Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5872/20.0T8VNF-A.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: CONTRATO DE GARANTIA BANCÁRIA
CANCELAMENTO
PREENCHIMENTO ABUSIVO DE LIVRANÇA
PRESCRIÇÃO DAS OBRIGAÇÕES TITULADAS POR ELA
EXTINÇÃO DO NEGÓCIO CAUSAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/30/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
SUMÁRIO (da responsabilidade da Relatora - art. 663.º, n.º 7 do CPC)

I. O Tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação).
II. Por força dos princípios da utilidade, da economia e da celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil.
III. Comunicando, por escrito e expressamente, o banco garante à sociedade garantida o cancelamento da garantia bancária acordada entre ambos, e cobrando-lhe inclusivamente a comissão bancária do custo de tal acto, tornou-se a partir desse momento eficaz e irrevogável a extinção daquele contrato.
IV. Pagando depois o banco garante, ao beneficiário da garantia bancária assim extinta, o respectivo montante, e preenchendo a livrança antes emitida em branco para assegurar o seu eventual direito de regresso sobre a sociedade garantida, fê-lo abusivamente (por prévia extinção do negócio causal à emissão do dito título de crédito).
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência (após corridos os vistos legais) os Juízes da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, sendo

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.ª Adjunta - Alexandra Maria Viana Parente Lopes.
*
ACÓRDÃO

I - RELATÓRIO
1.1. Decisão impugnada

1.1.1. L. O. e mulher, M. G. (aqui Recorrentes), propuseram a presente oposição a acção executiva (movida contra Carnes ..., Limitada e contra eles, por Banco ..., S.A., para haver a quantia de € 42.248,76, titulada por uma livrança, subscrita pela referida Sociedade e avalizada por eles próprios), contra Banco ..., S.A. (aqui Recorrida), pedindo que

· a oposição fosse julgada procedente, sendo declarada extinta a acção executiva de que a mesma é apenso.

Alegaram para o efeito, em síntese, que sendo invocado como título executivo uma livrança, emitida em 24 de Setembro de 1997, por Carnes ..., Limitada, e avalizada por eles próprios, para caução do cumprimento de obrigações assumidas por meio de uma garantia bancária, pedida por aquela Sociedade à Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.), a favor da Câmara Municipal de ..., para garantir a boa execução de obras de urbanização decorrentes da implantação de um loteamento, foi a dita livrança emitida em branco, e preenchida abusivamente pela Embargada/Exequente.
Com efeito, não só teria Carnes ..., Limitada vendido entretanto a um Terceiro os lotes para construção previstos no Alvará de Loteamento (o que ocorreu em 12 de Junho de 2000), como no momento do preenchimento da livrança (ocorrido em 14 de Outubro de 2020) já estaria cancelada a dita garantia bancária (o que ocorreu em 17 de Junho de 2015), e prescritas as obrigações cartulares (por se encontrarem decorridos mais de vinte e três anos sobre a emissão da dita livrança).
Defenderam, por isso, que a pretensa dívida exequenda (reclamada nos autos principais) seria inexigível, bem como inexistente o título executivo.

1.1.2. Foi proferido despacho, recebendo liminarmente os embargos deduzidos, e ordenando a notificação da Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) para, querendo, os contestar.

1.1.3. Regularmente notificada, a Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) contestou, pedindo que os embargos fossem julgados improcedentes, prosseguindo a acção executiva os seus termos até final.
Alegou para o efeito, em síntese, nunca ter sido cancelada a garantia bancária à primeira solicitação emitida por si a favor de Carnes ..., Limitada (depois accionada pela Câmara Municipal de ... e paga em benefício dela), ao contrário do que, por manifesto lapso seu, chegou a comunicar aos Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.).
Mais alegou não ter ocorrido ainda qualquer prescrição das obrigações cartulares, uma vez que o termo inicial dos três anos fixados na lei para o efeito coincide com a data de vencimento aposta na livrança, e não com a data de emissão da mesma.

1.1.4. Proferiu-se despacho: dispensando a realização de uma audiência prévia; saneador (certificando tabelarmente a validade e a regularidade da instância); identificando o objecto do litígio («responsabilidade dos embargantes/executados (…) pelo pagamento do valor constante do título de crédito oferecido à execução, na qualidade de avalistas») e enunciando os temas da prova («apurar as circunstâncias em que foi emitida a livrança oferecida à execução e avalizada pelos Embargantes, nomeadamente a relação subjacente a essa livrança», «apurar se a garantia bancária que constituía a relação subjacente à livrança foi cancelada e em que data» e «apurar se o Exequente violou o pacto de preenchimento ao proceder ao preenchimento da livrança»); apreciando os requerimentos probatórios das partes e agendando a realização da audiência final.

1.1.5. Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, julgando a oposição totalmente improcedente, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
IV. DECISÃO
Nestes termos, julga-se a presente oposição à execução por embargos deduzida pelos Embargantes/Executados totalmente improcedente e, em consequência:

a) Ordeno o normal prosseguimento da instância executiva.

b) Condeno os Embargantes nas custas, sem prejuízo do direito da protecção jurídica de que (eventualmente) beneficiem.

Registe e notifique
Comunique ao(à) Sr. (ª) Agente de Execução.
(…)»
*
1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos

Inconformados com esta decisão, os Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.) interpuseram o presente recurso de apelação, pedindo que fosse provido, revogando-se a sentença recorrida.

Concluíram as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis):

- Como decorre dos autos, por Douta Decisão proferida em 1ª Instância, foi a oposição à execução por embargos, julgada improcedente por não provada.
- Com tal decisão não se conformam os recorrentes, entendendo estes que a Sentença em crise ocorre em erro no que tange à decisão sobre a matéria de facto, incorrendo, de igual modo, em erro no que tange à interpretação e aplicação do direito.

No que concerne à decisão sobre a matéria de facto

- Enferma a Douta Decisão recorrida de omissão quanto à matéria fáctica que deveria ter sido dado por assente, por relevante para a boa decisão da causa.
- Com efeito, aquando da dedução da oposição à execução por embargos, vieram os recorrentes alegar que havia ocorrido violação do pacto de preenchimento da livrança dada à execução, violação essa estribada na circunstância de se ter operado o cancelamento do acordo da garantia bancária ao qual estava adstrita a emissão da livrança em apreço.
- No que concerne à invocada garantia bancária, que constitui indubitavelmente a relação subjacente à relação cartular, foram dados por provados e assim deveriam ter saído, a factualidade inserta nos pontos 5, 6, 7, 10, 11 e 12 da relação de factos assentes, dando-se assim por comprovada a existência de tal garantia bancária.
- Para dar por provada tal matéria, considerou o douto Tribunal recorrido como relevante os documentos juntos aos autos, quer pela recorrente, quer pela recorrida, e concretamente o documento identificado com o nº 1 junto à contestação, a requerimento dos recorrentes.
- Ora, se assim é, ao invés de se ter limitado o Douto Tribunal de 1ª Instância a dar por assente factos que constituem parte de tal documento, mas sim os factos que constituem a totalidade do documento, e, concretamente, todos aqueles que se referem à duração e condições de renovação da garantia bancária em causa.
- Concretamente, com base em tal documento, que foi aceite e não impugnado por recorrentes e recorrida, deveria ter sido dado por assente que a garantia bancária ajustada entre as partes foi convencionado por um período inicial de um ano, podendo ser renovada, por iguais períodos de tempo, mediante acordo escrito entre o ordenador e o Banco ....
- Atendendo a que haviam os recorrentes invocado a extinção da garantia bancária no momento em que a recorrida efectuou o pagamento à beneficiária de tal garantia, é pois óbvio que tal matéria fáctica se demonstra essencial para a resposta a dar em termos de aplicação do direito, e, como tal, e por estar provada, deveria estar incluída no rol de factualidade assente.
- Assim, deverá ser adicionada à decisão sobre os factos provados, ou, o teor integral do documento em causa, ou então, a seguinte matéria de fáctica: “A garantia bancária ajustada entre os recorrentes e a recorrida a 2 de Outubro de 1997, foi estabelecida pelo prazo de um ano renovável, podendo ser prorrogada mediante acordo escrito entre o ordenador e o Banco ..., SA”.

No que concerne à decisão sobre a matéria de direito
- Como decorre dos autos, estriba-se a execução, a que os recorrentes deduziram oposição, em livrança pelos mesmos avalizada, livrança essa que foi emitida e subscrita em branco, no que concerne ao montante e à data de vencimento, e que teve por objectivo garantir o cumprimento das obrigações que decorriam do ajuste da garantia bancária ajustada entre a recorrida e a sociedade comercial acima identificada, bem como com os recorrentes.
- Deduzindo oposição, vieram os recorrentes invocar o cancelamento da garantia bancária, para assim, por um lado, alegarem a violação do pacto de preenchimento, bem como a ocorrência de prescrição, invocando num caso e no outro, a inexigibilidade da quantia exequenda, sustentando tal cancelamento da garantia bancária em declaração por eles recebida, e remetida pela recorrida a 17 de Junho de 2015.
- Ora, tal argumentação aduzida pelos recorrentes foi totalmente desconsiderada pelo Tribunal recorrido, que retirou qualquer relevância à declaração de cancelamento emitida pela recorrida, por a mesma ter sido transmitida por manifesto lapso.
- Com tal posição não podem os recorrentes conformar-se, até porque, no limite, a ter ocorrido lapso por parte da recorrida, não releva o mesmo em termos legais, ou pelo menos, para os termos acolhidos na Douta Sentença em crise, tendo, pelo contrário, a declaração recebida pelos recorrentes, produzindo todos os seus efeitos, o que relevaria para efeitos de procedência de embargos deduzidos.
- De facto, a eventual responsabilidade dos recorrentes decorrerá em tese, da circunstância de terem os mesmos subscrito, na qualidade de avalistas, a livrança dada à execução que constitui, indubitavelmente, um título de crédito a que são inerentes as características da literalidade, abstracção e autonomia.
- Todavia, tal livrança tem a sua causa de ser numa relação subjacente, que no caso sub judice, constitui na contratação de uma garantia bancária a que estava adstrito um pacto de preenchimento, e um acordo de responsabilização pessoal dos recorrentes, que também nesse acordo foram partes.
- Desta forma, e nessa dupla qualidade, é-lhe pois permitido invocar a relação causal e todas as circunstâncias a ela inerentes, invocando os meios de defesa referentes a tal relação causal.
- Em todo o caso, a subscrição da livrança dada à execução foi precisamente subscrita para que a recorrida pudesse lançar mão da mesma, caso se visse ela obrigada, no âmbito da garantia bancária, a cumprir junto da beneficiária (Câmara Municipal de ...), os valores que constam de tal garantia.
- Significa isto que a subscrição da livrança está directamente relacionada com a garantia bancária que lhe é causal.
- Ora, como decorre da factualidade assente, a recorrida a 17 de Junho de 2015 emitiu declaração, remetida aos recorrentes, nos termos da qual expressamente declarava o cancelamento da garantia bancária.
- Paralelamente, nessa mesma comunicação cobrava a recorrida aos recorrentes e à sociedade comercial interveniente no acordo, a denominada comissão de cancelamento, comissão essa que era devida, precisamente por força de extinção da garantia bancária.
- Ora, tal declaração foi tida pelos ora recorrentes como uma declaração séria por parte da recorrida, tendo interiorizado o seu teor e o seu conteúdo, na sua forma textual, como a teria entendido qualquer declaratário normal, nos termos do disposto no nº 1 do artº 236º do Código Civil que a este propósito consagra que “A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante (…)”
- Significando isto que os recorrentes a partir de então consideraram a garantia bancária extinta e cancelada, até porque não só pagaram a respectiva comissão de cancelamento, com também a partir de então deixou de lhes ser debitada qualquer quantia a título de juros, comissões ou demais encargos que seriam inerentes à manutenção da garantia bancária.
- Ora, a declaração emitida pela instituição bancária, aqui recorrida, constitui uma declaração negocial receptícia, que, à luz do disposto no artº 224º, nº 1 do Código Civil não pode deixar de ser considerada plenamente eficaz e perfeita a partir da sua recepção pelo declaratário, pelo que, no caso, sempre seria causal do real e efectivo cancelamento da garantia bancária, contrariamente ao entendido pela Douta Decisão proferida em 1ª Instância.
- Como é bom de ver, tendo sido cancelada a garantia bancária em apreço, ter-se-ão extinguido todas as obrigações e direitos que a sua manutenção pressupunha, e concretamente todas as obrigações que para os recorrentes, como avalistas e como outorgantes e assumptores da responsabilidade pessoal que havia assumido, ocorriam, razão pela qual, e como consequência, ter-se-á que considerar que a recorrida ao ter pago à beneficiária o valor ou quantia por esta peticionada, o fez em momento posterior ao do cancelamento da garantia bancária, e, concretamente, em momento em que os recorrentes, por força de tal cancelamento, se encontravam já desobrigados, mesmo na sua qualidade de avalistas, violando deste modo o pacto de preenchimento referente à emissão de livrança dada à execução.
- Como tal, discorda-se, pois, da relevância que a Decisão recorrida conferiu ao alegado lapso manifesto da recorrida, no sentido de extrair dela a irrelevância total da declaração negocial de cancelamento de garantia bancária transmitida pela mesma.
- Efectivamente, a ter ocorrido lapso manifesto por parte da recorrida, nunca teria tal lapso o efeito de desvalorizar a declaração receptícia, como o Douto Tribunal o fez.
- De facto, e desde logo é forçoso não esquecer que é a recorrida uma prestigiada instituição bancária, que, por natureza da sua actividade, está perfeitamente habilitada para lidar com operações de natureza de concessão de garantias bancárias em tudo semelhantes à que se encontra descrita nos autos.
- Por força da sua especial vocação e natureza de actividade social, espera-se que a recorrida possua toda a capacidade técnica para compreender o teor das comunicações que lhe são feitas, sendo seu especial dever dotar-se dos meios técnicos e dos recursos humanos que saibam, sem erro, aquilatar as interpelações que lhe são efectuadas e apurar o seu verdadeiro teor e conteúdo.
- Assim, e desde logo, conceder ao alegado lapso manifesto uma protecção jurídica que em ultima análise coloca em causa os princípios da certeza e segurança do tráfico jurídico, seria, desde logo, com prejuízo para terceiros, retirar qualquer valor objectivo às declarações emitidas pelas instituições bancárias, permitindo assim causar a terceiros envolvidos um acréscimo de prejuízos e danos que doutra forma seriam evitados,
- e, essencialmente, seria, no caso sub judice, permitir que um erro da recorrida, por desleixo, incompetência ou leviandade, viesse causar aos recorrentes um avolumar de encargos, juros, alcavalas e outro tipo de custos que de outro modo não sofreriam, e isto tudo sem qualquer dano para a recorrida, que estaria sempre espaldada pela existência de uma livrança que podia preencher e completar, apondo nela a data de vencimento que lhe fosse conveniente e os montantes que pretendesse, incluindo nestes todos os encargos, juros, penalidades e comissões que de igual modo pretendesse.
- Ademais, a ter ocorrido erro, tal erro nunca teria consistido em erro na declaração (já que a recorrida declarou aquilo que pretendeu declarar), mas sim, e eventualmente, erro (não desculpável) nos pressupostos na declaração, pois que, a recorrente teria declarado o que declarou por erro de interpretação da interpelação ou comunicação, que, por seu turno, lhe havia sido feita pela Câmara Municipal de ....
- Ora, tal erro (erro nos motivos) não é susceptível de ser invocado pela recorrida, desde logo por força do disposto no artº 252º, nº 1 do Código Civil, que dispor que “o erro que recaia nos motivos determinantes da vontade …não é causa de anulação” o que equivale a dizer que o erro sobre os motivos em termos jurídicos não releva juridicamente, o que denota desde logo a preocupação do legislador de preservar o princípio da confiança e da segurança do trafico jurídico.
- Mesmo que assim não fosse, mesmo que em tese pudesse a recorrida invocar, tal como invocou o lapso de interpelação, o que é certo é que, em tese geraria o mesmo anulabilidade da declaração negocial em causa, anulabilidade essa que não foi arguida sequer pela recorrida atempadamente, nem por via de acção judicial, nem por via de excepção, pelo que, de acordo com o preceituado no nº 1 do artº 287º do Código Civil, sempre tal anulabilidade se encontraria sanada, por feito da caducidade.
- Como tal, e contrariamente ao Doutamente decidido em 1ª Instância, dever-se-á entender que a declaração de cancelamento da garantia transmitida pela recorrida aos recorrentes, produziu plenamente os seus efeitos, e, assim, logo após a recepção da mesma, gerou a extinção e o cancelamento da garantia bancária em apreço, o que sucedeu em momento anterior ao do invocado pagamento efectuado pela recorrida à Câmara Municipal de ....
- De qualquer forma, a extinção de tal garantia bancária sempre teria ocorrido por outra ordem de razões.
- Assim, o acordo de concessão de garantia bancária ajustado pelas partes previa um prazo inicial de um ano, com possibilidade de renovação por iguais períodos de tempo, por acordo escrito entre as partes.
- Ora, a partir da comunicação operada em 17 de Junho de 2015, não mais foram debitadas aos recorrentes quaisquer valores referentes às comissões que seriam devidas pela manutenção da garantia bancária, não tendo sido, por isso mesmo, ajustados quaisquer acordos de prorrogação do prazo inicialmente estabelecido.
- Significa isto que, o acordo de concessão de garantia bancária sempre se teria extinto pelo decurso do prazo, pois que este só poderia ser renovado por acordo escrito que não existiu.
- Assim, também por esta ordem de razões, se teria verificado a extinção da garantia bancária em momento anterior ao da efectivação do alegado pagamento ao Município, e, consequentemente, ao momento de preenchimento da livrança por parte da recorrida no que tange ao montante inserto em tal titulo de crédito, e à data de vencimento.
- Se assim é, e assim deve ser considerado, ocorreu por parte da recorrida notória violação do pacto de preenchimento da livrança, que assim não pode deixar de fazer com que a recorrida tenha incorrido em notório preenchimento abusivo do título dado à execução, pois que preencheu a livrança de forma arbitrária, ao arrepio do que decorria do acordo ajustado entre as partes, que, mutuamente previa ou condicionava a emissão da livrança, à obrigatoriedade de restituição das quantias eventualmente despendidas pela recorrida, ao abrigo do acordo de concessão de garantia bancária que em tal momento se demonstrasse válido e vigente, o que não ocorreu.
Sem conceder,
- Caso se entenda que a declaração negocial de cancelamento da garantia bancária assentou em lapso manifesto da ora recorrida, lapso esse que seria relevante, dever-se-á entender então que na data de 11 de Junho de 2015 ocorreu interpelação válida da Câmara Municipal no sentido de se cumprir a garantia bancária concedida, sendo que, a partir de então, por força dos acordos ajustados entre as partes, deveria a recorrida ter pago os valores peticionados pela beneficiária da garantia bancária, e os recorrentes obrigados a restituir à mesma tais valores e tais quantias, sendo que, se o não fizessem, podia a instituição bancária preencher e accionar a livrança que havia sido emitida e avalizada pelos recorrentes.
- De acordo com o disposto no artº 70º da LULL todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem no prazo de três anos, a contar do seu vencimento, normativo esse que é também aplicável às livranças e aos avalistas das mesmas.
- O instituto da prescrição, que se prevê nesse normativo, e em termos gerais no Código Civil (artº 300º e seguintes) tem a sua razão de ser, em razões de segurança e certeza jurídicas, bem como em razões de interesse e ordem públicas.
- Assim, protegendo-se os interesses do credor, ter-se-ão de proteger de igual modo os interesses dos devedores, nomeadamente salvaguardando-se das notórias desvantagens que o decurso de tempo poderia causar nos seus débitos.
- Por isso, previu o legislador o instituto da prescrição, considerando nulos todos os negócios ou acordos destinados a modificar os prazos legais da prescrição ou a facilitar ou dificultar por outro lado as condições em que a prescrição opera os seus efeitos.
- No caso das livranças, o referido prazo de prescrição é o prazo de três anos, que correrá a partir da data do respectivo vencimento, circunstância essa que poderá ser difícil de resolver no caso das livranças em branco no que toca à data de vencimento.
- De qualquer modo, tal questão terá de ser resolvida de acordo com a imperatividade do regime de prescrição, e, por outro lado, do reconhecimento de que o tomador da livrança, sendo livre de a preencher, deverá efectuar tal preenchimento de acordo com a vontade dos intervenientes que na relação causal ou subjacente estiverem na origem da emissão da livrança.
- No caso em apreço, a emissão da livrança resultou da vontade das partes de constituir uma “contra-garantia” à garantia bancária que havia sido concedida, devendo a mesma ser accionada caso a recorrida se visse licitamente obrigada a prestar tal garantia e a assumir o pagamento, se interpelada para tal de forma licita pela beneficiária da garantia bancária, ou seja, pelo Município de ....
- Assim, se na vigência do contrato de garantia bancária fosse a recorrida obrigada a efectuar o pagamento da quantia garantida, teria o direito de, em tal circunstância, exigir da sociedade garantida, quer dos aqui recorrentes, a restituição de tal valor, e se tal restituição não se verificasse, o direito de accionar a livrança dada em execução.
- No caso em apreço, ao decidir-se dar por assente que ocorreu lapso manifesto da recorrida na interpretação da interpelação que lhe foi dirigida a 11 de Junho de 2015, ter-se-ia de decidir que tal comunicação valia como interpelação para pagamento.
- Se assim for, será a partir de tal data que a recorrida se viria obrigada a cumprir as suas obrigações para com a beneficiária da garantia, e seria, concomitantemente a partir de tal data que poderia accionar os ora recorrentes como avalistas, ou seja, em termos simples, seria essa data a data que deveria valer como data de vencimento da livrança dada em execução.
- Consequentemente, seria a partir de 11 de Junho de 2015 que se deveria iniciar a contagem do prazo de prescrição previsto no artº 70º da LULL, o que conduziria à necessária conclusão de que, quando os recorrentes foram citados para a presente execução, já a dívida exequenda se teria extinto por prescrição. (Conf. nesse sentido o já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 11/06/2019)
- Ao decidir de forma contrária, violou pois a Douta Sentença recorrida o preceituado na nossa legislação a nível da natureza imperativa da prescrição, pois que, as suas conclusões jurídicas estribam-se no errado entendimento de que o portador de uma determinada livrança, que lhe foi entregue em branco no que respeita à data, poderá apor na mesma a data que lhe seja conveniente, o que, por ferir em absoluto o regime imperativo da prescrição, colocaria em causa a necessidade de acautelar a segurança e a certeza jurídica que deveria existir no tráfico jurídico.
*
1.2.2. Contra-alegações

A Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) não contra-alegou.
*
II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art. 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC) (1).
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) (2), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
*
2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
2.2.1. Questões incluídas no objecto do recurso

Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto da sentença final pelos Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.), uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal ad quem:

· Questão Única - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação da lei (nomeadamente, ao julgar não ter ocorrido o preenchimento abusivo da livrança invocada como título executivo nos autos principais - por prévia extinção do contrato de garantia bancária que lhe estava subjacente -, nem a prescrição das obrigações tituladas pela mesma), devendo ser alterada a decisão de mérito proferida (nomeadamente, julgando totalmente procedente a oposição deduzida - por preenchimento abusivo da livrança dos autos e/ou prescrição das obrigações tituladas por ela -, e extinta a acção executiva de que a mesma é apenso)?
*
2.2.2. Questão excluída do objecto do recurso

Precisa-se (a propósito da limitação do número de questões enunciadas como constituindo objecto deste recurso de apelação), que se tem presente que os Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.) defenderam ainda, no seu recurso, que o Tribunal a quo teria julgado mal a matéria de facto provada, por ter omitido um facto relevante para a decisão da causa.
Com efeito, tendo dado como provada a constituição de uma garantia bancária, «que constitui indubitavelmente a relação subjacente à relação cartular», fê-lo com base nos «documentos juntos aos autos, quer pela recorrente, quer pela recorrida, e concretamente o documento identificado com o nº 1 junto à contestação»; mas apenas teria dado por assentes alguns dos «factos que constituem parte de tal documento», e não a sua totalidade, «concretamente, todos aqueles que se referem à duração e condições de renovação da garantia bancária em causa».
Pretenderam, por isso, que se aditasse ao rol de factos provados um novo, com a seguinte redacção: «A garantia bancária ajustada entre os recorrentes e a recorrida a 2 de Outubro de 1997, foi estabelecida pelo prazo de um ano renovável, podendo ser prorrogada mediante acordo escrito entre o ordenador e o Banco ..., SA».
Contudo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, esta sua pretensão não pode ser agora considerada; e, por isso, torna-se irrelevante para a decisão de mérito.
Precisando, não se está aqui perante uma qualquer incorrecta apreciação da prova (isto é, do juízo crítico do tribunal, em termos de suficiência, ou de insuficiência, da prova produzida para dar, ou não dar, como assente certo facto), mas sim de uma alegada insuficiente reprodução de um documento que ele próprio considerou no seu juízo probatório (documento particular assinado pelas partes e que, não tendo sido impugnado por qualquer delas, ficou com o respectivo conteúdo definitivamente assente, nos termos dos arts. 366.º, n.º 1 e n.º 3, 374.º e 376.º, todos do CC).
Contudo, não tendo os Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.) alegado oportunamente nos autos - antes de ter sido proferida sentença de mérito pelo Tribunal a quo - que a garantia bancária em causa teria caducado, por falta de pretensa renovação por escrito, após o primeiro ano de vigência respectiva, tornou-se aquele facto irrelevante para a decisão de mérito (já que noutros, e apenas neles, fundaram a invocada extinção da dita garantia, antes do preenchimento da livrança exibida como título executivo, desse modo limitando a actuação do Tribunal a quo, face ao disposto nos arts. 5.º, n.º 1 e 573.º, ambos do CPC).
Dir-se-á ainda que, alegando pela primeira vez, em sede de recurso, a dita caducidade da garantia bancária referida nos autos, por alegada necessidade da sua renovação escrita anual, tal questão consubstancia uma «questão nova», isto é, que não foi anteriormente submetida a contraditório da Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) e que não foi apreciada pelo Tribunal a quo; e, deste modo, o seu conhecimento, aqui e agora, por este Tribunal ad quem, não só violaria os princípios referidos (do dispositivo e da preclusão da defesa), como equivaleria à supressão - não autorizada - de um grau de jurisdição.
Com efeito, é pacífico que «os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas»; e compreende-se «perfeitamente as razões que levaram a que o sistema assim fosse arquitectado», já que a «diversidade de graus de jurisdição determina que, em regra, os tribunais superiores apenas devem ser confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, pág. 87) (3).
Por fim, dir-se-á que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma (4). Logo, e por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto «quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for(em) insusceptível(eis) de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter(em) relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente», convertendo-a numa «pura actividade gratuita ou diletante» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo n.º 1024/12.0T2AVR.C1) (5).
Fica, pois, a necessariamente irrelevante (neste momento dos autos) matéria de facto pretendida sindicar pelos Embargantes (L. O. e mulher, M. G.) excluída, lógica e legalmente, do objecto do presente recurso.
Pelo exposto, decide-se não se apreciar o objecto do recurso sobre a matéria de facto.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

3.1. Factos Provados

Realizada a audiência de julgamento no Tribunal de 1.ª Instância, resultaram provados os seguintes factos (aqui apenas reordenados - lógica e cronologicamente - e remunerados, bem como completados - por meio da reprodução parcial dos documentos a que já faziam referência e que, constando dos autos, não foram impugnados, ou por acordo das partes, tudo nos termos do art. 607.º, n.º 4, II parte, aplicável ex vi do art. 663.º, n.º 2, II parte, ambos do CPC):

1 - Em Setembro de 1997, L. O. e mulher, M. G. (aqui Embargantes/Executados) intervieram, em seu nome pessoal, no documento e acordo escrito epigrafado «PROPOSTA DE GARANTIA BANCÁRIA» (cuja cópia foi junta sob o n.º 3, com a contestação, e que aqui se dá por integralmente reproduzido), datado de 24 de Setembro de 1997, o qual outorgaram, nele apondo as suas assinaturas,
(facto enunciado sob o número 12 na sentença recorrida)
2 - No mesmo documento «PROPOSTA DE GARANTIA BANCÁRIA» (já integralmente dado por reproduzido), lê-se nomeadamente o seguinte:
«(…)
Beneficiário
Montante da Garantia: 24.815.466$00 (…) Prazo 1 Ano Renovável
A favor de Câmara Municipal de ... - Departamento de Urbanismo e Habitação
Destinada a garantia de execução da obra do loteamento - .../Regueirão
(…)
CONDIÇÕES
(…)
3.º Quaisquer pagamentos do Banco ... ao Beneficiário serão efectuados por conta e responsabilidade do Ordenador, ficando o primeiro com direito de regresso sobre este último, o qual autoriza expressamente o Banco ... a utilizar, alienar ou compensar total ou parcialmente valores ou saldos de contas para reembolso de quaisquer quantias pagas.
4.º Os direitos conferidos no n.º anterior ao Banco compreendem ainda o reembolso de quaisquer comissões ou encargos devidos ao Banco ....
5.º O Banco ... fica expressamente autorizado pelo(s) subscritor(es) e avalista(s) a preencher a livrança dada em vista desta garantia pelo montante das responsabilidades do ordenador, incluindo as despesas com a selagem dos títulos, bem como a data de vencimento e o local de pagamento.
6.º O Ordenador aceita, a título de cláusula penal, que sobre todos os montantes devidos por este ao Banco ... se contem juros à taxa supletiva legal, acrescida de 7 ou 9 pontos percentuais, consoante exista ou não contragarantia real.
(…)»
(facto enunciado sob o número 10 na sentença recorrida)
3 - No mesmo documento «PROPOSTA DE GARANTIA BANCÁRIA», e sob o título de «CONTRAGARANTIAS», os aqui Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.) declararam o seguinte:
«(…)
O(s) abaixo assinado(s) assumem inteira responsabilidade pelo cumprimento de todas as obrigações assumidas ou a assumir pelo Ordenador da garantia acima referida, até ao montante de Esc: 24.815.466$00 para o que oferecem a favor do Banco ... a seguinte contragarantia: Penhor de caução das aplicações em Fundos de Investimento existentes na conta particular dos sócios DDA nº …..68 e aval pessoal.
(…)»
(facto enunciado sob o número 11 na sentença recorrida)
4 - Em 02 de Outubro de 1997, o Banco ..., S.A. (aqui Embargada/Exequente) emitiu o documento escrito epigrafado «Garantia Bancária nr. ........86» (com a referência inicial n.º ........86 e actual n.º ........96), cuja cópia foi junta como documento n.º 1 com a contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzido e onde nomeadamente se lê:
«(…)
Em nome e a pedido de Carnes ... Lda., (…) o BANCO ..., (…) vem prestar pelo presente documento uma garantia bancária a favor da CÂMARA MUNICIPAL DE ..., até ao montante de 24.815.466$00 (…), referente a garantia de execução das obras do loteamento referentes ao processo n. 4177/93, com localização em ..., ..., ..., responsabilizando-se, dentro desta garantia e para todos os efeitos legais ou contratuais, por fazer a entrega de quaisquer importâncias até ao limite desta caução se a empresa acima referida, por falta do cumprimento do seu contrato ou de quaisquer compromissos assumidos em consequência do mesmo, com elas não entrar em devido tempo.
(…)»
(facto enunciado sob o número 5 na sentença recorrida)
5 - A «Garantia Bancária nr. ........86» referida no facto anterior foi prestada pela aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.), em nome e a pedido de Carnes ..., Limitada, a favor da Câmara Municipal de ..., até ao montante de Esc. 24.815.466$00, contravalor em € 123.779,02 (cento e vinte e três mil, setecentos e setenta e nove euros, e dois cêntimos).
(facto enunciado sob o número 5 na sentença recorrida)
6 - A «Garantia Bancária nr. ........86» referida nos factos anteriores, autónoma e à primeira solicitação, destinava-se a garantir a execução das obras do loteamento referentes ao processo n.º 4177/93 (actualmente com o n.º LOL 33/2018), com localização em ..., ..., ....
(facto enunciado sob o número 7 na sentença recorrida)
7 - Mercê da «Garantia Bancária nr. ........86» referida nos factos anteriores, a aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) responsabilizava-se, para todos os efeitos legais e contratuais, por fazer a entrega de quaisquer importâncias à respectiva beneficiária, Câmara Municipal de ..., solicitadas por esta e até ao limite desta caução, se a empresa Carnes ..., Limitada, por falta de cumprimento do seu contrato ou de quaisquer compromissos assumidos em consequência do mesmo, com elas não entrasse em devido tempo.
(facto enunciado sob o número 8 na sentença recorrida)
8 - Em 12 de Junho de 2000, por escritura pública de compra e venda, outorgada no Segundo Cartório Notarial de ..., foram vendidos por Carnes ..., Limitada os lotes para construção que estavam previstos no Alvará de Loteamento, a Construções M. O., Limitada, com sede no lugar de …, freguesia de … (…), concelho de Guimarães (conforme documento epigrafado «COMPRA E VENDA», junto sob o n.º 3 com o requerimento inicial de oposição à execução por embargos, e que aqui se dá por integralmente reproduzido).
(facto enunciado sob o número 13 na sentença recorrida)
9 - Em meados de 2004, os aqui Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.) receberam uma comunicação da Câmara Municipal de ..., de que havia sido determinada a tomada de posse administrativa para efeito de execução coerciva das obras de urbanização não realizadas.
(facto enunciado sob o número 14 na sentença recorrida)
10 - Em 21 de Junho de 2006, foi a «Garantia Bancária nr. ........86» referida nos factos anteriores reduzida ao montante de € 37.133,71 (trinta e sete mil, cento e trinta e três euros, e setenta e um cêntimos), conforme «DECLARAÇÃO» emitida pela aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.), cuja cópia foi junta como documento n.º 2 com a sua contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzido e onde nomeadamente se lê:
«(…)
O BANCO ..., S.A., (…) declara, para os devidos efeitos, que a garantia bancária referência inicial ........86 e actual ........96 emitida em 02 de Outubro de 1997 em nome de CARNES ..., LDA mantém-se em vigor pelo valor de EUROS 37.133,71.
(…)»
(facto enunciado sob o número 9 na sentença recorrida)
11 - Em Junho de 2015, a Câmara Municipal de ..., remeteu à aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) uma carta registada com aviso de recepção, datada de 11 de Junho de 2015, acompanhada da cópia de uma informação técnica, cujas cópias foram juntas como documento n.º 13 com a contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzido, lendo-se nomeadamente na dita carta:
«(…)
Serve o presente ofício para, ao abrigo do artigo 82º, nº 1 e 2 do Código do Procedimento Administrativo, solicitar a V. Exa que proceda à libertação da garantia bancária nº ........86 (N.º Atual: ........96), a favor do Município de ..., conforme informação técnica com despacho proferido pelo Senhor Presidente da Câmara em 03-06-2015.
(…)»
(facto enunciado sob o número 17 na sentença recorrida)
12 - Face à comunicação referida no facto anterior, a aqui Embargada/ Exequente (Banco ..., S.A.) entendeu que a Beneficiária (Câmara Municipal de ...) estava a desobrigá-la da referida garantia bancária, a solicitar o seu cancelamento.
(facto enunciado sob o número 18 na sentença recorrida)
13 - Em 17 de Junho de 2015, na sequência da comunicação referida nos dois factos anteriores, a aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) remeteu a Carnes ..., Limitada a carta cuja cópia foi junta como documento n.º 5 com o requerimento inicial de oposição à execução por embargos, que aqui se dá por integralmente reproduzido e onde nomeadamente se lê:
«(…)
N/Referência: 00125-02-0046996
V/Referência: ……..6
Beneficiário: CÂMARA MUNICIPAL ...
Informamos V. Exa(s) que efetuamos os seguintes lançamentos na v/ conta depósitos à ordem relativos ao cancelamento da Garantia Bancária acima referenciada por determinação expressa do beneficiário».
(…)»
(factos enunciados sob os números 15 e 19 na sentença recorrida)
14 - A comunicação referida no facto anterior foi emitida, e remetida, por lapso manifesto.
(facto enunciado sob o número 16 na sentença recorrida)
15 - Posteriormente, a Beneficiária (Câmara Municipal de ...), remeteu várias cartas à aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.), nomeadamente com datas de 04.05.2018 e de 21.05.2018 (cujas cópias foram juntas como documentos n.º 14 e n.º 15 com a contestação, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos), tornando-se então compreensível àquela que a Beneficiária não pretendia a libertação e o cancelamento da garantia bancária, mas sim a sua execução/acionamento e a libertação do valor de € 37.133,71.
(facto enunciado sob o número 20 na sentença recorrida)
16 - A Câmara Municipal de ..., beneficiária da garantia bancária aqui em causa, acionou-a, tendo a aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) sido várias vezes interpelada por aquela - a última das quais por carta datada de 04.12.2018 e recepcionada em 10.12.2018 (cuja cópia foi junta como documento n.º 4 com a contestação, e que aqui se dá por integralmente reproduzido) - para lhe pagar a quantia de € 37.133,71 (ao abrigo da referida garantia).
(facto enunciado sob o número 21 na sentença recorrida)
17 - Daí que, por carta registada com aviso de recepção datada de 08.01.2019, remetida a Carnes ..., Limitada, e por esta recebida, a Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) comunicou-lhe que foi interpelado pela Câmara Municipal de ..., para pagar a quantia de Euros 37.133,71, ao abrigo da referida garantia bancária.
(facto enunciado sob o número 22 na sentença recorrida)
18 - Em 24 de Janeiro de 2019, a Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) efectuou à Câmara Municipal de ... o pagamento do montante exigido de € 37.133,71 (trinta e sete mil, cento e trinta e três euros, e setenta e um cêntimos).
(facto enunciado sob o número 23 na sentença recorrida)
19 - Por cartas registadas datadas de 19 de Fevereiro de 2020 e de 27 de Agosto de 2020 (cujas cópias foram juntas como documentos n.º 7, n.º 8, n.º 9 e n.º 10 com a contestação, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos), remetidas a Carnes ..., Limitada e aos aqui Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.), e por estes recebidas, a aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) comunicou-lhes que se encontrava por liquidar o montante de € 39.456,11, na sequência do accionamento da garantia bancária n.º ........96 em causa, prestada a favor da Câmara Municipal de ..., acrescido dos juros de mora e do respectivo imposto de selo.
(facto enunciado sob o número 24 na sentença recorrida)
20 - Nem Carnes ..., Limitada, nem os aqui Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.), pagaram.
(facto enunciado sob o número 25 na sentença recorrida)
21 - Mercê da falta de pagamento referida no facto anterior, a aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) preencheu uma livrança pela importância de € 42.248,76, assim discriminada:
Capital …………………………€ 37.133,71 (montante pago pelo Banco à Beneficiária)
Juros de Mora e I.S ………….€ 2.583,18
Despesas/comissão/IS………€ 2.320,63
Selagem do Título……………€ 211,24.
(facto enunciado sob o número 26 na sentença recorrida)
22 - Por carta registada com aviso de receção, datada de 24 de Setembro de 2020, a aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) deu conhecimento do preenchimento da livrança a Carnes ..., Limitada (empresa subscritora) e aos aqui Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.) (avalistas), conforme cópia junta como documento n.º 11 com a contestação, que aqui se dá por integralmente reproduzido e onde nomeadamente se lê:
«(…)
ASSUNTO: Resolução / Interpelação para pagamento
Garantia bancária honrada pelo Banco ...-........6
(…)
Não tendo sido sanadas até ao presente as situações de mora e/ou incumprimento verificadas no contrato identificado em assunto, apesar das diversas interpelações efetuadas pelo Banco para cumprimento dessas situações, o Banco ..., S.A. vem, pela presente, informar que, nesta data foi efetuado o preenchimento da livrança de caução em branco para o efeito avalizada por V. Exa., e subscrita por CARNES ... LDA.
(…)
Caso o pagamento não ocorra na data de vencimento indicada, ver-nos-emos forçados a adotar os procedimentos tidos por adequados, designadamente o recurso à via judicial, tendo em vista a cobrança do valor em dívida.
(…)»
(facto enunciado sob o número 27 na sentença recorrida)
23 - Em 03 de Novembro de 2020, a aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) intentou contra os aqui Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.), a execução de que os presentes autos são apensos, para pagamento da quantia de € 42.465,44 (quarenta e dois mil, quatrocentos e sessenta e cinco euros, e quarenta e quatro cêntimos).
(facto enunciado sob o número 1 na sentença recorrida)
24 - A aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) fundou a execução no facto de ser legítima portadora de um escrito, denominado «livrança», subscrito/aceite por Carnes ..., Limitada, e avalizados à subscritora pelos aqui Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.), no valor de € 42.248,76 (quarenta e dois mil, duzentos e quarenta e oito euros, e setenta e seis cêntimos).
(facto enunciado sob o número 2 na sentença recorrida)
25 - A aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) juntou como título executivo a livrança no valor de € 42.248,76 (quarenta e dois mil, duzentos e quarenta e oito euros, e setenta e seis cêntimos), com data de emissão de «24/09/1997» e data de vencimento de «14/10/2020», subscrita por Carnes ..., Limitada, e avalizada pelos Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.), com a referência «GARANTIA BANCÁRIA ... N.º ........6».
(facto enunciado sob o número 3 na sentença recorrida)
26 - A livrança oferecida à execução foi emitida à ordem da aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.), e entregue a esta, com o vencimento e o valor em branco.
(facto enunciado sob o número 4 na sentença recorrida)
27 - A livrança referida nos factos anteriores, foi entregue à aqui Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) em caução e garantia do integral pagamento de todas as responsabilidades emergentes da «Garantia Bancária nr. ........86» (com a referência inicial n.º ........86 e actual n.º ........96), emitida em 02 de Outubro de 1997, cuja cópia foi junta como documento n.º 1 com a contestação (já integralmente dado por reproduzido supra).
(facto enunciado sob o número 5 na sentença recorrida)
*
3.2. Factos Não Provados

O Tribunal de 1.ª Instância considerou ainda que não «se provaram outros factos com relevo para a decisão da causa, designadamente que»:

a) Após a transmissão dos lotes de terreno, foi Construções M. O., Limitada que aí implantou as construções, requerendo o seu licenciamento e a posterior construção, em regime de propriedade horizontal, dos prédios aí erigidos, requerendo e obtendo as licenças de construção e utilização dos mesmos, sendo que, também após tal data, foi aquela Sociedade quem procedeu e realizou as obras de urbanização respeitantes ao loteamento construindo as infra-estruturas necessárias e impostas por lei.
b) A posse administrativa referida no facto provado enunciado sob o número 9, embora determinada, não foi, todavia, nessa circunstância executada, por circunstâncias totalmente alheias a Carnes ..., Limitada e aos aqui Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.).
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Livrança em branco - Preenchimento abusivo
4.1.1. Livrança - Obrigados

Lê-se no art. 75.º, da Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças (LUSLL) que a livrança é um título à ordem, sujeito a certas formalidades, pelo qual uma pessoa se compromete, para com outra, a pagar-lhe determinada importância em certa data.
Trata-se, pois, de «uma promessa de pagamento que o emitente deve cumprir» (Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças Anotada, 6.ª edição, Livraria Petrony, Lda., Lisboa, 1990, pág. 362).
Mais se lê, no art. 77.º do mesmo diploma, que «são aplicáveis às livranças, na parte que não sejam contrárias à natureza deste escrito, as disposições relativas às letras e respeitantes a: (...) Direito de acção por falta de pagamento (arts. 43.º a 50.º e 52.º a 54.º); (...) São também aplicáveis às livranças as disposições relativas ao aval (arts. 30.º a 32.º) (...)».
*
Relativamente ao subscritor de uma livrança, lê-se no art. 78.º, da LUSLL, que ele «é responsável da mesma forma que o aceitante de uma letra», sendo que no art. 28.º se dispõe que «o sacado obriga-se pelo aceite a pagar a letra à data do vencimento».
Esta obrigação nasce exclusivamente do acto formal da sua assinatura, prometendo por ela executar a promessa de pagamento que no título se contem: deve o montante da livrança, e deve-o por efeito da promessa directa que fez ao tomador, firmando a livrança com a sua assinatura.
Compreende-se, por isso, que se afirme que o emitente da livrança (tal como o aceitante da letra) é o devedor principal, e isto porque é ele que assume o compromisso de efectuar o pagamento do título, no seu vencimento.
Deverá assim, oportunamente, proceder ao pagamento do montante inscrito na livrança, dos juros devidos desde a data do seu vencimento, dos avisos dados e de outras despesas, sem necessidade de fazer comprovar por acto formal, o protesto, a falta de pagamento no vencimento (arts. 48.º e 53.º, ambos do diploma citado).
Contudo, o pagamento do subscritor de uma livrança pode «ser no todo ou em parte garantido por aval», ficando o dador de aval «responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada» e mantendo-se a sua obrigação, «mesmo no caso de a obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão que não seja um vício de forma» (arts. 30.º, §1.º e 32.º, §1.º e §2.º, respectivamente, da LUSLL, neste último se consagrando os princípios da equiparação - § 1.º -, e da acessoriedade formal - § 2.º, parte final).
O aval é, pois, um acto jurídico cambiário, unilateral e completo, que se comporta como negócio abstracto e mediante o qual se garante objectivamente o pagamento da letra, constituindo para o avalista uma obrigação substancialmente autónoma, mas formalmente acessória da obrigação avalizada, que opera como garantia adicional.
Com efeito, «trata-se de uma obrigação materialmente autónoma, embora dependente da última quanto ao lado formal», uma vez que nos artigos 32.º, § 1.º e § 2.º da LUSLL se «estabelece o princípio de que a obrigação do avalista se mantém, ainda que a obrigação garantida seja nula - e abre uma única excepção a este princípio para o caso de a nulidade desta segunda obrigação provir de “um vício de forma”» (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial. Letra de Câmbio, Volume III, Universidade de Coimbra, 1966, pág. 207).
Logo, e nos termos dos arts. 43.º e 47.º, ambos da LUSLL, o portador de uma livrança pode exercer os seus direitos de acção, não só contra os respectivos subscritores, como ainda contra os outros co-obrigados no vencimento (como os eventuais avalistas), sendo todos solidariamente responsáveis para com ele.
*
4.1.2. Livrança em branco - Negócio cartular versus negócio subjacente.

Lê-se no art. 77.º, da LUSLL, que «são aplicáveis às livranças, na parte que não sejam contrárias à natureza deste escrito, as disposições relativas às letras e respeitantes a: (...) «à letra em branco (art. 10.º)».
A propósito da letra em branco, lê-se no art. 10.º, da LUSLL, que «se uma letra [leia-se agora, livrança] incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má fé‚ ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave».
Admite-se, assim, a existência de letra ou livrança em branco, isto é, «documento, incompleto nos seus elementos essenciais, que contenha pelo menos uma assinatura extrinsecamente regular e capaz de obrigar o seu subscritor, acompanhada de uma autorização expressa ou tácita» de preenchimento (José Manuel Vieira Conde Rodrigues, A Letra Em Branco, AAFDL, 1989, pág. 17).
Logo, «para haver uma letra em branco é necessário: a) Que lhe falte algum requisito; b) Que, nela, haja pelo menos, uma assinatura, a qual tanto pode ser do sacador, como do aceitante, do avalista, como do endossante; c) Que esta assinatura conste de um título que contenha a designação impressa e expressa de “letra”; d) Que tal assinatura tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária» (Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças Anotada, 6.ª edição, Livraria Petrony, Lisboa, 1990, pág. 71).
As «letras em branco ou, mais genericamente, todos os títulos em branco são de uso frequente e desde longa data, quer na actividade comercial quer mesmo fora desta, no domínio dos negócios civis.
Com efeito, o cliente que obtém um crédito no comércio bancário entrega frequentemente ao banco credor, e logo de início e como garantia do seu débito, uma letra por ele assinada, com indicação do montante ou sem ela. Este título usá-lo-á o banco conforme aos acordos estipulados» (José Manuel Vieira Conde Rodrigues, A Letra Em Branco, AAFDL, 1989, pág. 24) (6).
*
Logo, numa livrança há que distinguir duas realidades: o negócio cartular e o negócio subjacente.
O negócio cartular exprime-se num crédito pecuniário, do qual é sujeito activo o legítimo portador do título e sujeito passivos todos os intervenientes no mesmo. Em consequência, o saque de uma letra ou a emissão de uma livrança constitui sempre uma atribuição patrimonial enquanto «deslocação patrimonial de uma pessoa para outra» (Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial – Títulos de Crédito, AAFDL, 1990, pág. 3).
Tal direito cartular caracteriza-se: pela literalidade da obrigação cambiária (que se reconstitui pela simples inspecção do título, sendo que a sua existência, validade e persistência não podem ser contestadas com o auxílio de elementos estranhos ao título, sendo o conteúdo, a extensão e as modalidades da obrigação cartular aqueles que a declaração objectivamente defina e revele); pela abstração da obrigação cambiária (uma vez que é independente da "causa debendi", já que o negócio cambiário pode preencher uma diversidade de funções económico-jurídicas - não tem uma causa própria, tipificada legalmente - e é independente, em cada caso concreto, da sua causa, da função determinada que visa); e pela autonomia do direito do portador, que é considerado como um credor originário, isto é, independentemente da titularidade do antecessor (A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial. Letra de Câmbio, Volume III, Universidade de Coimbra, 1966, págs. 40 a 75).
Contudo, subjacente ao saque de uma letra ou à emissão de uma livrança, existe sempre um negócio que determinou a sua emissão, o dito negócio subjacente (que constitui a causa daquela mesma emissão).
Assim, entre os intervenientes no título, que sejam simultaneamente partes no negócio subjacente, é sempre estabelecido acordo quanto à função que a atribuição patrimonial desempenha relativamente o negócio subjacente, sendo tal acordo denominado pela doutrina de «convenção executiva» (a que estabelece a relação entre o negócio cartular e o negócio subjacente).
Logo, se no domínio das relações imediatas (entre um subscritor e o sujeito cambiário imediato, em que ambos são concomitantemente sujeitos cambiários e sujeitos das convenções extracartulares) tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, já no domínio das relações mediatas (entre um subscritor e um possuidor do título estranho às convenções extracartulares) aquele não pode opor a este as excepções derivadas das relações pessoais mantidas com outros portadores anteriores da letra (conforme art. 17.º, da LUSLL).
*
4.1.3. Pacto de preenchimento
Contudo, «quando seja passada em branco, a letra [ou livrança] pode ser preenchida posteriormente e deve sê-lo antes de apresentada a pagamento.
O preenchimento posterior da letra [ou livrança] deve ser feito de acordo com o convencionado. Sempre que é emitida uma letra em branco tem que ter havido prévia ou simultaneamente à emissão um acordo quanto ao critério de preenchimento. Este acordo é uma convenção extracartular e designa-se por pacto de preenchimento.
O pacto de preenchimento é uma convenção obrigacional e informal. Tem como conteúdo a obrigação de preencher a letra de acordo com o critério estipulado e só é oponível entre as partes. Pode ser verbal ou meramente consensual, embora seja aconselhável que revista a forma escrita para evitar dificuldades de prova» (Pedro Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, Títulos de Crédito, AAFDL, 1990, pág. 105).
Logo, a autorização de preenchimento será uma manifestação de vontade, expressa ou tácita, no sentido de colmatar as lacunas cuja presença prejudique a eficácia do documento. O contrato de preenchimento é, assim, «o acto pelo qual as partes ajustam os termos em que deverá definir-se a obrigação cambiária, tais como a fixação do seu montante, as condições relativas ao seu conteúdo, o tempo do vencimento, a sede de pagamento, a estipulação de juros, etc.» (Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças Anotada, 6.ª edição, Livraria Petrony, Lda., Lisboa, 1990, pág. 73).
Este «poder jurídico (distinto do direito cartular que deriva da letra já preenchida) tendo por conteúdo a possibilidade de se aperfeiçoar a obrigação do subscritor, integrando os elementos faltosos», corresponde a «um poder de natureza extracartular. E o seu conteúdo não faz parte da literalidade do documento, estando, sim, dependente da relação subjacente. No entanto, esta natureza extracartular não nos deve induzir a pensar que a sua transmissão acarreta a transferência dos direitos extracartulares, emergentes da respectiva relação fundamental. Quando alguém adquire um título por preencher não fica titular das relações subjacentes que envolvem a sua criação, tal como, não ficará titular do direito cambiário que só surgirá com o preenchimento da letra» (José Manuel Vieira Conde Rodrigues, A Letra Em Branco, AAFDL, 1989, pág. 60).
Compreende-se, pois, que se, numa letra ou numa livrança em branco, o contrato de preenchimento (o acordo pelo qual as partes ajustaram os termos em que deveria definir-se a obrigação cambiária, nomeadamente o seu montante e a respectiva data de vencimento) for violado, não pode essa violação ser oposta a um terceiro estranho ao mesmo contrato, desde que aquele não tenha actuado de má fé, nem haja cometido uma falta grave.
Já se a violação do contrato de preenchimento ocorrer no âmbito das relações imediatas - isto é, o título foi preenchido pelo seu primeiro adquirente -, poderá o preenchimento abusivo ser invocado como excepção ao pagamento reclamado, uma vez que a letra não entrou sequer em circulação.
Com efeito, quem emite um título de crédito em branco (v.g. uma livrança), atribui àquele a quem a entrega o direito de a preencher de acordo com certas cláusulas que entre o subscritor e o tomador hajam sido previamente convencionadas. Tal preenchimento deve pois «obedecer aos termos combinados inicialmente com o devedor e com as demais pessoas que na obrigação tenham porventura intervindo, como aquelas enfim que nela hajam aposto antecipadamente a sua assinatura; importa pois uma delegação de confiança, uma autorização para a integração do título, delegação ou relação de confiança essa que sairá traída se for desrespeitado o conteúdo de preenchimento podendo então falar-se de preenchimento abusivo» (Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial. Letra de Câmbio, Volume III, Universidade de Coimbra, 1966, págs. 124 a 127, com bold apócrifo).
Logo, no domínio das relações imediatas, «preenchimento abusivo» constitui um facto impeditivo do direito invocado pelo exequente, incumbindo por isso a respectiva prova ao executado, em sede de embargos (art. 342.º, n.º 2, do CC).
*
4.1.4. Negócio subjacente
4.1.4.1. Garantia bancária

A garantia autónoma, isto é, não afectada pelas vicissitudes da relação principal (7), surgiu nos finais do século XIX; e foi-se generalizando, num mercado cada vez mais globalizado, harmonizando o crescente dinamismo das trocas comerciais e a necessidade de assegurar a sua fluidez, por um lado, com o aumento da confiança mútua entre os agentes económicos, por outro. Entre nós foi introduzida pela prática bancária (sendo por isso designada habitualmente por garantia bancária, já que frequentemente o papel de garante tem sido assumido por entidades bancárias) (8).
Precisa-se que a «função da garantia autónoma não é (…) a de assegurar o cumprimento dum determinado contrato. Ela visa, antes, assegurar que o beneficiário receberá, nas condições previstas no texto da própria garantia, uma determinada quantia em dinheiro» (António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 2.ª edição, Almedina, 2001, pág. 657, com bold apócrifo).
Logo, por meio dela, «o garante, perante o credor, responsabiliza-se pelo pagamento de uma obrigação própria e não pelo cumprimento de uma dívida alheia (do garantido); não se trata tanto de garantir o cumprimento da obrigação do devedor, mas antes de assegurar o interesse económico do credor beneficiário da garantia; (...) a garantia não pressupõe a existência de uma assunção de dívida, em que o banco (assuntor) assume a obrigação de pagar a dívida de outrem (antigo devedor), nos termos previstos nos artigos 595º e seguintes do Código Civil, pois o garante constitui-se devedor de uma obrigação própria, ainda que relacionada com a dívida do garantido» (Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 4.ª edição, Livraria Almedina, 2003, pág. 119, com bold apócrifo).
Pode, assim, afirmar-se que a garantia bancária autónoma «é, no essencial, um contrato celebrado entre o interessado - o mandante - e o garante - a favor de um terceiro - o garantido ou beneficiário. Por vezes ela é configurada como um contrato celebrado entre o garante e o beneficiário; porém, é do mandante que o garante recebe a comissão» (António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 2.ª edição, Almedina, 2001, pág. 657). Logo (e tal como a fiança), não se estabelece, por negócio jurídico unilateral, mas sim por contrato, que tem natureza causal.
Dir-se-á ainda que, do ponto de vista estrutural, a garantia bancária autónoma é uma figura triangular, que pressupõe três ordens de relações: uma primeira, entre o garantido (dador de ordem) e o beneficiário; outra, entre o garantido e o garante (banco); e uma terceira, entre o garante e o beneficiário (9).
Contudo, e de forma diversa da fiança (que se caracteriza pela acessoriedade), a garantia bancária autónoma não é acessória da obrigação garantida, mas sim autónoma da dívida que garante. A autonomia significa precisamente que o garante não pode invocar em sua defesa quaisquer meios relacionados com o contrato garantido (objecções exteriores ao contrato de garantia); e esta autonomia é mesmo total (ao contrário do que sucede com o aval), pois o garante não pode valer-se, sequer, da invalidade formal da obrigação garantida. O garante assume, pois, uma obrigação própria, independente (desligada) do contrato base (10).
«Mas a mencionada autonomia não vai, obviamente, obstar a que o garante recuse o cumprimento com base em elementos constantes do próprio contrato de garantia. Deste modo, com a autonomia pretende-se que não possam ser apostas excepções relacionadas com a obrigação garantida, ou seja, óbices exteriores ao contrato de garantia, mas podem propor-se excepções próprias deste negócio jurídico, como sejam o erro na celebração do contrato de garantia ou o prazo de pagamento nele acordado» (Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 4.ª edição, Livraria Almedina, 2003, pág. 123, com bold apócrifo).
Por fim, e na falta de disposições expressamente consagradas a esta figura, o seu fundamento jurídico-positivo deverá ser procurado no art. 405.º, do CC, ou seja, no princípio da liberdade contratual; e desde que corresponda a interesses dignos de protecção legal, nos termos do art. 398.º, n.º 2 do mesmo diploma.
Não se deverá esquecer, ainda, que existem também Regras Uniformes da Câmara de Comércio Internacional (Publicação n.º 500, revisão de 1993), aplicáveis por via dos usos bancários, embora não transpostas formalmente para o ordenamento jurídico português. Assim, só serão aplicáveis na medida em que lhes tenha sido feita menção no documento consubstanciador da garantia (o que raramente acontece no nosso país).
Na falta de tais regras, o regime jurídico das garantias bancárias autónomas será determinado pelas cláusulas acordadas, e pelos princípios gerais dos negócios jurídicos e dos contratos (respectivamente, arts. 217º e ss., e 405º e ss., ambos do C.C.).
*
4.1.4.2. Cancelamento - Declaração receptícia
Uma vez constituída a garantia bancária, por contrato (entre o garante e o garantido) a favor de um terceiro (o beneficiário), poderá a mesma vir a ser cancelada, nomeadamente quando, no termo do prazo previsto para a sua vigência, não se verifique o incumprimento da obrigação garantida.
Compreensivelmente, na normalidade dos casos, tal facto deverá ser comunicado pelo beneficiário ao garante; e, sendo este uma entidade bancária, deverá proceder então ao dito cancelamento, levando-o ao conhecimento do garantido, a quem deixará ainda de cobrar as importâncias devidas antes pela manutenção da garantia.
Estando em causa a cessação de uma relação contratual, a referida declaração de cancelamento da garantia equivale a uma declaração negocial; e, tendo ela um destinatário, tornar-se-á eficaz logo que chegue ao poder do garantido, ou for dele conhecida, como é próprio das declarações receptícias (art. 224.º, n.º 1, do CC).
Dir-se-á ainda que, nesse momento (recebida ou conhecida pelo destinatário respectivo), tornar-se-á irrevogável (art. 230.º, n.º 1, do CC).
*
4.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.2.1. Livrança em branco - Contrato de garantia bancária

Concretizando, verifica-se que, tendo Carnes ..., Limitada celebrado com a Embargada/Executada (Banco ..., S.A.) um contrato de garantia bancária, a favor da Câmara Municipal de ..., para garantir a boa execução de obras de um loteamento urbano, intervieram ainda no mesmo, como respectivos contragarantes, os aqui Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.).
Mais se verifica que, para garantia do cumprimento das obrigações que para eles decorriam do dito contrato de garantia bancária, Carnes ..., Limitada subscreveu uma livrança em branco, avalizada pelos Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.); e constava expressamente na Condição 5.ª do dito contrato que o «Banco ... fica expressamente autorizado pelo(s) subscritor(es) e avalista(s) a preencher livrança dada em vista desta garantia pelo montante das responsabilidades do Ordenador».
Logo, a livrança que se executa nos autos principais consubstanciou, no momento da sua emissão, uma livrança em branco, subscrita por Carnes ..., Limitada (por isso, sua devedora principal), e avalizada pelos Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.) (co-obrigados no seu pagamento); e as partes acordaram desde logo, por escrito, os termos do seu preenchimento futuro, mercê do pacto de preenchimento respectivo, consagrado no próprio clausulado do contrato de garantia bancária cujo bom cumprimento garantia (consubstanciando o mesmo a relação subjacente ao título).
Assim, encontrando-se todas as partes no âmbito das relações imediatas subjacentes à emissão da dita livrança, podem aqui discutir as vicissitudes do negócio causal que alegadamente justificariam, por parte dos Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.), o seu não pagamento nos autos principais.
*
4.2.2. Cancelamento - Preenchimento abusivo
Concretizando novamente, verifica-se que, em 11 de Junho de 2015, a Câmara Municipal de ..., por carta, solicitou à Embargada/Executada (Banco ..., S.A.) «que proceda à libertação da garantia bancária n.º ........86, a favor do Município de ..., conforme informação técnica com despacho proferido pelo Senhor Presidente da Câmara em 03-06-2015» (transcrição com bold apócrifo), juntando a mesma; e que nela expressamente se lia, «sobre os trabalhos que se encontram por executar», «que é necessário ativar a garantia bancária existente e que mesmo assim a mesma não é suficiente para a conclusão dos trabalhos em falta», pelo que «deverá solicitar-se à entidade bancária - Banco ..., a atual Banco …, para que proceda à libertação da garantia bancária n.º ........86» (transcrição com bold apócrifo).
Mais se verifica que, por manifesto lapso seu (11), a Embargada/Executada (Banco ..., S.A.), em vez de considerar daquela forma accionada a garantia bancária em causa nos autos, se teve como desobrigada pela respectiva Beneficiária; e, por isso, comunicou, em 17 de Junho de 2017, à sua contraparte, Carnes ..., Limitada, cujas obrigações se encontravam nela garantidas, o respectivo cancelamento, cobrando-lhe inclusivamente a comissão bancária pelo custo de tal acto.
Logo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, tendo Carnes ..., Limitada recebido efectivamente aquela comunicação, escrita e expressa, da Embargada/Executada (Banco ..., S.A.), a partir desse momento o cancelamento do contrato de garantia bancária que a mesma corporizava tornou-se eficaz (12) e irrevogável; e, como ele, igual e necessariamente extintas as obrigações de quem nele figurava como respectivo contragarante, os aqui Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.).
Dir-se-á ainda que, atenta a concreta obrigação (realização de obras em loteamento urbano) cujo cumprimento a Embargada/Exequente (Banco ..., S.A.) garantia, o lapso de tempo entretanto decorrido (praticamente vinte anos), e o facto da comunicação endereçada a Carnes ..., Limitada, referir expressamente que o «cancelamento da Garantia Bancária acima referenciada» era feito «por determinação expressa do beneficiário» (bold apócrifo), a Sociedade garantida, à semelhança de um declaratário normal, não só tinha que ter como real o dito cancelamento, como o deveria imputar ao facto de as obras de loteamento em causa terem sido realizadas, e bem realizadas, e nada mais pretender de si a beneficiária da garantia, a Câmara Municipal de ... (isto é, dever-se o comunicado cancelamento ao definitivo não acionamento da garantia).
Precisa-se que, para este efeito, são igualmente irrelevantes, quer o lapso manifesto em que incorreu a Embargada/Executada (Banco ..., S.A.), quer o erro sobre os motivos que determinaram aquela sua errónea declaração.
Com efeito, para que o primeiro (lapso manifesto) fosse juridicamente relevante nos autos, seria necessário que o mesmo fosse cognoscível por Carnes ..., Limitada, no momento em que o cancelamento da garantia bancária lhe foi comunicado, por ser revelado pelo próprio teor da comunicação escrita que lhe foi remetida para o efeito, conforme art. 249.º, do CC.
Ora, não havendo notícia nos autos que lhe tenha sido remetida cópia da carta da Beneficiária, dirigida à Embargada/Executada (Banco ..., S.A.), incluindo a informação técnica anexa à mesma, e ficando assim a Sociedade garantida limitada à singela comunicação que lhe foi remetida pela Garante, da mesma não resultava, por qualquer modo, o lapso manifesto depois invocado por esta.
Já relativamente ao segundo (erro sobre os motivos determinantes da vontade de emissão da errónea declaração em causa), para que fosse juridicamente relevante, teria que ter sido alegado (por acção, ou por excepção), e dentro do ano subsequente à sua cessação, conforme arts. 252.º e 287.º, ambos do CC.
Ora, inexiste qualquer notícia nos autos que documente que a Embargada/Executada (Banco ..., S.A.) agiu, de forma idónea e oportuna, desse modo.
Assiste, por isso, razão, aos Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.) quando afirmam que a livrança que se executa nos autos principais, emitida em branco, foi preenchida abusivamente (em Setembro de 2020, com data de vencimento de 14 de Outubro de 2020), já que esse preenchimento ocorreu depois da extinção, por cancelamento pela própria Embargada/Executada (Banco ..., S.A.), do contrato de garantia bancária cuja cumprimento, por eles próprios, se destinava a assegurar.
Deverá, assim, decidir-se em conformidade, pela procedência do recurso de apelação interposto (ficando, do mesmo passo, prejudicado, o conhecimento dos demais fundamentos invocados para o mesmo efeito, o que aqui se declara, nos termos do art. 608.º, n.º 2, I parte, aplicável, ex vis do art. 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC).
*
V – DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso de apelação interposto pelos Embargantes/Executados (L. O. e mulher, M. G.), e, em consequência, em:

· Revogar a sentença recorrida, sendo aqui substituída por decisão a julgar procedente a oposição à execução por embargos por eles deduzida, declarando em conformidade extinta a acção executiva que constitui os autos principais quanto a eles (L. O. e mulher, M. G.).
*
Custas da apelação pela Recorrida (art. 527.º, n.º 1, do CPC).
*
Guimarães, 30 de Junho de 2022.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - José Alberto Martins Moreira Dias;
2.ª Adjunta - Alexandra Maria Viana Parente Lopes.



1. «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 – in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).
2. Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos se destinam à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
3. No mesmo sentido, numa jurisprudência uniforme, Ac. do STJ, de 29.04.1998, BMJ, n.º 476, pág. 401; e Ac. do STJ, de 01.10.2002, CJSTJ, Tomo III, pág. 65.
4. Neste sentido, Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo n.º 219/10.6T2VGS.C1, onde se lê (com bold apócrifo) se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a actividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente. Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação não for susceptível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.»
5. Neste sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo n.º 6628/10.3TBLRA.C1 Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, Ac. do STJ, de 04.03.2015, Leones Dantas, Processo n.º 2180/09.0TTLSB.L1.S2, Ac. do STJ, de 01.10.2015, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ac. do STJ, de 03.12.2015, Melo Lima, Processo n.º 3217/12.1TTLSB.L1-S1, Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo n.º 157/12-8TVGMR.G1.S1, Ac. do STJ, de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, Ac. do STJ, de 21.04.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo n.º 449/10.0TTVFR.P2.S1, Ac. do STJ, de 28.04.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 1006/12.2TBPRD.P1.S1, Ac. do STJ, de 31.05.2016, Garcia Calejo, Processo n.º 1572/12.2TBABT.E1.S1, Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo n.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1, Ac. do STJ, de 13.10.2016, Gonçalves Rocha, Processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, Ac. do STJ, de 16.05.2018, Ribeiro Cardoso, Processo n.º 2833/16.7T8VFX.L1.S1, Ac. do STJ, de 06.06.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1, Ac. do STJ, de 06.06.2018, Pinto Hespanhol, Processo n.º 552/13.5TTVIS.C1.S1, Ac. do STJ, 12.07.2018, Ferreira Pinto, Processo n.º 167/11.2TTTVD.L1.S1, Ac. do STJ, de 31.10.2018, Chambel Mourisco, Processo n.º 2820/15.2T8LRS.L1.S1, Ac. do STJ, de 13.11.2018, Graça Amaral, Processo nº 3396/14, ou Ac. do STJ, de 03.10.2019, Maria Rosa Tching, Processo n.º 77/06.5TBGVA.C2.S2.
6. No mesmo sentido, Ac. da RP, de 07.01.2019, Jorge Seabra, Processo n.º 1025/18.5T8PRT.P1, onde se lê que se trata «de prática usual da banca o recurso a uma livrança em branco, com pacto de preenchimento, subscrita pela sociedade creditada e avalizada pelos sócios desta e pelos seus cônjuges, como é o caso dos autos, enquanto meio de garantir a restituição das quantias utilizadas pelo creditado e das demais contrapartidas ou despesas acordadas». Com efeito, «através desta garantia, o banco creditante, além de poder satisfazer o seu crédito através do património da sociedade creditada, pode, ainda, satisfazê-lo através do património pessoal dos sócios avalistas (cfr. artigos 32º, 47º e 77º, da LULL), aumentando, pois, a garantia patrimonial do seu crédito (artigo 601º, do Cód. Civil) e, naturalmente, por força deste incremento, as probabilidades de satisfação do capital creditado e demais acréscimos convencionados».
7. Precisa-se, a propósito, que «o contrato [contrato-base, fonte das obrigações garantidas] poderá deixar de ser executado, ou ser mal executado: por ex. O empreiteiro poderá não construir a obra, ou construí-la mal. A outra parte dispõe de acções contratuais, quer para exigir que o contratante faltoso cumpra as suas obrigações, quer para fazer valer os direitos que lhe advêm da resolução do contrato. Mas o recurso a estas acções oferece graves inconvenientes, dadas as demoras, custos e complexidade dum procedimento judiciário internacional; e revela-se não raro inoperante porque o facto de a parte contrária ter faltado aos seus compromissos faz supor só por si que não está em condições de os satisfazer. Por isso, o contraente que receie ver-se com uma situação desse tipo exige que um banco de sólida reputação internacional garanta a conveniente execução do contrato» (Inocêncio Galvão Telles, Garantia Bancária Autónoma, Parecer, O Direito, Ano 120, 1988, III-IV, Julho/Dezembro, com bold apócrifo).
8. Face à sua falta d expressa consagração legislativa, diz-se que este é um negócio legalmente atípico, mas socialmente típico, isto é, foi a prática da vida económica que lhe determinou os contornos jurídicos distintivos (António Sequeira Ribeiro, «Garantia Bancária Autónoma à Primeira Solicitação: Algumas Questões», Estudos em Homenagem ao Professor Galvão Telles, Volume II, pág. 311).
9. Em conformidade, encontramos três actos jurídicos distintos: um primeiro, o chamado contrato base, que constitui a relação principal, causal ou subjacente, no qual são partes o dador de ordem e o beneficiário; em segundo lugar, um contrato de mandato, ao abrigo do qual o banco (garante) se obriga para com o dador de ordem, mediante certa retribuição, a prestar-lhe o serviço que se traduz no fornecimento da garantia visada; e em terceiro lugar, um contrato de garantia, (entre o garante e o beneficiário), pelo qual o garante, emitindo o competente título, se obrigou a pagar o montante convencionado.
10. Sobre o tema, ainda Almeida Costa e Pinto Monteiro, Garantias Bancárias - O Contrato de Garantia à Primeira Solicitação, CJ, Ano IX, 1986, Tomo 5, pág. 16-34; ou Francisco Cortez, A Garantia Bancária Autónoma, ROA, 52.º, II, Julho, 1992, págs. 513-609.
11. A afirmação do carácter de «lapso manifesto», contida no facto provado enunciado na sentença recorrida sob o número 16, não equivale, automática e necessariamente, a «lapso desculpável», tendo em conta a natureza empresarial da Embargada/Exequente e a natureza do acto em causa (directamente relacionado com a respectiva actividade social). Dito por outras palavras, atentos a dimensão e o prestígio que a mesma assume no sistema bancário nacional, presume-se que possui os meios técnicos e os recursos humanos que lhe permitam ler e interpretar o pedido de acionamento e/ou de cancelamento de uma garantia bancária por si emitida, tanto mais que a comunicação em causa não se limitou a singela carta (onde a expressão «libertar a garantia» podia ser dúbia, e por isso a justificar um cauteloso pedido de precisão ou esclarecimento à beneficiária, que não ocorreu), vindo ainda acompanhada de uma informação técnica; e desta última resultava inelutavelmente o pretendido accionamento da garantia, por expresso incumprimento das obrigações (execução de obras em loteamento urbano) que a mesma assegurava.
12. Recorda-se que, segundo o art. 236.º, n.º 1, do CC, a «declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante»; e nada foi aduzido nos autos que permitisse concluir que Carnes …, Limitada, no entendimento professado, não agiu como um declaratário normal.