dada como provada e não provada nos autos, versando, assim, matéria de facto e de direito, nos termos dos artigos 639.º e 640.º do Código de Processo Civil, incidindo sobre a prova produzida em audiência de julgamento e gravada em suporte informático.
2- As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei, sendo esta uma imposição constitucional, vertida no artigo 205.º, n.º 1 da CRP, tendo o julgador o ónus de explicitar os motivos de direito que o levaram a decidir num determinado sentido
3- A decisão em causa aplicou uma medida de promoção e proteção de confiança a instituição com vista a futura adoção, estando o tribunal a quo vinculado à sua fundamentação, quer de facto, quer de direito.
4- O acórdão recorrido, em momento algum, indica e explicita as razões de direito que influíram na decisão da causa e que, essencialmente, estruturaram a decisão emitida, sendo certo que se trata de uma questão de grande relevância.
5- A medida decidida é grave, não só pelo seu conteúdo, mas também por não ser passível de revisão, nos termos do artigo 62.º-A, n.º 1, da LPCJP e tal gravidade revela-se, aliás, pela circunstância de ser a última medida do elenco do artigo 35.º da Lei de Proteção. Não pode ser de ânimo leve que ela seja decretada. E, acima de tudo, sem sustentação factual e jurídica.
6- É condição de decretamento da medida de confiança judicial que se demonstre não existir ou que se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afetivos próprios da filiação, através da verificação objetiva de qualquer uma das situações descritas no n.º1 do artigo 1978.º do CC.
7- O tribunal a quo não faz, sequer, referência a este requisito essencial e, repita-se autónomo e, muito menos, conclui nesse sentido.
8- Impende sob o tribunal a quo o ónus de enquadrar juridicamente os factos, indicar as normas jurídicas aplicáveis e referir as razões pelas quais procedeu ao enquadramento jurídico nos termos em que o fez, o que não sucedeu, estando o douto acórdão ferido de nulidade por falta de fundamentação de direito que justifique a decisão.
9- O Recorrente considera existir uma errónea apreciação da prova produzida, designadamente quanto à matéria de facto dada como provada, concretamente os pontos 13, 15, 16, 26, 54, 57 e 61 dos Factos Provados que foram incorretamente julgados, impondo-se, assim, a sua modificação, nos termos do artigo 662º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
10- E pretende uma reanálise dos factos dados como não provados que deveriam ter sido dados como provados, concretamente: a existência de interesse pela menor. F. O. não teve oportunidade de mostrar aptidão para a paternidade. A debilidade económica impediu visitas à menor. Não tem familiar próximo de si. Não dispôs de meios para ir a Melgaço. Estivesse a menor colocada mais perto e as visitas seriam mais frequentes.
11- Entende o Apelante, que a prova produzida, analisada na sua globalidade, justificaria que outra tivesse sido a douta decisão.
12- A prova produzida em audiência de julgamento, pelas várias testemunhas que depuseram, cujos depoimentos se encontram gravados e se pretende reexaminar, conjugada com os demais meios probatórios, em especial, toda a prova documental junta aos autos, justifica que os factos acima transcritos não tivessem merecido da parte do Tribunal a quo a resposta que lhes foi dada, padecendo, assim, de erro de avaliação ou apreciação.
13- Entende, assim o Recorrente, que da prova produzida em audiência de julgamento decorre que os pontos 13, 15, 16 , 26, 54, 57 e 61 se encontram incorretamente julgados, sendo que, os meios probatórios constantes dos autos que impunham uma decisão diversa da recorrida, são, no essencial, os mesmos que o Tribunal usou para se convencer dos factos que lograram ficar provados e não provados, ou seja, o conjunto das testemunhas que depuseram em Audiência, apreciadas em toda a sua extensão, conjugados com toda a prova documental junta aos autos.
14- O erro na apreciação da matéria de facto e a consequente necessidade da sua alteração decorre, para além do mais: do depoimento da Dra. D. P., cujo depoimento se encontra gravado no sistema “Habilus Media Studio”, das 14:52:35 a 15:23:46, minuto 14:47 a 14:57 da gravação)” e do depoimento da Agente M. C., cujo depoimento se encontra gravado no sistema “Habilus Media Studio, das 11:24:49 a 11:39:08, minutos 3:35 a 3:54; minutos 4:04 a 4:10 e minutos 10:32 a 11:00 .
15- Impõe-se, assim, que se considere incorretamente julgado estes pontos da matéria de facto, modificando-se a mesma, devendo este Exmo. Tribunal dar como Não Provado que F. O. e S. F. vêm sendo acompanhados por equipa do RSI, encontrando esta, em finais de 2019 a casa desorganizada e suja e com cães a circular dentro daquela, que a casa encontra-se habitualmente suja, desarrumada e com os cães dentro, que em ocasiões em que sabia da vida da equipa, F. O. prendia os cães perto fora da casa, que a casa estava desorganizada e suja e tinha roupas espalhadas e dentro estavam cinco cães.
16- Igualmente deverá dar-se como não provado os pontos 54, 57 e 61, atento o erro na apreciação da matéria de facto e a consequente necessidade da sua alteração decorre, para além do mais: do depoimento do Recorrente, que se encontra gravado no sistema “Habilus Media Studio, das 11:13:45 a 11:40:57 que, quando questionado sobre o teor das conversas telefónicas existentes entre ele e o CAT, respondeu: “falo com a menina, se estava bem, se estava bem de saúde, como ela estava, que quando eu possa ir vê-la telefonava, que não posso ir por não ter transporte” (minuto 23:57) ou ainda, “Quando eu fui em setembro lá, peguei na pequena ao colo, tirei fotos…e eu perguntei-lhe a ela se estava tudo bem, olá, dei-lhe uns beijinhos e acarinhei-a e ela começou-se a rir para mim e abraçou-se aqui, com a mãozita abraçou-me aqui a camisola, puxou-me para baixo. E eu disse aos meus irmãos para me tirarem duas ou três fotos para eu fazer um quadro, uma recordação para quando ela crescer.” (minuto 14.03)
17- Impõe-se, assim, mais uma vez, com o devido respeito, que se considere incorretamente julgado estes pontos da matéria de facto, modificando-se a mesma, devendo este Exmo. Tribunal ad quem dar como Não Provado que F. O. não fez perguntas sobre a menor nem procurou inteirar-se sobre ela.
18- Salvo o devido respeito, que é muito, pelo Tribunal a quo, a prova testemunhal produzida, não foi corretamente interpretada e valorada.
19- Foram dados como não provados, entre outros, os seguintes factos: A inexistência de desinteresse pela menor; F. O. não teve oportunidade de mostrar aptidão para a paternidade; A debilidade económica impediu visitas à menor; Não tem familiar próximo de si; Não dispôs de meios para ir a Melgaço; Estivesse a menor colocada mais perto e as visitas seriam mais frequentes.
20- Não se provou a inexistência de desinteresse pela menor e não se percebe, por desfasada da prova produzida, a linha de pensamento do tribunal recorrido e a comprovar temos o depoimento da testemunha, Dra. D. P., minutos 21:48 a 22:22, em que refere “(…) A esperança dele sempre foi ter a filha (..)” e o depoimento da Agente M. C., minutos 11:46 a 12:02, “era porque primeiro ela queria que tirasse o nome da filha porque o sr F. O. disse que ia pedir a guarda dela e que não ia deixá-la vê-la porque ela estava sempre, entre aspas, a portar mal.”
21- O Recorrente sempre manifestou o propósito de ter a filha com ele, por isso deveria o tribunal a quo ter dado como provado que existe interesse pela menor.
22- De toda a prova produzida resulta evidente que o Recorrente não teve oportunidade de mostrar aptidão para a paternidade, pelo que, não se consegue vislumbrar o porquê de ter sido dado como não provado que “F. O. não teve oportunidade de mostrar aptidão para a paternidade”, porque efetivamente não teve, conforme se infere do seu próprio depoimento gravado no sistema “Habilus Media Studio, das 11:13:45 a 11:40:57, minutos 27:13 a 27:41: Advogada: Esteve quê? Duas horas, três horas com a sua menina até agora? Recorrente: Há volta de uma hora; Advogada: Todo o tempo? Quer no hospital, quer no lar? Recorrente: Não, não. No hospital foi 5 minutos, que eu vi a filha. Disseram-me só 5 minutos, 5 minutos. Mandatária: E depois foi logo levada para Melgaço? Só esteve 5 minutos com a sua filha depois de ela nascer? Recorrente: Não deixaram mais…”
23- Deveria ter sido dado como provado que existe interesse na criança, interesse esse corroborado e do conhecimento das testemunhas e, igualmente, que o Recorrente não teve oportunidade de mostrar aptidão para a paternidade, porque, efetivamente, não teve.
24- O Recorrente adota sempre uma postura de colaboração que foi referida por várias testemunhas, designadamente a Dra. A. C., Presidente da CPCJ de ..., cujo depoimento se encontra gravado no sistema “Habilus Media Studio as 12:04:52 às 12:35:13 onde referiu que: “Eu não posso dizer que o sr F. O. não seja um pessoa colaborante, (…)o sr F. O. sempre demonstrou ser colaborante (minutos 24:16 a 24.53) ou ainda, a agente M. C. que referiu: “O Sr F. O. está sempre calmo, muito calmo e a dona S. F. está sempre, sempre nervosa” (minuto 9:55).
25- O Recorrente sempre demonstrou intenção em ter a bebé consigo, de cuidar dela e de aprender tudo aquilo que fosse necessário e ainda é expectável que consiga prover ao cuidado normal de uma criança e não se pode inferir que não tem amor e carinho pela menor, de que é exemplo o depoimento da Técnica Dra. D. P.: “eu enquanto técnica acreditava mais nele sozinho para cuidar da filha do que na mãe ou no conjunto dos dois. Acredito que ele sozinho e bem trabalhado pudesse até conseguir” (minutos 15:00).
26- Ao ter decidido pelo reencaminhamento para a adoção, o douto acórdão desrespeitou o princípio da prevalência da família na promoção de direitos e na proteção, bem como os princípios da prevalência da família, da responsabilidade parental e, sobretudo, o do superior interesse da menor.
27- Não se encontram comprometidos os vínculos próprios da filiação e, muito menos, pode extrair-se essa conclusão em relação ao pai, porque, na prática, não existiu qualquer tentativa ou oportunidade atribuída ao pai no que se refere à aferição das suas capacidades e competências parentais.
28- Conforme consta dos documentos juntos aos autos, o rendimento mensal do Recorrente não lhe permite custear as despesas de transporte, sendo certo que a criança foi institucionalizada no CAT ... que dista cerca de 100 km da residência dos progenitores.
29- Também consta dos autos e resulta cabal da prova produzida que o Recorrente não tem familiares próximos de si, nem meios para se deslocar a Melgaço: o Recorrente não tem carta de condução, não existe ligação direta de transportes públicos, não tem forma de custear despesas de táxi, nem dos próprios transportes públicos, já que recebe cerca de 200,00€ mensais do RSI, valor esse comprovado nos autos.
30- Com o devido respeito, o Tribunal a quo errou na apreciação da prova, pelo que quanto aos factos identificados supra, o Tribunal ad quem deve determinar a alteração da matéria de facto, nos termos referidos, com as consequências do disposto no artigo 662º n.º 1, n.º 2 e n.º 3 do CPC.
31- Atendendo ao quadro normativo e principiológico que rege a matéria em causa é consabido que “os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”, conforme dispõe o nº 5 do artigo 36.º da CRP, “não podendo estes ser separados daqueles, a não ser que os pais não cumpram para com eles os seus deveres fundamentais e sempre mediante decisão judicial”, nos termos do n.º 6.
32- E, por força da proteção da maternidade e paternidade, consagrada no artigo 68.º do mesmo diploma, os pais têm direito à “protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação (…)”.
33- Sem olvidar, as crianças também são sujeitos de direitos fundamentais e têm, por seu lado, direito “à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas demais instituições”, conforme dispõe o nº 1 do artigo 69º da CRP. Aliás, é incumbência do Estado assegurar especial proteção às crianças órfãs, em estado de abandono ou que se encontrem, por qualquer forma, privadas de um ambiente familiar normal.
34- Na mesma linha, a Convenção sobre os Direitos da Criança, no seu artigo 3º, nº 1 estabelece que: “Todas as decisões relativas a crianças, adotadas por instituições públicas ou privadas de proteção social, por tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, terão primacialmente em conta o interesse superior da criança.”
35- E o artigo 9.º da Convenção impõe que a criança não seja separada dos pais, salvo se as entidades competentes decidirem que essa separação é necessária no interesse superior da criança.
36- In casu, importa, porém, saber se os factos apurados permitem concluir que a medida em causa, dada a sua particular natureza e caraterísticas, é a que melhor tutela os direitos e interesses da criança, sendo certo que de todas as medidas previstas no artigo 35.º da LPCJP é a que maior e mais expressivo impacto tem na vida e no futuro da criança, desde logo, porque determina a inibição do exercício das responsabilidades parentais por parte dos pais e a cessação dos laços afetivos existentes entre a criança e a sua família biológica.
37- No caso dos autos, e não perdendo de vista a necessidade de dar prevalência ao superior interesse da criança, considera-se que até à medida de confiança a instituição com vista a futura adoção ainda há um longo caminho a percorrer, não se encontrando demonstrado que o Recorrente é incapaz ou inepto para promover a saúde, bem-estar, conforto, proteção, educação e desenvolvimento integral da sua filha.
38- E a lei dá preferência, como se sabe, a soluções que mantenham a criança dentro do círculo da sua família natural, como se infere, designadamente, da primeira parte da alínea h) do artigo 4º da LPCJP e do artigo 21º, alínea c) da Convenção sobre os Direitos da Criança.
39- A adoção, neste caso concreto, revela-se uma medida desproporcional e face a todos os elementos colhidos e à prova produzida, é manifestamente excessiva, desadequada e não é a ultima ratio.
40- Não se encontra demonstrado que o progenitor é totalmente incapaz ou inepto para prover aos cuidados básicos da sua filha, sendo certo que não foi, sequer, dada qualquer oportunidade ao Recorrente para exercer essas competências.
41- E, na fundamentação do douto acórdão, refere o tribunal a quo o seguinte: “As aptidões do progenitor são insuficientes.” Ora, como bem refere, insuficiência, não significa inexistência… E é obrigação do Estado, antes de equacionar a adoção, dotar o progenitor das aptidões em falta, a fim de se tornaram suficientes.
42- É ponto assente que a aplicação da medida de confiança a pessoa selecionada para a adoção ou a instituição com vista a futura adoção, prevista no art.º 35, n.1, al. g) da LPCJP, para além da verificação dos pressupostos contidos no artigo 1978° do CC, impõe que aos pais do menor sejam dadas todas as garantias e direitos de que dispõem.
43- Com o devido respeito, que é muito, neste caso, o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, demonstra uma patente, manifesta e inaceitável contradição e desconformidade com os elementos constantes dos autos, relevando factualidade incompleta, não fundamentada e desfasada dos depoimentos prestados, bem como omite e desconsidera factualidade relevante, numa decisão precipitada.
44- Não há prova de o Recorrente é incapaz de cuidar da filha, senão veja-se o depoimento da Dra. D. P., Técnica do RSI: “Mandatária: Não se pode dizer que o sr F. O. não tem competências parentais? Ou tem algumas competências parentais? Testemunha: Tem algumas sim” (minutos 18.57 a 19:06).
45- A adoção é o recurso único e último, depois de esgotadas todas as hipóteses previstas na lei, que não o foram. Não demonstra a decisão que o tenham sido, antes pelo contrário, tanto mais que existem outras alternativas válidas à institucionalização e futura adoção. A adoção é o caminho mais fácil e, optou-se pelo caminho mais fácil, em atropelo aos princípios e normas que regem esta matéria.
46- Não pode o Tribunal, com base em juízos não sustentados, que mais não são do que juízos de prognose, concluir, sem mais, pela ineptidão do Recorrente para acolher a menor.
47- Tal conclusão careceria de fundamentação muito mais densa e de prova irrefutável, o que não se verificou, pois não se concluiu, ainda que minimamente, que não existem ou se encontram seriamente comprometidos os vínculos próprios da filiação.
48- Dúvidas não podem restar de que que não foram esgotados todos os recursos que a lei prevê.
49- Concluindo- se, pois, não estarem reunidas as condições para a criança poder ser confiada com vista à adoção, uma vez que não estão verificadas as condições previstas no artigo 1978. °, n.°1 do Código Civil.
50- A criança encontra-se numa situação de institucionalização e não há motivos para promoção de outra medida senão a da sua manutenção, evoluindo-se, posteriormente, para a medida de apoio junto dos pais, após melhora da condição e recursos do progenitor que, em curto espaço temporal, pretende receber a criança.

Termos em que, com o vosso douto suprimento, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, deve o acórdão ser revogado, substituindo-se por outro que decida nos moldes apontados, em que se aplique medida de promoção e proteção em consonância com os princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade, da adequação, da responsabilidade parental, da prevalência da família e do superior interesse da criança, com o que se fará oportuna e, acima de tudo, equitativa JUSTIÇA».
*
O Ministério Público apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo quanto ao encaminhamento para adopção.
Foram colhidos os vistos legais.
**
1.5. Questões a decidir

Tendo presente que o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635º, nºs 2 a 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são questões a decidir:

i) Nulidade do acórdão por falta de fundamentação de direito;
ii) Erro de julgamento da matéria de facto;
iii) Erro de direito na apreciação dos requisitos para o decretamento da medida.
***
II – FUNDAMENTOS

2.1. Fundamentos de facto

2.1.1. No acórdão recorrido consideraram-se provados os seguintes factos:
«1- S. F. nasceu em - de Março de 2020.
2- S. F. é filha de F. O. e de S. F..
3- Aquando do nascimento de S. F., ele era solteiro, com anos de idade e ela era casada, com 27 anos de idade.
4- Logo nesse dia a comissão de protecção designou técnica para o processo de S. F. e foi contactada a avó materna, que recusou a acolher a menor.
5- Os progenitores deram o consentimento para intervenção da comissão.
6- E a 18 de Março foi aplicada a medida de acolhimento residencial, entrando S. F. no CAT em Melgaço, no dia 20 desse mês.
7- S. F. e F. O. vivem juntos desde 2019, em Freixo, em casa que fora dos pais deste, tendo relação conflituosa, com gritos, zangas e pancada entre eles.
8- S. F. tem telemóvel e F. O. tem telemóvel.
9- F. O. tem irmãos emigrados em França com quem mantém contactos e tem um irmão em ..., com quem não fala.
10- S. F. tem irmã e pais no concelho de Barcelos, não se dando com eles.
11- F. O. tem como rendimento o RSI, no montante de €189, vindo a beneficiar daquele desde 2016.
12- Esteve integrado em programa de autarquia e em curso de certificação de competências.
13- F. O. e S. F. vêm sendo acompanhados por equipa do RSI, encontrando esta, em finais de 2019 a casa desorganizada e suja e com cães a circular dentro daquela.
14- F. O. e S. F. alimentam os animais, não estando estes vacinados.
15- A casa encontra-se habitualmente suja, desarrumada e com cães dentro.
16- Em ocasiões em que sabia da vi[n]da da equipa, F. O. prendia os cães perto fora de casa.
17- A 2 de Janeiro de 2020, aconselhada pela técnica a retomar as consultas de psiquiatria, S. F. respondeu não ser tola e que não iria a consulta nenhuma.
18- Afirmou não cozinhar em casa e que, caso se chateasse com F. O., deixava tudo.
19- S. F. não tinha noção das semanas que levava de gravidez.
20- A 12 de Fevereiro de 2020, pretendendo a funcionária da equipa orientar S. F. a lavar e passar roupa e preparar o saco para a maternidade, preferiu aquela tratar do tarifário com a operadora do telemóvel e não se dispondo acompanhar aquela nessas tarefas.
21- S. F. não tinha noção sobre a necessidade de esterilizar chupeta e biberão, supondo que aquela derreteria e pretendendo levá-la para a maternidade ainda dentro da embalagem, tendo-a por pronta a ser usada.
22- Indispôs-se com a funcionária, acusando-a de querer mandar nela.
23- No dia seguinte (13/2) disse à funcionária e à técnica da equipa que não queria que fossem a casa sem que ela lá estivesse, porque podia lá chegar e ter um par de cornos e que não as queria ver.
24- A 20 de Fevereiro, a equipa deu conta de que S. F. tinha na mala para a maternidade e destinados ao bebé, um pente de homem, um corta unhas de adulto, tesoura de adulto, faltando produtos usuais, como creme para evitar assaduras.
25- E F. O. defendeu S. F., atribuindo-lhe aptidão para tratar das coisas para a bebé e ser desnecessária a ajuda da equipa, tendo como adequados os preparativos e os artigos escolhidos por ela.
26- A casa estava desorganizada e suja e tinha roupas espalhadas e dentro estavam cinco cães.
27- A 27 de Fevereiro, a equipa encontrou a casa desarrumada e suja.
28- S. F. manifestou-se insensível e impermeável ao esforço da equipa de acompanhamento e manteve postura agressiva e mal-educada.
29- Devido a conflitos entre S. F. e F. O., a GNR esteve em casa destes nos dias 6 de Março, 3 e 13 de Abril de 2020.
30- A 6/3, S. F. invocou estar a ser agredida e declarou querer deixar F. O. e com ele a menor após nascer.
31- A 3/4, S. F. esclareceu ter existido discussão entre ambos.
32- A 13/4, S. F. queixou-se de discussões e agressões. A saída dos militares, S. F. disse a F. O. lá dentro é que vais ver e empurrou-o e pontapeou-o, tendo de seguida sido levada pela guarda para acalmar.
33- Em telefonema para marcação de atendimento, em de Junho, S. F. disse à técnica que F. O. não tinha que ir, por não ser o pai, que ninguém mandava nela e que se queria que ele comparecesse era porque queria ir para a cama com ele.
34- Disse ainda em telefonemas iniciados por ela: vocês na comissão querem é roubar, você é uma ladra; pode dormir com o F. O. à vontade; vá para a cama com ele.
35- Advertida S. F. que não lhe seria atendido o telefone, nesse mesmo dia efectuou 14 chamadas para o telefone da Comissão.
36- E remeteu ainda mensagens para o dito telefone, com os teores seguintes: O vaca fica com o F. O.; Não tenho medo de vos puta: O puta ladra; O ladra vai para a cama com o F. O.; O puta ladra tas a levar na cona; o porca; Ladra puta es a maior vaca dai; N tenho medo de ti vai luvar na cona com o F. O. ainda te pago.
37- S. F. tem uma filha com C. M., J. M., nascida a - de Novembro de 2016.
38- Esta saiu da maternidade com a condição de ficar em casa da avó materna e sob a vigilância desta, atenta a falta de confiança nas capacidades de S. F. para lhe prestar cuidados.
39- J. M. vive com os avós maternos, A. N. e M. A., no concelho de Barcelos, primeiro por via de medida de protecção de apoio junto dos avós e depois por decisão de Fevereiro de 2019, do TFM, que estabeleceu a residência junto destes.
40- S. F. não mantém ligação com J. M., declarando em 8 de Julho de 2020 que há cerca de um ano que não a visitava.
41- S. F. está de relações cortadas com os pais e com a irmã.
42- S. F. foi acompanhada em psiquiatria, tendo abandonado as consultas e a medicação por sua iniciativa.
43- S. F. revelou desadequação para a função maternal, deixando de amamentar J. M. na semana após o nascimento e deixando-a sem comer e sozinha durante um dia, ignorando as necessidades da bebé, não tendo noção de horários nem da debilidade daquela.
44- Nem os avós nem outro familiar manifestaram qualquer intenção de acolher S. F. ou sequer de contactar com ela.
45- A avó materna, ouvida a propósito, recusou de imediato a possibilidade de acolher S. F., invocando o desequilíbrio materno.
46- S. F. frequentou curso de formação em Barcelos, tendo recebido bolsa de €210 até Julho de 2020, não tendo nem antes nem depois actividade profissional e estando sem rendimentos.
47- F. O. telefonou para o CAT em 22 de Março, 18 de Julho e 24 de Julho.
48- E a 22 de Setembro, para agendar vista para o dia 27 desse mês.
49- F. O. esteve no CAT com a menor em 27 de Setembro.
50- S. F. recusou acompanhar F. O. na visita à menor. Não quis ir vê-la, entendendo que quem lha tirou é que lha deve trazer e não ser ela a deslocar-se.
51- F. O. justificou a não deslocação de S. F., com problemas de saúde desta, dores no pé.
52- A 22/3 F. O. ligou, na sequência de contacto da comissão, para dar conta de que iria proceder ao registo da menor.
53- F. O. não tem viatura e descolou-se ao CAT com irmão, de férias no país.
54- F. O. não fez perguntas sobre a menor nem procurou inteirar-se sobre ela.
55- No telefonema de dia 24 marcou visita para 14 de Agosto, ocasião em que tinha irmão que o podia conduzir a Melgaço. No dia 14 de Agosto não compareceu e não deu explicações para a ausência.
56- Justifica não telefonar mais para o CAT porque S. F. ainda não conversa e porque gasta o saldo com ligações para outras pessoas.
57- Disponibilizada ajuda para poder aceder a videochamadas de modo a ver a menor, através do telemóvel, não manifestou interesse em ser ajudado.
58- F. O. considera que S. F. tem aptidão para cuidar da casa e da menor. Apesar do tempo livre, não teve disposição para se dedicar a arrumar minimamente a casa, aceitando a desorganização e sujidade.
59- S. F. telefonou para o CAT em Abril, semanalmente. Questionou o CAT da possibilidade de videochamada e dando conta que implicaria custos para ela, não voltou ao tema.
60- A 23 de Maio e a 4 de Junho voltou a telefonar para o CAT. A 23/5 foi convidada para ir visitar a menor.
61- Não fez perguntas sobre a menor durante os telefonemas e pediu, sem sucesso, que lha levassem a ... e não pediu para marcar qualquer visita.
62- A 4 de Junho, no telefonema, disse que F. O. não era o pai de S. F. e que queria que ele tirasse o nome.
63- S. F. e F. O. não fizeram outros telefonemas nem foi realizada qualquer outra visita, além da de dia 27 de Setembro, não lhes tendo alguma vez sido recusadas visitas nem contactos telefónicos.
64- S. F. recusou contactar com a técnica gestora, após aplicação da medida de acolhimento, datada de 8 de Julho.
65- A 9 de Julho, S. F. tentou dar estalo na técnica do RSI.
66- Ouvida a 24 de Novembro, S. F. esclareceu não ter querido ir visitar a menor e não querer ter ligação com ela. E nesse dia, F. O. invocou problema no pulmão para explicar porque não trabalha.
67- Invocando F. O. que os irmãos emigrados poderiam acolher a menor, foi advertido para que aqueles contactassem os serviços, nenhum o tendo feito.
68- F. O. declara que os irmãos emigrados têm capacidade económica e lhe mandarão dinheiro para ajudar a criar a menor, quando esta estiver em casa. O mesmo diz S. F. quanto a um tio que emigrado na Alemanha».
*

2.1.2. Na decisão recorrida considerou-se que, «como não provados, resultaram os seguintes factos:

A inexistência de desinteresse pela menor. Os progenitores tinham tudo preparado para acolher a criança; consigam, minimamente, cuidar de uma casa e de um bebé. F. O. não teve oportunidade de mostrar aptidão para a paternidade. Está integrado socialmente. Perspectiva integração no mercado de trabalho. A debilidade económica impediu visitas à menor. Não tem familiar próximo de si. Não dispôs de meios para ir a Melgaço. Estivesse a menor colocada mais perto e as visitas seriam mais frequentes. S. F. não teve oportunidade de estar com a filha. A impossibilidade de deslocar-se a Melgaço. Não teve oportunidade de mostrar as suas capacidades. Vai melhorar a sua situação. Não foi ajudada adequadamente.
Não foi produzida prova que confirmasse o alegado pelos progenitores, designadamente a impossibilidade de contactos, a preparação para o nascimento, a aptidão para a prestação de cuidados, a integração social, maior ligação se a colocação fosse menos distante. A previsível melhoria da situação dos progenitores e a deficiência da intervenção e apoio ao agregado. O que se constata é o contrário do alegado».
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2.2. Do objecto dos recursos

2.2.1. Nulidade da sentença por falta de fundamentação – conclusões 2 a 4 do recurso do progenitor

Invocando o Recorrente F. O. a nulidade da sentença por falta de fundamentação, cumpre apreciar tal fundamento.
Nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea b), do CPC, «é nula a sentença quando (…) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão».
O artigo 205º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra o dever de fundamentação das decisões dos tribunais, o qual mostra-se concretizado, quanto ao processo civil, no artigo 154º, nº 1, do CPC. Impõe-se um tal dever por razões de ordem substancial, pois cumpre ao julgador demonstrar que da norma geral e abstracta soube extrair a disciplina ajustada ao caso concreto; de ordem prática, posto que as partes precisam de conhecer os motivos da decisão, em particular a parte vencida, a fim de, sendo admissível o recurso, poder impugnar os respectivos fundamentos.
Segundo Alberto dos Reis (2), «há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto».

Como referem, igualmente, Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (3), «para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente, incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito».
Por outras palavras, enquanto vício da sentença, ou seja, como fundamento da sua nulidade, apenas releva a falta de fundamentação (4) e não quaisquer outras patologias, como a sua insuficiência, incompletude ou mediocridade.
Como actualmente a sentença contém tanto a decisão sobre as questões de direito como a decisão sobre a matéria de facto, um vício semelhante ao referido no artigo 615º, nº 1, al. b), do CPC, também pode emergir da decisão da matéria de facto.
Porém, o regime e respectivas consequências não são inteiramente coincidentes, uma vez que a invocação dos vícios da decisão sobre a matéria de facto é feita nos termos do artigo 640º do CPC, não decorrendo necessariamente do reconhecimento dos mesmos a anulação da decisão. Isto porque em regra a Relação, em recurso, substitui-se ao tribunal recorrido (5), sendo que nas restantes situações rege o artigo 662º, nºs 2 e 3, do CPC.

De harmonia com o alegado pelo Recorrente F. O., «o acórdão recorrido, em momento algum, indica e explicita as razões de direito que influíram na decisão da causa e que, essencialmente, estruturaram a decisão emitida».
A directriz sobre a fundamentação de direito consta do artigo 607º, nº 3, do CPC, na parte em que se estabelece que o juiz deve «indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes».
Verifica-se que o Tribunal recorrido cumpriu tal imposição nas páginas 9 a 12 da sentença, indicando e aplicando como normas jurídicas relevantes os «art. 3º n.2, ) e f) LPCJP e art. 1978º n.1 d) e e) CC e 36º n.6 CRP (…), art. 4° LPCJP (…) art. 35° n.1 g), 38°-A e 62°-A LPCJP», tendo aí fundamentado por que decidiu aplicar as medidas de «confiança à instituição em vista da futu­ra adopção, cessação de contactos e inibição» naqueles termos. Concluiu-se «pelo abandono, flagrante e persistente desinteresse, ausência de ligação afectiva mínima, e que caso a menor ficasse a cargo dos progenitores lhe faltariam com cuidados e afeição e ficaria exposta a condutas violentas que afectariam a segurança e equilíbrio (…), e constata-se a completa falta de alternativa no âmbito da família alargada e de qualquer outra resposta que atenda ao interesse de S. F. (…), devendo ser acolhida a solução indicada pelo MP, a separação definitiva dos pro­genitores».
Depreende-se do alegado que a Recorrente entende que a fundamentação devia ser mais desenvolvida, para se poder considerar que o acórdão estava devidamente fundamentado. Não o tendo sido, daí resultaria uma falta de fundamentação.
Existem várias formas de expressão da fundamentação, umas mais sintéticas e outras mais prolixas. Todas as diferentes formas de expressão podem ser sujeitas a críticas, mais ou menos justificadas, mas se existe ponto relativamente ao qual o legislador se mostrou inequívoco é relativamente ao combate à “injustificada prolixidade”, tanto das peças processuais como das decisões, «totalmente inadequada à real complexidade da matéria do pleito» (v. preâmbulo da Proposta de Lei nº 113/XII).
Em lado algum o Código de Processo Civil impõe ao juiz uma fundamentação mais desenvolvida do que aquela que consta do acto recorrido. Apenas exige que o juiz resolva todas as questões que as partes suscitaram ou de que lhe cumpra conhecer oficiosamente e que ao fazê-lo fundamente a sua decisão.
No caso dos autos, todas as questões foram abordadas e com fundamentação suficiente para se perceber por que se decidiu daquele concreto modo.
Em conclusão, não existe falta de fundamentação, pelo que nesta parte se julga improcedente a apelação.
*
2.2.2. Da impugnação da decisão da matéria de facto - conclusões 9 a 25 do recurso do progenitor

2.2.2.1. Em sede de recurso, o Recorrente F. O. impugna a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal de 1ª instância.

O Recorrente considera incorrectamente julgados os pontos de facto indicados nas conclusões 9 e 10 das suas alegações.

O Recorrente entende que esta Relação deve:
a) «Dar como Não Provado que F. O. e S. F. vêm sendo acompanhados por equipa do RSI, encontrando esta, em finais de 2019 a casa desorganizada e suja e com cães a circular dentro daquela, que a casa encontra-se habitualmente suja, desarrumada e com os cães dentro, que em ocasiões em que sabia da vida da equipa, F. O. prendia os cães perto fora da casa, que a casa estava desorganizada e suja e tinha roupas espalhadas e dentro estavam cinco cães» (conclusão 15);
b) Dar «como provados, concretamente: a existência de interesse pela menor. F. O. não teve oportunidade de mostrar aptidão para a paternidade. A debilidade económica impediu visitas à menor. Não tem familiar próximo de si. Não dispôs de meios para ir a Melgaço. Estivesse a menor colocada mais perto e as visitas seriam mais frequentes» (conclusão 10).
*

2.2.2.2. Com vista a ficarmos habilitados a formar uma convicção autónoma, própria e justificada, procedemos à leitura de todos os actos que constam do processo, à análise de todos os documentos e informações juntos aos autos e à audição integral da gravação das declarações dos progenitores F. O. e S. C. e dos depoimentos das testemunhas M. C. (militar da GNR do Posto de ...), A. N. (director técnico da instituição onde a criança se encontra acolhida - o CAT (6) ...), A. C. (presidente da CPCJ – Comissão de Protecção de Crianças e Jovens - de ..., que passou a acompanhar directamente a situação da criança após o seu nascimento – por ter sido sinalizada a situação à CPCJ logo no próprio dia do nascimento pelo Serviço Social do Hospital de … – e até Junho de 2020, altura em que a progenitora retirou o seu consentimento à intervenção da Comissão), C. G. (técnica da CPCJ de Barcelos e da Segurança Social de Braga, que acompanhou a situação da criança J. M., nascida em -.11.2016, irmã de S. F.), L. C. (técnica da EMAT – Equipa Multidisciplinar de Apoio Técnico aos Tribunais – de Esposende que acompanhou – e ainda acompanha - a situação de J. M., filha da Recorrente S. F.), C. S. (psicóloga da Equipa de RSI – Rendimento Social de Inserção – de ...), D. P. (técnica da Equipa de RSI de ... que, no exercício das suas funções, acompanhou – e continua a acompanhar – a situação do pai da S. F., desde que este requereu o RSI em Junho de 2016, através de visitas regulares à habitação deste, entrevistas e múltiplos outros contactos) e H. S. (técnica da EMAT de Viana do Castelo, delegação de Ponte Lima, cujo primeiro contacto com os pais da S. F. ocorreu em -.07.2020, passando então a acompanhar a situação).
*

2.2.2.3. Pontos 13, 15, 16 e 26 dos factos provados

Estes pontos de facto têm o seguinte teor:
- «13- F. O. e S. F. vêm sendo acompanhados por equipa do RSI, encontrando esta, em finais de 2019 a casa desorganizada e suja e com cães a circular dentro daquela»;
- «15- A casa encontra-se habitualmente suja, desarrumada e com cães dentro»;
- «16- Em ocasiões em que sabia da vinda da equipa, F. O. prendia os cães perto fora de casa».
- «26- A casa estava desorganizada e suja e tinha roupas espalhadas e dentro estavam cinco cães».
Embora dispersos por quatro factos, está verdadeiramente em causa um único tema factual: o estado e organização do interior da casa onde habitam os Recorrentes nas alturas em que eram visitados por equipa do RSI (Rendimento Social de Inserção).
Segundo o Recorrente, estes pontos devem ser dados como provados com base no «depoimento da Dra. D. P., cujo depoimento se encontra gravado no sistema “Habilus Media Studio”, das 14:52:35 a 15:23:46, minuto 14:47 a 14:57 da gravação)” e [n]o depoimento da Agente M. C., cujo depoimento se encontra gravado no sistema “Habilus Media Studio, das 11:24:49 a 11:39:08, minutos 3:35 a 3:54; minutos 4:04 a 4:10 e minutos 10:32 a 11:00».

Analisados os elementos probatórios invocados pelo Recorrente e efectuado o seu confronto com todos os demais, pois esta Relação reviu integralmente toda a prova produzida, verifica-se que a Equipa de RSI de ... acompanha a situação de F. O. (e por inerência a situação da sua companheira, S. C.) desde que este requereu o Rendimento Social de Inserção em Junho de 2016. Isso mesmo foi confirmado pelas testemunhas D. P., que é a técnica responsável por esse acompanhamento, e C. S. (psicóloga), que também realiza o referido acompanhamento.
Não se consegue perceber por que razão o Recorrente sustenta que o ponto de facto nº 13 deve ser todo considerado não provado – e não apenas objecto de uma resposta restritiva –, quando nenhum argumento apresenta relativamente à questão factual do acompanhamento pela Equipa do RSI. Pior: o próprio Recorrente durante as suas declarações descreveu actos relativos ao acompanhamento; o mesmo sucedeu com a Recorrente S. C.. Depois, todas as demais testemunhas que depuseram sobre essa matéria confirmaram tal matéria. Mais: a situação é tão evidente que o processo está pejado de referências ao acompanhamento daquela equipa, tendo, no decurso do mesmo, ocorrido uma situação de agressão a elemento que a integrava (D. P.), com a consequente intervenção da Guarda Nacional Republicana.
Se já é censurável impugnar o que é uma realidade evidente e inquestionável até para o próprio recorrente, ainda mais o é quando no decurso do recurso se invoca, por diversas vezes, precisamente o depoimento da pessoa responsável pelo acompanhamento e o quadro deste. Ou seja, impugna-se uma parte de um facto («devendo este Exmo. Tribunal dar como Não Provado que F. O. e S. F. vêm sendo acompanhados por equipa do RSI») e em simultâneo, no quadro da mesma apelação, dá-se por adquirida precisamente essa parte impugnada (entre muitos outros exemplos, veja-se este: «Atentemos novamente no depoimento da Dra. D. P., Técnica do RSI, que acompanha o Recorrente desde 2016»).
Posto isto, vamos ao essencial: tudo o que consta dos apontados pontos de facto corresponde à realidade.
Primeiro, invoca o Recorrente extractos descontextualizados do depoimento da testemunha M. C., os quais não infirmam o que consta daqueles pontos de facto, mas apenas o pouco que a mencionada testemunha constatou durante a única vez em que foi a casa dos Recorrentes.
Importa reter que a referida testemunha se deslocou à casa dos Recorrentes no âmbito de uma solicitação de intervenção da Guarda Nacional Republicana devido a alegada violência doméstica. A militar M. C. referiu expressamente que só entrou na cozinha e que estava “focada” (expressão da própria) no problema que a levara àquela casa e não na observação de aspectos que nada tinham a ver com a razão da sua intervenção, até porque a discussão entre os Recorrentes continuava acesa, com a Recorrente S. F. a ameaçar o companheiro, a tentar pontapeá-lo e a vexá-lo. A situação era tão tensa que tiveram de levar S. F. para o Posto de Freixo, onde então acalmou.
A testemunha M. C. confirmou, cingindo-se à cozinha, única divisão da casa onde entrou por dever de ofício, que era uma casa muito humilde (v. o extracto «é mesmo uma casa humilde» e a forma como o disse) e antiga, que havia cães, que os viu «cá por fora» (4m06s) e que não tem ideia se havia cães na cozinha. Como é óbvio, num quadro de gritaria, ameaças, tentativas de agressão de um elemento ao outro e tudo o mais, dificilmente algum cão se sentiria confortável em manter-se junto daquelas pessoas, pelo que ficaria a uma distância segura, não permanecendo numa divisão como a cozinha.
Deste depoimento apenas resulta objectivamente que a GNR foi chamada várias vezes para intervir em situações de violência doméstica, que a testemunha esteve uma única vez na casa dos Recorrentes, em 13.04.2020 (v. também o teor do auto de notícia junto com o requerimento inicial do Ministério Público), já depois do nascimento da filha S. F., que a casa era antiga e muito humilde, que o casal tinha vários cães, que a Sra. S. F. tem um comportamento muito desajustado e instável, telefona dezenas de vezes («está sempre a ligar») para o Posto de Freixo «por não querer que ele saia com os amigos» (e «não quer que ele saia de casa») e que os membros do casal não trabalham.
Corresponde à verdade que a testemunha M. C. afirmou não ter visto cães “dentro” de casa, mas apenas «cá por fora», pelo que existe lapso do Tribunal recorrido quando afirma que a testemunha viu cães «dentro e fora de casa». O “dentro” está a mais, na motivação da decisão, e a isso se resume a razão do Recorrente.
Segundo, os pontos 13, 15, 16 e 26 da matéria provada versam sobre factos observados, sobretudo, pela Equipa de RSI de ..., respeitam a datas concretamente definidas nos factos provados e todos eles ocorreram antes do nascimento da S. F..
Esses factos constam dos registos diários do principal trabalho desenvolvido pela Equipa de RSI de ... junto de F. O., beneficiário de RSI e como tal sujeito necessariamente a acompanhamento. Esta entidade regista todos os aspectos mais relevantes da sua intervenção junto dos beneficiários de RSI, como sucedeu no caso vertente (os registos mostram-se juntos aos autos). Também os apontados factos foram objecto de relatório (v. por exemplo, o relatório elaborado pela testemunha C. S. em 18.03.2020).
Por outro lado, tais factos foram confirmados pelas testemunhas D. P. e C. S. durante o debate judicial, que directamente os constataram. Por exemplo, no dia 20.02.2020, a referida equipa constatou que «a casa encontrava-se em mau estado, roupas por todo o lado, os cães dentro de casa (5) e tudo sujo». Em 24.02.2020 e 27.02.2020, a Equipa de RSI voltou a alertar o Recorrente F. O. para a falta de higiene e desarrumação da casa e que os cães não podiam andar soltos dentro de casa (só na visita domiciliária de 05.03.2020 é que constataram melhorias ao nível da limpeza e arrumação).
Aliás, no que respeita a animais e ao estado da casa, a decisão só peca por defeito. Os Recorrentes não têm apenas cinco cães em casa (D. P. – 24:05): têm ainda «um porco», conforme afirmou a testemunha D. P. (gravação cerca dos 24m00s). Tais cães não estão vacinados (D. P. – 24:48; confirmado pelo Recorrente durante as suas declarações).
Mais: devido às fragilidades detectadas, o acompanhamento, até à agressão de S. F. a D. P., em 09.07.2020, era feito três vezes por semana (D. P. – 6:20), pelo que o conhecimento da situação por parte dos elementos da Equipa de RSI é extenso e pormenorizado, tal como as duas testemunhas demonstraram durante a prestação dos seus depoimentos.

Termos em que improcede a impugnação da decisão recorrida sobre estes quatro pontos de facto.
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2.2.2.4. Pontos 54, 57 e 61 dos factos provados

Nestes pontos de facto consta o seguinte:
- «54- F. O. não fez perguntas sobre a menor nem procurou inteirar-se sobre ela»;
- «57- Disponibilizada ajuda para poder aceder a videochamadas de modo a ver a menor, através do telemóvel, não manifestou interesse em ser ajudado»;
- «61- Não fez perguntas sobre a menor durante os telefonemas e pediu, sem sucesso, que lha levassem a ... e não pediu para marcar qualquer visita».

Como se vê na conclusão 16, o Recorrente considera que esses pontos de factos devem dar-se como não provados por resultar «do depoimento do Recorrente, que se encontra gravado no sistema “Habilus Media Studio, das 11:13:45 a 11:40:57 que, quando questionado sobre o teor das conversas telefónicas existentes entre ele e o CAT, respondeu: “falo com a menina, se estava bem, se estava bem de saúde, como ela estava, que quando eu possa ir vê-la telefonava, que não posso ir por não ter transporte” (minuto 23:57) ou ainda, “Quando eu fui em setembro lá, peguei na pequena ao colo, tirei fotos…e eu perguntei-lhe a ela se estava tudo bem, olá, dei-lhe uns beijinhos e acarinhei-a e ela começou-se a rir para mim e abraçou-se aqui, com a mãozita abraçou-me aqui a camisola, puxou-me para baixo. E eu disse aos meus irmãos para me tirarem duas ou três fotos para eu fazer um quadro, uma recordação para quando ela crescer.” (minuto 14.03)».

Quanto ao ponto 61 (7), verifica-se que a realidade desse facto emerge directamente do depoimento da testemunha A. N., que descreveu o que sucedeu quando confrontou o pai (e também a mãe) com a possibilidade de verem a criança por videochamada.
Restam, por conseguinte, os pontos 54 e 57.
Relativamente aos pontos 54 e 57 é suficientemente elucidativo da realidade de tais factos o depoimento da testemunha A. N., director técnico do CAT .... Confrontado com as questões factuais constantes destes pontos por diversas vezes as confirmou. Esclareceu que o pai e a mãe estabeleceram alguns contactos consigo e outros técnicos que estavam de serviço e que tanto ele como a mãe «da menina não perguntaram rigorosamente nada» (5:15), inicialmente era «por causa da visita» (5:23), «mas [diziam] que não podiam visitar» (5:25), foi-lhes dito que então «podiam ver a menina através de meios audiovisuais» (5:44), confrontaram-nos com essa hipótese, tendo a mãe dito que «não havia dinheiro para ter…, para fazer isso e nunca mais solicitou» (5:54) e «no caso do pai teve uma conversa com ele nesse sentido» (6:04), sugeriu-lhe «através da rede Facebook» (6:08) e o pai «disse que tinha de ser para o Facebook de um amigo» (6:15), ao que respondeu que o “Facebook” tinha de ser dele, que não podiam pôr as imagens da criança no Facebook de um amigo (6:36) e o pai não voltou a contactá-lo (6:45) e a solicitar a sua ajuda. Ainda mais expressivo foi o depoimento quando a testemunha, inquirida pela Sra. Advogada que patrocina a S. F., disse que os pais «eram pessoas totalmente desligadas» da menina (7:45), que «nunca fizeram, repito, nunca fizeram uma única pergunta, quer o pai, quer a mãe, (…) nunca, nunca houve uma única vez que nos perguntassem como é que a bebé estava» (8:12), «se estava bonita, se estava feia, se comia bem, se dormia bem; não, nunca, nunca fizeram (…) uma pergunta sobre a bebé». Além disso, depois de não ter comparecido, sem dar qualquer justificação, à visita agendada para Agosto de 2020, na visita de 27.09.2020, relativamente à criança, «a única coisa que disse foi que a menina era parecida com ele» (10:12), «mas nem sequer perguntou se ela estava bem, se ela se alimentava bem» (10:16), «foi uma visita curta, de cerca de meia hora, não mais» (10:34).
Portanto, contra factos não há argumentos: o Tribunal recorrido, face ao depoimento da apontada testemunha, com conhecimento directo da situação, não podia fazer outra coisa que não fosse dar como provados os pontos nºs 54 e 57.
Pelo exposto, improcede a impugnação relativamente a estes pontos de facto.
*
2.2.2.5. Pontos de facto não provados referidos na conclusão 10

Estão em causa os seguintes pontos de facto que o Tribunal recorrido considerou não provados:

- A inexistência de desinteresse pela menor;
- F. O. não teve oportunidade de mostrar aptidão para a paternidade;
- A debilidade económica impediu visitas à menor;
- Não tem familiar próximo de si;
- Não dispôs de meios para ir a Melgaço.
- Estivesse a menor colocada mais perto e as visitas seriam mais frequentes.

Vários destes pontos contêm juízos valorativos e na decisão sobre a matéria de facto, por incidir precisamente sobre “factos” – artigo 607º, nºs 3 e 4, do CPC –, só os factos é que relevam. Não interessam os juízos valorativos ou conclusivos, pois não retractam ocorrências da vida real, mas sim o efeito e consequência dessas mesmas ocorrências. Esses juízos devem ser formulados na sentença, pelo juiz, mas com base nos factos dados como provados. São juízos que ultrapassam a objectividade do facto e são por natureza subjectivos, enquanto análise valorativa de uma determinada ocorrência da vida real.
Se excluirmos tais juízos valorativos e conclusivos, as questões factuais, ainda assim com o seu quê de valorativo, cingem-se ao interesse do Recorrente pela filha, à “aptidão para a paternidade” (formulação em si muito pouco terra-a-terra, na medida em que só releva a vertente da capacidade para exercer a função de pai, “para ser pai”, enquanto pessoa cuidadora e zeladora do bem-estar do filho), se não tem familiar junto de si, se a situação económica do Recorrente foi o motivo que o impediu de realizar visitas e se não dispôs de meios para ir a Melgaço (estes dois últimos pontos redundam num único facto – se não visitou a criança por não ter meios económicos para suportar o seu transporte até à instituição que a acolhe).

Começando por apurar se o Recorrente tem algum familiar junto de si, verifica-se que o Tribunal a quo deu como provado, sob o ponto 9, que «F. O. tem irmãos emigrados em França com quem mantém contactos e tem um irmão em ..., com quem não fala».
Só pelo que consta do ponto 9 já se antevia que o Recorrente F. O. «não tem familiar próximo de si», mas isso também resulta evidente da prova produzida, designadamente dos depoimentos das testemunhas D. P., C. S. e H. S.. O próprio Recorrente o afirmou durante as suas declarações e nenhum dos relatórios ou informações escritas juntos aos autos se refere à existência de familiares próximos; pelo contrário, fazem referência à sua inexistência.
Claro que num plano de subjectividade extrema poderíamos cogitar se um irmão que reside em ... de Âncora é um familiar “próximo” ou que está próximo, no sentido de residir nas proximidades da habitação do Recorrente. Para nós é evidente que não é, atenta a distância objectiva (em quilómetros) entre ... e ... de Âncora e o facto de não poder recorrer a esse familiar no dia-a-dia. Por outro lado, estamos a falar de um irmão com quem o Recorrente não fala há mais de 5 anos (desde o falecimento da mãe de ambos (8)) e cuja morada ou modo de vida ignora, pelo que também não é um familiar afectivamente “próximo”.
Por isso, nesta parte, deve dar-se como provado tal facto - F. O. não tem familiares próximos de si.

No que concerne à «existência de interesse pela menor» (v. formulação constante da conclusão 10) e à alegada dificuldade em contactar com a criança, enquanto motivo do afastamento, os factos objectivos “são o que são”: tendo a criança nascido a -.03.2020 e o debate judicial sido realizado nos dias 6 e 8 de Janeiro de 2021, o Recorrente F. O. telefonou para o CAT em 22.03.2020, 18.07.2020, 24.07.2020 (para agendar visita para 14.08.2020, à qual não compareceu e não deu qualquer explicação ou justificação ao CAT) e 22.09.2020 (para agendar vista para 27.09.2020). Só esteve no CAT com a menor no dia 27.09.2020.
Se exceptuarmos o contacto de 18.07.2020, todos os outros telefonemas foram instrumentais: o de 22.03.2020 foi feito na sequência de contacto da CPCJ e limitou-se a dar conta que iria proceder ao registo da menor; os dos dias 24.07.2020 e de 22.09.2020 foram para marcar visitas, sendo que só uma delas efectuou.
Além disso, desde 27.09.2020 não voltou a estabelecer qualquer outro contacto com a instituição onde a filha se encontra.
Por outro lado, tanto à mãe como ao pai, nunca lhes foram recusadas visitas nem contactos telefónicos, além de que a testemunha A. N. afirmou que a instituição se disponibilizou para qualquer um dos progenitores poder ver a filha por videochamada, através da rede telefónica ou de redes sociais como o Facebook, e nada foi feito por estes para poderem estabelecer contactos com a menor. Estando, por exemplo, as técnicas da Equipa do RSI sempre disponíveis para o ajudar, designadamente para estabelecer contactos com a criança, não invoca o Recorrente um único extracto dos respectivos depoimentos onde conste que em determinada ocasião as contactou a pedir a referida ajuda e que estas recusaram colaboração. E não cita porque nada fez nesse sentido, tal como emerge dos depoimentos das testemunhas.
Embora transcreva extractos dos depoimentos das testemunhas M. C. (militar da GNR) e D. P. para evidenciar a existência de interesse na criança, do primeiro não resulta nada sobre esse ponto, o que é bem patente no extracto que transcreve (11:46 a 12:02). É certo que verbalizou junto de D. P. que queria ter a filha com ele, mas isso, face aos elementos que atrás referimos, não é suficiente para demonstrar o interesse que alega: não passa de uma mera exteriorização sem suporte substancial, atento os factos objectivos sobre os contactos com a instituição CAT – ... e o conteúdo dos mesmos.
Nenhuma dúvida existe de que o Recorrente não dispõe de veículo automóvel e que a sua situação económica é precária (9), mas existiam várias formas de manter a ligação com a filha, de manifestar o seu interesse por esta se porventura o tivesse, e nunca as utilizou, excepto no que respeita à singela visita de 27.09.2020, sendo certo que também não se alcança como é que tendo nessa altura em Portugal dois (10) dos seus irmãos emigrados em França com veículo automóvel, ao que parece a fazer férias no nosso país, com os quais afirma ter relacionamento próximo, não realizou outras visitas.
A realidade, dura e crua, é que o Recorrente, como muito bem enfatizou a testemunha A. N., nunca contactou a instituição … para saber como é que estava a sua filha, nunca procurou inteirar-se da sua situação e da sua evolução; nunca fez qualquer pergunta sobre ela. Isto, que é uma situação objectiva, tem qualificação: é desinteresse. Tal desinteresse não resulta das dificuldades económicas, da distância ou de qualquer outra circunstância invocada. Nada disso impediria que fizesse uma simples chamada semanal, com um custo reduzido, que é o mínimo exigível a um pai nas suas circunstâncias, para se inteirar da situação da filha; se o não pudesse fazer do seu telemóvel, com o qual demonstradamente contacta amigos e outras pessoas, várias instituições lhe permitiriam fazer esse contacto, tal como resulta manifesto da prova testemunhal produzida.
E se existe um tal desinteresse, traduzido em factos objectivos e não em meras conjecturas, como é que se pode afirmar que o Recorrente tem «aptidão para a paternidade»?
Lemos e relemos todos os documentos dos autos, ouvimos a gravação do que foi dito por todas as pessoas ouvidas durante o debate judicial e não há um único elemento susceptível de comprovar tal “aptidão para a paternidade”, para além da mera afirmação do próprio, em patente contradição com os factos objectivos.
Pelo contrário, o pai nem sequer se apercebe que não tem condições de ter a filha consigo e com a sua companheira, de propiciar – ele ou os dois em conjunto - à criança aquilo de que ela basicamente carece. Desde logo, considera que a companheira S. F. tem aptidão para cuidar da criança mas isso, seguramente, não corresponde à realidade. Se dúvidas houvesse, que não há, basta ouvir a gravação do depoimento de L. C., técnica da EMAT de Esposende, que acompanhou a situação da menor J. M., onde descreve factos gravíssimos que demonstram uma verdadeira incapacidade da mãe para cuidar de qualquer bebé, criança ou jovem. Cingindo-nos ao essencial, S. F., além de demonstrar um profundo desequilíbrio emocional (razão pela qual em tempos foi acompanhada em psiquiatria, mas abandonou as consultas e a medicação por sua iniciativa) e défices de competências sociais acentuados, já revelou não ter noção de quais são os cuidados que devem ser prestados a uma criança, que uma bebé não pode ficar sozinha em casa (como sucedeu com a J. M., quando esta era bebé, ao ter sido deixada sozinha, sem comer, durante um dia), não tem noção de horários para fazer as refeições, não sabe cozinhar para uma criança (e também não quer), ignora todas as modificações que se vão produzindo no processo de evolução da criança e as respectivas necessidades a suprir.
Depois, o que está em causa é se o pai consegue prover às necessidades da criança, em termos de segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento nas suas diversas vertentes. Trata-se de saber se o pai tem ou não essa capacidade e não, perante a sua inexistência ou manifesta insuficiência, de a suprir através de terceiros, pois não existem familiares ou outras pessoas próximas do progenitor que o possam fazer, a não ser as meramente institucionais. No nosso entender do conjunto dos depoimentos não resulta, pelo contrário, como o Tribunal recorrido salientou, que o pai seja possuidor dessa capacidade, sendo patentes os seus défices, conforme resulta dos demais factos provados e não impugnados.
Esses défices do progenitor não são susceptíveis de ser supridos por instituições. É irrelevante que as técnicas da Equipa de RSI de ... digam que estão dispostas a ensiná-lo (no que respeita a S. F. é manifesto que não quer ser ajudada ou ensinada, o que terminantemente recusa), mas isso não suprime a letargia, o desinteresse e a incapacidade que demonstra para apresentar sequer um esboço de projecto de vida para a sua filha, quanto mais para satisfazer as suas necessidades. Não seriam as técnicas a dar banho à criança, alimentá-la, adormecê-la, educá-la, protegê-la dos perigos, cuidar dela quando estivesse doente, brincar com ela, etc. Além disso, uma criança não pode ser criada num contexto de absoluta instabilidade, insegurança, precaridade, exposição ao risco, violência verbal e física, como é o quotidiano dos Recorrentes enquanto casal, como resulta bem evidenciado dos depoimentos de D. P., C. S., H. S. e M. C., sendo que também A. C. abordou tal temática no que respeita à Recorrente S. F..

Em suma, excepto quanto à inexistência de familiares próximos, tem inteira justificação a conclusão do Tribunal a quo sobre não ter sido produzida prova minimamente convincente sobre os pontos de facto ora impugnados e que aqui se apreciaram.

Termos em que se julga apenas procedente a impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto ao seguinte ponto, o qual será eliminado dos factos não provados e aditado, como nº 69, à factualidade assente:

69 - F. O. não tem familiares próximos de si.
No mais, julga-se improcedente a impugnação.
**

2.2.3. Reapreciação de direito

O Tribunal recorrido decidiu-se pela aplicação da medida de «colocação da menor S. F. à guarda da instituição CAT ... em vista à futura adopção», em virtude do «abandono, flagrante e persistente desinteresse, ausência de ligação afectiva mínima, e que caso a menor ficasse a cargo dos progenitores lhe faltariam com cuidados e afeição e ficaria exposta a condutas violentas que afectariam a segurança e equilíbrio (…), e constata-se a completa falta de alternativa no âmbito da família alargada e de qualquer outra resposta que atenda ao interesse de S. F. (…), devendo ser acolhida a solução indicada pelo MP, a separação definitiva dos pro­genitores».
Ambos os Recorrentes, na respectiva apelação, concluem pela não verificação dos pressupostos da aplicação da medida de confiança da criança com vista a futura adopção.
Para a Recorrente S. F., deve ser aplicada «medida alternativa que permita a manutenção do vínculo familiar existente, e possibilite aos pais tempo de aprendizagem e melhora das capacidades e condições económicas, sendo suficiente para esse desiderato a aplicação das medidas de promoção e proteção de apoio junto dos pais, ou o acolhimento residencial» (conclusão 28), acautelando-se «os princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade e atualidade, da responsabilidade parental e da prevalência da família, e, bem assim, proteja o superior interesse da criança».
Segundo o Recorrente F. O., «a criança encontra-se numa situação de institucionalização e não há motivos para promoção de outra medida senão a da sua manutenção, evoluindo-se, posteriormente, para a medida de apoio junto dos pais, após melhora da condição e recursos do progenitor que, em curto espaço temporal, pretende receber a criança» (conclusão 50), «em consonância com os princípios da intervenção mínima, da proporcionalidade, da adequação, da responsabilidade parental, da prevalência da família e do superior interesse da criança».

Todas as medidas de promoção e protecção têm como função promover os direitos das crianças e proteger aquelas que estão em perigo (11).

Em conformidade com o artigo 34º da Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo (12) (LPCJP), tais medidas visam:
a) Afastar o perigo em que as crianças e jovens se encontram;
b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral;
c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.

As medidas susceptíveis de ser aplicadas mostram-se elencadas no artigo 35º, nº 1, do aludido diploma, prevendo-se na sua alínea g) a «confiança a pessoa seleccionada para a adopção, a família de acolhimento ou a instituição com vista à adopção», que é a que se mostra concretamente impugnada nas apelações.
Tal como defendem os Recorrentes, na escolha da medida em cada caso concreto devem atender-se aos princípios orientadores da intervenção de promoção e protecção, consagrados no artigo 4º da LPCJP, sendo determinante o princípio do interesse superior da criança e jovem, ou seja, considerando-se prioritários os interesses e direitos destes.

No que respeita à confiança com vista a futura adopção, a norma fundamental é a do artigo 1978º do Código Civil (CCiv.), que rege assim na parte relevante para a apreciação dos fundamentos dos presentes recursos:

«1 – O tribunal, no âmbito de um processo de promoção e protecção, pode confiar a criança com vista a futura adopção quando não existam ou se encontrem seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, pela verificação objectiva de qualquer das seguintes situações:
a) Se a criança for filha de pais incógnitos ou falecidos;
b) Se tiver havido consentimento prévio para a adopção;
c) Se os pais tiverem abandonado a criança;
d) Se os pais, por acção ou omissão, mesmo que por manifesta incapacidade devida a razões de doença mental, puserem em perigo grave a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento da criança;
e) Se os pais da criança acolhida por um particular, por uma instituição ou por uma família de acolhimento tiverem revelado desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade daqueles vínculos, durante, pelo menos, os três meses que precederam o pedido de confiança.
2 – Na verificação das situações previstas no número anterior, o tribunal deve atender prioritariamente aos direitos e interesses da criança.
3 – Considera-se que a criança se encontra em perigo quando se verificar alguma das situações assim qualificadas pela legislação relativa à protecção e à promoção dos direitos das crianças. (…)».

Tendo o Tribunal recorrido invocado as situações previstas nas alíneas d) e e), acima transcritas, importa agora caracterizá-las e apurar se se verificam ou não no caso dos autos.
O elemento determinante consta do corpo do nº 1 do artigo 1978º do CCiv., traduzido na inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação, constituindo as várias alíneas desse preceito situações objectivas susceptíveis de revelar aquela inexistência ou comprometimento.
Segundo Paulo Guerra (13), «quanto à alínea d), há que dizer que na mesma se pressupõe a manutenção da relação pais/filhos, embora seriamente comprometida (o perigo hoje considerado grave, próximo da antiga indignidade – na interpretação que abarca a acção e a omissão –, traduzido na forte possibilidade do dano grave) (…). Este perigo é uma situação de facto que ameaça um qualquer dos itens consagrados na alínea em causa, não se exigindo que já se tenha verificado, como resultado de concreta acção dos pais a efectiva lesão.
A este propósito, basta lembrarmo-nos daquelas situações muito vulgares de pais absolutamente disfuncionais (por comportamentos aditivos graves e igualmente graves enfermidades mentais, a quem outros filhos já foram retirados por clara negligência, e que vêem o seu filho recém-nascido sair da maternidade directamente para um centro de acolhimento, aí até o visitando e até demonstrando indícios de afecto pela criança – objectivamente, estes pais ainda não tiveram oportunidade de colocar em perigo concreto o seu filho, precisamente porque ainda o não tiveram nos seus braços a sós, sendo óbvio que ninguém o irá entregar às suas mais do que suspeitas pessoas só para saber se, agora, com este filho, a alínea d) também poderá entrar em acção – basta assim a história pessoal passada dos pais – repetimos, grave e negra, em termos de condições objectivas e subjectivas para cuidar de uma criança –, e a prognose de que este comportamento disfuncional não se inverteu nem existe a probabilidade de se vir a inverter num futuro próximo, para que esta alínea possa funcionar para efeitos de se considerar uma criança em estado de adoptabilidade».

A alínea e) acolhe requisitos cumulativos:

i) A criança encontra-se acolhida por um terceiro;
ii) Os progenitores revelam desinteresse pelo filho, em termos de comprometer seriamente a qualidade e a continuidade dos vínculos afectivos próprios da filiação;
iii) A situação de desinteresse verifica-se, pelo menos, nos três meses que precederam o pedido de confiança.

O desinteresse supõe uma situação omissiva, de não fazer, em que ainda há algum contacto com a criança, mas já se verifica o comprometimento do vínculo.
Mais do que a mera existência de visitas ou de outro tipo de contactos, releva a postura dos pais no sentido de criar ou preservar qualitativamente os vínculos afectivos próprios da filiação e, sobretudo, de reunir condições que viabilizem a integração do filho no meio familiar. Não é a realização de uma visita passiva, vazia de conteúdo afectivo, ou meramente oportunista que afasta o comprometimento do vínculo e impede que se conclua no sentido haver desinteresse pelo filho. O mesmo se diga dos progenitores que visitam o filho mas nada fazem – ou não fazem o suficiente – para resolver a situação de perigo que motivou o acolhimento da criança por um terceiro.
Por outro lado, deve ter-se sempre bem presente que releva o superior interesse da criança e este determina que deve ser evitada a experimentação de soluções de improvável ou duvidosa viabilidade e o prolongamento da indefinição da sua situação, designadamente que se aguarde indeterminadamente que os progenitores reúnam condições para o seu ingresso ou regresso ao seio familiar.

A Recorrente S. F., na sua apelação, afirma que «nada resultou dos autos que pudesse levar o Tribunal a quo concluir pela incapacidade dos progenitores e impossibilidade de proverem um crescimento são e sustentado à menor» (conclusão 4) e que «partiu o Tribunal recorrido para uma decisão tão extrema baseando apenas a sua convicção em suposições, ignorando, outrossim, o que de positivo tem a progenitora, bem como o que comporta para a menor a manutenção dos laços familiares» (conclusão 8).
Ao contrário do alegado pela Recorrente, o Tribunal a quo não se baseou “em suposições” mas sim em factos objectivos e os mesmos são eloquentes.
Com efeito, o processo fornece-nos abundantes elementos para formular um juízo de prognose, seguro e inequívoco, sobre a situação de grave perigo em que a criança S. F. ficaria se fosse entregue aos cuidados da progenitora ou do progenitor, ou de ambos. Não temos dúvidas em afirmar, face aos factos provados (com a convicção ainda mais reforçada por termos revisto toda a prova produzida), que a Recorrente, caso a tivesse a seu cargo, poria em perigo a segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento da criança S. F.. Não é um perigo circunscrito a uma ou algumas das apontadas componentes relevantes, mas sim que abrange todas elas.
Além disso, tal como acertadamente concluiu o Tribunal recorrido, «a aptidão para as responsabilidades de mãe é nula». É uma verdadeira incapacidade para cumprir o dever estabelecido no artigo 1878º, nº 1, do CCiv., de velar pela segurança e saúde da filha, prover ao seu sustento, dirigir a sua educação e representar os seus interesses.
Desde logo, a S. F. não é a primeira filha da Recorrente, pois, antes dela já teve a filha J. M., nascida a - de Novembro de 2016. Existe um precedente grave e o mesmo é elucidativo do que seria legítimo esperar em termos de relação mãe-filha.
Isto porque a Recorrente revelou desadequação para a função maternal, deixando de amamentar a J. M. na semana após o nascimento e abandonando-a sem comer e sozinha durante um dia, ignorando as necessidades da bebé, não tendo noção de horários nem da debilidade daquela. No âmbito do acompanhamento então efectuado, aquela criança saiu da maternidade com a condição de ficar em casa da avó materna e sob a vigilância desta, atenta a falta de confiança nas capacidades de S. F. para lhe prestar cuidados.
Desde então, a criança J. M. vive com os avós maternos, no concelho de Barcelos, primeiro por via de medida de protecção de apoio junto dos avós e depois por decisão de Fevereiro de 2019, do competente Tribunal, que estabeleceu a residência junto destes.
À desadequação para a função maternal então demonstrada, acresce que a Recorrente S. F. não estabeleceu com a filha J. M. vínculos afectivos, pois não mantém ligação com a criança e em 8 de Julho de 2020 declarou neste processo que há cerca de um ano que não a visitava, apesar de ter frequentado curso de formação em Barcelos, concelho onde reside a criança, até Julho de 2020. Mais do que o comprometimento de um vínculo, a situação é de ruptura relacional.
Depois, não se assistiu a qualquer posterior melhoria da Recorrente S. F. em qualquer das vertentes relevantes para o exercício das responsabilidades parentais.
Tem historial de distúrbios comportamentais, foi acompanhada em psiquiatria, mas abandonou as consultas e a medicação por sua iniciativa. A desadequação comportamental mantém-se ou até se agravou.
Nesse aspecto, verifica-se que a Recorrente nem sequer tem consciência da sua problemática comportamental e da necessidade de tratamento. Por exemplo, a 2 de Janeiro de 2020, aconselhada por uma técnica a retomar as consultas de psiquiatria, respondeu não ser tola e que não iria a consulta nenhuma.

Não tendo encetado tratamento, são vários os episódios disruptivos que tem protagonizado:
- No dia 13.02.2020 disse à funcionária e à técnica da equipa de RSI de ... que não queria que fossem a casa sem que ela lá estivesse, porque podia lá chegar e ter «um par de cornos» e que não as queria ver;
- A 27.02.2020, a equipa de RSI de ..., quando se deslocou à casa dos Recorrentes, S. F. manifestou-se insensível e impermeável ao esforço da equipa de acompanhamento e manteve postura agressiva e mal-educada;
- Nos dias 06.03.2020, 03.04.2020 e 13.04.2020, ocorreram conflitos entre S. F. e F. O., reclamando a intervenção de militares da Guarda Nacional Republicana do Posto de ...;
- Aquando da intervenção de 13.04.2020, à saída dos militares, S. F. disse a F. O. «lá dentro é que vais ver» e empurrou-o e pontapeou-o, tendo de seguida sido levada pela guarda (M. C., ouvida como testemunha) para acalmar;
- Em telefonema para marcação de atendimento, em Junho de 2020, S. F. disse a uma técnica que F. O. não tinha que ir, por não ser o pai, que ninguém mandava nela e que se queria que ele comparecesse era porque queria ir para a cama com ele;
- Disse ainda em telefonemas iniciados por ela: «vocês na comissão querem é roubar, você é uma ladra; pode dormir com o F. O. à vontade; vá para a cama com ele»;
- Advertida S. F. que não lhe seria atendido o telefone, nesse mesmo dia efectuou 14 chamadas para o telefone da Comissão e remeteu ainda mensagens para o dito telefone, com os teores seguintes (textuais): «O vaca fica com o F. O.; Não tenho medo de vos puta: O puta ladra; O ladra vai para a cama com o F. O.; O puta ladra tas a levar na cona; o porca; Ladra puta es a maior vaca dai; N tenho medo de ti vai luvar na cona com o F. O. ainda te pago».
Também no que respeita à aptidão para o exercício das suas responsabilidades maternais relativamente à filha S. F. não se verifica evolução positiva, sendo que a Recorrente não faz qualquer esforço nesse sentido.
Isso é perceptível tanto na falta de preparação para o nascimento da filha como na ausência de desenvolvimento de diligências com vista a reunir condições que viabilizem a integração daquela no meio familiar.

Quando ao primeiro aspecto, verificou-se que:
- Não tinha noção das semanas que levava de gravidez;
- A 12.02.2020, quando a funcionária da equipa de RSI a quis orientar para lavar e passar roupa e preparar o saco para a maternidade, S. F. preferiu tratar do tarifário com a operadora do telemóvel e não se dispôs a acompanhar aquela nessas tarefas;
- Não tinha noção sobre a necessidade de esterilizar a chupeta e o biberão, supondo que aquela derreteria e pretendendo levá-la para a maternidade ainda dentro da embalagem, tendo-a por pronta a ser usada, além de que se indispôs com a funcionária, acusando-a de querer mandar nela;
- A seguir, a 20.02.2020, a referida equipa deu conta que a Recorrente tinha na mala para a maternidade e destinados ao bebé, um pente de homem, um corta unhas de adulto, tesoura de adulto, faltando produtos usuais, como creme para evitar assaduras;
- Nesse período a casa estava desorganizada e suja, tinha roupas espalhadas e dentro estavam cinco cães, os quais não estavam, nem estão actualmente (14), vacinados;
- Assumia uma postura de confronto e de falta de colaboração com as técnicas que pretendiam promover a capaci­dade da Recorrente para prestar cuidados ao lar e à criança que iria nascer.

Quanto ao segundo aspecto, constata-se que nunca desempenhou actividade laboral e que não usufrui de rendimentos. No período pós-parto, apenas frequentou um curso de formação em Barcelos, tendo recebido bolsa de € 210,00 até Julho de 2020. Permanece desocupada e nenhuma iniciativa tomou no sentido de suprir os seus défices de competências e melhorar as suas condições de vida.
Finalmente, tal como já havia sucedido com a filha J. M., adoptou um comportamento que representa mais do que um comprometimento dos vínculos próprios da filiação, pois é já de ruptura destes.
Na verdade, observa-se que a Recorrente evoluiu de uma postura de contactos esporádicos com a instituição que acolhe a criança para uma outra de resistência a tais contactos e até de procura de distanciamento face à S. F. e à instituição, o que consubstancia um desinteresse manifesto por parte da mãe relativamente à filha. Objectivamente, não visita a criança, não contacta a instituição e pretende que o companheiro F. O. faça o mesmo. Veja-se o que aconteceu em Junho de 2020, quando em telefonema para marcação de atendimento, disse à técnica que o companheiro F. O. não tinha que ir, por não ser o pai, que ninguém mandava nela e que se queria que ele comparecesse era porque queria ir para a cama com ele. A esse telefonema sucederam-se outros, assim como mensagens por SMS, esclarecedoras da sua posição, conforme se pode ver nos pontos nºs. 34 a 36 dos factos provados. Em 27.09.2020, quando o progenitor esteve no CAT ... com a criança, recusou-se a ir com ele visitá-la e não quis ir vê-la.
Por fim, e para que não restem dúvidas, ouvida a 24.11.2020, esclareceu expressamente nestes autos não ter querido ir visitar a criança e não querer ter ligação com ela. Esta postura, em completa contradição com o exposto na apelação redigida pela ilustre pena do seu Exmo. Patrono, está em consonância com vários dos actos que já se apontaram, bem como com a circunstância de a Recorrente ter recusado contactar com a técnica gestora (15), após aplicação da medida de acolhimento, datada de 8 de Julho.

Nesta conformidade, consideramos que se verificam objectivamente, relativamente à Recorrente, as situações previstas nas alíneas d) e e) do nº 1 do artigo 1978º do CCiv. e que é manifesto, face ao exposto nos dois precedentes parágrafos, que não existem os vínculos afectivos próprios da filiação.
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Vejamos agora a argumentação do Recorrente F. O., constante das alegações da sua apelação.

O essencial da sua alegação assenta na consideração, por um lado, de «que até à medida de confiança a instituição com vista a futura adoção ainda há um longo caminho a percorrer, não se encontrando demonstrado que o Recorrente é incapaz ou inepto para promover a saúde, bem-estar, conforto, proteção, educação e desenvolvimento integral da sua filha». Por outro, que «não se encontra demonstrado que o progenitor é totalmente incapaz ou inepto para prover aos cuidados básicos da sua filha, sendo certo que não foi, sequer, dada qualquer oportunidade ao Recorrente para exercer essas competências» e que «não pode o Tribunal, com base em juízos não sustentados, que mais não são do que juízos de prognose, concluir, sem mais, pela ineptidão do Recorrente para acolher a menor», uma vez que «não foram esgotados todos os recursos que a lei prevê».

Começando por estes dois últimos argumentos, cabe referir que o tribunal na sua intervenção está sujeito aos princípios da defesa prioritária do interesse superior da criança, da intervenção precoce e da proporcionalidade e actualidade, pelo que, no caso de a medida conseguir assegurar os interesses e direitos fundamentais da criança e for a necessária e adequada à sua situação, deve tomá-la logo que se encontrem reunidos os respectivos requisitos de aplicação sem percorrer previamente toda a panóplia de medidas menos gravosas ou intrusivas para os pais. As crianças não devem estar sujeitas a experimentação de medidas, passando-se de umas para outras, em função do seu sucessivo esgotamento ou insucesso, até se chegar à confiança com vista à adopção.
Ao contrário do defendido pelo Recorrente, a lei não impõe que seja percorrido «um longo caminho» até à aplicação da medida de confiança com vista a futura adopção, como se a criança devesse ser prévia e necessariamente submetida a percorrer um verdadeiro calvário de medidas ineficazes ou inadequadas para remover a situação de perigo, com a única finalidade de ser «demonstrado que o Recorrente é incapaz ou inepto para promover a saúde, bem-estar, conforto, proteção, educação e desenvolvimento integral da sua filha». A medida de confiança com vista a futura adopção não é para ser aplicada «só após esgotadas as possibilidades de aplicação das restantes medidas existentes e previstas no artigo 35.º da LPCJP» (conclusão 23 do recurso da progenitora).
Não pode ser assim: as crianças são titulares de direitos fundamentais que têm de ser respeitados e isso exige que a medida necessária e adequada seja tomada logo que se justifique.
E para que assim suceda o tribunal deve formular um juízo de prognose sobre o que se verificaria caso a criança fosse criada e educada pelos pais ou de serem aplicadas outras medidas, não se exigindo que o perigo, enquanto forte possibilidade de dano grave, já se tenha consumado em efectiva lesão, como resultado de concreta acção dos progenitores. Pelo contrário, o tribunal e todos os demais intervenientes na apreciação da situação da criança têm o dever de tudo fazer para evitar que ela seja sujeita a uma situação de perigo e, por maioria de razão, que esta se concretize em lesão.
Pura e simplesmente, não existe o direito dos progenitores a que lhes seja dada a oportunidade de colocar em perigo concreto o seu filho e de assim se convencerem a si próprios de que não dispõem de condições objectivas e subjectivas para cuidar de uma criança.
A linha de argumentação do apelante F. O. estrutura-se precisamente na alegação de que ainda não teve essa oportunidade prática de verificar como exerceria a responsabilidade parental relativamente à sua filha.
No seu entender, «ainda é expectável que consiga prover ao cuidado normal de uma criança» (conclusão 25), enquanto o Tribunal recorrido considerou que sendo o Recorrente «F. O. menos desadequado socialmente, também não ofere­ce solução».
Analisados os factos, consideramos que a conclusão do acórdão recorrido se encontra devidamente sustentada e que o juízo de prognose é manifestamente negativo.
Primeiro, não podemos ignorar que o agregado é constituído pelo Recorrente e pela progenitora S. F.. A integrar-se a criança naquela família, passaria a conviver com um adulto que demonstradamente é incapaz de tomar conta dela, ou seja, de proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral. Como dificilmente se concebe que a criança só estivesse com o pai, pois este, apesar de não o fazer actualmente, precisa de trabalhar ou de ter alguma ocupação, em algum momento, na ausência daquele, ficaria apenas aos cuidados da progenitora e o perigo de ocorrer uma lesão seria, nesse caso, muito elevado.

Segundo, mesmo que por absurdo considerássemos que a filha nunca ficaria a sós com a progenitora (hipótese que temos por seguro que não se verificaria), o ambiente familiar é disfuncional e inadequado para uma criança.
A relação entre os progenitores é de conflito violento, mesmo na presença de terceiros, sem qualquer espécie de inibição. São regulares os episódios disruptivos (16), tanto ao nível da verbalização como do acto de confronto físico, pelo que a criança passaria a assistir aos mesmos e, mais tarde ou mais cedo, seria sujeita a maus-tratos físicos ou psíquicos. Acresce que, no aludido contexto, são também frequentes as ameaças de desintegração do agregado.
Ora, é sabido que a violência, mesmo que só visualizada, tem um impacto enorme no desenvolvimento de uma criança, perturbando-a e desequilibrando-a, com todas as consequências negativas que são sobejamente conhecidas. Não se pode esquecer que a criança tem direito – que é um direito fundamental – a que o seu desenvolvimento físico, moral e psíquico decorra de forma harmoniosa, num ambiente familiar afectivo, educativo e responsável (17). Se o Tribunal, recorrendo às regras da experiência comum, consegue perfeitamente antever que a criança, no caso de integrar o agregado ou de apenas contactar pontualmente com o mesmo, será sujeita a um ambiente de violência e passará a viver a perturbação que a rodeia, tem o dever de evitar que isso se venha a verificar, através da aplicação da pertinente medida de promoção e protecção.
Essa é uma concretização prática do princípio do interesse superior da criança, prevalecendo os direitos desta relativamente aos direitos dos pais. Daí que a decisão deva ser tomada em favor da criança, evitando-se que seja criada num contexto de absoluta instabilidade, insegurança, precaridade, exposição ao risco, violência verbal e física, como é o quotidiano dos Recorrentes enquanto casal.

Terceiro, as condições materiais do agregado são inapropriadas para a criança. O problema não emerge de os progenitores habitarem uma casa antiga e humilde, pois isso, só por si, não impede que uma criança se desenvolva de forma normal e consiga ser feliz.
A questão reside, para começar, em a casa se encontrar habitualmente desorganizada, desarrumada e suja.
Depois, transitam pela casa cinco cães que não se encontram vacinados, situação potencialmente perigosa e que nunca foi resolvida pelo progenitor, apesar das chamadas de atenção e de até saber desde o início que isso foi um dos fundamentos invocados pelo Ministério Público no requerimento inicial para a aplicação de uma medida.
Finalmente, nenhum dos membros do agregado trabalha, resumindo-se os proveitos ao rendimento social de inserção auferido pelo Recorrente, no montante mensal de € 189,00, do qual beneficia desde o ano de 2016. Por conseguinte, objectivamente, o Recorrente não consegue sustentar a filha e proporcionar-lhe as condições materiais mínimas para o seu desenvolvimento normal.

Quarto, o Recorrente não dispõe de condições subjectivas para proporcionar à filha um ambiente minimamente acolhedor, sendo notórios os seus défices em diversas áreas relevantes.
Partindo da constatação das suas fracas competências profissionais e sociais e baixa capacidade para a resolução de problemas, extrai-se dos factos provados e da postura assumida nos presentes autos que é uma pessoa influenciável, com fraca motivação para operar uma mudança positiva na sua vida e com dificuldades em reconhecer e nortear-se pela normalidade social. São vários os episódios em que isso se revelou. Por exemplo, aquando da preparação do nascimento, tendo a companheira colocado na mala destinada ao bebé, um pente de homem, um corta-unhas de adulto, tesoura de adulto e faltando produtos usuais, como creme para evitar assaduras, o Recorrente defendeu-a, atribuindo-lhe aptidão para tratar das coisas para a bebé e ser desnecessária a ajuda da equipa, tendo como adequados os preparativos e os artigos escolhidos por ela; mesmo agora, o Recorrente continua a considerar que a S. F. tem aptidão para cuidar da casa e da criança; a manutenção da situação de falta de vacinação dos cães, que ainda se verificava à data da prestação de declarações, em Janeiro de 2021, é outro exemplo elucidativo; o mesmo se diga da postura de desculpabilização do comportamento da companheira S. F., quando esta não o quis acompanhar à visita da criança em 27.09.2021, em que justificou a não deslocação com um inexistente problema de saúde, quando apenas não quis ir vê-la; mostrando-se a Recorrente incapaz de limpar e arrumar a casa, o Recorrente, que tem um dever igual ao daquela no que respeita aos afazeres domésticos, também o não consegue cumprir e isso era indispensável para demonstrar aptidão para cuidar da filha. Como bem se destacou no acórdão, o Recorrente foi incapaz de efectivar alguma mudança positiva no decurso do acompanhamento, seja quanto à casa (apesar do tempo livre, não teve disposição para se dedicar a arrumar minimamente a casa, aceitando a desorganização e sujidade), seja quanto à aquisição de competências mínimas, tendo todo o tempo para o efeito. Em suma, a situação emergente destes particulares condicionalismos do Recorrente não é adequada a assegurar suficientemente o interesse da criança.

Quinto, o Recorrente manifestou desinteresse pela criança e não se revela capaz de proteger a criança das situações de perigo e de lhe proporcionar condições adequadas à sua educação e crescimento.
O desinteresse manifesta-se na postura que apresentou perante a instituição onde a criança se mostra acolhida: os contactos com o CAT ... foram esporádicos, instrumentais e, durante os mesmos, não procurou inteirar-se da situação da filha e da sua evolução. Acresce que apenas visitou a filha uma única vez.
Como já tivemos oportunidade de dizer aquando da apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, essa qualificação da conduta do progenitor não é consequência das dificuldades económicas, da distância ou de qualquer outra circunstância invocada. Nada disso impediria que fizesse uma simples chamada semanal, com um custo reduzido ou até nulo se recorresse a uma qualquer instituição para o efeito, que é o mínimo exigível a um pai nas suas circunstâncias, para se inteirar da situação da filha.
Por outro lado, o Recorrente nada fez no sentido de ultrapassar a situação que motivou o acolhimento institucional da filha. Tudo se mantém igual ao que se verificava aquando do nascimento da criança. Nenhuma alteração positiva o pai introduziu na sua vida, pelo que é legítimo formular um juízo de prognose negativo, tendo-se por improvável que venha a adquirir as condições, capacidades e competências que até agora revelou não possuir. Em termos objectivos, não consegue dar à criança aquilo de que ela precisa, em termos de segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento nas suas diversas vertentes.
Pelo exposto, também quanto ao progenitor, estando verificadas as situações previstas nas alíneas d) e e) do nº 1 do artigo 1978º do CCiv., entendemos que no mínimo se encontram comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação, o que nos parece resultar bem evidente da raridade dos contactos com a instituição que acolhe a filha, do conteúdo destes (não faz perguntas sobre a criança nem procura inteirar-se sobre ela), do facto de só ter visto a criança uma única vez após o nascimento e de justificar o facto de não telefonar mais para o CAT com a circunstância de a S. F. ainda não conversar e de gastar o saldo do telemóvel com ligações para outras pessoas.
Finalmente, constata-se que nenhum familiar se disponibilizou para uma solução alternativa e que nenhuma outra medida, para além da aplicada na decisão recorrida, se mostra adequada ao interesse superior da S. F..
Sendo essa a melhor medida para a criança, é de manter a decisão recorrida, improcedendo ambas as apelações.
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2.3. Sumário

1 – Constituem pressupostos da medida de confiança da criança a instituição com vista a futura adopção a verificação objectiva de uma das situações elencadas nas alíneas a) a e) do nº 1 do artigo 1978º do Código Civil, designadamente a circunstância de os pais colocarem em perigo a segurança, a saúde, a formação, a educação ou o desenvolvimento do filho, ou a de terem revelado manifesto desinteresse pela criança, se for possível concluir que não existem ou se encontram seriamente comprometidos os vínculos afectivos próprios da filiação.
2 – O elemento determinante é a inexistência ou sério comprometimento dos vínculos afectivos próprios da filiação, constituindo as várias alíneas daquele preceito situações objectivas susceptíveis de revelar aquela inexistência ou comprometimento.
3 – A medida de confiança com vista a futura adopção deve ser tomada logo que se encontrem reunidos os respectivos requisitos de aplicação, não sendo exigível que sejam previamente percorridas as demais medidas e que estas se tenham esgotado ou fracassado.
4 – Com base na realidade material provada, o julgador deve formular um juízo de prognose sobre o que se verificaria na hipótese de a criança ser criada e educada pelos pais ou de serem aplicadas outras medidas.
5 – Não é condição de aplicação da medida que o perigo, enquanto forte possibilidade de dano grave aos direitos fundamentais da criança, já se tenha consumado em efectiva lesão, como resultado de concreta acção dos progenitores.
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III – DECISÃO

Assim, nos termos e pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedentes ambas as apelações, mantendo-se a decisão recorrida.
Sem custas (artigo 4º, nº 2, alínea f), do RCP)
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Guimarães, 25.03.2021
(Acórdão assinado digitalmente)

Joaquim Boavida (relator)
Paulo Reis (1º adjunto)
Joaquim Espinheira Baltar (2º adjunto)


1. Utilizar-se-á a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
2. Código de Processo Civil Anotado, vol. V, (Reimp.), Coimbra Editora, 1984, pág. 140.
3. Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra Editora, 1985, pp. 670-672.
4. Mas também constitui falta de fundamentação uma motivação imperceptível, sem relação compreensível com o objecto discutido, enquanto vício paralelo à ininteligibilidade do objecto do processo como motivo de ineptidão da petição inicial.
5. V. arts. 662º, nº 1, e 665º, nº 1, do CPC.
6. CAT significa “Centro de Acolhimento Temporário”. Regra geral, no âmbito dos processos relativos a crianças e jovens é comum todos os intervenientes, desde os técnicos aos tribunais, recorrerem a siglas, algumas delas até com significados diferentes consoante o contexto ou jurisdição (por exemplo, CAT também tem o significado de Centro de Atendimento a Toxicodependentes), tornando muito difícil a compreensão aos destinatários das decisões, sobretudo aos progenitores. Para obstar a tal dificuldade, basta indicar o seu significado aquando da primeira utilização da sigla no texto da decisão.
7. Sem prejuízo do dever de nos pronunciarmos sobre a impugnação da decisão sobre este ponto de facto, trata-se de um facto quase irrelevante, na medida em que o desinteresse não emerge propriamente da não realização de videochamadas, atenta a idade da criança.
8. Das declarações de F. O. resulta que se encontra de relações cortadas com o irmão, como é patente na parte em que o acusa de ter furtado as jóias e o dinheiro da mãe, bem como de nunca ter feito nada na vida.
9. Porém, as referidas dificuldades económicas, que são comuns a ambos os pais e até mais salientes relativamente à mãe, não impedem esta de fazer uma utilização intensa do telemóvel como o atestam as inúmeras chamadas que fez para a GNR, para a Equipa de RSI ou para a CPCJ, bem como as mensagens que se encontram documentadas nos autos, muitas delas de cariz injurioso e/ou difamatório.
10. Foi isso que afirmou durante as suas declarações, tendo ainda acrescentado que uma cunhada também foi com eles à visita. Porém, o Tribunal a quo apenas deu como provado que foi a Melgaço com um irmão.
11. Paulo Guerra, Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo Anotada, 3ª edição, Almedina, pág. 101, cujos ensinamentos temos como referência incontornável.
12. Aprovada pela Lei nº 147/99, de 1 de Setembro.
13. Ob. cit., pág. 113.
14. Por referência à data da realização do debate judicial, em que o Recorrente F. O. prestou declarações e confirmou a não vacinação dos cães.
15. Sendo que no dia 09.07.2020 tentou dar uma bofetada, “estalo” em linguagem popular, a uma técnica.
16. Todas as testemunhas ouvidas que se tinham deslocado à casa dos Recorrentes, de uma forma ou de outra, assistiram a actos disruptivos ou até foram vítimas dos mesmos. Até a testemunha A. C. (presidente da CPCJ), que nunca se deslocou à casa dos Recorrentes e que apenas contactou com estes entre Março e Junho de 2020, foi objecto de actos, perpetrados por S. C., de ameaça e injúria.
17. Nos termos do artigo 69º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, «as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na família e nas instituições». Segundo o nº 2 daquele artigo, «o Estado assegura especial protecção às crianças órfãs, abandonadas ou por qualquer forma privadas de uma ambiente familiar normal».