Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
214/16.1PBGMR.G1
Relator: PEDRO CUNHA LOPES
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
MAU TRATO
STALKING
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/04/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: TOTALMENTE IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - O arrependimento é mais que a simples declaração de arrependimento.

II - A ausência de localização temporal concreta das transcrições feitas na impugnação ampla da matéria de facto pode conduzir à rejeição ou improcedência do recurso.

III - No crime de violência doméstica, o bem jurídico protegido é a "saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental".

IV - O mau trato pode traduzir-se apenas na esfera psicológica, bastando para isso o mero "stalking" - perseguição prolongada no tempo e causadora de angústia e temor.

V - O desespero do arguido pelo fim de um relacionamento afetivo, não descaracteriza este crime.

Decisão Texto Integral:
1 – Relatório

Por sentença proferida nestes autos em 2 de Fevereiro de 2 017, foi O. M. condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1, a), C.P., na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão com a execução suspensa por igual período.

Foi ainda o mesmo condenado no pagamento da quantia de 1 500€ (mil e quinhentos euros) à demandante M. O., a título de indemnização por danos não patrimoniais, por esta sofridos.

O arguido foi ainda absolvido, da prática de um crime de dano, p. e p. pelo art.º 272º/1, c), C.P.

Inconformado com aquelas condenações, das mesmas interpôs recurso o arguido O. M., que terminou em síntese, com as seguintes conclusões:

“1. Afigura-se ao aqui Recorrente que, salvo o devido respeito, a presente condenação carece de fundamento de facto e de direito, pelo que merece a discordância do recorrente e se lhe afigura passível de reparo.

2. Afigura-se ao aqui Recorrente que, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo não efetuou, no que se refere ao crime imputado ao mesmo, uma criteriosa e cuidada apreciação da prova validameite junta aos autos e produzida em ju1gamento, nem valorou como deveria a confissão por parte do arguido e a evolução da sua personalidade e todas as circunstâncias que depõem a seu favor.

3. Apesar do arguido ter confessado te sido o autor das mensagens constantes do libelo acusatório, optando por prestar declarações, desde o .início da audiência de discussão e julgamento, e de ter assumido e verbalizado arrependimento, tal não foi dado como provado, ou como não provado, como se pode constatar da leitura dos pontos dados como provados constantes da douta sentença.

4. Trata-se de matéria relevante para a decisão la causa, designadamente para a determinação da medida concreta da pena posto que a lei manda atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do arguido, considerando, nomeadamente, a conduta posterior aos factos na qual se integra o eventual arrependimento alínea e) do n.° 2 do artigo 72.° do Código Penal.

5. Assim, e tendo a discussão da causa por objeto os factos alegados e constantes da acusação, os factos alegados pela defesa e os factos que resultarem da prova produzida em audiência, teria o Tribunal a quo que, na sua douta Sentença, pronunciar-se sobre o arrependimento do arguido, dando como provado ou como não provada essa factualidade, porque relevante para a decisão da causa, designadamente para a determinação da medida da pena e correta determinação do enquadramento jurídico da conduta do arguido, pelo que o Tribunal a quo ao não dar cumprimento ao disposto no artigo 374°, n° 2 omitindo pronúncia, do que resulta a nulidade da sentença nos termos do disposto no artigo 379°, n.° 1), alínea c), 1ª.parte, do Código Processo Penal, nulidade que aqui se invoca para os devidos e legais efeitos;

6. Este vício afeta o ato decisório em si mesmo, bem como os atos que dele dependem e que podem ser afetados pela nulidade.- artigo 122° n.° 1 do Código Processo Penal, o que tudo se suscita para os devidos e legais efeitos.

7. ENCONTRA-SE ERRADA E INCORRECTAMENTE JULGADA A MATÉRIA DE FACTO DADA COMO PROVADA NAS ALÍNEAS d), e), 1), g), i), j), “) o), p), q), r), s), t) e u) A QUAL DEVERIA ANTES TER SIDO DADA COMO NÃO PROVADA.

8. Não foi produzida prova segura e inequívoca do cenário de pretensas perseguições, esperas e “estado de terror” que fora dado como provado na douta sentença e que alicerçaram a imputação ao Recorrente do crime de violência doméstica. 9. O tribunal a quo formulou a sua.convicção apenas e só nas declarações da ofendida e em meras presunções que, salvo o devido respeito, andam ao arrepio do princípio da presunção de inocência.

10. A propósito dos pretensos episódios de perseuiç6es, o depoimento da ofendida revelou-se, absolutamente, inverosímil, acabando aquela por admitir que num dos alegados episódios foi a própria ofendida quem tomou a iniciativa de abordar o arguído e, numa noutra, até foram juntos a um café.

11. Tal comportamento não pode deixar de se estranhar de alguém que alega ter vivido num clima de ameaças, terror e perseguições...

12. A ofendida confunde, propositadamente, o que foram encontros com vista à resolução de assuntos pendentes entre o ex-casal e de tentativas de reconciliação por parte do arguido (que desconhecia que a ofendida tinha já urna nova relação e que fora essa a verdadeira razão da sua saída de casa) com um cenário de perseguições e clima de “terror” que não corresponde de todo à realidade.

13. Os factos que estão em juízo são relativos ao início do ano de 2016 (meses de Fevereiro e Março de 2016), ou seja, tratou-se de um período de apenas dois meses, que coincide com a data - 23 de Fevereiro de 2016 - em que o Recorrente descobriu que a verdadeira razão para a saída da casa de morada de família por parte da ofendida era a existência de um novo relacionamento e não a razão que aquela lhe havia dado para tal saída.

14. Pelo que não se percebe nem concebe a que título foi dado corno provado, na douta sentença, que o período dos pretensos factos imputados ao arguido se circunscreve desde “….Novembro de 2015 e até pelo menos ao dia 26 de Março de 2016...”

15. Não constando, quer da acusação pública, quer da douta sentença, um único facto relativo aos meses de Novembro e Dezembro de 2015 e Janeiro de 2016.

16. Impunha-se um maior rigor, salvo o devido respeito, ao Tribunal a quo, na formação da sua convicção, não se limitando a dar como provados determinados factos apenas com base nas declarações da ofendida que se revelam claramente evasivas, parciais e tendenciosas, e presumir a existência de pretensas perseguições e esperas que jamais foram concretizadas em termos de tempo, lugar e modo.

17. Pelo exposto, não poderia o Tribunal a quo, sem o mínimo de segurança e sem que nenhuma prova fosse produzida nesse sentido, e sem que as regras de experiência o permitisse, ter dado como provada a factualidade vertida nos pontos d), e), f), ,g), i), j), n), o), p), q), r, s), t) e u) dos factos provados, a qual deveria antes ter sido dada cono não provada.

18. Uma correta interpretaçâo e apreciação da prova validamente produzida em audiência de juIgamento, levaria à absolvição do arguido quanto ao crime de violência domestica pelo qual foi condenado.

19. Os maus-tratos previstos pelo crime de violência domestica têm subjacente um tratamento humilhante e degradante de uma pessoa, capaz de eliminar ou limitar claramente a sua condição c dignidade humanas.

20. E não foi isto que sucedeu nestes autos conforme se irá demonstrar infra.

21. Quer o arguido, quer a ofendida, prestaram declarações em sede de audiência de discussão e julgamento, relatando a sua versão dos factos em juízo e relatando outros que auxiliaram o Tribunal a quo a caracterizar o ambiente conjugal existente e, bem assim as características pessoais de cada um dos intervenientes, que foram corroborados pelas demais testemunhas.

22. Assim, conforme resultou dos depoimentos de todos os intervenientes processuais:

- O arguido jamais agrediu fisicamente a ofendida;

- O relacionamento do casal na constância do casamento era harmonioso e caracterízado como “feliz”.

23. Os factos que estão em juízo são todos relativos ao início do ano de 2016 (meses de Fevereiro e Março de 2016), ou seja, tratou-se de um período de apenas dois meses, que coincide com a data - 23 de Fevereiro de 2016 - em que o Recorrente descobriu que a verdadeira razão para a saída da casa de morada de família por parte da ofendida era a existência de um novo relacionamento e não a razão que aquela lhe havia dado para tal saída.

24. Pelo que, o Tribunal a quo devia ter atenta4o às circunstâncias (de menor controlo das respostas emocionais) em que foram proferidas as expressões injuriosas por parte do arguido.

25. Tais expressões foram proferidas em circunstâncias muito específicas, já após a ofendida ter saído de casa e o arguido ter descoberto que a ofendida mais não fez do que dar-lhe falsas esperanças de uma eventual reconciliação.

26. Pelo que tais factos ocorreram em circunstâncias irrepetíveis e num período de desorganização pessoal do arguido.

27. O recorrente não perpetrou qualquer agressão fisica ou psíquica da sua ex-mulher de um modo especialmente desvalioso, particularmente censurável, ou sequer urna ofensa à saúde psíquica, física e emocional que, tivesse sido intenso ao ponto de pôr em causa a própria dignidade da sua pessoa.

28. É óbvio que a conduta do arguido assume relevância penal (sendo subsumível no crime de injúria), todavia, não revela o tal elemento de adequação à afetação da dignidade do seu consorte exigido pelo tipo penal da violência doméstica. 29. A douta sentença viola quanto a nós, e dizemo-lo com todo o respeito, o disposto no artigo 152º n.º 1 do Código Penal e artigo 410° n.° 2), a1ínea c) do Código de Processo Penal, pois interpretadas no sentido da prova produzida levariam a que o tipo de ilícito p. e p. no artigo 152 n° 1 do CP não fosse dado como preenchido nos seus elementos objetivos e subjetivos.

30. A indemnização arbitrada a favor da ofendida é, manifestamente, elevada, devendo ser o respetivo montante diminuído para outro que compense devidamente o dano sofrido.

31. Os danos não patrimoniais (cuja ocorrência se admite, em virtude das expressões injuriosas que o arguido confessou ter dirigido à ofendida via mensagens escritas) são leves, sendo a situação absolutamente contextuahzada num estado anormal de emoções e frustrações, estando inclusivamente ultrapassada.

32. Foram assim violados as disposições contidas nos artigos 72 n° 2 e), 152º n.° 1 do Código Penal, artigos 122º n.° 1, 374° n.° 2, 379° n.° 1 alíneas b) e c) e 410º n.° 2, todos do Código de Processo Penal, artigos 494° e 496° do Código Civíl e ainda os artigos 205° e 32° da Constituição da República Portuguesa, e outras que V.ªs Exc.ªs sapientemente suprirão.”

Contra-alegou ainda em 1ª instância, o M.P. Entendeu que não há qualquer nulidade da sentença pois que o arguido não demonstrou qualquer arrependimento, que os factos estão corretamente fixados e que preenchem a tipicidade do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1 C.P. Sustenta, a final, a improcedência integral do recurso.

Já neste Tribunal da Relação foi aberta vista ao Dignm,º Procurador Geral Adjunto. Considerou também o mesmo que não há verdadeiro arrependimento, que não há razão para alterar a matéria de facto provada e que esta preenche os elementos típicos do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1, a), C.P. Defende também, a improcedência integral do recurso.

Notificado nos termos do disposto no art.º 417º/2 C.P.P., o arguido não respondeu.

O recurso vai ser julgado em conferência, conforme dispõe o art.º 419º/3, c), C.P.P.

2 – Fundamentação

De forma a proporcionar uma melhor análise do caso concreto, transcrever-se-á de seguida a decisão recorrida:

“I.Relatório

O Digno Magistrado do Ministério Público deduziu acusação, em processo comum e com intervenção do Tribunal singular, contra:

Imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de violência doméstica, infracção p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 14º, n.º1 e 26º, 152º, n.º 1, al. a), 4 e 5, todos do Código Penal e um crime de dano, infracção p.p. pelo artigo 14º, n.º1 e 26º, 212º, n.º1, do Código Penal.

A ofendida M. O. deduziu pedido de indemnização civil contra o identificado arguido, no qual, alegando ter sofrido danos patrimoniais e danos não patrimoniais, com a actuação daquele – que enuncia –, conclui peticionando a respectiva condenação no pagamento da quantia de € 8.182,62 (oito mil, cento e oitenta e dois euros e sessenta e dois cêntimos), acrescida de juros, calculados à taxa legal, desde a citação até efectivo e integral pagamento. – cfr. pedido de indemnização civil de fls. 159 e ss..

O arguido ofereceu o merecimento dos autos.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, a qual decorreu com cumprimento das pertinentes formalidades legais.

Após o despacho que recebeu a acusação e designou data para julgamento, não sobreveio qualquer nulidade, excepção, questão prévia ou incidental que cumpra conhecer e que obste à apreciação do mérito.


*

II. Fundamentação de Facto

1. Factos Provados

Com relevância para a boa decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:

I

a) O arguido O. M. e a ofendida M. O. casaram um com o outro no dia 31 de Julho de 1988.

b) Dessa relação nasceu um filho, o B. M., a 03 de Outubro de 1988.

c) O casal separou-se em Novembro de 2015, por iniciativa da M. O. que, nessa altura, abandonou a residência comum e o casamento foi entretanto dissolvido por divórcio decretado em 26 de Fevereiro de 2016.

d) Contudo, o arguido não aceitou a separação.

e) E desde Novembro de 2015 e até pelo menos ao dia 26 de Março de 2016, conhecedor da rotina diária da ofendida, quase diariamente, o arguido perseguiu a mulher nos trajectos que este fez desde a sua residência, sita no Bairro … em Fafe até aos seus locais de trabalho, sitos no Hotel X, Guimarães e no Hospital em Guimarães.

f) Também por várias vezes o arguido aí se deslocou às horas de entrada e saída da ofendida e aí se manteve até a ver chegar ou sair.

g) Neste contexto, em dia não concretamente apurado de finais do mês de Janeiro de 2016, cerca das 21h00, à porta de uma cunhada da ex-mulher, sita na Urbanização …, Fafe, o arguido dirigiu à sua ex-mulher as seguintes expressões: “és uma puta, uma vaca, qualquer dia estendo-te”.

h) No dia 24 de Fevereiro de 2016, cerca das 20h00, no interior da residência vinda de referir, onde se encontraram para tratar do divórcio, o arguido exaltou-se e dirigiu à ex-mulher as seguintes expressões: “és uma puta, és uma vaca até te parto os dentes da boca e se estiveres com alguém faço-lhe o mesmo a ele”.

i) No dia 28 de Fevereiro de 2016, cerca das 21h20m, o arguido dirigiu-se à praça da alimentação do Guimarães shopping, sito em Guimarães, onde a ex-mulher se encontrava sentada a jantar na companhia de A. O. e dirigiu-se-lhe nos seguintes termos: “Vim aqui para te apanhar, és uma vaca, uma puta. Vou-vos apanhar e vou-vos estender”.

j) Num outro dia não concretamente apurado de finais de Fevereiro de 2016, à porta da residência da ex-mulher, e na presença do pai desta, o arguido dirigiu-lhe as seguintes expressões: “és uma puta, uma vaca, vou-te fazer a vida negra”.

k) Desde 23 de Fevereiro a 9 de Março de 2016, o arguido enviou do seu telemóvel com o n.º 91 … para o telemóvel da ofendida com o n.º 91 …, pelo menos 18 (dezoito) mensagens de teor insultuoso e ameaçador, que a ofendida recebeu e leu, nos dias, horas e minutos que abaixo se descrevem e com o teor aí descrito:

Mensagem n.º Dia, hora, minutos Conteúdo
1 23 de Fev. 2016, às 12h55 “Então não andas com o filho da pura pois não e comentas as publicações dele com, Ylove grande puta tu me saíste”
2 23 de Fev. 2016, às 13h29 “ Então puta não tens nada para me dizer. Mais cedo ou mais tarde tudo se sabe”.
3 23 de Fev. 2016, às 13h29 “Logo falamos”
4 23 de Fev. 2016,às 13h37 “As noites na casa da enfermeira têm sido boas não têm”
5 23 de Fev. 2016,às 13h38 “Além de puta viraste também mentirosa até para o teu filho e os teus pais”
6 23 de Fev. 2016, às 13h47 “Vais ter um futuro brilhante mãe de 4 filhas mais grande merdas tu arranjaste para a tua vida vais ser muito feliz vais toda a gente há-de ver”
7 23 de Fev. 2016, às 13h53 “Eu não ameaço estou apenas a constatar o que descobri estas aflita que toda a gente saiba aquilo que tu és. Tu é que estás com ameaças.”
8 23 de Fev. 2016, às 18h45 “Desce tenho o forno para te dar”
9 24 de Fev. 2016, às 02h05 “ Então grande vaca ainda foste passar a noite com ele e não digas que estás na casa da enfermeira porque eu já lá passei agora assim como tu na tua mãe e na tua cunhada mas eu já o previa és mesmo uma pita sem vergonha”
10 24 de Fev. 2016, às 03h13 “Sempre te revelaste agora sua vaca já nem esperas ter os papeis prontos para ires morar com o filho da puta desse cabrão”
11 24 de Fev. 2016, às 03h15 “Vais aproveitando enquanto dura sua puta”
12 29 de Fev. 2016, às 11h31 “Se te quisesse partir a cara ontem o paneleiro nem sequer mexia um dedo para te defender ficou ali queto que nem um rato a ouvir-me a dizer o que quis, defendia-te muito gosta mesmo de ti nem sequer reagiu vais ter um lindo futuro ao lado dele”
13 29 de Fev. 2016, às 15h32 “Mas fui me virar em que eu não te toquei em carrinha nenhum ó vaca”
14 29 de Fev. 2016, às 15h36 “E um merdas és tu e ele é que é um cobarde que se eu quisesse partia-te a cara e ele nem te defendia”
15 29 de Fev. 2016, às 16h05 “Podes ir à polícia quantas vezes quiseres porque eu não te mexi na carrinha nem em nada mas se me continuares a insultar vais é levar um estalo”
16 9 de Março de 2016, às 13h26 “Tenho uma continha para tu pagares de portagem estás às 20horas em casa para tas dar”
17 9 de Março de 2016, às 20h25 “Amanhã vou te entregar a conta não me obrigues a seguir-te ou ir esperar por ti ao trabalho. Às 20 horas na tua mãe”.
18 9 de Março de 2016, às 20h32 “Faz queixa a quem tu quiseres mas depois não te queixes, já não é a primeira vez que me fazes essa ameaça, vê lá se começo a fazer a vida negra, depois podes te queixar ao ricardinho se ele for homem para te defender ó vaca”.

l) No dia 23 de Fevereiro de 2016, o arguido enviou do seu telemóvel para o telemóvel do sobrinho da ex-mulher um SMS que começava da seguinte maneira ”R. hoje infelizmente descobri que a tua tia é uma puta (…)“.

m) No dia 04 de Março de 2016, cerca das 19h45, enviou-lhe ainda uma outra com o seguinte texto “Sem ninguém se aperceber diz-me se a tia está a trabalhar no hospital ou no lar ou se está aí a comer”.

n) No dia 26 de Março de 2016, cerca das 20h00, o arguido seguiu de carro atrás da viatura da ofendida desde a sua residência até ao Hotel X, sito em Guimarães e aí logo que a ofendida saiu da sua viatura, o arguido abordou-a dizendo-lhe “és uma vaca, qualquer dia parto-te os dentes”.

II

o) Como consequência directa e necessária de todas as suas condutas, deu causa o arguido a que a ex-mulher M. O. se sentisse em permanente estado de terror e achincalhamento, receando as atitudes que o arguido pudesse tomar contra si.

p) Ao actuar como descrito, ao longo do período descrito, o arguido quis maltratar psicologicamente a ofendida, indiferente à relação familiar que existiu e ao filho em comum que ambos têm e aos laços de confiança solidariedade e respeito que devem caracterizar essa relação, objectivos que perseguiu e alcançou na totalidade e com intenção de:

- com os insultos, atingir a honra, consideração e dignidade pessoal da sua ex mulher;

- com as ameaças, de lhe causar medo e inquietação e de a prejudicar na sua liberdade de auto determinação.

q) Sabia que os seus comportamentos eram adequados a atingir tais fins.

r) Agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente.

s) Tinha consciência de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

t) Em consequência da conduta do arguido, a ofendida sentiu-se humilhada, triste e envergonhada.

u) Viveu perturbado e em estado de alerta, com receio de que o arguido concretizasse os seus intentos.

(Factos relativos à personalidade e condições pessoais do arguido)

w) O arguido é auxiliar de acção educativa e aufere quantia não concretamente apurada mas não inferior ao salario mínimo nacional, vive sozinho em casa própria.

x) O arguido reconhece dificuldades na aceitação da ruptura conjugal, o que parece ter precipitado um período de desorganização emocional decorrente da frustração das suas expectativas na reconciliação do casal.

y) O arguido, na presente data, organiza o seu quotidiano em torno do exercício profissional e do convívio com pares de hábitos idênticos aos seus.

z) Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.


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2. Factos Não Provados

Não resultaram, com relevância para a decisão, não provados os seguintes factos:

1. Nesse mesmo dia, o arguido dirigiu-se à viatura XZ utilizada pela ex-mulher que se encontrava estacionada no parque de estacionamento do dito centro comercial, cortou-lhe os pneus e deitou-lhe uma substancia corrosiva para cima, estragando os pneus e a pintura da viatura e causando-lhe o consequente prejuízo em valor não inferior a 1.500,00€.

2. Com o dano causado na viatura, o arguido agiu com a intenção de lhe causar um prejuízo correspondente ao valor do concreto dos pneus e da pintura.


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3. Fundamentação da decisão de facto

A convicção do Tribunal, no que concerne à matéria de facto dada como provada fundou-se na análise crítica da totalidade da prova produzida, designadamente, da prova documental junta aos autos, a saber, auto de notícia e aditamentos de fls. 3 e ss. e de fls. 3 e ss. do apenso, certidão de assento de nascimento de fls. 28, auto de transcrição de mensagens de fls. 70 e 71, auto de transcrição de mensagens de fls. 95 e auto de visionamento de imagens com extracção de fotograma de fls. 108 a 112, em conjugação com os depoimentos prestados pelo arguido e pelas testemunhas, norteados pelo principio da livre apreciação da prova e das regras de experiência comum.

Assim, o arguido começou por admitir ter enviado as mensagens de texto, através do seu telemóvel, à ofendida e ao sobrinho R. O., conforme vêm descritas no libelo acusatório. Mais confirmou ter abordado a sua ex-mulher na praça da alimentação do Guimarães shopping, quando esta se encontrava na companhia de A. O., sendo certo que aí não a injuriou nem a ameaçou. Mais admitiu o arguido ter dirigido palavras injuriosas à ofendida quando se encontrou com esta na casa da sua ex-cunhada, juntamente com um advogado. Referiu que se descontrolou porque se encontraram para tratar do divórcio e que nessa altura se exaltou e a injuriou mas não a ameaçou.

No mais, o arguido nega ter perseguido a sua ex-mulher, designadamente, nos trajectos que esta faz desde a sua residência até aos seus locais de trabalho. E nega ter danificado o veículo da ofendida, quando se encontrava estacionado no parque de estacionamento do Guimarães shopping. Assim como nega ter ameaçado e injuriado a ofendida, quando se dirigiu à casa dos seus ex-sogros onde aquela passou a viver após a separação e na casa da sua ex-cunhada. Por fim, referiu ser verdade ter encontrado a ofendida junto ao seu local de trabalha, no hotel X, sendo certo contudo que foi a ofendida quem o abordou e não o contrário e que em momento algum a ameaçou ou injuriou.

Sem prejuízo, o arguido ainda descreveu o relacionamento conjugal que mantinha com a ofendida e acrescentou que sentiu-se perdido após a separação, que tentou reconciliar-se com ela e que quando percebeu que a ofendida poderia ter já outro relacionamento, tentou confirmar tal condição e aí ficou inquieto. Cremos verdadeiramente que o arguido confirmou aqueles factos constantes do libelo acusatório sobre os quais as restantes provas, por si só, os evidenciavam, sendo que os demais, tentou desvalorizá-los ou contextualizá-los por forma a minimizar a gravidade do seu comportamento.

Desta feita, foram outrossim relevantes os depoimentos prestados em sede de audiência pelas testemunhas inquiridas.

Assim, a ofendida M. O. relatou os episódios de perseguição mencionados na acusação e, bem assim, aqueles em que foi vítima de ofensas verbais. Circunstanciou as ofensas descritas e referiu que estas apenas se iniciaram já depois da separação, quando decidiu ir viver para casa dos seus pais. O arguido constantemente a vigiava em casa e nos locais de trabalho, por vezes, sentiu necessidade de alterar os seus horários e os seus trajectos, sendo que se sentiu controlada e assustada.

A ofendida mostrou-se sempre com um discurso coerente, claro, conciso mas objectivo, pelo que foi merecedora de credibilidade.

Por seu turno, a testemunha R. O., sobrinho da ofendida, confirmou o teor das mensagens recebidas no seu telemóvel e enviadas pelo seu tipo, aqui arguido, e, bem assim, referiu que se encontrava em casa quando o arguido ali se encontrou com a ofendida e com um advogado para tratarem do divórcio. Apesar de não estar na mesma divisão da casa, asseverou que se apercebeu que o arguido, a dada altura, exaltou-se e apelidou a ofendida dos nomes descritos na acusação.

Tal episodio veio ainda a ser confirmado pela testemunha M. I., cunhada da ofendida, que igualmente se encontrava na sua casa aquando do aludido encontro. Sendo que mais acrescentou tal testemunha que já antes desse encontro, o arguido deslocou-se a sua casa, porque ali se encontrava a ofendida, e que lhe dirigiu os nomes descritos na alínea g) dos factos provados.

Tais testemunha ainda se referiram ao estado emocional vivido pela ofendida no momento da prática destes factos, dizendo que vivia com medo e inquietação.

Tais testemunhas, apesar de familiares da ofendida, depuseram de forma séria e não empolada e daí terem merecido credibilidade.

Por seu turno, a testemunha A. O., actual companheiro da ofendida, também confirmou o episódio descrito pela ofendida e ocorrido na praça da alimentação do Guimarães shopping, conforme vem referido na acusação pública. No mais, tal testemunha referiu não ter assistido a qualquer dos restantes episódios descritos, sendo que foi tendo conhecimento dos mesmos através da ofendida. Mais acrescentou que esta vivia de facto em sobressalto.

Por fim, a testemunha E. O., pai da ofendida, apresentou um discurso sentido e amargurado pelo comportamento que o aqui arguido foi tomando após a separação do casal. Não obstante tal, foi dizendo que o arguido utilizava qualquer pretexto para ir ter com a ofendida a sua casa designadamente. Mas que sempre que se encontravam o arguido acabava por lhe dirigir palavras ofensivas mesmo na sua presença. Daí que confirmou o facto descrito na alínea j) dos factos provados. No mais, também confirmou que por vezes via o arguido a vigiar a sua casa e o restante foi tomando conhecimento pela ofendida.

Desta feita, tais depoimentos apenas vieram acentuar a convicção do Tribunal, já orientada em consequência das declarações prestadas pela ofendida. Tais testemunhas presenciaram alguns dos episódios descritos e apesar de familiares da ofendida, como se disse, apresentaram-se descomprometidas e objectivas, pelo que nos mereceram credibilidade.

O facto dado como provado sob a alínea z) decorreu do compulso do CRC junto aos autos.

No que concerne à situação socio-económica e profissional do arguido (alíneas w) a y) da matéria de facto provada), o Tribunal teve em consideração o depoimento do mesmo que se mostrou claro e coerente, sendo certo que não foi produzida prova que o infirmasse e, bem assim, o relatório social elaborado e constante de fls. 203 e ss.

No que toca à matéria de facto dada como não provada, a mesma assim se entendeu, em virtude de insuficiente prova ter sido produzida quanto à mesma. Na verdade, apesar da ofendida ter referido que só poderia ter sido o arguido quem danificou o seu veiculo, quando este se encontrava estacionado no parque de estacionamento do Guimarães shopping (sendo que tal episodio sucedeu no mesmo dia em que o arguido a abordou na praça da alimentação), o certo é que não viu tal suceder. É convicção das restantes testemunhas que tal acto foi efectivamente perpetrado pelo arguido. Contudo, como se disse, nenhuma outra prova foi produzida quanto a tal, pelo que, apenas a convicção não é suficiente para o assentimento de tais factos.

Nesta parte, porque a prova produzida se tornou dúbia e não se alcançou um grau de certeza quanto à prática pelo arguido dos factos descritos na acusação com respeito ao crime de dano, intervindo em sede de valoração do mesmo o princípio do “in dubio pro reo”, foram estes dados como não provados, resolvendo-se a dúvida no sentido mais favorável para aquele.


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III.Fundamentação de Direito

1. Enquadramento jurídico-penal

O arguido vem acusado da prática, em autoria material e em concurso real, de um crime de violência doméstica, infracção p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 14º, n.º1 e 26º, 152º, n.º 1, al. a), 4 e 5, todos do Código Penal e um crime de dano, infracção p.p. pelo artigo 14º, n.º1 e 26º, 212º, n.º1, do Código Penal.

· Do crime de violência doméstica:

Incorre na prática do crime de violência doméstica aquele que “de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais ao cônjuge ou ex-cônjuge” – art.º 152.º n.º 1 alínea a) do CP.

O bem jurídico que com este tipo legal se pretende acautelar é a saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, ou, como refere Américo Taipa de Carvalho(1), “a ratio do tipo não está, pois, na protecção da comunidade conjugal, mas, outrossim, na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, abrangendo no respectivo âmbito punitivo os comportamentos que, de forma reiterada, lesam essa dignidade. A ratio do mencionado tipo legal vai, assim, muito para além, de uma forma agravada do crime de ofensas corporais simples, abrangendo, para além dos maus-tratos físicos, os maus-tratos psíquicos, de tal sorte que se pode afirmar que, a final, o bem jurídico protegido é a saúde, enquanto realidade jurídica complexa, que abrange a saúde física, psíquica e mental.”.

A tipificação deste crime tem um intuito claramente proteccionista daqueles que se encontram numa situação de sujeição ou de especial vulnerabilidade relativamente a outrem.

Para Augusto Silva Dias (2), bens jurídicos protegidos pelo tipo incriminador do art.º 152.° são a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana (no caso das alíneas b) e c) do n.º 1) em contextos de subordinação existencial (n.º 1), coabitação conjugal ou análoga (n.º 2), estreita relação de vida (n.º 3) e relação laboral (n.º 4).

Segundo Maria Manuela Valadão e Silveira (3), “o n.º 2 do art.º 152.º do CP protege em primeira linha a integridade, a saúde, nas suas dimensões física e psíquica. Contribui, desta forma e em uníssono, com os outros tipos incriminadores do capítulo, para densificar o valor constitucional da integridade, que se analisa no n.º 1 do art. 25.º da Constituição, em integridade moral e física.”. E adianta que “a “mais-valia” que o tipo incriminador trouxe à sociedade portuguesa, a partir de 1982, foi o reconhecimento ou, até, o aviso expresso de que o bem jurídico integridade pessoal é tutelado penalmente, mesmo quando as denegações desse bem jurídico ocorram intra muros de uma sociedade conjugal. Ou seja, a integridade pessoal mantém o seu valor, apesar da família.”.

No mesmo sentido se pronunciaram diversos arestos do Supremo Tribunal de Justiça, de que é exemplo o acórdão, de 30-10-2003, proferido no Proc. n.º 3252/03-5.ª (CJSTJ, 2003, tomo 3, págs. 208 e ss.), no qual se considerou que “O bem jurídico protegido pela incriminação é, em geral, o da dignidade humana, e, em particular, o da saúde, que abrange o bem estar físico, psíquico e mental, podendo este bem jurídico ser lesado, no âmbito que agora importa considerar, por qualquer espécie de comportamento que afecte a dignidade pessoal do cônjuge e, nessa medida, seja susceptível de pôr em causa o supra referido bem estar.”.

Afirma Plácido Conde Fernandes (4), que não se vê “razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal. O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos.”.

O ilícito em referência pressupõe um agente que se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo: “quem infligir ao cônjuge ou a quem com ele conviver em condições análogas (…)”. Como tal, o crime de maus tratos a cônjuge é um crime específico, isto é, um delito que só pode ser levado a cabo por certas e determinadas categorias de pessoas, no caso, por quem tenha “dever de solidariedade conjugal, em relações de pura igualdade”. (5)

Já para Ricardo Bragança de Matos (6), o crime assume a natureza de crime específico impróprio (na definição de Figueiredo Dias, crimes específicos impróprios são aqueles em que a qualidade do autor ou o dever que sobre ele impende não servem para fundamentar a responsabilidade, mas unicamente para a agravar), uma vez que só o agente com essa característica subjectiva relacional é passível de o cometer. – cfr. ainda, defendendo idêntica posição, Augusto Silva Dias, ob. cit., pág. 111.

Preenche a conduta típica a actuação do agente dirigida a maltratar física e/ou psiquicamente o seu cônjuge ou pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges.

No tipo incriminador em sujeito, e que foi alterado na última alteração legislativa ocorrida, não está já implicitamente pressuposto o carácter reiterado ou habitual da conduta. O tipo legal refere hoje “de modo reiterado ou não”. De todo, parece-nos que o mau trato deverá ser grave e sério, quando não seja reiterado.

A expressão “maus tratos” constante do anterior n.º 2 do referido art.º 152.º do CP, segundo Ricardo Bragança de Matos (ob. cit., págs. 102-103), procurava “traduzir uma específica realidade sociológica que pode ser caracterizada pelo exercício de inúmeras formas de violência, que ocorre num específico espaço social, em que surgem como agressor e vítima os membros de uma relação conjugal (ou de uma relação a esta análoga, ou de uma relação familiar de âmbito mais alargado) e que visa, a maior parte das vezes, a manutenção na prática de concepções estereotipadas dos papéis atribuídos ao homem e à mulher, concepções essas fundamentadas numa visão ainda patriarcal da sociedade, Mas, em termos práticos, maus tratos significa, antes de mais, o exercício de violência.”. A “prática de maus tratos entre cônjuges parece então poder analisar-se na perpetração de qualquer acto de violência que afecte, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional do cônjuge vítima, diminuindo ou afectando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal igualitária.”.

Segundo Rui Abrunhosa Gonçalves (7), a expressão “violência conjugal” – que se distingue de conceitos mais abrangentes como os de “violência doméstica”, “violência familiar” ou “maus tratos familiares”, em que podem ser afectados outros elementos da família ou que coabitem com o casal – abarca um conjunto variado de actos agressivos que se distinguem entre si pela sua gravidade, mas que têm em comum o facto de serem exercidos por um elemento do casal (geralmente o homem) sobre o outro, de forma consciente, envolvendo a noção de que de que tais actos podem ocorrer numa fase pré-matrimonial ou de vida em conjunto, durante esse período ou mesmo após, quando o matrimónio ou a união de facto se encontram em vias de dissolução.

A questão da violência intrafamiliar foi abordada no Conselho da Europa, que, na Exposição de Motivos Relativa ao Projecto de Recomendação Sobre a Violência no Seio da Família (Anexo II), elaborada pelo Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna, aprovada na 33.ª Sessão Plenária do Comité Director para os Problemas Criminais (Abril de 1984), especificou o conceito de violência física no seio da família, excluindo a violência sexual, como “Qualquer acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade.”. (8)

No plano do direito interno, a evolução no tratamento destas matérias conduziu às modificações resultantes da 23.ª alteração ao CP, operada pela Lei 59/2007 de 4 de Setembro, com a nova redacção dada ao art.º 152.º e com a criação de uma outra situação padrão qualificativa de homicídio, com a inclusão do conteúdo integrante da alínea b) do n.° 2 do art.º 132.° do CP, passando a ser susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a circunstância de o agente praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro sexo ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau.

A nova formulação (“reivindicada” por Manuela Valadão Silveira, ob. cit., pág. 44) vem consagrar a inserção de forma autónoma do conjugicídio e de situações paralelas, para além de outras, o que se justificará atendendo à evolução legislativa, que tem tido em vista o fenómeno da violência doméstica (conjugal), da violência familiar e dos maus tratos familiares, como ocorre com a Lei 61/91 de 13 de Agosto (protecção às mulheres vítimas de violência), a Resolução da AR n.º 31/99 de 14 de Abril, o Plano Nacional Contra a Violência Doméstica (RCM n.º 55/99 de 15 de Junho, DR n.º 137/99, I Série B), a alteração ao CP, com a nova redacção do art.º 152.º e dos art.ºs 281.º e 282.º do CPP – Lei 7/2000 de 27 de Maio –, a Resolução da AR n.º 17/2007 (DR I Série A, de 26-04-2007), sobre a iniciativa “Parlamentos unidos para combater a violência doméstica contra as mulheres”, e a Lei 51/2007 de 31 de Agosto, que define os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2007-2009, em cumprimento da Lei 17/2006 de 23 de Maio, que aprova a Lei-Quadro da Política Criminal, com referência, nomeadamente, aos art.ºs 3.º alínea a) e 4.º alínea a) e respectivo Anexo (cf. Ac. deste STJ de 02-04-2008, Proc. n.º 4730/07).

Antes desta última alteração legislativa, discutia-se amplamente na Jurisprudência e na Doutrina se para a verificação do tipo legal se exige sempre uma reiteração das condutas. Assim, no sentido de que é exigível a reiteração veja-se, por exemplo o Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 5/11/2003 (9) bem como a posição adoptada por Américo Taipa de Carvalho (10).

Maia Gonçalves (11) defendia que “enquanto o crime de ofensa à integridade física pode ser cometido por negligência, o crime de maus-tratos previsto neste artigo é essencialmente doloso. Por outro lado, aquele crime pode ser cometido através de um só acto, enquanto que o crime de maus-tratos pressupõe alguma reiteração das condutas, de modo a inculcar um carácter de habitualidade. Concorrendo este crime com o de ofensa à integridade física simples, normalmente este último ficará consumido pelo primeiro porque, coincidindo nos seus elementos descritivos, representa em relação a ele um minus.”. No mesmo sentido, Leal-Henriques e Simas Santos (ob. cit., pág. 182) afirmam que “não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo (estaríamos então no domínio das ofensas à integridade física, pelo menos), mas também não se exige habitualidade da conduta. Afigura-se-nos que o crime se realiza com a reiteração do comportamento, em determinado período de tempo.”.

Américo Taipa de Carvalho (ob. cit., pág. 334) afirma igualmente que “o tipo de crime em análise pressupõe, segundo a ratio da autonomização deste crime, uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois ou mais dos referidos actos afastará o elemento reiteração ou habitualidade pressuposto, implicitamente, por este tipo de crime.”. A este propósito, Augusto Silva Dias (ob. cit., pág. 111) refere que não deve entender-se por reiteração o mesmo que continuidade criminosa, bastando-se aquela com uma acção plúrima e repetida, como uma sova.

Por seu turno, Manuela Valadão e Silveira (ob. cit., pág. 35), citando o acórdão do STJ de 14-11-1997, defende igualmente que os maus-tratos, enquanto tal, não implicam repetições reiteradas de ofensas, podendo o crime ser preenchido com uma única conduta agressiva.

Na jurisprudência do Supremo Tribunal: face ao art.º 153.° do CP82, o Ac. de 08-01-1997, Proc. n.º 934/96 - 3.ª, pronunciou-se no sentido de que para a verificação do crime não se exigia uma habitualidade, mas também não bastava uma acção isolada; - neste sentido, entre outros, se pronunciou, citando o anterior, o Ac. de 30-10-2003 (CJSTJ, 2003, tomo 3, pág. 208 e ss.): “Resulta do próprio dispositivo legal que não basta uma acção isolada do agente para que se preencha o tipo. Terá, por isso, de se tratar de uma acção plúrima e repetitiva, reiterada. Porém, também não é preciso que se registe uma situação de habitualidade.”.

Porém, foi surgindo uma corrente jurisprudencial segundo a qual, em casos de especial violência, uma única agressão seria bastante para preencher o tipo legal. Assim, com referência à redacção do preceito resultante da 3.ª alteração ao CP, operada pelo DL 48/95, de 15 de Março, extrai-se do Ac. de 14-11-1997, Proc. n.º 1225/97 - 3.ª (CJSTJ, 1997, tomo 3, pág. 235 e ss.), que “A actual redacção (…) mais não significa (…) do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artigo 152.º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária, da parte do agente.”.

Reportando-se a uma situação de maus-tratos a menores, já o Ac. de 17-10-1996 (CJSTJ, 1996, tomo 3, pág. 170) referira não exigir o crime para a sua verificação uma conduta plúrima e repetitiva dos actos de crueldade: “o normativo não demanda a prática habitual dos actos nem a repetitividade das condutas”, abrangendo os que têm natureza plúrima ou repetitiva, como os que têm natureza una.

Mais recentemente, perfilhando esta orientação, entre outros, o Ac. de 04-02-2004, Proc. n.º 2857/03 - 3.ª, defende que, em regra, o tipo de crime exige uma reiteração da conduta delituosa, só em casos excepcionais bastando um só acto, se ele for suficientemente grave para afectar de forma marcante a saúde física ou psíquica da vítima; e no Ac. de 05-04-2006, Proc. n.º 468/06 - 3.ª, é seguido o entendimento do acórdão de 1997, dizendo-se que a reiteração é, na maior parte das vezes, elemento integrante destes requisitos, mas excepcionalmente o crime pode verificar-se sem ela. Igualmente no Ac. de 06-04-2006, Proc. n.º 1167/06 - 5.ª (CJSTJ, 2006, tomo 2, pág. 166 e ss.), se extrai que “Releva aqui de forma especial o tratar-se de um crime de maus-tratos físicos ou psíquicos, o que afasta as meras ofensas à integridade física. Necessário se torna, pois, que se reitere o comportamento, em determinado período de tempo, admitindo-se que um singular comportamento possa ter uma carga suficiente demonstradora da humilhação, provocação, ameaças, mesmo que não abrangidas pelo crime de ameaças, do acto de molestar o cônjuge ou equiparado.”.

Da análise da letra do preceito em causa – que pune quem infligir ao cônjuge, ou a quem com ele conviver em condições análogas às dos cônjuges, maus tratos físicos ou psíquicos – não parece resultar a necessidade de uma acção reiterada para o preenchimento do elemento objectivo integrador do tipo legal.

De todo o modo, tal requisito foi expressamente afastado na nova redacção introduzida pela Lei 59/2007 de 4 de Setembro, ao art.º 152.º, cujo n.º 1 pune quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais.

A solução legislativa veio a afirmar-se em sentido divergente do propugnado no Anteprojecto de Revisão do CP, apresentado pela Unidade de Missão para a Reforma Penal, harmonizando-se com a exposta corrente jurisprudencial que, face a anterior redacção do preceito, o interpretava no sentido de não ser exigida a reiteração, desde que a conduta maltratante fosse especialmente grave.

O crime de maus-tratos é, como refere Fernando Silva (12), “um crime necessariamente doloso”, sendo que, continua esse autor, “a dimensão do dolo, que pode revestir qualquer forma, depende do tipo e da conduta em questão”. Quer isto significar que, se a conduta pressupor um resultado (causar lesões físicas), o dolo tem de englobar a intenção de provocar as mesmas, enquanto que se se tratar de situações de perigo exige-se que o dolo abranja esse perigo. Em todo o caso, é sempre necessário o conhecimento da relação de protecção ou subordinação (não esqueçamos que estamos perante um crime específico) e também da especial vulnerabilidade da vítima.

Vertendo ao caso concreto, temos que ficou provado que o arguido maltratou a ofendida M. O., da forma como ficou descrita nos factos provados, amedrontando-a e provocando-lhe receio pela sua integridade física e pela vida, receio esse que a condicionou na sua liberdade pessoal e a fez temer pela sua segurança.

Mais ficou provado que o arguido agiu livre e conscientemente, com o propósito concretizado de amedrontar a ofendida, sua esposa, de a ofender psicologicamente e ainda de lhe restringir a sua liberdade o que conseguiu.

Por conseguinte, a nosso ver, embora se deva reconhecer que este não é um dos casos mais sérios de violência doméstica, entendemos que, para o fim indicado, assumem relevância não só as injúrias/difamação proferidas em alta voz, mas também a forma como o arguido insistentemente procurava a ofendida em sua casa e locais de trabalho, o que, tudo junto, provoca, como provocou na ofendida, angústia, privação e irritabilidade permanente e sentimentos de se sentir controlada a toda a hora.

Assim, conclui-se, sem sombra de dúvidas, que se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos constitutivos do crime de violência domestica, não intercedendo, no caso, qualquer causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da punibilidade do agente, pelo que se impõe a aplicação de pena ao arguido pelo respectivo cometimento.

· Do crime de dano:

Nos termos do art.º 212.º do CP “quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia, é punido com prisão até 3 anos ou com pena de multa (...)".

Os elementos objectivos deste crime estão previstos numa formulação ampla que abrange todos os casos de dano e, consequentemente, uma multiplicidade de condutas que preenchem a sua previsão legal.

Assim, a destruição é a forma mais intensiva e drástica de cometimento da infracção, determinando a perda total da utilidade da coisa e implica, normalmente, o sacrifício da sua substância.

A danificação abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição.

Desfigurar compreende os atentados à integridade física que alteram a imagem exterior da coisa, querida pelo respectivo proprietário.

Tornar não utilizável é uma modalidade de conduta típica que abarca as acções que reduzem a utilidade da coisa segundo a sua função.

No tipo legal em epígrafe protege-se, como resulta da sua inserção sistemática, a propriedade, pressupondo por parte do agente uma conduta dolosa tendente à obtenção dos resultados típicos previstos na norma incriminatória.

No que concerne aos elementos objectivos do tipo o objecto da acção típica deverá ser uma coisa corpórea e autónoma.

Como refere Costa Andrade, “Para que o facto atinja o limiar da dignidade penal exige-se ainda: por um lado, que a coisa tenha algum valor; em segundo lugar e complementarmente, que a conduta lesiva se revista de algum relevo. Trata-se agora de um momento não escrito do tipo, que dá expressão aos princípios de proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade, segundo os quais o direito penal só deve intervir contra factos de inequívoca danosidade social. (...). Na ausência de limiar expresso e quantificado terá, em qualquer caso, de entender-se que caem fora da área de protecção da norma as coisas desprovidas de qualquer valor: um valor de uso ou de troca ou, ao menos, um valor de afecto, suficiente para fundamentar um “interesse razoável” (...)”.

A conduta, para ser típica, deverá de igual sorte incidir sobre objecto alheio, procedendo-se a tal qualificação pelas normas de Direito Civil.

Por outro lado, e no que ao elemento subjectivo se refere, este tipo legal de crime basta-se com o designado dolo genérico, ou seja, o conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo. De referir que se torna bastante o dolo eventual, tendo o agente, nos termos gerais, que representar que a sua acção sacrifica coisa alheia.

Ora, da factualidade apurada só podemos concluir que a conduta do arguido O. M. não preencheu todos os elementos constitutivos do crime, tanto de natureza objectiva (na vertente destruição), como o subjectivo (este na veste de dolo directo).

Assim, a actuação do arguido O. M. não consubstancia a prática do crime de que vem acusado, não se mostrando, de facto, preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos supra descritos. Neste sentido, sempre se dirá, que para haver responsabilização jurídico-penal do agente não basta a mera realização por este de um tipo de ilícito, torna-se necessário que aquela realização lhe possa ser censurada como culpa.

Sendo a matéria de facto provada a que acima ficou descrita, não pode o arguido ser criminalmente censurado pela cominação do preceito típico que lhe foi imputado e, por isso, face ao princípio constitucional da presunção de inocência, consagrado no art.º 32.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, impõe-se, a respectiva absolvição.

Com efeito, o princípio da presunção de inocência destina-se a proteger as pessoas que são objecto de uma acusação, garantindo que não serão condenadas enquanto não se demonstrarem os factos da imputação através de uma actividade probatória inequívoca. Significa tal princípio constitucional que toda a decisão condenatória deve sempre ser precedida de uma mínima e suficiente actividade probatória, impedindo a condenação sem provas seguras.

Sendo esse princípio uma norma directamente vinculante e constituindo um direito fundamental dos cidadãos (cfr. art.º 18.º n.º 1 da CRP), direito esse reconhecido no direito internacional (cfr. art.º 11.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e art.º 6.º n.º 2 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem), impõe-se, quando não for demonstrada e provada a culpabilidade do arguido, a sua absolvição.

Impõe-se, assim, concluir, sem necessidade de mais considerações, que o arguido O. M. não pode ser condenado pelo cometimento do crime de que vem acusado, devendo ser absolvido da prática do mesmo.


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2. Escolha e determinação da medida concreta da pena

Aqui chegados, cabe determinar a medida concreta da pena, sendo que, como bem refere o Professor Figueiredo Dias, esta “há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto.” (13).

O crime de violência doméstica é punível, como decorre do n.º 1 do art.º 152.º do CP, com pena de prisão, no mínimo de 1 ano e máximo de 5 anos.

O Cód. Penal português consagra, como resulta do disposto nos seus art.ºs 40.º e 71.º, que a aplicação de uma sanção penal, concretamente de uma pena, tem como finalidades a protecção do bem jurídico, a prevenção geral e a prevenção especial.

Em termos de prevenção geral (positiva), considera-se que a aplicação de uma pena “deve procurar influir positivamente sobre a comunidade para lhe reforçar a consciência jurídica e a sua disposição para cumprir as normas(14), enquanto que, no que concerne à prevenção especial, a aplicação de uma pena ou medida de segurança visa, nas palavras de Figueiredo Dias (15), “evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na sociedade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de protecção dos bens jurídicos”.

A culpa funcionará sempre como limite máximo inultrapassável enquanto que o limite mínimo será aquela pena que, à luz das concretas circunstâncias se mostre suportável à luz da necessidade de tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada ou reafirmação contra-fáctica da norma.

A determinação da medida concreta far-se-á de acordo com os princípios acima referidos atendendo-se também a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor e contra o agente.

In casu, contra o arguido devemos mencionar:

- a gravidade do seu comportamento, nomeadamente porque agiu sempre com dolo directo e com consciência da ilicitude da sua conduta;

- a intensidade da culpa, que surge moldada sobre o dolo directo e que, por isso, corresponde com o nível mais elevado de intencionalidade criminosa.

Por outro lado, e a seu favor devemos atender:

- ao facto de se encontrar social e profissionalmente inserido;

- as consequências e sequelas que se verificam pelo seu comportamento não terem sido demasiado gravosas.

- ausência de antecedentes criminais.

No que concerne às necessidades de prevenção geral, entendemos serem as mesmas elevadas, atenta a especial protecção que merecem as relações familiares. Neste sentido, veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de 7/11/2002 (16), onde se pode ler “As exigências de prevenção geral são elevadas atenta a natureza dos ilícitos em causa, que no nosso tempo não se podem tolerar. A violência no seio familiar, quase sempre silenciada, é um dos grandes flagelos da nossa sociedade. Só uma cultura interiorizada de respeito pela dignidade humana poderá criar as condições de harmonia tão desejadas.”.

Quanto às necessidades de prevenção especial, as mesmas não são tão prementes, uma vez que o arguido e ofendida estão divorciados, têm um filho já maior em comum, aquele encontra-se social e profissionalmente inserido, pelo que, apesar de eventual contacto que o arguido possa manter com a ofendida, o mesmo é hoje mais ou menos pacífico.

Deste modo, tudo ponderado, julgo adequada a pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão.


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Perante a determinação de uma medida de pena de prisão não superior a cinco anos, o tribunal terá sempre de fundamentar especificamente a concessão ou denegação da suspensão de execução da pena, pois que nestes casos esta espécie de pena é, nas palavras de Figueiredo Dias (17) um verdadeiro “poder-dever”, que deve ser aplicado sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos. Dispõe o art.º 50.º n.º 1, “o tribunal suspende a pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades de punição”.

Assim, subjacente à decisão de suspensão da execução da pena está um juízo de prognose favorável sobre o futuro comportamento do arguido, ou seja, quando se possa prever que aquele não cometerá no futuro outros crimes bem como se o arguido está inserido na sociedade.

Sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos, o juiz tem o dever de suspender a execução da pena: esta é uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, pelo que é necessário que, reportando-se ao momento da decisão e não ao da prática do crime, se possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar as finalidades da punição.

Ora, a pena de prisão é fortemente restritiva de um direito constitucionalmente tutelado – a liberdade individual (art.º 27.º da Constituição da República Portuguesa), motivo pelo qual deve funcionar de acordo com uma lógica de última ratio.

No caso sub judice, tendo em atenção os factos provados, dos quais resulta que não há notícia que desde a prática do último ilícito penal aqui em julgamento, haja o arguido incorrido na prática de qualquer outro ilícito penal, o facto de estar inserido social e profissionalmente, é nossa opinião que se adequam as penas de substituição, que visam evitar os efeitos negativos da prisão e realizar de forma mais pedagógica, pessoal e socialmente benéfica, as finalidades de punição, pelo que entendemos ser de suspender a execução da pena de prisão aplicada.

A pena de prisão, neste quadro fáctico, não se revela necessária nem tão-pouco conveniente à ressocialização do arguido, bastando a respectiva ameaça, daí que se entenda como adequado suspender a execução dela pelo período de um ano e três meses, ao abrigo do disposto no art.º 50.º do CP.


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3. Do pedido de indemnização civil

Importa agora analisar a questão cível, sendo que, para decidirmos a procedência ou improcedência do pedido de indemnização cível deduzido, importa, desde logo, ter em conta o art.º 129.º do CP, que estatui que “a indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.

Segundo o princípio geral da responsabilidade civil por factos ilícitos prescrito no art.º 483.º do Código Civil, “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.

São assim pressupostos da obrigação de indemnizar:

§ o facto voluntário do lesante, ou seja “um facto dominável ou controlável pela vontade(18);

§ a ilicitude, que se analisa na violação de um “direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios”;

§ a existência de um nexo de imputação subjectiva entre o facto e o lesante, ou seja, a culpa;

§ a ocorrência de danos na esfera de outrem;

§e a existência de um nexo de causalidade entre o facto e os danos, no sentido de que apenas relevarão aqueles danos que não se teriam verificado sem a intervenção do lesante (cfr. art.º 563.º do CC).

Ora, resulta da matéria dada como provada que o demandado praticou voluntariamente os factos descritos nos autos, que o respectivo comportamento foi ilícito e, ainda, que actuou dolosamente.

Mais se provou que, por virtude do comportamento do arguido supra descrito, a ofendida sentiu-se humilhada, triste e envergonhada, viveu perturbada e em estado de alerta, com receio de que o arguido concretizasse os seus intentos.

Em face do que vem de se dizer e da factualidade apurada, não temos dúvidas em considerar que na esfera jurídica do demandado se constituiu a obrigação de indemnizar a demandante, pois que os danos que se provaram ter ocorrido se inscrevem no domínio daquela causalmente emergentes da sua apurada conduta. Tratam-se, também, de prejuízos de natureza não patrimonial que, atenta a sua gravidade, constitui o demandado O. M. no dever de indemnizar – art.º 496.º n.º 1 do CC.

Atentos os princípios consignados nos art.ºs 562.º e ss. do CC, afigura-se-nos equitativo atribuir à demandante M. O. a quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização, pelos prejuízos de natureza não patrimonial sofridos, pelo que o pedido formulado procederá parcialmente.

No que respeita aos danos patrimoniais peticionados, considerando a matéria de facto dada como provada, não resultou que o arguido tivesse praticado uma acção ilícita e culposa que seja a causa adequada dos danos sofridos, pelo que nesta parte improcede o pedido.


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IV.Decisão

Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido julgar a acusação parcialmente procedente, por provada e, consequentemente:

A) Condeno o arguido O. M., como autor material de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º n.º 1 alínea a) do CP, na pena de 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão.

B) Suspendo a execução da pena de prisão determinada em A) pelo período de 1 (um) ano e 3 (três) meses.

C) Absolvo o arguido O. M. da prática do crime de dano p. p. pelos artigos 272.º, n.º 1, al. c) do Código Penal, de que vinha acusado.

D) Julgo parcialmente procedente o pedido de indemnização formulado pela demandante M. O. (fls. 159) e, consequentemente, condeno o demandado, O. M. no pagamento à demandante da quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais por esta sofridos, absolvendo-o do demais peticionado.

D) Condeno o arguido O. M. no pagamento das custas criminais, fixando a taxa de justiça em 2 (duas) UC.


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Após trânsito, remeta boletim ao registo criminal

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Após a leitura a presente sentença será depositada na secretaria deste Tribunal – art.º 372º n.º 5 do CPP.”

2.1. – Questões a Resolver

2.1.1. – Do Arrependimento do Arguido e da Insuficiência da Matéria de Facto, para a Decisão;

2.1.2. – Da Impugnação Ampla da Matéria de Facto;

2.1.3. – Da Tipicidade da Conduta do Arguido;

2.1.4. – Do Pedido de Indemnização Civil.

2.2. - Do Arrependimento do Arguido e da Insuficiência da Matéria de Facto, para a Decisão

Pretende o arguido que deveria ter sido dado como provado, que o mesmo está arrependido. Como tal matéria é relevante para a escolha e medida da pena, considera ter sido praticada a nulidade da sentença prevista nos arts.º 374º/2 e 379º/1, c), 1ª parte, C.P.P., citando também o disposto no art.º 122º/1 C.P.P. – que se refere porém, às irregularidades.

Ora, em primeiro lugar, deve dizer-se que, compulsadas as respetivas declarações, nunca o arguido se disse arrependido ou pronunciou tal palavra – mesmo durante as suas últimas declarações. E, mesmo que o tivesse feito, uma coisa é o arguido dizer-se arrependido e outra, demonstrar estar efetivamente arrependido o que se demonstra por uma atividade positiva de contrição e auto censura.

Ora, disto não deu o recorrente O. M. quaisquer sinais.

Efetivamente, fez uma confissão parcial dos factos, mas até pouco relevante para a descoberta da verdade material, pois que a maioria dos mesmos tinha suporte documental – os “sms`s” enviados do seu telemóvel.

Para mais, na sua contestação de fls. 196, apenas “ofereceu o merecimento dos autos”, em passo algum referindo o seu arrependimento como facto a provar. Assim, também por aqui não havia que formular um juízo expresso sobre a questão, considerando os mesmos como “provados” ou como “não provados”.

E, como se disse, aquele arrependimento não resultou do julgamento da causa.

Não tinha pois o mesmo de constar dos factos provados ou não provados, pelo que nenhuma nulidade ou irregularidade foi cometida.

Termos em que, improcede nesta parte o recurso apresentado pelo arguido O. M..

2.3. – Da Impugnação Ampla da Matéria de Facto

No seu recurso, pretende também o arguido pôr em causa a matéria de facto, através de impugnação ampla da matéria de facto.

Faz transcrições de depoimentos e declarações na motivação do recurso, que não reproduz nas conclusões.

Ora, como se sabe, constitui Jurisprudência pacífica que são as conclusões do recurso que delimitam o seu objeto, pelo que pelo menos as referências aos depoimentos deveriam também constar das mesmas.

Por outro lado, mesmo da motivação não consta a referência à respetiva localização temporal nos respetivos suportes áudio, como exige o art.º 412º/4 C.P.P. O recorrente não foi convidado a aperfeiçoar o seu recurso, pois a ausência dos elementos referidos nos arts.º 412º/3 e 4), C.P.P. não se situa apenas nas conclusões, mas também na própria motivação do seu recurso (art.º 417º/3, 1ª parte, C.P.P., “a contrario”).

Ora, sabe-se que quando o recorrente quer pôr em causa a matéria de facto fixada deve cumprir o ónus de que trata o art.º 412º/3, b) e n.º 4), C.P.P. Assim, devia ter indicado não só as concretas provas que determinam decisão contrária à recorrida, como também indicar concretamente, as horas e minutos do depoimento/declarações em que foram prestadas.

Isto de forma a, cumprindo o dever de colaboração processual, facilitar ao Tribunal de recurso o acesso às mesmas. O recorrente transcreve algumas dessas declarações, mas insere-as nas declarações prestadas pela assistente no “dia 16/11/2 016, entre as 16:09:36 e as 17:01:20” horas. Do mesmo modo, quando se faz alusão às declarações do arguido, diz-se que as mesmas foram “prestadas em 16/11/2016, entre as 15:34:50 e as 16:09:09. Ou seja: insere-as genericamente, numas declarações que duraram quase uma hora no primeiro caso e cerca de meia hora, no segundo.

Questão que se põe assim, é a do cumprimento ou não do dito ónus.

A jurisprudência e doutrina conhecidas são no sentido da rejeição do recurso – como constitui hoje jurisprudência sedimentada do S.T.J., ocorrendo a omissão quer na motivação, quer nas conclusões não há lugar a convite ao aperfeiçoamento, visto que isso seria conceder um novo prazo, para um novo recurso; esse convite só pode ocorrer, quando a questão consta da motivação, mas não das conclusões.

Como diz Pereira Madeira, “Código de Processo Penal Comentado”, vários Conselheiros, Almedina, Coimbra, 2ª Edição, 2 016,

“Mas isso não o desonera de indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, nomeadamente com referenciação dos concretos pontos de gravação onde se funda para sustentar posição diversa da do tribunal recorrido, com as imposições ora ínsitas no n.º 4 do preceito.“

E, como se decidiu no Ac. S.T.J. 9/3/2006, Simas Santos e no Ac. Relação de Guimarães 25/6/2007, Cruz Bucho, ambos em www.dgsi.pt, o incumprimento daqueles ónus deve levar à rejeição do recurso.

É verdade também, que este próprio Tribunal, preferindo as decisões de mérito às decisões de forma, recentemente entendeu que ainda se poderia conhecer de mérito, não obstante aquela omissão, num caso em que estavam apenas em causa as declarações do arguido e depoimento do ofendido, por ser curta a prova produzida e ser relativamente fácil localizá-la – Proc.º 2 378/14.0PBBRG.G1.

Porém, no caso dos autos estão em causa seis declarações/depoimentos, com o total de cerca de 3 (três) horas – 46.28 + 45.31 + 16.01 + 24.20 + 25.29 + 19.06 + 3.27 minutos.

Não se está assim, perante caso em que a aplicação estrita da lei surja como desproporcionada e quase por capricho, devendo no caso restringir-se o seu âmbito – o que, como naquele Proc.º se disse, se fez tendo em conta o caso concreto e “nos limites”.

Limites que o presente recurso, pela extensão das declarações e depoimentos em causa, já ultrapassa.

Assim e por incumprido o ónus de localização temporal das declarações/depoimentos reproduzidos, improcede – agora que foi ultrapassada a fase do despacho liminar (art.º 420º/1, a), C.P.P.) – também nesta parte, o recurso do arguido.

2.4. – Da Tipicidade da Conduta do Arguido

O arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1, a), C.P.

Provou-se, em súmula, que após período de separação e divórcio, o arguido perseguiu a sua ex-mulher, M. O., desde a residência aos seus locais de trabalho, a injuriou de “puta” e “vaca”, a ameaçou dizendo “qualquer dia estendo-te” e “até te parto os dentes da boca e se estiveres com alguém, faço-lhe o mesmo a ele”, “vou-vos apanhar e vou-vos estender” e “vou-te fazer a vida negra”. Perante terceiros, mandou ainda “sms`s” referindo “a tua tia é uma puta”.

Este comportamento prolongou-se durante cerca de quatro meses.

É verdade que não bateu, mas este comportamento, que apesar de tudo foi reiterado, deixou a ofendida “humilhada, triste e envergonhada”. Isso fê-la andar “perturbada e em estado de alerta, com receio de que o arguido concretizasse os seus intentos”. Ou seja: deixou-a psicologicamente perturbada e instável. O que se reconduz a um “mau trato psíquico”, previsto no art.º 152º/1, a), C.P.

Sustenta o recorrente, que a factualidade provada não tem a gravidade necessária, para que se possa dizer ter cometido o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º C.P. Com efeito, argumenta que os factos praticados não configuram a prática de maus tratos físicos e psíquicos, mas apenas revelam uma pessoa em desespero, pelo “fim de um relacionamento”. E que “esta é uma das fases mais difíceis mais difíceis da vida de quem passa por tais episódios”.

Ora, este crime encontra-se inserto no Código Penal, no Título 1, que diz respeito aos “crimes contra as pessoas” e no Capítulo 3, referente aos crimes contra a integridade física.

Comete-o quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, p. ex. ao cônjuge ou ex-cônjuge ou a pessoa com quem mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro, ainda que sem coabitação, incluindo castigos corporais, privações de liberdade e ofensas sexuais (art.º 152º/1, a) e b), C.P.) – letras em “bold” nossas.

Trata-se pois, de um crime doloso, de resultado e específico próprio ou impróprio, uma vez que é necessária uma especial relação entre agente e ofendido. Nele cabem outros crimes, como os de ofensa à integridade física simples, ameaça, coação, difamação e injúrias, sequestro e coação sexual, de entre outros. Posto é, que a conduta assuma uma maior gravidade, do que a de qualquer um destes crimes, que podem neste caso vir a incluir o primeiro, que é um crime complexo.

Isto porque, o bem jurídico protegido por este tipo legal é a “saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental”, Taipa de Carvalho, em “Comentário Conimbricense ao Código Penal”, Tomo 1, “Coimbra Editora”, 1 999, Coimbra, pág. 332.

De realçar, como diz o mesmo autor, op. cit., a fls. 331,

“Consciente de que nestes domínios (…) as humilhações, os vexames, os insultos, etc., constituem, por vezes, formas de violência psíquica mais graves do que muitas ofensas corporais simples, previu (o legislador), ao lado dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos”.

É que, nestes casos, ainda estará em causa a saúde psicológica ou mental da vítima e até física, sabendo-se que muitas situações de doença ou mal estar têm uma génese psicossomática.

Revertendo para o caso dos nossos autos, arguido e ofendida constituíram um casal durante cerca de vinte e sete anos e separam-se em Novembro de 2 015. Após, o arguido, motivado pelo sentimento de ciúme, começou a controlar os movimentos da ofendida e a persegui-la, injuriando-a, difamando-a e até ameaçando-a.

O arguido agiu motivado pelo ciúme – não se sabe, se fundado ou infundado. Ora e em casos de separação ou divórcio, pode-se dizer que é socialmente tolerável que haja uma ou outra discussão mais agitada e até que se profiram algumas injúrias, nomeadamente através de “palavrões” – que até podem ser punidos, nos termos previstos no art.º 181º C.P. Estes comportamentos menos graves, se bem que desvaliosos – sem prejuízo de se poder demonstrar a veracidade dos factos – não terão a gravidade suficiente para integrar o crime de violência doméstica – art.º 152º/1 C.P. Mas, quando se tornam repetidos atingem outra gravidade e causam outros estragos, na saúde e bem estar dos ofendidos.

É ainda de notar, que este tipo de comportamentos obsessivos e agressivos são altamente imprevisíveis, nunca se sabendo onde poderá chegar a atuação do arguido, que muitas vezes culmina numa situação de homicídio. São pessoas plenamente imputáveis, mas que por virtude de situações ansio-depressivas ou características de personalidade fóbicas, obsessivas, “border-line” ou psicopáticas, que não tanto psicóticas, adotam comportamentos altamente lesivos e de que, muitas vezes, mais tarde se arrependem, não obstante antes não quererem tratamento – embora pareça que, pelo menos antes, o arguido o seguisse.

Também é verdade que alguma culpa há do sistema penal e de saúde, pois pese embora a entrada em vigor da Lei de Saúde Mental (L. n.º 36/98, 24/7), que abriu a possibilidade de internamentos compulsivos, independentemente da prática de crimes – e que já não é assim tão nova – continua a verificar-se que, nestes casos, que são também psiquiátricos, o sistema não tem conseguido cumprir uma questão básica; se alguém parece doente, vai ao Médico. E a esta questão, básica para qualquer “homem médio”, ainda não conseguiu o sistema judicial e de saúde, dar a resposta óbvia – pese embora a situação já tenha evoluído bastante, para melhor. Assim se poderiam poupar muitas vidas e sofrimento humano, com que qualquer cidadão comum já se debateu ou conheceu, na sua vivência.

Serve isto para dizer que estão em causa realidades que não são, à partida, previsíveis e que podem ser muito graves, quer para o ofendido, quer para o próprio arguido.

Não se desconhece a existência de uma corrente jurisprudencial maximalista, para quem o comportamento lesante deve assumir especial gravidade, desconsiderando nomeadamente o crime, quando existe um “relacionamento conjugal deteriorado” – cfr. os Acs. da Relação de Évora, de 30/6/2 011, Ana Brito e de 6/12/2 016, João Amaro ou desta própria Relação de Guimarães, de 2/11/2 015, Manuela Paupério. Estes são casos transitados e que não se podem aqui discutir, embora deva ter-se em conta a linha de pensamento que os determinou.

É que nestas, como em quase todas as questões, cada caso é um caso. E parece-nos demasiado simplista dizer, como o faz o arguido recorrente, que estava em desespero e, por isso, se mostra justificado o seu comportamento. É que o mau trato pode traduzir-se nesta esfera psicológica, em que realmente a ofendida M. O. ficou afetada e isso basta para que, nos termos do disposto no art.º 152º/1 C.P., se preencha a previsão do crime de violência doméstica, como decorre expressamente da leitura deste dispositivo.

Aliás, também aqui se não está desacompanhado de outra via, na Jurisprudência, também atual. Veja-se assim, o Ac., da Relação do Porto, de 11/3/2 015, Pedro Vaz Pato, onde se disse que

“o stalking – perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, causadora de angústia e temor, com frequência motivada pela recusa em aceitar o fim do relacionamento – pode enquadrar-se no crime de violência doméstica – realçando-se ainda que, no nosso caso, se foi além do mero “stalking” ou perseguição constante.

No mesmo sentido na doutrina, ainda Cláudia Coelho e Rui Abrunhosa Gonçalves, “Stalking: uma Nova Dimensão da Violência Conjugal”, em “R.P.C.C.”, A. 17º, n.º 2 (Abril/Junho de 2 007).

Considera-se pois que a conduta do arguido integra o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º/1, a), C.P., improcedendo também aqui, o recurso do arguido O. M..

2.5. – Do Pedido de Indemnização Civil

O arguido foi condenado no pagamento à ofendida, da quantia de 1 500€ (mil e quinhentos euros). Recorre também nesta matéria, por entender que o montante da indemnização é excessivo, exagerado e desproporcional”.

O pedido tinha sido no valor de 8 182.62€ (oito mil, cento e oitenta e dois euros e sessenta e dois cêntimos) e juros. O valor da sucumbência é pois, de 1 500€ (mil e quinhentos euros).

O valor da alçada da 1ª instância (valor inferior ao qual as decisões proferidas são irrecorríveis) é de 5 000€ (cinco mil euros) – art.º 44º/1 (L.O.S.J. – L. n.º 62/13, 26/8).

Nos termos do disposto no art.º 400º/2 C.P.P. só é possível recurso para o Tribunal da Relação no enxerto cível, quando o valor do pedido seja superior ao montante da alçada do Tribunal recorrido (o que sucede no caso) e o da sucumbência superior a metade deste valor (o que já não sucede no caso dos autos, pois a decisão só seria recorrível se o recorrente tivesse decaído em mais de 2 500€ (dois mil e quinhentos euros) e, no caso, só foi condenado em 1 500€ (mil e quinhentos euros).

Razões por que, se não admite o recurso do arguido quanto à sua condenação parcial, no pedido cível enxertado.


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Termos em que, se decide

Decisão

a) não admitir o recurso interposto pelo arguido O. M., quanto à sua condenação parcial, no pedido cível enxertado.

b) Julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelo arguido O. M. quanto à matéria crime e, por via disso, manter a decisão recorrida.

c) Custas pelo recorrente, com 3 (três) U.C.`s de taxa de justiça – arts.º 513º C.P.P., 8º/9 e tabela 3), anexa ao R.C.P.

d) Notifique.

(Pedro Cunha Lopes)

(Fátima Bernardes)

1. Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume I, Coimbra Editora, 1999, pág. 332.
2. In, Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, AAFDL, 2007, pág. 110.
3. In, Sobre o crime de maus-tratos conjugais, Revista de Direito Penal, vol. I, n.º 2, ano 2002, ed. da UAL, págs. 32-33 e 42.
4. In, Violência Doméstica, Novo Quadro Penal e Processual Penal, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, 1.º semestre de 2008, n.º 8, pág. 305.
5. cf. Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, 2.ª ed., 2.º vol., pág. 181, e, no mesmo sentido, Maria Manuela Valadão e Silveira, ob. cit., pág. 33.
6. In, Dos maus-tratos a cônjuge à violência doméstica: um passo na tutela da vítima, RMP, ano 27, Julho-Setembro 2006, n.º 107, pág. 97.
7. In, Agressores conjugais: investigar, avaliar e intervir na outra face da violência conjugal, RPCC, Ano 14, n.º 4, Outubro-Dezembro 2004, págs. 542-543.
8. cfr. BMJ 335.º/5-22.
9. in Colectânea de Jurisprudência, 2003, tomo V, pág. 219 e ss.
10. ob. cit., pág. 334.
11. In, Código Penal Português – Anotado e Comentado, 17.ª ed., 2005, Almedina, pág. 551, em anotação ao referido art. 152.º, na redacção resultante da revisão operada pelo DL 48/95, de 15-03, alterada pela Lei 7/2000, de 27-05.
12. Direito Penal Especial – crimes contra as pessoas, Quid Juris, 2005, pág. 288
13. ob. cit., pág. 227.
14. Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, I, Verbo, 2001, pág. 47.
15. ob. cit., pág. 310.
16. Proc. n.º 02P3596, acessível no sítio www.dgsi.pt/jstj
17. ob. cit., pág. 341.
18. cfr. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª Edição, vol. I, pág. 517.