Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
260/18.0GEBRG.G1
Relator: AUSENDA GONÇALVES
Descritores: ENCERRAMENTO DE INQUÉRITO
PEDIDO CONSTITUIÇÃO ASSISTENTE
COMPETÊNCIA DO JIC
ACUSAÇÃO ASSISTENTE
NOTIFICAÇÃO AO ARGUIDO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - O processo penal está submetido ao primado do princípio da legalidade e deste emana o princípio da tipicidade dos trâmites legalmente cominados, bem como das invalidades decorrentes da sua inobservância, que se afirma no numerus clausus das invalidades processuais e dos respectivos fundamentos e daí que a inobservância de tais trâmites só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, acarretando, nos demais casos, a sua mera irregularidade (cfr. art. 118º do CPP).

II - O Ministério Público não pode escolher a seu bel-prazer o momento da prática dos actos processuais, pelo que o pedido de constituição de assistente que tenha sido formulado depois de declarada encerrada a fase do inquérito e ainda não aberta a fase de julgamento deve ser submetido ao juiz de instrução, o competente nessa fase para a prática de actos jurisdicionais.

III - Se em vez de o fazer ordenar a remessa dos autos à distribuição, tal Órgão comete uma irregularidade, mas este vício não constitui nulidade, nem questão prévia ou incidental obstativa da apreciação do mérito da causa, que o juiz de julgamento possa conhecer oficiosamente, ou que lhe permita anular a distribuição e determinar a devolução dos autos ao Ministério Público, ou que o impeça de proferir o despacho a que alude o artigo 311.º do CPP e, simultaneamente, dar seguimento à tramitação do pedido de constituição como assistente.

IV - Estatui o art. 284º do CPP que, até 10 dias após a notificação da acusação pública, o assistente pode também deduzir acusação – que pode limitar-se a mera adesão àquela – pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles e daí que a lei não estenda à intimação da acusação deduzida pelo assistente, prevista no citado preceito, os requisitos e os trâmites impostos pelos arts. 277º, n.º 3, e 283º, n.ºs 5 e 6 do CPP para a notificação da acusação pública.

V - No caso, não tendo sido requerida a abertura de instrução pela assistente no prazo peremptório de que dispunha para o efeito (art. 287º do CPP), o objecto cognoscível pelo Tribunal nunca poderia ser ampliado em função da acusação particular, tendo ficado definitivamente confinado à descrição factual contida na acusação pública e, por isso, de entre os factos naquela articulados só poderão vir a ser considerados na decisão da causa os que, sendo meramente contextualizadores dos narrados na acusação pública, não atropelem a vinculação temática desta advinda, ou seja, que não importem, de modo algum, a sua alteração substancial.

VI - Portanto, tudo o que na acusação particular transborde o objecto do processo definido pela acusação pública será irrelevante para a decisão da causa pelo que, de harmonia como o disposto na alínea b) do art. 311º do CPP, incumbirá à Sra. Juíza rejeitar a acusação da assistente na parte em que a mesma, eventualmente, importe uma alteração substancial dos factos.

VII - Ademais, o despacho que designa dia para a audiência de julgamento, acompanhado de cópia da acusação pública e da acusação da assistente, sempre será notificado ao arguido e ao seu defensor, nos termos do art. 313º, n.º 2, do CPP, assistindo ao arguido a faculdade de questionar tudo o que contra ele seja aduzido, assim se salvaguardando o exercício do contraditório.

VIII - É, pois, claro que, como genérica decorrência da subordinação do processo ao princípio do contraditório, deve ser facultada ao arguido – a este por maioria de razão – a possibilidade de, ainda antes do julgamento, corrigir ou questionar tudo o que contra ele seja aduzido, assim lhe assegurando todas as garantias necessárias e adequadas a um eficaz exercício do direito de defesa, pelo que lhe deve ser comunicado o conteúdo da acusação deduzida pelo assistente, o que pode ser feito na pessoa do seu defensor, tal como o de quaisquer outros actos ou despachos proferidos, exceptuados os que também devam ser notificados por contacto pessoal, entre os quais se inclui a acusação pública, enquanto delimitadora do objecto do processo (arts. 111º e 113º, n.º 10, do CPP).

IX - Mas daí não advém que a omissão dessa notificação na fase de inquérito invalide o acto subsequentemente praticado (a remessa dos autos à distribuição) e justifique a devolução dos autos ao MP ou conceda ao arguido a faculdade de ainda requerer a abertura da instrução, uma vez extinto o respectivo direito (citado art. 287º do CPP), uma vez que a lei apenas impõe a comunicação ao arguido do conteúdo da acusação deduzida pelo assistente ao abrigo do art. 284º do CPP no trâmite processual a que alude o art. 313º, n.º 2 do CPP, não em momento processual anterior.

X - Finalmente, também não se vislumbra qualquer norma legal que imponha ao Ministério Público o ónus de, precedentemente à remessa dos autos ao Tribunal, tomar posição sobre o conteúdo da dita acusação particular, sendo certo que quem represente esse Órgão sempre o poderá vir a fazer, na prossecução da incumbência da defesa da legalidade, até ao encerramento da discussão, o mesmo sucedendo, aliás, com qualquer outro sujeito processual, sendo, pois, irrelevante para a decisão da causa a circunstância de o Ministério Público ainda não ter tomado qualquer posição sobre o assunto, para além de que, na lógica do sistema legal vigente, atentas a estrutura acusatória do processo penal e a autonomia desse Órgão, o juiz não tem competência para lhe dar ordens em relação a actos praticados ou a praticar no inquérito, não podendo determinar a devolução dos autos para essa finalidade.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – Relatório

No âmbito do processo comum singular n.º 260/18.0GEBRG do Juízo Local Criminal de Braga, do Tribunal Judicial da mesma Comarca, por despacho proferido em 7-3-2019, foi julgada intempestiva a remessa dos autos à distribuição para julgamento e determinado a devolução dos autos ao Ministério Público para o que tivesse por conveniente, por não ter sido apreciado o pedido de constituição de assistente formulado pela ofendida C. A.; por não ter sido tomado posição pelo Ministério Público quanto à acusação particular por aquela deduzida e por omissão de notificação ao arguido C. C. da referida acusação particular.

Inconformado com a referida decisão, o Ministério Público interpôs recurso, invocando uma errada interpretação do disposto nos arts. 123º, n.º 1, 284º, 212º e 311º, todos do CPP e 28º, da Lei nº 33/2010, de 2/9 e arts. 32º, n.º 5 e 219º, ambos da CRP, formulando na sua motivação as seguintes conclusões (transcrição):

«I Salvo o devido respeito, o despacho de fls 628 carece de fundamento legal, não existindo, desde logo, qualquer irregularidade na falta de notificação da acusação particular deduzida pela ofendida (assistente), contra o arguido.
II Com efeito, não existe norma legal que imponha a notificação da acusação particular ao arguido, quando deduzida, nos termos do disposto no artº 284º, do CPP.
III A acusação pública é que define o objecto do processo, pois o assistente não pode acusar por factos diversos que alterem substancialmente a acusação pública, nem por crimes diversos ou mais graves, sob pena de ser nula, nessa parte.
IV Por isso, o arguido não vê os seus direitos de defesa afectados, por falta de notificação da acusação particular em causa.
V Na verdade, a nosso ver, o arguido não tem a faculdade (por inutilidade) de requerer abertura da instrução relativamente à acusação particular, tanto mais que não o fez quanto à acusação pública – aquela que delimita o objecto do processo.
VI Por outro lado, não é necessário que os autos regressem ao Ministério Público para alteração do estatuto coactivo do arguido, pois tal decisão pode e deve ser proferida pelo juiz de julgamento, nos termos do artº 212º, do CPP.
VII Sendo certo, que o artº 28º, da Lei nº 33/2010, de 2/9, não impõe que a alteração da medida coactiva seja decidida apenas em fase de inquérito e, se o processo já foi remetido para julgamento, tal competência cabe ao Juiz de Julgamento, como é o caso.
VIII Acresce, além do mais que, mesmo que em tese se admitisse que existia irregularidade na ausência de notificação da acusação particular em causa, o que não se concede, sempre se estaria perante o vício previsto no artº 123º, nº 1 e não no previsto no nº 2.
IX Pelo que, não podia o tribunal dele conhecer oficiosamente, apenas podendo ser o vício arguido pelos interessados no prazo aí previsto.
X Mas mesmo que, em última instância, se admitisse que o tribunal de julgamento pudesse conhecer oficiosamente de tal irregularidade, ainda assim, o tribunal não pode devolver os autos ao Ministério Público para efeitos de ser corrigida uma eventual irregularidade de (falta de) notificação da acusação, sob pena de violação do artº 311º, do CPP e dos princípios do acusatório e da autonomia e independência do Ministério Público, previstos nos arts 32º, nº 5 e 219º, respectivamente, da CRP.
XI Neste último caso, a eventual irregularidade sempre deveria ser corrigida pela secretaria do tribunal e não através da devolução dos autos ao Ministério Público para esse efeito.
XII Quanto à decisão da alteração do estatuto coactivo do arguido, nenhuma norma legal exige que seja proferida na fase de inquérito.
XIII Se o processo se encontra em fase de julgamento – como é o caso – compete ao Juiz de Julgamento – proferir tal decisão.
XIV Ao decidir como decidiu, o tribunal a quo fez uma errada interpretação do disposto nos arts 123º, nº 1, 284,º, 212º e 311º, todos do CPP e 28º, da Lei nº 33/2010, de 2/9.
XV Além do mais, o despacho que determina a devolução dos autos ao Ministério Público, viola o disposto nos arts 32º, nº 5 e 219º, ambos da CRP.
XVI Assim, deverá o tribunal a quo proferir despacho a receber a acusação pública e designar data para audiência de julgamento, nos termos do artº 312º, do CPP e, realizadas as diligências legalmente exigidas, pronunciar-se quanto à constituição de assistente e admissão da acusação particular.

Termos em que, nestes e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente e provado e, em consequência se ordene que o tribunal a quo substitua o despacho recorrido por outro que receba a acusação pública e designe data para a audiência de julgamento.»

O recurso foi regularmente admitido por despacho proferido a fls. 641.

Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso.

A Senhora Juiz sustentou o despacho recorrido.

E, neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu alicerçado parecer secundando e reforçando a argumentação do recurso.
Cumprido o disposto no n.º 2, do art. 417º do CPP, feito o exame preliminar e colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
*
II – Fundamentação

Na medida em que o âmbito dos recursos se delimita pelas respectivas conclusões (arts. 403º e 412º, n.º 1, do CPP), sem prejuízo das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstarem à apreciação do seu mérito, suscita-se neste recurso a questão de saber se, no caso, o juiz de julgamento poderia anular a distribuição e determinar a devolução dos autos ao Ministério Público, por constituírem irregularidades de conhecimento oficioso:

1) a remessa dos autos de inquérito à distribuição para julgamento, sem que o Ministério Público tenha sujeitado à apreciação do JIC o pedido de constituição de assistente formulado depois de declarada encerrada a fase do inquérito e antes de aberta a fase de julgamento;
2) a não notificação ao arguido da acusação particular deduzida nos termos do art. 284º do CPP, envolvendo a imputação de factos diversos dos descritos na douta acusação pública, e a falta de posição do Ministério Público quanto a essa acusação.

Importa apreciar as enunciadas questões e decidir para o que são pertinentes: A) o teor da decisão recorrida; B) os factos e as ocorrências que se extraem da tramitação dos autos.

A) O teor da decisão recorrida:

«Compulsados os autos, constata-se que os autos foram remetidos à distribuição: sem que fosse apreciada a admissão da ofendida como assistente nos autos, requerida a fls 253 (cfr fls 330, 333 e 401); sem que o Ministério Público assumisse posição quanto à acusação particular deduzida a fls 556 e sgs (por factos diversos dos descritos na douta acusação pública); e sem que o arguido fosse notificado da acusação particular, sendo que tampouco foi apreciada a eventual alteração do estatuto coactivo do arguido, na sequência do despacho de fls 611 (cfr ainda fls 472).

A omissão da acusação (particular) ao arguido e ao seu Defensor/Mandatário, constitui irregularidade, cometida na fase de inquérito, que afecta a validade dos actos subsequentemente praticados (a remessa dos autos à distribuição) e implica que não possa considerar-se ter decorrido já o prazo para requerer a abertura da instrução, faculdade que de todo o modo assiste ao arguido, impedido de a exercer, vendo prosseguir o processo para a fase de julgamento, com um objecto factual mais amplo do que o descrito na douta acusação pública, sem ter sido notificado de tal acusação particular, envolvendo a imputação de factos diversos dos descritos na douta acusação pública.

Consequentemente, julgo intempestiva a remessa dos autos à distribuição, nomeadamente por omissão da notificação ao arguido da acusação particular deduzida, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público, para os efeitos tidos por convenientes (artº 53º, nº 2, al. b) e 263º, nº 1 do CPP).

Neste sentido, Ac. do TRP de 06/02/2017, proferido no âmbito do Procº 374/15.9GCBRG, deste Juízo Local Criminal – Juiz 2.
Notifique e dê as competentes baixas processuais, inclusive na distribuição.».

B) Os factos que se extraem da tramitação dos autos:

1) Em 27/11/2018 a ofendida C. A. requereu nos autos a sua constituição como assistente.
2) Em 29/1/2019, o Ministério Público declarou encerrado o inquérito e deduziu acusação contra o arguido C. C. imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152º, n.º 1, alínea a) e nº.s 2, 4 e 5, em concurso real com dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos arts. 155º, n.º 1, alínea a), todos do C. penal.
3) Após notificação da acusação à ofendida veio deduzir acusação particular nos termos do art. 284, n.º 1 do CPP, deduzindo ainda pedido de indemnização civil contra o arguido.
4) O arguido foi notificado da acusação pública em 30/1/2019, não tendo requerido a abertura da instrução.
5) A acusação particular não foi notificada ao arguido.
6) Em 26/2/2019 os autos foram remetidos ao JIC para apreciação da medida de coacção, tendo sido ordenado, nessa sequência, a prática de um acto relacionado com tal medida.
7) Em 1 de Março de 2019, o Ministério Público determinou a remessa dos autos à distribuição.
8) Os autos foram remetidos à distribuição para julgamento em 4 de Março de 2019.
*
III- O Direito.

1. A apreciação do pedido de constituição como assistente.

Sobre a questão de saber se o juiz de julgamento pode julgar intempestiva ou anular a distribuição e determinar a devolução dos autos ao Ministério Público perante a remessa dos autos à distribuição para julgamento, sem que esse Órgão tenha sujeitado à apreciação do JIC o pedido de constituição de assistente formulado depois de declarada encerrada a fase do inquérito e antes de aberta a fase de julgamento, este Tribunal, no seu acórdão de 17 de Dezembro de 2018 (proferido no processo n.º 290/16.7GBGMR-A.G1 e relatado pelo Desembargador Cruz Bucho), já se pronunciou nos termos que se retiram dos trechos seguintes:

«(…) Segundo o artigo 17.º do Código de Processo Penal, na sua redacção originária (aprovada pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro): “Compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer as funções jurisdicionais relativas ao inquérito, nos termos prescritos neste Código”.

Face ao teor daquele preceito, em casos conexos com o dos autos a jurisprudência vinha entendendo que:

-Ac. da Rel. do Porto de 11-2-1994, proc.º n.º 9351385, rel. Baião Papão: I- O inquérito fica encerrado com a dedução da acusação e, deduzida esta, o processo terá de ser remetido a juízo - artigos 275, n. 3 e 276, n. 1 do Código de Processo Penal - razão pela qual os poderes funcionais de direcção do inquérito atribuídos ao Ministério Público se esgotam por definição com o seu encerramento por via da acusação. II - Nos termos do artigo 311 do Código de Processo Penal, ao ser recebido o processo no tribunal do julgamento, o respectivo juiz deve proceder prioritariamente à apreciação e pronúncia sobre as questões prévias que possam obstar ao conhecimento do mérito da causa, pelo que, deduzida a acusação, é ao juiz e não ao Ministério Público a quem compete conhecer da desistência da queixa e do pedido cível apresentados após a dedução da acusação pública
- Ac. da Rel. de Guimarães de 10-5-2004, 368/04-2, rel. Maria Augusta :“(…), encerrando-se o inquérito com a dedução da acusação, o processo tem que ser remetido a juízo (cfr. artºs 275º nº3 e 276º nº1, ambos do C.P.P.). Por isso, a partir deste momento, a apreciação da desistência de queixa, se a houver, compete ao juiz e não ao MºP”.

O encerramento do inquérito ocorre mediante despacho de arquivamento (artigos 277.º e 280.º), pela acusação do Ministério Público, pela notificação ao assistente no caso dos crimes particulares (artigo 284.º) ou pela suspensão provisória do processo.
(…) Por isso, desde cedo se chamou a atenção para o facto de ser necessária a prática de actos processuais entre o encerramento do inquérito e a remessa para julgamento.
Questionava-se, então, qual seria o juiz competente para apreciar uma questão jurisdicional que viesse a surgir antes de o processo ser remetido para o tribunal de julgamento numa situação em que a instrução não tivesse sido requerida.
(…) A questão veio a ser resolvida pela reforma /revisão de 2007 a qual conferiu nova redacção ao artigo 17.º do CPP que ficou assim redigido: “Compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até à remessa do processo para julgamento, nos termos prescritos neste Código”.
A locução «até à remessa do processo para julgamento» foi, pois, introduzida no texto da disposição legal pela reforma/revisão aprovada pela Lei nº 48/07 de 29/8, sendo que, na redacção anterior, figurava no lugar dela a expressão «relativas ao inquérito»

Como justamente se salientou no Ac. da Rel.de Évora de 9-10-2012, proc.º n.º 17/12.2JAPTM-A.E1, rel. Sérgio Corvacho (…)
(…) No mesmo sentido se pronunciou, mais recentemente, o despacho de 18-11-2015 do Presidente da Secção Criminal da Relação do Porto, Desembargador Francisco Marcolino, proc.º n.º 56/14.9IDAVR-A.P1, assim sumariado “É da competência do JIC a prática de actos jurisdicionais durante o período que decorre entre o encerramento do inquérito e a remessa dos autos para julgamento”.
(…) Consequentemente, o pedido de constituição de assistente foi formulado quando já tinha sido declarada encerrada a fase do inquérito, mas ainda não fora aberta a fase de julgamento.
(…) Consequentemente, os autos ainda estavam na denominada fase preliminar.
Por isso que o Ministério Público devesse ter remetido os autos ao juiz de instrução para apreciação do pedido de constituição de assistente.
(…) Como é bom de ver, o Ministério Público perante a apresentação de um requerimento de constituição de assistente, não pode escolher a seu bel-prazer o momento em que deve submetê-lo a apreciação judicial.
O Ministério Público em vez de submeter o pedido de constituição de assistente ao Juiz de instrução, conforme se impunha, ordenou a remessa dos autos à distribuição.
Foi, pois, cometida uma irregularidade.
Neste ponto assiste razão ao M.º Juiz.
§2. Mas podia o Mº Juiz declarar oficiosamente a existência da apontada irregularidade e, em caso afirmativo, podia anular a distribuição e determinar a remessa dos autos ao Ministério Público?
Vejamos.
No penúltimo parágrafo do despacho recorrido, o M.º juiz declara que “não estão os autos em condições para que seja proferido o despacho previsto no artigo 311.º do CPP”.
Poderia assim pensar-se num despacho pré-preliminar que antecederia o que se encontra previsto no artigo 311.º
Mas, como é bom de ver, esse despacho inexiste no âmbito do Código de Processo Penal.
Encerrado o inquérito, deduzida a acusação e não tendo sido requerida a instrução os autos são remetidos ao tribunal competente para o julgamento (artigo 275.º, n.º3).
(…) Por isso que o despacho recorrido deva ser analisado no contexto do citado artigo 311.º do Código de Processo Penal.
(…) A lei, numa formulação que se repete nos artigos 308.º n.º1 e 338.º, n.º1, refere-se a “nulidades e outras questões prévias ou incidentais”.
Conforme a doutrina e a jurisprudência têm assinalado, as questões prévias ou incidentais em questão podem ser de natureza substantiva (morte do arguido, amnistia, prescrição, despenalização, etc) ou adjectiva (incompetência do tribunal, ilegitimidade, etc.).
Ora, a apontada irregularidade não constitui nem nulidade, nem questão prévia ou incidental que obste à apreciação do mérito da causa.
Por isso que a apontada irregularidade não pudesse ser conhecida oficiosamente pelo juiz de julgamento.

Por outro lado um importante sector da jurisprudência tem considerado que o juiz de julgamento não pode devolver o inquérito ao Ministério Público (MP):

- para prosseguir com diligências pendentes que, na óptica do juiz, obstam à realização do julgamento (Ac. da Rel. de Guimarães de 10-5-2004, proc.º n.º 368/04-2º, rel. Maria Augusta);
- para que o MP diligencie no sentido da sanação de uma nulidade (Ac. da Rel. do Porto de 30-1-2008, proc.º n.º 0716298, rel. Francisco Marcolino);
- para que o MP proceda ao eventual suprimento de uma nulidade de inquérito (Ac. do STJ d e 27-4-2006, proc.º n.º 06P1403, rel. Cons.º Pereira Madeira);
- para que seja sanada a irregularidade concretizada na falta de notificação da acusação ao defensor do arguido (Ac. da Rel. do Porto de 1-4-2009, proc.º n.º 976/07.7TAVNF-A.P1, rel. Ernesto Nascimento);
- para que se procedesse à notificação da acusação ao arguido (Acs da Rel. de Coimbra de 6-11-1991, Col. de Jur. ano XVI, tomo 5, pág. 84 e da Rel. de Évora de 21-5-2002, Col. de Jur. ano XXVII, tomo 3, pág. 271 da Rel. de Lisboa de 26-2-2013, proc.º n.º 406/10.7GALNH-A.L1-5, rel. Alda Casimiro);
- para ser dado cumprimento ao artigo 283.º, n.º5 (Acs. da Rel de Coimbra de 7-2-1996, Col. de Jur. ano XXI, tomo 1, pág. 51 e da Rel. de Évora de 7-2-1996, Col. de Jur., ano XXI, tomo 1, pág. 84 e de 27-6-2000, Col. de Jur., ano XXV, tomo 3, pág. 281);

Nestas como em muitas outras situações (mencionadas v.g. no citado Ac. da Rel. de Guimarães de 10-5-2004, em Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal - Notas e Comentários, 2ªed., Coimbra, 2011, pág. 864, e em Paulo Pinto de Albuquerque “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2ª edição, citado pelo recorrente), a impossibilidade de devolução do inquérito ao Ministério Público radica no modelo acusatório que enforma o nosso processo penal, que consagra partilha de funções entre magistraturas distintas.

Como se assinala no citado Ac. da Rel. de Évora de 28-5-2002, relatado pelo então Desembargador Sérgio Poças (…)
(…) De facto, sendo autónomas a intervenção do Ministério Público no inquérito e a do Juiz na fase da instrução e/ou do julgamento, “não tem fundamento legal qualquer «ordem», nomeadamente do juiz de instrução, para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção” (cfr. o acórdão do STJ, de 27-4-2006, proc.º n.º 06P1403, rel. Cons.º Pereira Madeira, os acórdãos da Relação de Coimbra de 6 -11-1991, in Col. de Jur., ano XVI, tomo 5, pág. 84, de 7-2-1996, in Col. de Jur., ano XXI, tomo 1, pág. 51 e de 23-10-2013, proc.º n.º 1231/11.3T3AVR.C1, rel. Orlando Gonçalves; acórdãos da Relação de Évora de 27-6-2000, in Col. de Jur., ano XXV, tomo 3, pág. 281, e de 21-5-2002, in Col. de Jur., ano XXVII, tomo 5, pág. 51; acórdãos da Relação de Lisboa de 26-2-2013, proc.º n.º 406/10.7GALNH-AL1-5, rel. por Alda Tomé Casimiro e de 21-11-2013, proc.º n.º 304/11.7PTPDL.L1-9, rel. Maria Guilhermina Freitas; acórdãos da Relação do Porto de 4-6-2014, proc.º n.º 35/13.3IDPRT-A.P1, rel. Vaz Pato e de 11-4-2018, proc. n.º rel. Luís Coimbra e os acórdãos desta Relação de Guimarães de 11-1-2016, proc.º n.º 339/14.8IDBRG-A.G1, rel. Ana Teixeira, de 5-12-2016, proc.º n.º 823/12.8PBGMR.G1, rel. Paula Robert e de 6-2-2017, proc.º n.º 540/14.4GCBRG.G1, rel. Alda Casimiro).

No mesmo sentido se pronunciou o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque (“Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2ª edição actualizada, págs. 790-791) (…)
Nesta perspectiva, que se perfilha, o M.º juiz não podia conhecer oficiosamente da irregularidade cometida nem anular a distribuição e determinar a remessa dos autos ao Ministério Público.
Mas a questão pode, ainda, ser equacionada à luz de um outro entendimento.
É que existe igualmente um sector importante da jurisprudência que admite a devolução do processo ao Ministério Público para reparar nulidades ou irregularidades praticadas no inquérito.
(…) A admitir-se a devolução do processo ao Ministério Público, sempre ficaria de pé a seguinte questão prévia: a irregularidade cometida obsta à apreciação do mérito da causa, como o exige o nº. 1 do artigo 311.º, pode afectar o valor do acto praticado à luz do n.º 2 desse artigo 311.º, como o exige o n.º 2 do artigo 123.º?
Seguramente que não.
Embora a admissão como assistente seja um acto jurisdicional (…) não se integra no elenco de funções consignadas nos artigos 268.º e 269.º porque não é um acto que apenas possa ser praticado pelo juiz de instrução.
Com efeito, a constituição de assistente pode ter lugar em qualquer altura do processo, com os limites previstos nas alíneas a) e b) do n.º 3 do artigo 68.º do CPP, ou seja, até 5 dias antes do início do debate instrutório ou da audiência de julgamento para poder intervir no debate ou no julgamento; ou, tratando-se dos casos dos artigos 284.º e 287.º, n.º1, al. b), no prazo fixado para a prática dos respectivos actos.
Por isso que o processo a seguir para a constituição de assistente, estabelecido nos n.ºs 2 a 4 do artigo 68.º apenas se refira ao juiz, que tanto pode ser o juiz de instrução como o de julgamento, consoante a fase em que o processo se encontrar.
O assistente constituído terá de aceitar o processo no estado em que o mesmo se encontrar no momento da constituição (n.º3 do artigo 68.º).
No caso dos autos nenhum dos arguidos requereu instrução.
O ofendido que podia requerer a sua constituição como assistente e simultaneamente (cfr. v.g. o Ac. desta Relação de 2-10-2006, proc.º n.º 834/06-2, rel. Cruz Bucho) requerer a abertura de instrução relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tivesse deduzido acusação (artigo 287.º, n.º1, alínea b) do CPP), não requereu instrução.
Em vez disso, requereu a sua constituição como assistente e, na mesma data mas em articulado separado, deduziu pedido de indemnização civil, começando por dar “por integralmente reproduzida a factualidade inserta na douta acusação pública proferida, contra os arguidos, ora demandados”.
Por isso, como bem observa a Exmª PGA no seu esclarecido parecer, a requerida constituição como assistente só podia ter como objectivo intervir no julgamento.
A admissão prévia da constituição como assistente não constituía pois condição para a validade de qualquer acto processual.
Nenhum acto subsequente fica afectado.

No caso dos autos, encerrado o inquérito, deduzida a acusação e distribuídos os autos, nada impedia o juiz de julgamento de proferir o despacho a que alude o artigo 311.º do CPP e, simultaneamente, dar seguimento à tramitação do pedido de constituição como assistente.
Por isso, não podia anular a distribuição e determinar a remessa dos autos ao Ministério Público.»

Porque reiteramos plenamente o entendimento expresso no aresto ora reproduzido, a decisão recorrida teria que dar cumprimento ao disposto no artigo 311º do CPP, e dar (também) seguimento à tramitação do pedido de constituição como assistente.

2. A notificação ao arguido da acusação particular e posição do MP quanto a esta.

Estatui o art. 284º do CPP que, até 10 dias após a notificação da acusação pública, o assistente pode também deduzir acusação – que pode limitar-se a mera adesão àquela – pelos factos acusados pelo Ministério Público, por parte deles ou por outros que não importem alteração substancial daqueles.

Segundo aduz a Sra. Juíza na decisão recorrida, a acusação particular formulada pela assistente e não notificada ao arguido envolve a imputação de factos diversos e com um objecto mais amplo em relação aos descritos na acusação pública.

Ora, independentemente de tal asserção poder ter ou não correspondência com a realidade plasmada na acusação particular, o certo é que, neste momento, não é essa a questão que urge solucionar, mas sim, a de saber, se o procedimento adoptado pela Sra. Juíza é o conforme à lei.

É certo que, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32º, n.º 5, da CRP) como garantia de defesa que consubstancia uma concretização de valores inerentes a um estado de direito democrático, os poderes de cognição do tribunal estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente fixado pelo conteúdo da acusação, com o rigor e a precisão adequados.

Porém, não tendo sido requerida a abertura de instrução pela assistente no prazo peremptório de que dispunha para o efeito (art. 287º do CPP), o objecto cognoscível pelo tribunal nunca poderia ser ampliado em função da acusação particular, tendo ficado definitivamente confinado à descrição factual contida na acusação pública e, por isso, de entre os factos naquela articulados só poderão vir a ser considerados na decisão da causa os que, sendo meramente contextualizadores dos narrados na acusação pública, não atropelem a vinculação temática desta advinda, ou seja, que não importem, de modo algum, a sua alteração substancial.

Portanto, tudo o que na acusação particular transborde o objecto do processo definido pela acusação pública será irrelevante para a decisão da causa pelo que, de harmonia como o disposto na alínea b) do art. 311º do CPP, incumbirá à Sra. Juíza rejeitar a acusação da assistente na parte em que a mesma, eventualmente, importe uma alteração substancial dos factos.

E daí que se compreenda que a lei não estenda à intimação da acusação deduzida pelo assistente prevista no citado preceito art. 284º os requisitos e os trâmites impostos pelos arts. 277º, n.º 3, e 283º, n.ºs 5 e 6 do CPP para a notificação da acusação pública.

Ademais, como salienta a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta, o despacho que designa dia para a audiência de julgamento, acompanhado de cópia da acusação pública e da acusação da assistente, sempre será notificado ao arguido e ao seu defensor, nos termos do art. 313º, n.º 2, do CPP, assistindo ao arguido a faculdade de questionar tudo o que contra ele seja aduzido, assim se salvaguardando o exercício do contraditório.

É, pois, claro que ao arguido deve ser comunicado o conteúdo da acusação deduzida pelo assistente, o que pode ser feito na pessoa do seu defensor, tal como o de quaisquer outros actos ou despachos proferidos, exceptuados os que também devam ser notificados por contacto pessoal, entre os quais se inclui a acusação pública, enquanto delimitadora do objecto do processo (arts. 111º e 113º, n.º 10, do CPP).

Trata-se duma genérica decorrência da subordinação do processo ao princípio do contraditório, facultando ao arguido – a este por maioria de razão – a possibilidade de, ainda antes do julgamento, corrigir ou questionar tudo o que contra ele seja aduzido, assim lhe assegurando todas as garantias necessárias e adequadas a um eficaz exercício do direito de defesa.

Mas, por assim ser, daí não advém que a omissão dessa notificação na fase de inquérito invalide o acto subsequentemente praticado (a remessa dos autos à distribuição) e justifique a devolução dos autos ao MP ou conceda ao arguido a faculdade de ainda requerer a abertura da instrução, uma vez extinto o respectivo direito (citado art. 287º do CPP).

Como é sabido, o processo penal está submetido ao primado do princípio da legalidade e deste emana o princípio da tipicidade dos trâmites legalmente cominados, bem como das invalidades decorrentes da sua inobservância, que se afirma no numerus clausus das invalidades processuais e dos respectivos fundamentos e daí que a inobservância de tais trâmites só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei, acarretando, nos demais casos, a sua mera irregularidade (cfr. art. 118º do CPP).

Ora, como se disse, a lei apenas prevê a comunicação ao arguido do conteúdo da acusação deduzida pelo assistente ao abrigo do art. 284º do CPP no trâmite processual a que alude o art. 313º, n.º 2 do CPP, não impondo a notificação de tal acusação em momento processual anterior. Por isso, não há que falar em qualquer vício, designadamente o da irregularidade, perante a não comunicação do conteúdo dessa acusação até ao do referido trâmite processual.

Finalmente, não se vislumbra, nem a fundamentação da decisão recorrida referencia, qualquer norma legal impondo ao Ministério Público o ónus de, precedentemente à remessa dos autos ao Tribunal, tomar posição sobre o conteúdo da acusação particular deduzida pelo assistente nos termos do n.º 1 do art. 284º do CPP, sendo certo que quem represente esse Órgão sempre o poderá vir a fazer, na prossecução da incumbência da defesa da legalidade, até ao encerramento da discussão, o mesmo sucedendo, aliás, com qualquer outro sujeito processual.

É, pois, completamente irrelevante para a decisão da causa a circunstância de o Ministério Público ainda não ter tomado qualquer posição sobre o assunto. De todo o modo, sempre se dirá que, na lógica do sistema legal vigente, atentas a autonomia do MP e a estrutura acusatória do processo penal, o juiz não tem competência para dar ordens a esse Órgão em relação a actos praticados ou a praticar no inquérito (1), pelo que a Sra. Juíza não poderia ter determinado a questionada devolução, para a aludida finalidade.

Tudo ponderado, procede o recurso.

Decisão:

Pelo exposto acordam os juízes desta Relação em julgar o recurso procedente e, consequentemente, revogar o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que, em cumprimento do disposto no artigo 311º do CPP, pressuponha que as razões invocadas no despacho recorrido não obstaculizam ao recebimento da acusação.

Sem custas.
Guimarães, 10/07/2019

Ausenda Gonçalves
Fátima Furtado


1- Cf., neste sentido, o acima citado Acórdão do STJ de 27-04-2006 (p. 06P1403).