Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
11/15.1GAAMR.G1
Relator: JORGE BISPO
Descritores: JULGAMENTO ARGUIDO AUSENTE
RECURSO INTERPOSTO PREMATURAMENTE
TEMPESTIVIDADE
FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
NATUREZA GROSSEIRA FALSIFICAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/25/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Enquanto o arguido julgado na ausência ao abrigo do art. 333º, n.ºs 2 e 3, do CPP não for notificado da sentença condenatória, o recurso interposto pelo seu defensor não deve ser admitido e, sendo-o, não pode ser objeto de apreciação pelo tribunal superior.
II) O que, todavia, não significa que tal recurso, prematuramente interposto, seja extemporâneo e rejeitado, devendo-se antes aguardar pela efetivação da notificação da sentença ao arguido, aproveitando-se o ato praticado pelo seu defensor, a não ser que o arguido lhe retire a eficácia termos previstos no art. 63º, n.º 2, do CPP ou apresente novo requerimento de interposição de recurso.
III) Embora não tenha uma regulamentação legal específica, a prova indireta ou indiciária poderá afastar a presunção de inocência e servir de base a uma condenação desde que concorram as seguintes condições: - uma pluralidade de factos-base ou indícios (embora possa bastar apenas um, especialmente relevante), que sejam graves, precisos e concordantes; - alcançados a partir de prova direta (testemunhal, pericial, documental, etc.), com observância dos requisitos de validade do procedimento probatório; - carácter periférico dos factos-base relativamente ao facto a provar; - inter-relacionação entre os factos-base; - racionalidade do juízo de inferência, conforme com as regras da vida e da experiência comum ou com base em conhecimentos técnicos ou científicos comummente aceites; - expressão na decisão da motivação de como se chegou à inferência.
IV) A natureza grosseira, ou não, da falsificação de documento depende de não ter, ou ter, aptidão para enganar terceiros, o que implica uma avaliação consoante o fim a que se destina, sendo, pois, as concretas circunstâncias do caso que permitirão concluir, ou não, pela natureza grosseira da falsificação, por só elas poderem revelar a possibilidade de a viciação atingir o bem jurídico protegido pela incriminação.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum com intervenção de Tribunal Coletivo que, com o NUIPC 11/15.1GAAMR, corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga - Juízo Central Criminal de Braga (Juiz 1), por acórdão proferido e depositado a 06-11-2019, foi o arguido J. B. condenado pela prática, em coautoria material e concurso efetivo, de um crime de roubo, previsto e punido (p. e p.) pelo art. 210.º n.º 1 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, e um crime de falsificação de documento agravado, p. e p. pelos arts. 256.º, n.º 1, als. b), e) e f), e n.º 3, e 255.º, al. a), 2.ª parte, ambos do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova.

2. Inconformado, o arguido interpôs o presente recurso, formulando as conclusões que a seguir se transcrevem[1]:
«EM CONCLUSÃO

I. Relativamente aos factos constantes da matéria assente, no que concerne ao alegado crime de dano não deviam ter constado do acórdão recorrido.
II. O Acórdão recorrido deu como provado os factos seguintes: III. 5. Imediatamente a seguir, entrou, apeado e de forma apressada, o J. S., também vindo da mesma zona de entrada onde entrou o veículo conduzido pelo ofendido.
IV. 6. Em acto contínuo, entrou, pela mesma entrada, o veículo de marca BMW, modelo 187 (Série 1), de cor cinza, conduzido pelo arguido J. B., cuja matrícula aposta não coincidia com a verdadeira por ter havido uma alteração quanto aos dois primeiros números que a compunham.
V. 13. Nesse seguimento, surgiu o tal J. S., o qual saiu do interior da viatura conduzida pelo arguido J. B. e que este imobilizou a pouca distância do veículo dos ofendidos, estabelecendo diálogo com estes, disponibilizando-se para os ajudar nessa mudança do pneu. VI. 14. Em seguida, o tal J. S. dirigiu-se à ofendida, dizendo-lhe que a bolsa que trazia estava a cair, tendo, em acto continuo, alcançado a bolsa que esta transportava, puxando-a com força, sendo que apesar de esta ter resistido por alguns instantes, logrou apropriar-se da mesma, causando àquela uma dor física.
VII. 15. Acto contínuo, o arguido J. B. retomou a marcha do veículo por si conduzido de forma a alcançar o J. S., no qual este entrou de forma rápida, iniciando-se a fuga de ambos.
VIII. 16. O veículo usado e conduzido pelo arguido J. B. ostentava uma matrícula distinta da sua (que é a matrícula LB), com uma alteração nos seus dois primeiros números, de modo a dificultar a sua identificação.
IX. Porque a prova foi documentada nos termos e ao abrigo do artº 412º nº 3 e 4 do C.P.P., consideramos incorretamente julgados os pontos de facto supra referidos que impõem decisão diversa da recorrida e devem ser renovadas.
X. [em branco]
XI. Ora resulta do depoimento das testemunhas ouvidas em audiência discussão e julgamento (depoimento gravado no sistema áudio, conforme ata de 25 de Setembro de 2019 das 11h18 às 12h06m testemunha M. L.), que a mesma confrontada com o facto de afirmar que eram dois homens que estavam numa viatura, mas que inicialmente referiu ser uma mulher que ía a conduzir, referiu que: «nunca disse isso, e foi a GNR que o escreveu no auto de denúncia».
XII. Por isso foram extraídas as devidas certidões para instruir processo crime por falsas declarações cf. ata de 25 de Setembro a fls., dos autos. (declarações prestadas entre as 11h44 e as 12h06m).
XIII. Posteriormente, em ata de 09-10-2019 pelas 9h58 e as 10h06, manteve as declarações prestadas em julgamento mas já assumiu que na altura referiu ser uma mulher que ía a conduzir com camisola cor de sulfato, por ter tido «a sensação que foi a mesma que viu no banco atrás de si quando estava dentro da CAIXA ... a encostar-se a ela» e a ver tudo o que fazia.
XIV. O mesmo sucedeu com a testemunha M. A. conforme ata de 25 de Setembro de 2019 das 12h08 às 12h30m.
XV. Que também inicialmente referiu ser uma mulher que ía a conduzir a viatura de onde saiu o tal J. S., referindo que nunca disse isso, e foi a GNR que o escreveu no auto de denúncia.
XVI. Por isso também foram extraídas as devidas certidões para instruir processo crime por falsas declarações cf. ata de 25 de Setembro a fls., dos autos. (declarações prestadas entre as 12h18 e as 12h30m).
XVII. Ou seja: na queixa apresentada no dia dos acontecimentos ambos declararam, ao pormenor, que a pessoa que ía no veículo que deu a fuga ao tal senhor que lhe «pegou na bolsa e fugiu a correr em direção a um VEÍCULO DE COR PRETO (…) verificou que era conduzido por uma SENHORA DE IDENTIDADE DESCONHECIDA, COR BRANCA, DE CABELO CURTO, ALOURADO, QUE VESTIA CAMISOLA DE COR “SULFATO” (…).
XVIII. Mas em julgamento já declararam que o veículo era conduzido por 1 homem alegadamente o arguido ora recorrente?!... XIX. Ora face a esta discrepância de declarações e na dúvida instalada sobre se efetivamente os ofendidos viram uma mulher ao volante na dita viatura (aqui independentemente da cor do mesmo), ou de um homem que, afinal o tribunal afirma ser o ora recorrente, fundamenta o tribunal o seguinte:
XX. “M. L., a qual descreveu tudo quanto se passou e procurou explicar as razões que a levaram a pensar, numa primeira ocasião, que um dos participantes era uma mulher para depois afirmar que se tratavam, afinal, de dois homens. Assim, explicou que levantou um cheque no valor de cerca de 1.900€ no balcão da Caixa ... Amares, recordando-se de ter visto “um senhor de boné ao contrário” no interior do balcão, que depois voltou a rever mais tarde, aquando da mudança do pneu, bem como uma senhora de camisola “cor de sulfato” que esteve junto dela no balcão. Mais disse que dali se dirigiu, juntamente com o seu marido, ao “Intermaché” para aí efectuar algumas compras e que, quando foi retomada a marcha do veículo o seu marido apercebeu-se que algo de anormal se passava com o carro, razão que o levou a imobilizar a viatura. Quando estava prestes a mudar o pneu do carro, que estava “furado”, um indivíduo que tinha visto no exterior da CAIXA ..., o qual tinha saído de uma viatura que ali foi imobilizada (onde se encontrava um indivíduo com “boné ao contrário” e que tinha também visto na CAIXA ...), ofereceu-lhe ajuda, ao que o marido recusou. Seguidamente, tal indivíduo dirigiu-se junto se si e puxou-lhe a carteira, pondo-se imediatamente em fuga na posse daquela. Confrontada com o teor de fls. 52 e 117 onde afirma que se tratava de uma mulher para afinal vir dizer já bem mais tarde que se tratava de um homem, procurou explicar tal incongruência, declarando de forma peremptória que se trataram de dois indivíduos do sexo masculino. Finalmente, confirmou os bens que lhe foram retirados. XXI. - M. A., marido da ofendida, o qual confirmou as declarações da mulher quanto aos factos que presenciou, nomeadamente àquilo que se passou quando estava a mudar o pneu da sua viatura. Assim, explicou que viu dois homens no interior de um veículo e que um deles saiu da viatura e lhe ofereceu ajuda, que declinou, sendo que em seguida deu um “esticão à mulher” e lhe retirou a bolsa.” – o sublinhado é nosso - .
XXII. Ora destes depoimentos, como se referiu, foram extraídas certidões de fls., 52, 54, 117 e 120, porquanto as declarações prestadas perante OPC e reproduzidas em plena audiência, no que concerne à pessoa que conduzia o carro que ajudou à fuga do tal J. S. interveniente no aludido roubo, não podia ser a mesma que em julgamento foi afirmado pelos mesmos, na medida em que se tratava de pessoa de género diferente…
XXIII. Inicialmente viram uma mulher a conduzir, indicando até algumas características, para depois já ser o arguido ora recorrente, que já envergava, note-se um «boné ao contrário», em contradição com os fotogramas a fls., dos autos.
XXIV. Por isso à pergunta sobre se quem ía no carro era um homem ou uma mulher, o ofendido respondeu: «ora para dentro do carro eu não via, os vidros eram escuros e eu não via para dentro» (ata de 09-10-2019 minuto 1,42 às 10h07m47s às 10h08).
XXV. Ora o Tribunal apesar de ter duas versões diferentes e antagónicas sobre se quem ía a conduzir o carro que deu a fuga ao tal J. S. era o arguido ou uma «tal senhora» referida em fase de inquérito, optou pelas declarações em julgamento, pois foram feitas «simplesmente» de forma perentórias e não por ter justificado as ditas discrepâncias.
XXVI. Aliás, a esse propósito é o tribunal que justifica tais contradições com o visionamento das imagens, quer na CAIXA ... quer no Supermercado ..., como se os declarantes tivessem visto algo, para além daquilo que PENSARAM!... «as razões que a levaram a pensar, numa primeira ocasião».
XXVII. A ÚNICA CONCLUSÃO que se pode extrair, é que os declarantes nada viram sobre o condutor do aludido veículo que deu a «fuga» ao tal J. S. ou, então, que efetivamente era uma mulher que ía a conduzi-lo como ambos o referiram no inquérito no PRÓPRIO DIA DOS FACTOS.
XXVIII. Mas para «sanar» esta dúvida insanável, o tribunal recorrido, optou por valorar ambas as declarações justificando as discrepâncias com base em juízos de valor e opiniões que nem os mesmos souberam justificar.
XXIX. A verdade é que os ofendidos alteraram a sua versão após serem confrontados com o visionamento de imagens e fotogramas pelos OPC que levaram os mesmos a dizerem que quem os «roubaram» foram dois homens, um por esticão e o outro por dar «boleia» ao «ladrão»…
XXX. Ora na ausência deste facto indesmentível, posto que só através das declarações dos ofendidos/declarantes, se entendeu pôr o recorrente na cena do roubo (conduzindo o dito veículo), contrariando o que dito foi logo no início do inquérito.
XXXI. Ou seja: o Tribunal face à enorme discrepância entre o que dito foi em inquérito e em julgamento, optou, face à restante prova e mesmo sabendo que MENTIRAM (protegeram essas declarações), sempre em prejuízo do principio in dúbio pró réu.
XXXII. O tribunal a quo cometeu erro notório na apreciação da prova pois, tendo feito constar dos factos provados as declarações prestadas pelos assistentes, enquanto testemunhas no inquérito e declarantes na audiência de julgamento, dadas as contradições existentes entre elas em aspectos que não são meramente circunstanciais relativamente ao crime de roubo e a advertência que lhes foi feita, relativa a tais contradições, não poderiam ter sido considerados provados os factos vertidos nos números 13. e 15. (na parte relativa à identificação do ora recorrente), dos factos provados no acórdão, tendo assim incorrido em erro notório na apreciação da prova na sequência do que, deve ser modificada a decisão proferida sobre a matéria de facto, passando aqueles factos provados a constar da enumeração dos factos não provados do acórdão.
XXXIII. Na verdade, do teor das declarações prestadas nos dois momentos processuais distintos, verificam-se duas versões antagónicas e incompatíveis sobre a mesma realidade, logo desconformes com o que aconteceu;
XXXIV. Pelo que, necessária e forçosamente, os ofendidos/declarantes, num desses momentos, narraram factos que divergem do acontecido e percecionados por si;
XXXV. Os ofendidos faltaram conscientemente à verdade ou no dia em que prestaram depoimento em sede de inquérito ao serem inquiridos como testemunhas, ou no dia em que foram ouvidos em sede de audiência de julgamento como declarantes;
XXXVI. Ora ofendidos agiram do modo descrito, de forma livre voluntária e consciente querendo com a sua conduta subtrair-se, como subtraíram, ao dever de prestar declarações com verdade;
XXXVII. Resulta da motivação de facto do acórdão que a decisão proferida sobre a matéria de facto, na parte em que teve por objecto os factos provados supra referidos, se ficou a dever ao entendimento que o depoimentos prestados pelos declarantes se mostrou face às discrepâncias isentos e credíveis em julgamento, posto que perentórios, em afirmar que eram dois homens que iam no carro aquando do roubo, sendo um deles o ora recorrente.
XXXVIII. Entre os vícios da decisão, previstos no art. 410º, nº 2 do C. Processo Penal, conta-se o erro notório na apreciação da prova.
XXXIX. Como os demais vícios, o erro notório respeita à estrutura interna da decisão penal por isso que, nos termos da lei, a sua demonstração deve resultar do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum.
XL. Os factos que constam dos nºs 13º e 15 dos factos provados, face ao supra exposto é evidente que ele, não obstante o que tem de conclusivo, deverá passar a constar dos factos não provados, excepção feita ao seu segmento em que se refere ao tal J. S..
XLI. Na verdade, mesmo admitindo como fez o tribunal recorrido que a confusão teve a ver com a tal cor da camisola do J. S. e da senhora na CAIXA ..., jamais essa imagem poderia ser estendida ao recorrente, que nunca anteriormente a usou e muito menos que não é consabidamente nenhuma «senhora»…
XLII. Em suma, os dois depoimentos das testemunhas em fase de inquérito e posteriormente como declarantes são incompatíveis no que respeita a ter ou não visto quem ía a conduzir o veículo que deu a fuga ao tal J. S., bem como os dois depoimentos das testemunhas são incompatíveis no que respeita a ser uma «senhora» ou um homem que conduzia tal veículo e aqui independentemente da indumentária que usava.
XLIII. Assim, deve ser eliminado dos pontos 13 e 15 dos factos provados e deve passar para os factos não provados, com a seguinte redacção:
XLIV. In casu, tendo ficado demonstrada a existência de contradições – versando os aspectos identificados em que antecede – entre os depoimentos prestados por cada um dos declarantes estando provado que o Mmo. Juiz que presidiu ao julgamento deste processo comum colectivo advertiu ambos os declarantes (ata de 25.09.2019), da existência de tais contradições e tendo os mesmos mantido o que tinham prestado no julgamento – pontos 13 e 15 dos factos provados – ( mesmo após a requerida retratação), as regras da lógica e da razoabilidade, na ausência de outros elementos de sentido contrário, impõem a conclusão de que, salvo melhor opinião, num dos dois momentos – depoimento em inquérito e depoimento em julgamento – faltaram à verdade, o que quiseram, sabendo que estavam obrigados a observá-la nas declarações prestadas.
XLV. Na verdade, embora tenham prestado declarações, que sabiam não corresponder à verdade na audiência de julgamento – seguindo a mesma linha de raciocínio, teríamos que, prestaram declarações conformes com a verdade no inquérito – deve reconhecer-se que, face aos factos objetivos provados, não existe regra de normalidade que sustente o facto acusado… que era o ora recorrente a conduzir o citado veículo e não uma senhora.
XLVI. Mas mais sintomático ainda, é que toda a prova carreada para os autos foi com base em fotogramas e visionamento de imagens, relativamente ao crime de dano (já extinto como se referiu), e falsificação de documento.
XLVII. Já sem entrar na cor do carro «preto» e não cinzento, o certo é que não foi feito nenhum reconhecimento presencial ao arguido ora recorrente nos termos do artigo 147º do CPP.
XLVIII. Ou seja, mesmo admitindo que existiu um reconhecimento fotográfico pelo OPC aquando das imagens recolhidas na CAIXA ... e no supermercados..., que sem margem para dúvidas ou não levaram os ofendidos a mudar a versão dos acontecimentos, então, os mesmos ou mesmo o tribunal recorrido deveria ter procedido nos termos do disposto no artigo 147º do CPP e, não o tendo feito, independentemente, da justificação pelo mesmo das discrepância assinaláveis, no sentido de justificar se era um homem ou uma mulher a conduzir o veículo imediatamente após o aludido roubo alegadamente efetuado pelo J. S., o nº 7 do mesmo preceito legal, refere inequivocamente que: «não valer como meio de prova» se não obedecer ao disposto neste artigo.
XLIX. Ora nada disto foi feito pelo que, sem prejuízo do supra alegado, não podia o tribunal recorrido dar como provado que era efetivamente o recorrente a conduzir o veículo no crime perpetrado pelo J. S. (como coautor), sem que se cumprisse os mecanismos legais supra expostos…
L. A livre convicção do tribunal tem de ser com base na Lei e não numa mera convicção pessoal, e com base em prova somente circunstancial como a que antecedeu…
LI. Nenhum dos ofendidos anteriormente tinham visto o arguido ora recorrente, na fase de inquérito referiram que era uma «senhora» que conduzia o veículo que ajudou a fuga do «Tal J. S.», em julgamento referiram que nunca disseram isso, foi o OPC que «inventou», daí a extração de certidão mais do que dizerem que eram dois homens, e o tribunal face a tudo isto não ordenou o reconhecimento presencial… mas além das testemunhas/declarantes existe mais algum meio de prova que ponha o arguido ora recorrente naquele lugar do crime?!.. NÃO SEGURAMENTE.
LII. Então devia ter-se utilizado o mecanismo do artigo 147º do CPP para dissipar as dúvidas, quanto a nós, para já insanáveis, existentes quanto à coautoria do crime de roubo, o que não foi feito. LIII. Se o recorrente houver que ser condenado pelo crime de roubo que o seja de forma cabal, legal e sem margem para duvidas e não com as discrepâncias e incongruências patentes na fundamentação do douto acórdão recorrido e com violação do principio in dubio pro reu.
LIV. O art. 147º do C. Processo Penal trata do reconhecimento de pessoas. Nele podemos distinguir três modalidades: o reconhecimento por descrição ou intelectual, o reconhecimento presencial e o reconhecimento por fotografia, filme ou gravação.
LV. Trata-se, portanto, de uma proibição de valoração de prova, isto é, o reconhecimento é inválido e não pode, por isso, ser usado no processo designadamente, para fundamentar a decisão.
LVI. Prova do que tudo acima se expôs é que o tribunal para condenar o ora recorrente e face as incongruência das declarações dos assistentes na sua motivação de facto refere que: «Na verdade, tais complicações não foram impeditivas de que com relação a esta materialidade, tenha prestado as suas declarações de um modo suficientemente claro, objectivo e consistente (em conjugação com a visualização das imagens e não apenas dos fotogramas -».
LVII. Donde salvo melhor opinião o acórdão é nulo por ter utilizado prova que não podia valorar nos termos supra expostos, violando o disposto no artigo 147º do CPP.
LVIII. Ora interpretou o citado artigo no sentido da desnecessidade de se efetuar um reconhecimento presencial com base na livre apreciação da prova pelo tribunal previsto no artigo 127º do CPP violadora do artigo 32º nº 1 da CRP o que vai desde já alegado para os devidos e legais efeitos.
LIX. Ora, no caso em que as matrículas tinham apostos material sintético autocolante por cima dos números e letras, essa alteração resultou de tal modo imperfeita que, para um qualquer observador medianamente conhecedor e informado, tornava-se imediatamente percetível que a letra e dígito alterados não correspondiam aos originais.
LX. Ora não constando da acusação qual a alteração que consta da matrícula alegadamente falsa ou alterada não podia o arguido ser condenado.
LXI. Aliás, neste propósito existe nos termos do disposto do artigo 410º nº 2 al. a) do CPP insuficiência para a decisão da matéria de facto, porquanto a acusação limita-se a dizer que: “O veículo usado e conduzido pelo arguido J. B. ostentava uma matrícula distinta da sua (que é a matrícula LB), com uma alteração nos seus dois primeiros números, de modo a dificultar a sua identificação”.
LXII. Desde já vai arguida este vício e nulidade.
LXIII. Quanto ao arguido J. B., DEVERIA A PENA EM CONJUNTO SER REDUZIDA EM CUMULO PARA OS 2 ANOS DE PRISÃO SUSPENSA NA SUA EXECUÇÃO.
LXIV. O tribunal não atendeu neste aspeto que as vitimas foram totalmente ressarcidas e por via disso e nos termos do disposto no artigo 72º nº 2 al. c) do CPP a pena especialmente atenuada pelo que violou tal dispositivo legal.
LXV. O Tribunal por erro de interpretação violou as disposições acima indicadas, nomeadamente, os artigos 23º nº 2, 40º, 70º 256º nº 1 als. b) e) e 3 do CP e os artigos 16º, 33º, 147º, 368º nº 2, 374º e 379º nº1 al. a) e c) e 2 do CPP.

Nestes termos e nos melhores de direito deve o recurso ser considerado procedente, por provado, e, consequentemente, o douto acórdão recorrido substituído, por outro, ainda mais douto, absolvendo o arguido do crime de que foi condenado, reduzindo a pena ou anulando parcialmente o julgamento para a realização do disposto no artigo 147º do CPP, assim se fazendo a sã e habitual Justiça!»

3. A Exma. Procuradora da República junto da primeira instância respondeu ao recurso, formulando no termo da sua contramotivação as seguintes conclusões (transcrição):
«A. Falece, in totum, a motivação do recorrente na invocação de um qualquer vício de erro notório na apreciação da prova, ou de insuficiência da matéria de facto para a decisão, pois que não merece qualquer censura o julgamento da matéria de facto feita na decisão recorrida, nada havendo a apontar à formação da convicção do tribunal a quo, e inexistindo de todo em todo qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova.
B. Aliás não assiste qualquer razão ao recorrente quanto às deficiências apontadas, sendo que não só não se verificam quaisquer dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P., como é inquestionável não ter havido qualquer das violações alegadas.
C. Inexiste, bem assim, violação do princípio in dubio pro reo, uma vez que tal princípio só intervém em caso de dúvida por parte do julgador, sendo que o tribunal a quo, ao decidir como decidiu, não o fez num estado de dúvida, resultando evidente que o tribunal se considerou cabalmente esclarecido e sem dúvidas, inexistindo qualquer motivo para ter a mínima dúvida.
D. Inexiste bem assim qualquer nulidade que cumpra conhecer e sanar, inexistindo qualquer cabimento à invocada nulidade por violação do disposto no art. 147.º do C.P.P. dado não ter sido produzida e muito menos valorada pelo tribunal a quo qualquer prova por reconhecimento pessoal.
E. A decisão ora posta em crise perfila-se como absolutamente correta e ajustada à matéria de facto dada por verificada no circunstancialismo concreto apurado, e perfeitamente enquadrada em tipologia penal, sendo certo que o quantum das penas parcelares fixadas relativamente a cada um dos crimes e a pena única apurada a final se apresenta não só ajustado e proporcional como ainda perfeitamente legal e correto, tendo sido devidamente ponderados os fins e limites das penas no quadro do binómio culpa-ilicitude dos factos, e os princípios da prevenção geral e especial ressocializadora.
F. Não merecendo, assim, o douto acórdão em análise qualquer reparo, deve o mesmo ser plenamente confirmado.»
4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, em que conclui que «[d]everá o recurso do arguido ser rejeitado por intempestividade, pois que, tendo sido julgado nos termos do art. 333.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, ou seja, na sua ausência, a decisão que o condenou foi-lhe notificada pessoalmente, através de contacto pessoal em data posterior à entrada do recurso em juízo, sendo que o prazo para tal só se inicia após tal notificação se concretizar, conforme previsão do referido art. 333.º, no seu n.º 5.».
5. Dado cumprimento ao disposto no art. 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o recorrente respondeu a esse parecer, defendendo a improcedência da questão prévia da intempestividade do recurso, porquanto, em suma, toda a jurisprudência citada pelo Ministério Público, nomeadamente a do Tribunal Constitucional, vai no sentido de que deve ser rejeitado o recurso se o arguido não foi, ainda, pessoalmente notificado para recorrer, sendo que, no caso dos autos, o despacho de admissão do recurso só ocorreu após a notificação do acórdão ao mesmo, pelo que a interpretação das normas em apreço com o sentido defendido pelo Ministério Público é inconstitucional por violação do direito ao recurso previsto no art. 32º, n.º 1, da Constituição, o que invoca. Assim, tendo o arguido sido notificado pessoalmente do acórdão em data posterior à interposição do recurso, o qual apenas foi admitido posteriormente a essa notificação, não deve o mesmo ser rejeitado.
6. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência, de acordo com o art. 419º, n.º 3, al. c) do mesmo código.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. QUESTÃO PRÉVIA (TEMPESTIVIDADE DO RECURSO)

Previamente ao conhecimento das questões levantadas pelo recorrente, há que apreciar a questão da tempestividade do recurso, suscitada no parecer do Ministério Público nesta Relação, cuja eventual procedência deixará aquelas outras prejudicadas.
Defende o Exmo. Procurador-Geral Adjunto que o recurso deve ser rejeitado com fundamento em ser intempestivo, porque tendo o arguido ter sido julgado na sua ausência, nos termos previstos do art. 333º, n.º 2, do Código de Processo Penal, diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer menção, apenas foi notificado do acórdão condenatório, através de contacto pessoal, em data posterior à entrada do recurso em juízo, sendo que o prazo para recorrer só se inicia após tal notificação.
Vejamos se assim se deve entender.

Para apreciação desta questão prévia, importa ter presentes as seguintes ocorrências processuais que se retiram dos autos:

- A audiência de julgamento, para a qual o arguido se encontrava regularmente notificado, realizou-se na sua ausência, ao abrigo do disposto no art. 333º, n.º 2, não tendo ele comparecido a nenhuma das sessões que tiveram lugar, incluindo aquela em que foi lido o acórdão, no dia 06-11-2019, o qual foi depositado na mesma data (cf. atas de fls. 3829 a 3832, 3840 a 3842 e 3881 a 3883 e declaração de depósito de fls. 3884);
- O requerimento de interposição do recurso foi apresentado, pelo Exmo. mandatário do arguido, a 11-12-2019 (cf. fls. 3888);
- O arguido apenas foi notificado do acórdão, por contacto pessoal, a 05-01-2020 (cf. certidão de fls. 3919);
- O recurso foi admitido pelo despacho proferido a 30-01-2020 (cf. fls. 3925).
É inquestionável que, em face do regime legal em vigor, concretamente do n.º 5 do art. 333º, o arguido julgado na ausência nos termos dos n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo tem de ser notificado pessoalmente (por contacto pessoal) da sentença, conforme, aliás, orientação da extensa jurisprudência citada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer[2].
Como inequívoco é também que apenas com essa notificação se conta o prazo para o arguido recorrer da sentença, como expressamente refere a parte final no n.º 5 do art. 333º, acrescentando o n.º 6 que nessa notificação o arguido é expressamente informado do direito a recorrer da sentença e do respetivo prazo.
Ademais, o n.º 10 do art. 113º exige que a notificação da sentença seja feita quer ao arguido quer ao seu advogado ou defensor, contando-se o prazo para a prática de ato processual subsequente a partir da data da notificação efetuada em último lugar.
Exigência essa que é justificada pela necessidade de garantir um efetivo conhecimento do conteúdo da sentença por parte do arguido, de forma a disponibilizar ao seu mandatário ou defensor todos os dados indispensáveis para, em consciência, este decidir se deve interpor recurso e em que termos o deve fazer.
Sendo, pois, incontroverso que o prazo para o arguido recorrer da sentença se inicia com a sua notificação da mesma, suscita-se, todavia, a questão de saber se o recurso interposto pelo mandatário ou defensor do arguido julgado na ausência, antes de este se encontrar notificado da sentença, deve ser rejeitado por intempestivo, por ainda não se ter iniciado o prazo para a sua interposição, como in casu defende o Exmo. Procurador-Geral Adjunto.
Assim foi decidido nos acórdãos da Relação de Évora de 08-05-2018 e da Relação de Lisboa de 28-01-2014, bem como nas decisões sumárias da Relação de Coimbra de 10-05-2017, 15-05-2013, 21-03-2012 e 08-02-2012[3], que se pronunciaram pela intempestividade do recurso, abstendo-se de o conhecer ou rejeitando-o com esse fundamento.
Idêntica posição é assumida no Código de Processo Penal, Comentários e Notas Práticas, da autoria dos Magistrados do Ministério Público do Distrito Judicial do Porto[4], ao referirem que «o termo inicial do prazo do trânsito em julgado da sentença resultante de audiência, inclusive a leitura, que decorreu sem a presença do arguido só começa a correr com a sua notificação ao próprio, o que significa que o recurso que tenha sido interposto pelo seu defensor não pode ser admitido, por manifesta intempestividade.».
Com relevância para a questão que nos ocupa, mencione-se ainda o seguinte excerto da fundamentação utilizada no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-10-2003[5] para rejeitar, por intempestividade, um recurso para fixação de jurisprudência interposto antes de transitado em julgado o acórdão recorrido:
«(…) não é exato pretender-se que o prazo perentório só estabelece o seu termo ad quem (…), podendo ser validamente antecipada a prática do ato para antes da ocorrência do termo a quo (…).
Com efeito, «os prazos perentórios estabelecem o período de tempo dentro do qual o ato pode ser praticado (terminus intra quem). Se o ato não for praticado no prazo perentório, também chamado preclusivo, não poderá já, em regra, ser praticado. Exemplos de prazo perentório são os prazos para arguir nulidades e irregularidades, requerer a instrução ou interpor recursos.» (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, pág. 37, no mesmo sentido Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, III, pág. 77-8).
Esses prazos representam, pois, o período de tempo dentro do qual podem ser levados a efeito os respetivos atos, o referido terminus intra quem, e a sua fixação funciona como instrumento de que a lei se serve em ordem a levar as partes a exercer os seus poderes-ónus segundo um determinado ritmo, a adotar um determinado comportamento processual e, consequentemente, praticar o ato dentro dos limites de tempo que lhe são assinalados (cfr. Anselmo de Castro, op. cit., pág. 78) e não do limite final.»
Todavia, ao invés do que se verificou em todas as situações objeto das decisões das Relações supra referidas, em que o arguido não chegou a ser notificado da sentença, no caso vertente, posteriormente à interposição do recurso pelo Exmo. advogado do arguido (em 11-12-2019), este foi notificado do acórdão (em 05-01-2020), só depois disso tendo sido admitido o recurso (em 30-01-2020).
Mesmo em situações como a dos autos, em que o arguido chegou a ser notificado da sentença, já depois da interposição do recurso, os acórdãos desta Relação de Guimarães de 22-10-2012 e da Relação do Porto de 07-07-2010[6] decidiram-se pela rejeição do recurso, por extemporaneidade.

Todavia, no primeiro deles foi lavrado um voto de vencido, manifestando a opinião de que seria de conhecer do objeto do recurso, do seguinte teor:

«(…) o prazo para a interposição de recurso é um «prazo perentório». Estes são aqueles cujo decurso extingue o direito de praticar o ato (art. 145 nº 3 do CPC). Através deles é possível determinar o momento a partir do qual o ato já não pode ser praticado.
A existência deste tipo de prazos prende-se com os valores da segurança e certeza do direito. Uma vez iniciado o processo, por regra, para a prática de cada ato, é estabelecido um limite temporal, sob pena de o respetivo direito precludir.
Sendo um prazo final, afigura-se-me que não há alguma razão, relacionada com os fins visados pela norma, que impeça a interposição do recurso antes de iniciada a contagem do prazo. É um comportamento processual que em nada afeta os fins para que o prazo foi estabelecido, nomeadamente a celeridade processual ou o direito ao contraditório. Dele não resulta qualquer prejuízo para quem quer que seja, nomeadamente para os outros sujeitos processuais, que não ficam limitados no direito à resposta. Na realidade, o que se visa com a fixação do prazo para a interposição do recurso é impedir o arrastamento temporal do processo e a incerteza daí decorrente. Não é criar limites ao direito ao recurso (art. 32 nº 1 da CRP), com argumentos formais, sem razões substantivas, para se conseguir uma decisão mais justa ou mais célere.»

Também na decisão sumária desta Relação de 16-05-2016[7] se refutou o entendimento da extemporaneidade do recurso, por se considerar que o mesmo, «(…) para além de não ter correspondência na letra da lei, não é razoável, posto que penaliza o advogado diligente, privilegiando o formalismo inútil em detrimento dos princípios da economia e celeridade processuais, da instrumentalidade do processo e da efetividade da tutela jurisdicional. Na verdade, a preclusão é a consequência que a lei prevê para o incumprimento de prazo perentório, supondo, portanto que este tenha decorrido (cfr. artº 145º, 3 do CPC ex vi do artigo 104.º, n.º 1 do CPP e a anotação de Lebre de Freitas e Outros no CPC, vol I, 1ª ed, p. 254); A preclusão temporal, portanto, apenas poderia ocorrer pela perda do prazo, e não pela antecipação da prática do ato processual. Como é sabido, na prática processual dos nossos tribunais, a regra é de que os prazos processuais não podem ser excedidos, podendo todavia ser antecipados (cfr., v.g., os acórdãos do STA de 13-1-1988, rec. nº 22.424, de 9-10-2002, proc.º n.º 026482, rel. Brandão de Pinho e de 28-2-2007, proc.º n.º 01121/06, rel. Lúcio Barbosa, os dois últimos in www.dgsi.pt).».

Sobre uma situação em tudo idêntica à dos autos, versou o acórdão desta Relação de 25-06-2019[8], onde exemplarmente se escreveu:

«(…) a tempestividade do recurso emerge como requisito extrínseco da sua admissibilidade, impondo que a irresignação seja interposta dentro do prazo assinalado por lei, que é perentório e, por isso, insuscetível de dilação por convenção dos sujeitos processuais ou por decisão do juiz.
E não parece questionável que o recurso interposto pelo defensor da sentença condenatória proferida contra arguido ausente, enquanto este não se mostrar notificado da mesma, não deve ser admitido e se o for não pode ser objeto de apreciação pelo tribunal superior.
Mas essa óbvia constatação não suporta a ventilada tese da extemporaneidade – e do consequente não conhecimento – do recurso prematuramente interposto, talqualmente se impõe com o que seja deduzido após o término do prazo perentoriamente estabelecido para o efeito.
A abordagem desta questão insta a perscrutar as finalidades dos fatores motivadores da definição dos marcos temporais do início e do termo da recorribilidade, interpretadas do modo mais favorável ao acesso à justiça, por ser o direito ao recurso essencial na consolidação da garantia fundamental do due process of law, do princípio do processo justo: o que se extrai, a partir do disposto na lei é que o critério baseado na teleologia do ato de notificar é a precípua função de assegurar ao visado a oportunidade de impugnar a decisão que lhe é desfavorável, com a ciência transmitida pelo próprio tribunal e não mediatamente por interposta pessoa, enquanto, por seu turno, a previsão do marco perentório para a interposição do recurso decorre de um valor funcional do direito, que é a segurança ou a consolidação de uma determinada situação jurídica, pondo termo à intranquilidade dos sujeitos processuais, mediante a estatuição de um prazo após o qual não é mais possível a impugnação da decisão.
Sublinhe-se que é em prol da ciência da decisão, «tendo em conta, em particular, as exigências decorrentes da proteção constitucional do direito de defesa, incluindo o direito ao recurso», que reside o fator do estabelecimento do início do fluxo do prazo de recurso e tanto assim é que o próprio art. 373º do CPP faz equivaler a leitura da sentença em audiência à sua notificação aos sujeitos processuais que deverem considerar-se presentes, visto que, ao ser lida, tem-se conhecimento imediato dela, e o subsequente art. 411º atribui à notificação das decisões em geral a função de deflagrar o início do prazo de recurso, ressalvando, no entanto, o caso especial da sentença, que o legislador entendeu fazer depender do seu depósito na secretaria, porque, como imediatamente se alcança, a cabal ciência do nela decidido e da sua fundamentação só é convenientemente assegurada através do acesso ao respetivo suporte textual.
Assim, numa perspetiva racional e teleológica, nada de substancialmente sólido se opõe a que o inconformado, tendo conhecimento dos termos da decisão por qualquer meio que o permita, a impugne ainda antes da sua formal e pessoal notificação, independentemente da fluição do prazo recursal só vir a ter como posterior padrão de início a prática de tal procedimento de intimação.
Trata-se de, em detrimento do velho brocardo dura lex, sed lex, corroborar o advento da moderna visão da instrumentalidade da forma, cada vez mais apontada pela atual processualística, bem como a ideia de que não se deve prejudicar o sujeito que agiu, de boa-fé, em consonância com a celeridade processual, antecipando-se ao procedimento.
Afinal, também o tribunal deve agir em conformidade com a boa-fé objetiva: à luz do princípio da boa-fé processual, se os prazos preclusivos visam a regular tramitação do processo, não faria sentido, em nome dum rigorismo formal injustificado, penalizar com o não conhecimento do recurso o sujeito que contribui para o célere desenvolvimento dos seus trâmites.
Portanto, atendendo à finalidade do prazo, não se descortina a real razão por que tal ato não poderá ser praticado antes do seu início, uma vez que o direito de interpor o recurso apenas se extingue com o término do respetivo prazo: o recurso “prematuro” apenas é “intempestivo” por preceder a prática formal do ato de intimação da decisão recorrida, sendo, por isso, apresentado em data anterior (ante tempus) à abertura do respetivo prazo e não porque se mostre extinto o direito de praticar tal ato, razão pela qual não pode ser equiparado ao recurso interposto depois de escoado in albis o prazo perentório para o mesmo estatuído, pois apenas este é preclusivo da faculdade de recorrer.
A interposição prematura do recurso traduz-se na antecipação de um ato processual, que (…) de modo algum prejudica quem quer que seja e não se identifica com a interposição intempestiva do recurso, depois de exaurido o respetivo prazo, de que decorre a aceitação tácita da decisão judicial e a categórica preclusão do recurso.
Essa prematuridade apenas deve determinar a não admissão imediata do recurso, ficando este a aguardar a notificação (pessoal) da sentença ao arguido, ou seja, o suprimento da apontada omissão – o que não pode deixar de ser feito, como no caso já foi – para acautelar a exigência qualificada da inequivocidade da ciência do ato.
Nada obstaculizará ao aproveitamento, sem necessidade da sua repetição, do ato (interposição de recurso) já praticado em nome do arguido pelo seu defensor e que lhe está reservado pessoalmente por lei, o qual teve a oportunidade de, caso assim o entendesse, fazer uso da faculdade concedida pelo art. 63º, n.º 2, do CPP: «[o] arguido pode retirar eficácia ao ato realizado em seu nome pelo defensor, desde que o faça por declaração expressa anterior a decisão relativa àquele ato». Ora, a ausência de declaração, de qualquer tipo, por parte do arguido só pode significar, ao abrigo desse dispositivo, que o mesmo não retirou eficácia ao ato praticado, mantendo, consequentemente, interesse no conhecimento do recurso.»
Subscrevemos inteiramente este entendimento, nada mais se podendo acrescentar à robusta fundamentação em que assenta, cuja aplicação ao caso dos autos conduz inexoravelmente à conclusão de que o presente recurso não deve ser considerado extemporâneo.
Na verdade, apesar de ter sido interposto pelo Exmo. advogado do arguido, em representação deste e antes de o mesmo ter sido notificado do acórdão, o certo é que, entretanto, tal notificação ocorreu, só depois, aliás, tendo sido proferido despacho a admitir o recurso.
Note-se que, a Mmª. Juíza titular do processo, ao tomar conhecimento da entrada em juízo do requerimento recursório, não proferiu logo despacho a apreciá-lo, antes determinou acertadamente que os autos aguardassem a certificação da notificação pessoal do acórdão ao arguido (cf. despacho de 17-12-2009).
Acresce que, uma vez decorrido o prazo de interposição do recurso, iniciado com essa notificação, o arguido não retirou expressamente eficácia ao ato praticado pelo seu mandatário, como lhe era permitido fazer pelo art. 63º, n.º 2, nem tão pouco constituiu novo mandatário ou sequer apresentou novo recurso, pelo que aquele que havia sido prematuramente interposto mantém a sua plena validade.
Nestas circunstâncias, não vemos razões válidas para considerar o recurso extemporâneo.

Pelo exposto, improcede a questão prévia suscitada pelo Exmo. Procurador-Geral Adjunto, nada obstando ao conhecimento do recurso, como se segue.

2. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO

Segundo jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - como seja a deteção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto resultantes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no art. 410º, n.º 2, do Código de Processo Penal[9], e a verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos arts. 379º, n.º 2, e 410º, n.º 3, do mesmo código - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza os fundamentos de discordância com o decidido e resume as razões do pedido (art. 412º, n.º 1, do referido diploma), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do conhecimento do mesmo pelo tribunal superior.

No caso vertente, vistas as conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar são as seguintes:

a) - A nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia (conclusão I);
b) - A valoração de prova proibida (conclusões XLVI a LVIII);
c) - Os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova (conclusões LXI a LXII e XXXII a XLV, respetivamente);
d) - A impugnação da matéria de facto por erro de julgamento (conclusões II a XXXI);
e) - O não preenchimento dos elementos típicos do crime de falsificação, por se tratar de uma falsificação grosseira (conclusões LIX e LX);
f) - A atenuação especial da pena (conclusões LXIII e LXIV).

3. DA DECISÃO RECORRIDA

É do seguinte teor a fundamentação de facto constante do acórdão recorrido (transcrição):

«II. Fundamentação de facto:
2.1. Factos provados

Com interesse para a decisão da causa, mostram-se provados os seguintes factos:

1. No dia 8 de Janeiro de 2015, a ofendida M. L., nascida a -.05.1940, dirigiu-se à Caixa ..., Sucursal de …, localizada na Praça …, …, entrando por volta das 14h01m, tendo sido atendida, ao balcão, entre as 14h18m e das 14h28m, procedendo ao levantamento de 1.919,99€, em numerário por troca do cheque n.º 4976618756, da Caixa … ao Município de … e, por sua vez, emitido à ordem da ofendida.
2. Pelas 14h07m do mesmo dia, o arguido J. B. entrou na referida dependência bancária, 6 minutos após a ofendida ter entrado, tendo abandonado aquelas instalações por volta das 14h28m, poucos segundos antes da ofendida, que também saiu por volta dessa hora.
3. Durante o tempo que o arguido J. B. esteve no interior desse Banco, que durou 20 minutos, o mesmo não efetuou qualquer operação/transação bancária, nem tão-pouco se dirigiu a algum funcionário, empregando uma atitude de vigilância.
4. Pelas 15h24m do aludido dia, os ofendidos M. L. e M. A. fizeram-se transportar no seu veículo automóvel de matrícula EU, conduzido pelo marido, até ao parque do estabelecimento comercial denominado “Supermercado ...”, localizado na Rua …, …, Amares.
5. Imediatamente a seguir, entrou, apeado e de forma apressada, o J. S., também vindo da mesma zona de entrada onde entrou o veículo conduzido pelo ofendido.
6. Em ato contínuo, entrou, pela mesma entrada, o veículo de marca BMW, modelo 187 (Série 1), de cor cinza, conduzido pelo arguido J. B., cuja matrícula aposta não coincidia com a verdadeira por ter havido uma alteração quanto aos dois primeiros números que a compunham.
7. Enquanto os ofendidos entraram nesse espaço comercial onde efetuaram compras, o arguido J. B. e o J. S. desenvolveram uma posição de vigilância, quer no interior quer no exterior, sendo que durante essa ação o arguido J. B. dirigiu-se junto ao veículo de locomoção dos ofendidos, agachando-se na zona onde se situa a roda traseira do lado direito deste.
8. Nesse instante o arguido J. B., munido com um objeto não concretamente apurado, furou o pneu do veículo dos ofendidos, voltando para junto da viatura que o transportou até aquele local.
9. Após saírem do interior do referido espaço comercial, pelas 15h49m, os ofendidos entraram no interior da sua viatura, dirigindo-se para a saída que também haviam usado para entrar, encontrando-se o pneu da roda traseira, lado direito, completamente esvaziado, em consequência da conduta do arguido J. B..
10. O veículo conduzido pelo J. B., no qual já se encontrava o arguido J. S., arrancou, saindo pelo mesmo local, tomando a mesma direção do veículo onde se faziam deslocar os ofendidos.
11. Quando os ofendidos se encontravam a percorrer a Rua …, Amares, rua também adjacente com aquele estabelecimento comercial, resolveram parar, após terem detetado, durante a circulação, que algo fora do normal se passava com a viatura.
12. Depois de saírem do veículo e por terem constatado que o referido pneu se encontrava furado, o ofendido encetou a tarefa de substituição deste.
13. Nesse seguimento, surgiu o tal J. S., o qual saiu do interior da viatura conduzida pelo arguido J. B. e que este imobilizou a pouca distância do veículo dos ofendidos, estabelecendo diálogo com estes, disponibilizando-se para os ajudar nessa mudança do pneu.
14. Em seguida, o tal J. S. dirigiu-se à ofendida, dizendo-lhe que a bolsa que trazia estava a cair, tendo, em ato contínuo, alcançado a bolsa que esta transportava, puxando-a com força, sendo que apesar de esta ter resistido por alguns instantes, logrou apropriar-se da mesma, causando àquela uma dor física.
15. Ato contínuo, o arguido J. B. retomou a marcha do veículo por si conduzido de forma a alcançar o J. S., no qual este entrou de forma rápida, iniciando-se a fuga de ambos.
16. O veículo usado e conduzido pelo arguido J. B. ostentava uma matrícula distinta da sua (que é a matrícula LB), com uma alteração nos seus dois primeiros números, de modo a dificultar a sua identificação.
17. O arguido J. B. - juntamente com o J. S. -, apropriou-se e fez seus, em prejuízo dos seus legítimos donos e em seu único e em exclusivo proveito: uma bolsa de cor azul em napa; 1.800€ em notas de 100€, 50€, 20€, 10€ e 5€; 40€ em moedas; uma fatura do telefone; um recibo de pagamento das cotas dos bombeiros; uma carteira de cor castanha clara com imagem de Nossa Senhora de Lurdes; um cartão da farmácia …; um cartão de passe da empresa de transportes de passageiros denominada … contendo fotografia da ofendida; um cartão de cidadão da ofendida; um cartão de utente da ofendida; um bilhete de identidade antigo da ofendida; um cartão de contribuinte da ofendida; um cartão de eleitor da ofendida; e um telemóvel de marca Nokia, modelo 100, com o IMEI n.º ………, estando nele inserido o cartão n.º 9……...
18. Quis o arguido, sempre em conjugação de esforços e intentos com o tal J. S., usando este último de força, apoderar-se dos objetos que lhe não pertencia, o que efetivamente aconteceu, coartando à ofendida qualquer possibilidade de resistência.
19. Sabia o arguido J. B. que a matrícula é um elemento identificador dos veículos e que, por esse motivo, a cada veículo corresponde uma chapa de matrícula própria, sabendo ainda que os veículos têm obrigatoriamente que exibir e que serve de elemento externo identificador, já que é através dela que as pessoas distinguem os veículos uns dos outros.
20. Agiu o arguido com o propósito de iludir a identificação do veículo e bem assim de enganar as autoridades policiais, consciente de que violava um interesse do Estado na identificação e controlo dos veículos, causando-lhe um prejuízo pois pôs em perigo a fé pública atribuída às matrículas dos veículos.
21. O arguido, com a conduta acima descrita, causou um prejuízo ao Estado, pois pôs em perigo a fé pública atribuída às matrículas, enquanto meio identificador dos veículos e valor de segurança e da credibilidade que a verdade intrínseca da matrícula encerra enquanto tal.
22. O arguido J. B. atuou em comunhão de esforços e de vontades com o tal J. S., planeando previamente as suas atuações dividindo entre eles as tarefas necessárias para efetivar a sua conduta, agindo de forma, livre, deliberada e conscientemente sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei.

Provou-se ainda que:

23. Em 18.10.2019, os ofendidos/demandantes foram ressarcidos dos danos que sofreram pelo arguido J. B. e pelo J. S..

Mais se provou que:

24. O arguido J. B. é o terceiro de uma fratria de quatro elementos, tendo o seu processo de crescimento decorrido na zona de … em ambiente familiar caracterizado por vínculos de cooperação, mas marcado por dificuldades económicas, embora com garantia da satisfação das necessidades básicas da família.
Os rendimentos do agregado familiar provinham do trabalho dos progenitores, do pai como estivador, e da mãe como peixeira.
O arguido concluiu o 4.º ano de escolaridade.
Ingressou bem cedo no mercado de trabalho pela necessidade de ajudar os pais nas despesas da família, contexto em que assegurou ocupação laboral no Porto de …, então com 10/11 anos de idade, como estafeta. Aos 14 anos de idade iniciou funções como estivador suplente, aos 16 anos ingressou para os quadros da estiva no Centro Coordenador Trabalhador do Porto de …, local onde trabalhou cerca de 30 anos.
Aos 17 anos de idade contraiu casamento com M. C., do qual nasceu o único filho do casal.
O arguido J. B. subsiste com a pensão da reforma quantificada em 831.00.
O arguido padece de alguns problemas de saúde, em particular no âmbito da urologia (oncologia prostática) e da cardiologia.
Tem sido acompanhado pela equipa da D.G.R.S.P., no âmbito de uma execução de suspensão de pena de prisão, a qual tem decorrido sem registo de anomalias, mantendo assiduidade/regularidade às entrevistas agendadas e que colaborou na execução da medida.
25. Constam do C.R.C. do arguido J. B. as seguintes condenações:
- por sentença de 09.10.2009, transitada em julgado em 29.10.2009, no processo abreviado n.º 70/09.6GTLRA, do extinto 1.º Juízo do tribunal Judicial de Pombal foi condenado pela prática, em 10.05.2013, de um crime de falsificação de documento, na pena de 270 dias de multa à taxa de 8€, a qual se mostra extinta;
- por sentença de 27.04.2010, transitada em julgado em 27.04.2010, no processo comum singular n.º 286/07.0PWLSB, do extinto 4.º Juízo criminal de Lisboa, foi condenado pela prática, em 26.04.2007, de um crime de dano e um crime de furto simples, na pena única de 70 dias de multa à taxa de 4€, a qual se mostra extinta;
- por sentença de 27.02.2012, transitada em julgado em 19.03.2014, no processo comum singular n.º 182/10.3GBMFR do Juízo Local Criminal de Mafra, foi condenado pela prática, em 04.03.2010, de um crime de furto qualificado, na pena de 200 dias de multa à taxa de 6€, a qual se mostra extinta;
- por acórdão de 02.07.2013, transitado em julgado em 21.05.2014, no processo comum coletivo n.º 913/11.4PBEVR, do extinto 2.º Juízo criminal de Évora, foi condenado pela prática, em 29.07.2011, de um crime de furto qualificado, na pena de 5 anos de prisão, suspensa por igual período de tempo, sujeita a regime de prova.
*
2.2. Factos não provados
Não os há.
*
2.3. Convicção do tribunal

O tribunal formou a sua convicção a partir de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, depois de criticamente analisada, à luz das regras da experiência comum e da verosimilhança, naquela se incluindo:

a) as declarações dos demandantes;
b) os depoimentos das testemunhas;
c) todos os documentos: em particular, a cópia do cheque de fls. 118/119, do 1.º vol.; print referente ao seguro do veículo de matrícula LB em nome do arguido J. B. (fls. 262 2.º vol.); as informações acerca da localização celular de telemóveis das operadoras … e … (fls. 768/770, do 3.º vol. e 2785/2789, do 9.º vol.; fls. 3071/3074 do 9.º vol.; e 2610/2614, do 8.º vol.), os RDE’s (fls. 424/444, do 2.º vol.; fls. 1626/1627 e 1666/1667, do 5.º vol.; e fls. 2357/2359, do 7.º vol.); a informação bancária do … (de fls. 711/759, do 3.º vol., em particular fls. 752, onde se vê um depósito em numerário no valor de 900€ no dia 12.01.2015); os autos de busca e apreensão (cfr. fls. 10, do 1.º vol.; fls. 1789/1823, 1828/1855, 1856/1872, todas do 6.º vol.); as imagens recolhidas (e visualizadas na audiência de julgamento), acompanhadas dos respetivos autos de visionamento de fotogramas; e,
d) o C.R.C. de fls. 3813/3817, do 11.º vol. e o relatório social de fls. 3821/3823, do 11.º vol..
No que respeita às declarações dos demandantes e aos depoimentos das testemunhas dispensamo-nos, aqui, de os reproduzir, uma vez que a audiência foi objeto de gravação.

Dir-se-á, apenas, em síntese, que:

A) as declarações dos demandantes:

- M. L., a qual descreveu tudo quanto se passou e procurou explicar as razões que a levaram a pensar, numa primeira ocasião, que um dos participantes era uma mulher para depois afirmar que se tratavam, afinal, de dois homens. Assim, explicou que levantou um cheque no valor de cerca de 1.900€ no balcão da Caixa ... Amares, recordando-se de ter visto “um senhor de boné ao contrário” no interior do balcão, que depois voltou a rever mais tarde, aquando da mudança do pneu, bem como uma senhora de camisola “cor de sulfato” que esteve junto dela no balcão. Mais disse que dali se dirigiu, juntamente com o seu marido, ao “Supermercado ...” para aí efetuar algumas compras e que, quando foi retomada a marcha do veículo o seu marido apercebeu-se que algo de anormal se passava com o carro, razão que o levou a imobilizar a viatura. Quando estava prestes a mudar o pneu do carro, que estava “furado”, um indivíduo que tinha visto no exterior da CAIXA ..., o qual tinha saído de uma viatura que ali foi imobilizada (onde se encontrava um indivíduo com “boné ao contrário” e que tinha também visto na CAIXA ...), ofereceu-lhe ajuda, ao que o marido recusou. Seguidamente, tal indivíduo dirigiu-se junto se si e puxou-lhe a carteira, pondo-se imediatamente em fuga na posse daquela. Confrontada com o teor de fls. 52 e 117 onde afirma que se tratava de uma mulher para afinal vir dizer já bem mais tarde que se tratava de um homem, procurou explicar tal incongruência, declarando de forma perentória que se trataram de dois indivíduos do sexo masculino. Finalmente, confirmou os bens que lhe foram retirados.
- M. A., marido da ofendida, o qual confirmou as declarações da mulher quanto aos factos que presenciou, nomeadamente àquilo que se passou quando estava a mudar o pneu da sua viatura. Assim, explicou que viu dois homens no interior de um veículo e que um deles saiu da viatura e lhe ofereceu ajuda, que declinou, sendo que em seguida deu um “esticão à mulher” e lhe retirou a bolsa.

B) os depoimentos das testemunhas:

- R. J., cabo chefe G.N.R., do Posto Territorial de Amares, o qual explicou que das buscas efetuadas à residência do arguido J. B. foi encontrada a roupa por si utilizada no “Supermercado ...” e na CAIXA ..., local onde o mesmo esteve como resulta das imagens recolhidas cujo conteúdo visualizou e cujo autos de visionamento confirmou (fls. 75/95 do 1.º vol. e fls. 328/330 do 2.º vol. – com os respetivos CD’s a fls. 58 do 1.º vol. e 284 do 2.º vol.), sendo certo que a localização celular do telemóvel do arguido indicam que o mesmo esteve nesta zona do norte no dia dos factos. Mais confirmou o teor das informações constantes de fls. 60 do 1.º vol. (referente ao BMW que o arguido conduzia) e fls. 2224/2225 do 7.º vol. (onde se dá nota que foram encontrados três autocolantes refletores com os algarismos “69” e com as letras “TT” no interior do veículo de marca Seat Leon, de matrícula OV, também utilizado pelo arguido, aquando da busca efetuada ao mesmo).
- P. J., Sargento Ajudante no NIC Braga, o qual explicou que efetuou o visionamento das imagens recolhidas da CAIXA ..., bem como acompanhou as diligências de busca efetuadas ao arguido J. B.. Mais disse que quando viu tais imagens comparou-as com outras de um assalto ocorrido no ano de 2012 reconhecendo, sem qualquer sombra, a fisionomia do arguido.
Enunciados os meios de prova, passemos à análise crítica, descrevendo os pilares que estão na base da construção da convicção do tribunal.
Desde já se adiante que se mostraram credíveis e isentas quer a declarações dos demandantes quer os depoimentos das testemunha, porquanto, apesar do interesse dos primeiros, o certo é que todos os prestaram de uma forma objetiva, não procurando prejudicar ou favorecer quem quer que fosse, limitando-se a transmitir ao tribunal a perceção que tiveram dos factos que efetivamente presenciaram e tiveram conhecimento direto.
Convém, no entanto, escalpelizar as declarações dos demandantes, sendo certo que tal tarefa em não colidirá com a afirmação que fizemos anteriormente, reforçando-a mesmo.
Assim, diremos que apreciados quer o teor da denúncia quer as declarações da ofendida e do seu marido em sede de inquérito e em sede de julgamento, poderíamos, numa análise apressada, concluir pela existência de uma contradição insuperável e levar a que o tribunal ficasse com dúvidas quanto à autoria dos factos.
Porém, da análise mais atenta, conjugada em particular com o visionamento das imagens recolhidas no interior da CAIXA ... e no interior e exterior do “Supermercado ...” que efectuámos na audiência de julgamento (e que retiram a “paralisação” dos fotogramas), encontrámos de forma absolutamente arrebatadora a resposta objetiva e clara para as razões que levaram a que a ofendida, uma mulher com 74 anos de idade à data dos factos e de linguagem simples, tivesse feito as afirmações que fez.
Na verdade, da visualização das imagens recolhidas na CAIXA ..., pudemos verificar que houve efetivamente uma mulher que esteve bem próxima da ofendida no balcão da CAIXA ..., quando esta estava a receber o seu dinheiro, a qual envergava uma camisola “cor de sulfato” (cor que é assim mencionada por uma mulher que vive numa zona essencialmente rural e onde a utilização deste tipo de produto químico é frequente).

Mas que importância terá este pormenor?

A resposta a esta interrogação é simples: visualizadas as imagens do “Supermercado ...” verificou-se que o tal J. S. envergava uma camisola precisamente “cor de sulfato”, daí que a ofendida tenha feito esta associação de imagens por referência à tal mulher da CAIXA .... E sendo a ofendida idosa (à data com 74 anos, como vimos) é consabido que as pessoas a partir de uma determinada idade se tornam naturalmente mais desconfiadas e, em face de tudo o que lhe aconteceu e do trauma que naturalmente sofreu, fez aquelas declarações de uma forma absolutamente genuína.
Assim, com relação ao teor de tais declarações, afigura-se-nos pertinente realçar que, não obstante algumas dificuldades de expressão verbal na transmissão do que se passou, que ficaram notoriamente a dever-se à sua humilde condição social e baixo nível cultural e de instrução e que, associadas ao desconforto que o assunto provoca à sua verbalização e ao próprio confronto (forte, diga-se) a que foi sujeita em face daquela supra mencionada confusão ao longo da audiência de julgamento, sobretudo por uma parte de uma pessoa com consideráveis dificuldades dessa natureza, acentuaram ainda mais essas dificuldades, a ofendida descreveu os factos nos termos que vieram a dar-se como assentes, sem que daí tenha resultado prejudicada a espontaneidade, sinceridade e credibilidade das suas declarações.
Na verdade, tais complicações não foram impeditivas de que com relação a esta materialidade, tenha prestado as suas declarações de um modo suficientemente claro, objetivo e consistente (em conjugação com a visualização das imagens e não apenas dos fotogramas - que nunca é demais repeti-lo), e que o tribunal considerou sincero, designadamente, em razão da amargura e da revolta que foi exteriorizando ao longo das declarações que prestou, enquanto procedia à descrição dos factos, o que sempre sem relevantes hesitações, e com absoluto rigor sequencial e cronológico, associada à evidente constatação que se extrai do contacto direto com a ofendida, mulher simples e humilde, que revela uma capacidade ou nível intelectual, pouco acentuada, e que torna pouco provável que os factos relatados possam ser fruto de fantasias ou confabulações pessoais ou induzidos por outrem, construídos em ordem a obtenção de benefícios secundários ou para tirar desforço de alguém, sendo também estas as principais razões por que o tribunal considerou as suas declarações merecedoras de credibilidade.
E o mesmo se diga em relação ao seu marido, também ofendido, o qual se reportou igualmente à existência de uma mulher nas suas declarações de fls. 54 e que depois corrigiu quer nas declarações que prestou e constantes a fls. 120 quer na audiência de julgamento, sendo certo que tal confusão terá advindo, certamente, daquilo que a mulher então lhe transmitiu e que também a confundiu como já vimos supra. Ademais, e pese embora tenha visto “o esticão” feito à mulher, o certo que, estando o ofendido mais concentrado na mudança do pneu, não terá estado certamente atento a todas as características individuais do homem por que foi abordado nem tão-pouco daquele que se encontrava no interior do veículo.
Pelas razões vindas de aduzir, as suas declarações afiguraram-se-nos igualmente merecedoras de credibilidade.
Ademais, quer aquelas declarações dos demandantes quer os depoimentos das testemunhas encontram sustentabilidade nos restantes elementos de prova supra enunciados, em particular as imagens recolhidas e que o tribunal teve o cuidado de visualizar.
Aliás, esta visualização foi fundamental para se compreender o comportamento preparativo (em particular de vigilância dos passos dos ofendidos) e concluir pela autoria dos factos pelo arguido J. B. (em comparticipação com o J. S.). E há que salientar que os fotogramas não retratam, de todo, tudo quanto se passou, nomeadamente quanto à vigia que o arguido J. B. efetuou na CAIXA ... onde se manteve enquanto a ofendida lá estava, sem que, em nenhum momento em que lá esteve, tivesse efetuado algum movimento bancário no ATM e sem que se tenha dirigido ao balcão para, por exemplo, solicitar alguma informação ou aí realizar alguma operação bancária, o que não deixa de ser estranho para quem ali se dirige e apenas se movimenta de um lado para o outro.
Por outro lado, tal comportamento de vigilância ressurge, desta vez com a presença visível do J. S. (que envergava a tal camisola “cor de sulfato”), aquando da ida ao “Supermercado ...”, sem que nenhum dos dois tenha efetuado alguma compra nesse estabelecimento comercial.
Acresce ainda que, resulta claramente da visualização que efetuámos, a ida do arguido J. B. junto da parte lateral direita da traseira do veículo dos ofendidos, local onde se agachou rapidamente (segundos 00:52 a 00:54 do CD 03_2015018154016_100avi), vendo-se posteriormente que o pneu traseiro direito se encontrava completamente esvaziado (“em baixo”, cfr. fotograma de fls. 376 do 2.º vol.), sendo certo que tal veículo não apresentava tal problema quando os ofendidos entraram no parque do estabelecimento, o que nos leva a conclui, sem qualquer sombra de dúvidas, que tal situação foi ocasionada pela atuação do arguido J. B..
Ademais, verifica-se de tal visualização que o arguido J. B., acompanhado do J. S., retomou a marcha do BMW e saiu do parque do estabelecimento logo a seguir aos ofendidos, continuando o seu seguimento.
Por último, há que salientar um dado importante que é a existência, no dia 12.01.2015 (ou seja, passados poucos dias sobre o assalto), de um depósito bancário na conta do arguido, o qual foi efetuado em numerário e no montante de 900€ e que corresponde a metade do valor da importância subtraída, o que nos leva a concluir pela divisão na proporção de metade, para cada um, do produto obtido.
Relativamente à matrícula do tal BMW, diremos que é notório da visualização das imagens e dos fotogramas que os dois primeiros números estavam alterados e não apenas “sujos” como se procurou fazer crer na audiência, pois que só estes se encontram “desbotados ou clareados” em comparação com as letras e com os dois últimos números.
Ademais, diremos que os três autocolantes refletores com os algarismos “69” e com as letras “TT” que foram encontrados no interior do veículo de marca Seat Leon, de matrícula OV, então alugado (e utilizado) pelo arguido J. B. (cfr. fls. 1869 e 1976/1978 e fls. 2224/226 do 7.º vol.), levaram-nos a concluir, sem margem qualquer para dúvida, que o mesmo era um “habitué” nestas andanças e que usou o mesmo método no caso em apreço para obstar, obviamente, à identificação da matrícula e, consequentemente, à identificação dos respetivos agentes.
No que toca aos factos constantes dos pontos 18, 19, 20, 21 e 22: para além de ter resultado das declarações dos demandantes e dos depoimentos das testemunhas referidas no que respeita à forma como atuou o arguido, que este é imputável e tem consciência dos atos que pratica, em presunção judicial decorrente das circunstâncias que envolveram a atuação deste e das regras da normalidade e experiência comuns já referidas, consideradas no âmbito do princípio da livre apreciação da prova consagrado no art. 127.º do C.P.P..
Assim, conjugados todos estes elementos e com base nas regras da experiência comum, e ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, chegou o tribunal à convicção da ocorrência dos factos constantes da matéria de facto e nos termos em que aí constam.
Quanto às condições pessoais do arguido, no teor do relatório social e no C.R.C. juntos aos autos.»

3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1 - 1ª Questão: a nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia

Do teor da conclusão I. e da respetiva densificação constante do corpo da motivação resulta que o recorrente defende que os factos constantes dos pontos 7º (2ª parte), 8º e 9º da matéria assente, concernentes ao alegado crime de dano, não deveriam aí constar, por ter sido declarado extinto o procedimento criminal relativamente a esse ilícito, com fundamento em desistência de queixa, e declarada extinta a instância cível, o que, em seu entender, integra a nulidade do acórdão por excesso de pronúncia.
Nos termos do art. 379º, n.º 1, al. c), é nula a sentença “quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”, configurando a primeira situação a denominada “omissão de pronúncia” e traduzindo-se a segunda no “excesso de pronúncia”.
Este último fundamento da nulidade da decisão pressupõe que o tribunal tenha conhecido de uma questão de que não podia tomar conhecimento, sendo certo que as questões que o juiz deve apreciar são todas aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal e as que sejam de conhecimento oficioso (art. 608º, n.º 2, do Código de Processo Civil), isto é, de que deva conhecer independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual[10].
Segundo o recorrente, o excesso de pronúncia consistirá em o Tribunal Coletivo, na decisão sobre a matéria de facto, se ter pronunciado, dando-os como provados, sobre os factos integrantes do crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, n.º 1, do Código Penal, que lhe era imputado na acusação e relativamente ao qual, já depois de encerrada a discussão da causa e previamente à leitura do acórdão, os demandantes desistiram da queixa e declararam ter recebido integralmente a indemnização civil peticionada, pelo que foi homologada a desistência de queixa, com a consequente extinção do procedimento criminal quanto a esse crime, bem como declarada extinta a instância cível por inutilidade superveniente da lide.
Claramente não estamos perante um qualquer excesso de pronúncia, nos termos em que este vício da decisão deve ser entendido, porquanto o tribunal a quo não ultrapassou os seus limites de cognição relativamente à questão da apreciação da responsabilidade pelo crime de dano, do qual não conheceu.
Quando muito, de acordo com a alegação do recorrente, estaríamos apenas em face de uma indevida inclusão na descrição dos factos provados de matéria irrelevante para a decisão da causa, e que, assim, na economia do acórdão recorrido permaneceu como inócua.
É certo que, nos termos do n.º 2 do art. 374º, a fundamentação da sentença consiste, nomeadamente, na enumeração dos factos provados e não provados. E nessa seleção da matéria de facto o tribunal deve ater-se a factos com relevo para a decisão da causa, devendo, desde logo por razões de economia e simplificação processual, bem como de clareza na redação das decisões, de abster-se de emitir pronúncia sobre factos irrelevantes ou inócuos, quer já o fossem no momento em que foram alegados, quer assim se tenham tornado em consequência do concreto desenvolvimento processual.
Sem que, todavia, o incumprimento dessa regra redunde num qualquer excesso de pronúncia. A considerar-se existir algum vício, a única consequência seria considerar tais factos como não escritos.
O que nem sequer é o caso, porquanto os factos em apreço, traduzidos na conduta do arguido em furar propositadamente o pneu do veículo dos ofendidos, inseriu-se no plano e foi parte essencial na concretização do subsequente crime de roubo. Com efeito, momentos depois de aqueles terem regressado à sua viatura e iniciado a marcha, viram-se obrigados a parar, a fim de substituir o pneu furado, altura em que J. S., saindo o veículo conduzido pelo arguido, se abeirou deles, disponibilizando-se para os ajudar, puxando com força e levando consigo a bolsa da ofendida, após o que entrou rapidamente no veículo automóvel em que o arguido o aguardava, pondo-se ambos em fuga.
O que significa que, apesar da desistência de queixa quanto ao crime de dano causado no veículo dos ofendidos, os factos relativos à conduta do arguido, ao provocar intencionalmente o furo do pneu, continuam a assumir relevância para a decisão da causa, por serem necessários à perceção da dinâmica completa do crime de roubo, mormente a respetiva planificação, relativamente ao qual os autos prosseguiram os seus termos.
Assim, pela via das circunstâncias relativas ao grau de ilicitude do facto e ao modo de execução deste, os factos em questão sempre seriam suscetíveis de relevar na determinação da pena concreta relativa ao crime de roubo [art. 71º, n.º 2, al. a), do Código Penal], pelo que se justifica que o tribunal a quo os tenha incluído na decisão sobre a matéria factual, independentemente de, posteriormente, os vir ou não a valorar na decisão de direito.
Improcede, pois, a arguição de nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia.

3.2 – 2ª Questão: a valoração de prova proibida

Nas conclusões XLVI a LVIII é alegado que toda a prova carreada para os autos se baseou em fotogramas e visionamento de imagens, sem que tenha sido feito um reconhecimento presencial do recorrente nos termos do art. 147º, apesar das discrepâncias dos ofendidos sobre se era ou não ele uma das pessoas que interveio no crime de roubo, e que, mesmo admitindo que existiu um reconhecimento fotográfico pelo militar da GNR quando visionou as imagens recolhidas na CAIXA ... e no Supermercado ..., não foi seguido de um reconhecimento presencial, não valendo, por isso, como meio de prova, atento o disposto nos n.ºs 5 e 7 do mesmo artigo, pelo que, ao utilizá-lo para dar como provado que era o recorrente a conduzir o veículo aquando da prática do crime de roubo perpetrado por J. S., o tribunal recorrido valorou prova proibida, violando também o art. 32º, n.º 1, da Constituição.
Nessa alegação é possível distinguir duas questões.
Primeiramente, a da ausência de realização de um reconhecimento presencial, não obstante as discrepâncias dos ofendidos sobre a sua intervenção nos factos e a prova ter assentado nas imagens recolhidas pelas câmaras de vigilância, o que se prende com a (in)suficiência dos meios de prova para dar como provada tal participação, questão eventualmente a suscitar em termos de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com obediência aos requisitos estabelecidos no art. 412º, n.ºs 3 e 4, a analisar infra.
Não sem que se diga que um qualquer reconhecimento pessoal a realizar em audiência, conforme parece sugerir o recorrente ao aludir às mencionadas discrepâncias entre as declarações prestadas pelos demandantes em julgamento e em inquérito, sempre seria de utilidade duvidosa, atento o lapso de tempo entretanto decorrido após os factos (praticamente cinco anos), para além da dificuldade decorrente de ele não ter comparecido a nenhuma das sessões da audiência, invocando situações de doença e juntando sucessivos certificados de incapacidade temporária.
Em segundo lugar, invoca o recorrente a produção e valoração de prova por reconhecimento fotográfico, sem ser seguido de um reconhecimento presencial, com violação do disposto no art. 147º, daí resultando uma proibição de prova.
Esta questão é, porém, suscitada sem fundamento.
O reconhecimento é um meio de prova especificamente previsto no Código de Processo Penal que consiste na confirmação de uma perceção sensorial anterior, ou seja, em estabelecer a identidade entre uma perceção sensorial anterior e outra atual da pessoa que procede ao ato, servindo para confirmar um elemento de prova já admitido[11].
Uma vez que esse meio de prova, pela sua natureza, reveste alguma fragilidade, para evitar o erro, a lei sujeita a respetiva produção à observância estrita de determinados formalismos, sob pena de não poder ser valorado.
De acordo com o art. 147º, o reconhecimento de pessoas pode revestir três modalidades: o reconhecimento por descrição ou intelectual, o reconhecimento presencial e o reconhecimento por fotografia, filme ou gravação.
O primeiro, regulado no n.º 1 do citado artigo, inicia sempre o procedimento do reconhecimento e consiste em solicitar a quem deva fazer a identificação que descreva a pessoa a identificar, com todos os pormenores de que se recorda, sendo depois questionada se já a tinha visto antes e em que condições, e, por último, interrogada sobre outras circunstâncias que possam influir na credibilidade da identificação, sem haver, pois, contacto visual entre a pessoa que deve fazer a identificação e a pessoa a identificar.
O reconhecimento presencial, a que se reportam os nºs 2 e 3 do mesmo artigo, tem lugar quando a identificação realizada através do reconhecimento por descrição não for cabal e obedece aos seguintes passos: afasta-se quem deve proceder à identificação e são escolhidas, pelo menos, duas pessoas que apresentem as maiores semelhanças possíveis (físicas, fisionómicas, etárias e até de vestuário) com a pessoa a identificar, a qual é colocada ao lado daquelas outras, devendo, se possível, apresentar-se nas mesmas condições em que poderia ter sido visto pela pessoa que procede ao reconhecimento; de seguida, esta é chamada e colocada diante do grupo onde se encontra a pessoa a identificar e, depois de ter observado os seus elementos, é perguntada sobre se reconhece algum dos presentes e, em caso afirmativo, qual, sendo as perguntas e respostas registadas no respetivo auto. Havendo razões para crer que a pessoa chamada a fazer a identificação pode ser intimidada ou perturbada pela efetivação do reconhecimento e não tendo este lugar em audiência, deve o mesmo efetuar-se, se possível, sem que aquela pessoa seja vista nem ouvida pelo identificando (reconhecimento presencial protegido ou com resguardo).
Por fim, o reconhecimento por fotografia, filme ou gravação, como decorre da própria designação, é feito através da exibição de fotografias ou filme ou da passagem da gravação à pessoa que deve efetuar a identificação. Sendo esta positiva, o reconhecimento só pode valer como meio de prova quando for seguido de reconhecimento presencial (nº 5 do mesmo artigo) o que, na prática, lhe retira qualquer autonomia probatória, já que, sem aquele, não passará de mero indício.
De acordo com o disposto no n.º 7 do citado artigo, o reconhecimento de pessoas que não obedeça aos referidos procedimentos, não vale como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorreu, tratando-se, pois, de uma proibição de valoração de prova, não podendo tal reconhecimento, porque inválido, ser usado no processo, designadamente para fundamentar a convicção do tribunal sobre a decisão da matéria de facto.
O que significa que a questão colocada pelo recorrente só assumirá relevância se o tribunal a quo tiver convocado e usado para formar a sua convicção um "reconhecimento fotográfico" efetivamente produzido nos autos.
Lido o acórdão recorrido, em particular a motivação da decisão de facto, não resulta que tal tenha sucedido.
Ao invés do que sugere a alegação do recorrente, não consta dos autos qualquer reconhecimento fotográfico, que carecesse de ser seguido de um reconhecimento presencial, conforme exige o n.º 5 do art. 147º, atenta a natureza preliminar ou acessória que aquele reveste relativamente a este.
Não só por parte dos ofendidos, únicas testemunhas presenciais e com conhecimento dos factos, que em momento algum reconheceram os autores dos mesmos através da exibição de qualquer fotografia ou filme, mas também em relação ao alegado "reconhecimento fotográfico" efetuado pela testemunha P. J., que não consta dos autos como efetivamente produzido.
O que consta da motivação da decisão de facto é que, ao elencar os meios de prova em que assentou a sua convicção, o Tribunal Coletivo aludiu ao depoimento da testemunha P. J., Sargento Ajudante da GNR que participou na investigação, mencionando que o mesmo «(…) explicou que efetuou o visionamento das imagens recolhidas da CAIXA ..., bem como acompanhou as diligências de busca efetuadas aos arguido J. B.. Mais disse que quando viu tais imagens comparou-as com outras de um assalto ocorrido no ano de 2012 reconhecendo, sem qualquer sombra, a fisionomia do arguido.».
Efetivamente, procedendo à audição da gravação desse depoimento, constata-se que a testemunha, ao relatar as diligências a que procedeu no inquérito, corroborando a informação por si lavrada a fls. 99 a 100, afirmou que, ao visionar as imagens recolhidas na Caixa ..., associou-as às imagens guardadas em arquivo, recolhidas numa outra agência da mesma instituição, relativas a um assalto perpetrado em 2012 com o mesmo modus operandi e em que era suspeito o arguido J. B., factos estes ainda em investigação no âmbito do processo n.º 612/12.0GAVVD (cf. cópia do aditamento junta a fls. 161). E, ao compará-las, constatou tratar-se do mesmo indivíduo, que na altura não conhecia, esclarecendo que quando posteriormente esteve com ele nas buscas, confirmou ser a pessoa que se via nas ditas imagens.
Ora, essas afirmações, prestadas em audiência de julgamento, não equivalem a uma prova por reconhecimento fotográfico ou por filme, tanto mais que, a sê-lo, como pretende o recorrente, não se vê como se concretizaria o necessário e reconhecimento presencial.
Trata-se antes de prova testemunhal, incidente sobre a descrição das diligências de investigação levadas a cabo pelo órgão de polícia criminal e às perceções visuais do militar da GNR que nelas participou. Meio de prova esse produzido na presença dos julgadores, com respeito pelo contraditório, e valorado, em sua livre convicção, conjugadamente com os demais elementos de prova recolhidos nos autos, nomeadamente apreensões, localizações celulares, registo de propriedade automóvel e informações bancárias relativas ao recorrente, como claramente resulta da motivação da decisão de facto.
Diferente seria se a testemunha P. J., tendo presenciado os factos, tivesse sido confrontada com alguma fotografia ou filme contendo a imagem do suspeito, a fim de declarar se era essa a pessoa que tinha visto, situação, essa sim, enquadrável num reconhecimento fotográfico ou por filme, a demandar a subsequente realização de um reconhecimento presencial.
Pelo exposto, não foi usada ou valorada pelo Tribunal Coletivo, em violação do disposto no art. 147º, n.º 7, qualquer prova por reconhecimento do recorrente, mormente o reconhecimento fotográfico por este invocado, que aliás inexiste nos autos, a impor que fosse seguido de um reconhecimento presencial, conforme o n.º 5 do mesmo artigo.
Daí que não se reconheça qualquer violação das garantias de defesa do recorrente e, decorrentemente, do invocado art. 32º, n.º 1, da Constituição.
Improcede, assim, a questão em análise.

3.3 – 3ª Questão: os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova

Em sede de recurso sobre a matéria de facto, o recorrente assaca ao acórdão recorrido os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (conclusões LXI a LXII) e de erro notório na apreciação da prova (conclusões XXXII a XLV), previstos, respetivamente, nas als. a) e c) do n.º 2 do art. 410º, preceito que, a par da impugnação (ampla) a que se refere o artigo 412º, n.ºs 3 e 4, consagra uma segunda e distinta forma de impugnar a matéria de facto (através da chamada revista alargada).

3.2.1 - Nos termos daquele primeiro normativo, "[m]esmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova."

Conforme expressamente resulta desse preceito legal e, aliás, o próprio recorrente menciona (na conclusão XXXIX), os vícios aí referidos, que são de conhecimento oficioso[12], constituindo um defeito estrutural da decisão, têm de resultar do respetivo texto, na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos a ela estranhos para os fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento[13]. Tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença, esta terá que ser autossuficiente quanto a eles, não se podendo recorrer à prova documentada.
No âmbito desta revista alargada, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla, o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto no sentido da reapreciação da prova, limitando-se a detetar os vícios que a sentença em si mesma evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426º, n.º 1).

3.2.2 - O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando esta seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito ou quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão.

O conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem: absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc. E isto porque o tribunal deixou de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes alegados pela acusação ou pela defesa ou resultantes da discussão da causa (art. 368º, n.º 2), ou ainda porque não investigou factos que deviam ter sido apurados na audiência, dada a sua importância para a decisão.

Na insuficiência para a decisão (de direito) da matéria de facto provada critica-se o tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo. Consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito, sobre a mesma. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente.
Para demonstrar a existência deste vício, alega o recorrente que, limitando-se a acusação [querendo obviamente referir-se ao acórdão] a dizer que «o veículo usado e conduzido pelo arguido J. B. ostentava uma matrícula distinta da sua (que é a matrícula LB), com uma alteração nos seus dois primeiros números, de modo a dificultar a sua identificação», sem especificar a concreta alteração verificada nesses dígitos e, consequentemente, na matrícula alegadamente falsa, não podia ser condenado pelo crime de falsificação de documento.
Não lhe assiste razão nessa argumentação, porquanto do texto do acórdão, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta qualquer insuficiência dessa matéria de facto para a decisão de, em sede de enquadramento jurídico, se concluir ou não pelo preenchimento dos elementos objetivos do crime de falsificação de documento, in casu matrícula de um veículo automóvel, pelo qual o mesmo foi condenado.
É sabido que a matrícula é um sinal identificador individualizante do veículo a que está atribuída e que dá a conhecer que o mesmo se encontra registado. Qualquer alteração posterior dos elementos da chapa de matrícula aposta na viatura afetará a declaração implícita de conformidade entre o veículo real e os elementos identificativos constantes do respetivo livrete e, consequentemente, a declaração implícita de que o veículo, a que foi atribuída uma determinada matrícula, é o mesmo que traz fixada aquela matrícula.
Como é referido no acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 3/98[14], «(…) a falsificação de chapas de matrícula de veículo automóvel, como ilícito criminal, consubstancia-se pela substituição das chapas com número de matrícula dado pela autoridade pública por outras com letras e números ou números e letras diversos, ou pela alteração das letras e números ou dos números e letras de uma chapa com o número de matrícula dado pela autoridade pública de modo a formar um novo número.».
Ora, constando do elenco da matéria assente, concretamente dos pontos 6º e 16º, que o veículo conduzido e utilizado pelo recorrente tinha aposta uma matrícula que não coincidia com a verdadeira, ou seja, com aquela que lhe foi atribuída pela autoridade competente, por apresentar uma alteração quanto aos dois primeiros números que a compunham, de modo a dificultar a identificação da viatura, tal factualidade é suficiente em ordem a aferir-se se está ou não preenchido o elemento objetivo do crime de falsificação, traduzido na alteração de um dos componentes do documento, de forma a induzir em erro.
Independentemente de não se referir a concreta alteração verificada nos ditos números, ou seja, os exatos algarismos que a matrícula passou a ostentar em vez dos verdadeiros, bastando que fossem diferentes destes, como efetivamente resulta da matéria de facto provada que eram, pois só assim se compreende a existência de uma alteração dos mesmos.
Nestes termos, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, a matéria de facto provada não padece da apontada insuficiência para a decisão de direito quanto ao crime de falsificação de documento, pelo que improcede a invocação deste vício decisório.

3.2.3 - No que tange ao erro notório na apreciação da prova, a sua invocação pelo recorrente mostra-se feita em termos que revelam uma confusão nítida e de verificação frequente entre as duas formas perfeitamente distintas que existem de reagir contra eventuais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto: por um lado, a invocação dos vícios previstos no art. 410º, n.º 2 (a chamada revista alargada) e, por outro, a impugnação (ampla) da matéria de facto, a que se refere o art. 412º, n.ºs 3 e 4.
Como já referimos, no primeiro caso, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento qualquer dos vícios previstos nas alíneas daquele primeiro artigo, entre os quais o erro notório na apreciação da prova [al. c)].
Este vício verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, bem como quando se violem as regras sobre prova vinculada ou as leges artis.
Existe, pois, tal vício quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, melhor dito, ao juiz “normal”, isto é, dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente[15].
Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão e que consiste, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou em dar-se como provado o que não pode ter acontecido[16]. É um erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
Os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questão do âmbito da livre apreciação da prova. No âmbito do controlo ínsito na identificação desses vícios, o que releva é a convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.

No caso vertente, a invocação do erro notório na apreciação da prova funda-se na alegação de que, atentas as contradições existentes entre as declarações do demandantes em julgamento e os depoimentos que prestaram no inquérito, estes validamente lidos em audiência, no que respeita a terem ou não visto quem ia a conduzir o veículo que, após o cometimento do roubo, deu a fuga a J. S., bem como ao facto de ser uma senhora ou um homem que conduzia essa viatura, estamos perante duas versões antagónicas e incompatíveis, impeditivas de o tribunal a quo considerar como isentos e credíveis as declarações prestadas em julgamento e, com base nelas, dar como provada a intervenção de dois indivíduos do sexo masculino, sendo um deles o ora recorrente.
Sustenta, assim, o recorrente que o tribunal a quo não valorou corretamente a prova produzida quanto aos factos dados como provados nos pontos 13º e 15º, que, nos segmentos referentes à sua pessoa, deverão passar a constar dos factos não provados, incorrendo em erro notório na apreciação da prova.
Constata-se, porém, que o recorrente não se atém ao texto da decisão recorrida, para demonstrar que da mera leitura da mesma resulta que o Tribunal Coletivo incorreu em erro ao dar como provados determinados factos, como se impunha que fizesse, o que afasta liminarmente a existência daquele vício decisório. Pelo contrário, extravasando o âmbito da arguição do vício em questão, socorre-se da prova oralmente produzida em audiência para demonstrar que o tribunal recorrido a apreciou e valorou erradamente, visando, assim, a reapreciação da mesma pelo tribunal de recurso, com vista a serem dados como não provados os factos relativos à sua intervenção nos factos relativos ao crime de roubo pelo qual foi condenado.
Ora, tal erro, nos termos em que é invocado pelo recorrente, a existir, traduzir-se-á antes em erro de julgamento, objeto da impugnação alargada de decisão de facto ao abrigo do art. 412º, n.ºs 3 e 4, a analisar infra, e não da impugnação restrita prevista no art. 410º, n.º 2.
Aquilo que o recorrente questiona é o modo como o tribunal a quo valorou a prova produzida, ou seja, o uso que fez do princípio da livre apreciação da prova, sem apontar à decisão recorrida qualquer erro notório, no sentido em que este vício deve ser entendido, ou seja, como resultando do próprio texto da decisão posta em crise.
Com efeito, o recorrente invoca o apontado vício como corolário da sua própria apreciação da prova, chamando à colação elementos externos ao texto do acórdão recorrido, confundindo, pois, vício da decisão judicial com erro de julgamento.
De todo o modo, uma vez que os vícios previstos no art. 410º, n.º 2, são de conhecimento oficioso, sempre diremos que, do texto da decisão sob escrutínio, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum, não resulta a verificação do invocado erro notório na apreciação da prova, porquanto não se deteta ostensivamente que o tribunal tenha violado as regras da experiência comum ou feito uma apreciação da prova manifestamente incorreta, desadequada, ilógica, arbitrária ou contraditória, o que afasta a existência de qualquer vício de raciocínio nessa apreciação, que se evidencie aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que se traduza em ter-se dado como provado algo que não se provou ou que não pode ter acontecido.
Na perspetiva da lógica interna da decisão e em face do respetivo texto, os factos em apreço, dados como provado nos pontos 13º e 15º, ou seja, que era o recorrente a conduzir o veículo automóvel, têm perfeito suporte na prova elencada na motivação da decisão de facto e na valoração que dela foi feita, concretamente, as declarações dos demandantes em audiência, que apesar de contraditórias com os depoimentos prestados em inquérito, o tribunal a quo teve como credíveis e isentas, pelas razões que explicitou de forma lógica e racional, considerando justificadas e dissipadas tais contradições, em conjugação com os demais elementos de natureza indiciária que permitem ligar o arguido à prática dos factos.
Pelo exposto, improcede a questão do vício de erro notório na apreciação da prova.

3.4 – 4ª Questão: a impugnação da matéria de facto por erro de julgamento

3.4.1 - Enquanto concretização do duplo grau de jurisdição na matéria de facto, previsto no art. 428º, segundo o qual os tribunais da relação conhecem não só de direito mas também de facto, o erro de julgamento resulta da forma como foi valorada a prova produzida e ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tenha sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Tal erro pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada ou não provada nos termos em que o foi.
Nesta forma de impugnação ampla, os poderes de cognição do tribunal de recurso não se restringem ao texto da decisão recorrida (como acontece com os vícios previstos no art. 410º, n.º 2), alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos n.ºs 3 e 4 do art. 412º, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431º, al. b).
Todavia, conforme jurisprudência uniforme[17], esse recurso sobre a matéria de facto não visa a realização de um segundo e novo julgamento, com base na audição das gravações e na apreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, como se esta não existisse, destinando-se antes a obviar a eventuais erros ou incorreções da mesma, na forma como apreciou a prova, quanto aos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O que se visa é, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente especifique como incorretamente julgados, através da avaliação das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida.
Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador, importa ter presente que entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, nos termos do qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Tal não significa que a atividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais.
Concedendo esse princípio uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, o julgador deverá ser capaz de o fundamentar de modo lógico e racional.
A livre apreciação da prova (ou do livre convencimento motivado) não se pode confundir com a íntima convicção do juiz, assente numa apreciação arbitrária dos meios de prova, impondo-lhe a lei que extraia deles um convencimento lógico e motivado, avaliando-os com sentido de responsabilidade e bom senso.
Mais se exige que o julgador indique os fundamentos que foram decisivos para a formação da sua convicção, ou seja, os meios concretos de prova e as razões ou motivos pelos quais relevaram ou obtiveram credibilidade no seu espírito. Não basta indicar o concreto meio de prova gerador do convencimento, urgindo expressar a razão pela qual, apoiando-se nas regras de experiência comum, o julgador adquiriu, de forma não temerária, a convicção sobre a realidade de um determinado facto.
Se a decisão factual da primeira instância se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível, optando por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção, obtida com os benefícios da imediação e da oralidade, apenas deverá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização, pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe analisar o processo de formação da convicção do julgador do tribunal a quo, verificando se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar, não bastando, para uma eventual alteração, uma diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova produzida.
Por isso, a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzem a ela, já não o devendo ser quando, perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente. Ou seja, o tribunal da relação só pode e deve determinar uma modificação da matéria de facto quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão[18].

No entanto, como é salientado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20-01-2010[19]:

«Nos limites da impugnação, o regime do recurso em matéria de facto, se não exige do tribunal de recurso uma avaliação global, impõe-lhe, todavia, como se referiu, que confronte o juízo sobre os factos do tribunal recorrido com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifica nas conclusões da motivação.
A decisão do recurso sobre a matéria de facto exige que aprecie se, no caso concreto, a matéria de facto, rectius, os pontos questionadas da matéria de facto, tem efetivo suporte, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados na decisão recorrida e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem «decisão diversa». (…)
Mas a convicção autónoma sobre o sentido da decisão em matéria de facto relativamente aos pontos questionados só poderá resultar da ponderação, em concreto, das provas identificadas pelo recorrente que o tribunal de recurso deve analisar em juízo e ponderação autónomos; as razões da convicção têm de ser as razões da convicção do próprio tribunal formadas perante os elementos de prova que ponderou nos limites do recurso, e não a assunção ou a recuperação genéricas da convicção ou dos termos da convicção do tribunal recorrido. (…)
Com efeito, a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto tem como pressuposto que o princípio da livre apreciação da prova (e a livre convicção, no sentido materialmente adequado do conceito) não esteja deferido, ou seja passível de aplicação, apenas ao tribunal de 1ª instância, mas também à instância de recurso no limite dos poderes de cognição definidos pela delimitação do recorrente.
A livre convicção do tribunal de recurso substitui-se, nos limites da cognição, à convicção do tribunal recorrido, aceitando-a na identidade de apreciação, ou sobrepondo-lhe, se for o caso, a sua própria convicção.»
Em suma, o tribunal de recurso deve verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova nela indicados e os meios de prova apontados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa.
Assim se compreende a exigência que é feita nas als. a), b) e c) do n.º 3 do art. 412º, no sentido de o recorrente que pretenda impugnar amplamente a decisão sobre a matéria de facto ter de especificar, respetivamente, os concretos pontos da mesma que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, sendo caso disso, as que devem ser renovadas.

3.4.2 - Na conclusão IX, o recorrente indica como factos individualizados que, em seu entender, foram erroneamente julgados, os pontos transcritos nas conclusões III a VIII, ou seja, os factos dados como provados sob os n.ºs 5º, 6º, 13º, 14º, 15º e 16º da matéria assente, que têm o seguinte teor (transcrição):

«5. Imediatamente a seguir, entrou, apeado e de forma apressada, o J. S., também vindo da mesma zona de entrada onde entrou o veículo conduzido pelo ofendido.
6. Em ato contínuo, entrou, pela mesma entrada, o veículo de marca BMW, modelo 187 (Série 1), de cor cinza, conduzido pelo arguido J. B., cuja matrícula aposta não coincidia com a verdadeira por ter havido uma alteração quanto aos dois primeiros números que a compunham.
(…)
13. Nesse seguimento, surgiu o tal J. S., o qual saiu do interior da viatura conduzida pelo arguido J. B. e que este imobilizou a pouca distância do veículo dos ofendidos, estabelecendo diálogo com estes, disponibilizando-se para os ajudar nessa mudança do pneu.
14. Em seguida, o tal J. S. dirigiu-se à ofendida, dizendo-lhe que a bolsa que trazia estava a cair, tendo, em ato contínuo, alcançado a bolsa que esta transportava, puxando-a com força, sendo que apesar de esta ter resistido por alguns instantes, logrou apropriar-se da mesma, causando àquela uma dor física.
15. Ato contínuo, o arguido J. B. retomou a marcha do veículo por si conduzido de forma a alcançar o J. S., no qual este entrou de forma rápida, iniciando-se a fuga de ambos.
16. O veículo usado e conduzido pelo arguido J. B. ostentava uma matrícula distinta da sua (que é a matrícula LB), com uma alteração nos seus dois primeiros números, de modo a dificultar a sua identificação.»
Para cumprir o ónus de especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida [al. b) do n.º 3 do art. 412º], o recorrente terá de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.
Exige-se, pois, que o recorrente refira o que é que nos meios de prova por si especificados não sustenta o facto dado por provado ou que sustenta o facto dado como não provado, de forma a relacionar o seu conteúdo específico, que impõe a alteração da decisão, com o facto individualizado que se considera incorretamente julgado.

3.4.3 - No caso vertente, ao indicar o conteúdo específico dos meios de prova que, em seu entender, impõem decisão diversa da recorrida quanto aos factos impugnados, com explicitação das razões desse entendimento, o recorrente limita-se aos segmentos da referida factualidade em que é dado como provado que o veículo de marca BMW, modelo 187 (Série 1), era conduzido por ele (arguido J. B.), pretendendo, assim, que tal facto seja dado como não provado e, consequentemente, que seja absolvido dos crimes de roubo e de falsificação de documento, por não ter tido intervenção nos mesmos.
Assim, a impugnação tem-se necessariamente como circunscrita a esse facto, incluído na redação dada aos pontos 6º, 13º, 15º e 16º.
O inconformismo do recorrente prende-se com a avaliação feita pelo tribunal a quo relativamente às declarações prestadas pelos demandantes e ofendidos, M. L. e marido, M. A., sobre a identificação do condutor do referido veículo.
Para tanto, alega que, atenta a discrepância existente entre o que ambos declararam em julgamento, ao afirmarem que o dito veículo era conduzido por um homem, e os depoimentos que prestaram em sede de inquérito, ao dizerem que se tratava de uma senhora, o Tribunal Coletivo, perante duas versões antagónicas e incompatíveis sobre a mesma realidade, não podia optar pelas declarações prestadas em julgamento e, com base nelas, dar como provado que era o arguido quem conduzia a viatura, simplesmente por considerar que tais declarações se mostraram isentas e credíveis, posto que perentórias, sem as testemunhas terem justificado as ditas discrepâncias.

Vejamos se lhe assiste razão.

A ofendida M. L., aquando da apresentação da denúncia, no dia dos factos (08-01-2015), afirmou que o veículo em que entrou o indivíduo que lhe sacou a bolsa e que saiu do local a alta velocidade, "era conduzido por uma senhora de idade desconhecida, cor branca, de cabelo curto, alourado, que vestia camisola cor de sulfato", bem como que, momentos antes, "quando se encontrava no interior da Caixa ..., onde efetuou um levantamento de cerca de € 2.000,00, apercebeu-se da presença de uma senhora com as características acima descritas (acrescenta que teria cerca de 40 anos de idade e que vestia umas calças cinzentas), que por duas vezes se encostou a si", e ainda que, no seu entender, "esta senhora e respetivo companheiro a terão seguido" (auto de denúncia junto a fls. 18).
No dia seguinte, ao ser inquirida pelo órgão de polícia criminal, confirmou o conteúdo do auto de notícia e reafirmou que o referido veículo era conduzido por uma senhora (auto de fls. 52).
Reinquirida, no dia 14-01-2015, esclareceu que "referiu nos autos uma pessoa do sexo feminino como eventualmente implicada, por ter verificado uma senhora no interior da Caixa ... com atitudes esquisitas, originando a referi-la aquando da apresentação da denúncia, sendo certo que após o esticão e consequentemente a fuga dos autores, associou a senhora como condutora através da cor da camisola, sendo certo que nessa altura não chegou a ver a cara da pessoa que ia a conduzir, mas reparou que essa pessoa tinha algo na cabeça, de cor preta, pelo que desconhece se se tratava de pessoa do sexo feminino ou oposto" (auto de fls. 117).
Por seu turno, o ofendido M. A., no dia 09-01-2015 declarou ao órgão de polícia criminal que o indivíduo que se prontificou a ajudá-lo a mudar o pneu tinha saído de um carro, "ficando ao volante uma senhora da qual não tem qualquer referência fisionómica" e que, alguns minutos depois, quando esse indivíduo retirou, por esticão, a bolsa da sua mulher, "surgiu a senhora a conduzir tal veículo, abrandando junto ao suspeito que, por sua vez, veio a introduzir-se nesse veículo, abandonando, logo de seguida, o local, em alta velocidade" (auto de fls. 54).
Igualmente reinquirido, a 14-01-2015, confirmou todo o conteúdo dessas declarações, esclarecendo que "soube através da ofendida que era uma mulher que ia ao volante do veículo que recolheu o autor do esticão, pelo que referiu nessas declarações a tal senhora que, pelo atrás referido, efetivamente não chegou a ver, desconhecendo se era pessoa do sexo feminino ou masculino (auto de fls. 120).
Como consta da motivação da decisão de facto e se constata pela audição das respetivas declarações, em julgamento, ambos os demandantes declararam que os agentes dos factos eram dois indivíduos do sexo masculino, tal como o tribunal a quo veio a dar como provado, o que, conjugadamente com a demais prova produzia, permitiu a conclusão de que um deles era o ora recorrente, segmento contra o qual este se insurge.
Tendo as referidas declarações em inquérito sido validamente lidas na audiência ao abrigo do disposto no art. 356º, n.ºs 2, al. b), e 5 (cf. ata de fls. 3829 a 3832), o Tribunal Coletivo defrontou-se com a apontada contradição, que diligentemente procurou dilucidar.
Nesse seguimento, a demandante M. L. declarou que não disse à GNR que a pessoa que esteve ao pé de si na Caixa ... e que depois estava ao volante do veículo era uma mulher, mas sim que usava uma camisola com "cor de mulher", querendo com isso significar cor habitualmente usada por pessoas do sexo feminino (cf. depoimento prestado a 25-09-2019, a partir do minuto 30:33).
Por seu turno, o demandante M. A. afirmou estar convencido não ter dito que a pessoa em causa era uma mulher, pois eram efetivamente dois homens (cf. depoimento prestado no mesmo dia, a partir do minuto 13:22 e do minuto 22:16).
Todavia, na sessão do dia 09-10-2019, provavelmente preocupados com a ordenada extração de certidão para efeitos de eventual procedimento criminal por falsidade de testemunho, os demandantes solicitaram que fossem novamente ouvidos, a fim de esclarecerem o declarado na sessão anterior, o que o tribunal deferiu.
Nessa sequência, a demandante, justificando-se com o facto de nessa sessão não se ter recordado das declarações que prestou à GNR, dado o longo período de tempo decorrido, afirmou que, após um esforço de memória, recordou-se ter dito que a pessoa em causa era uma mulher, por estar ciente disso por causa da cor da camisola da mesma e por ter ficado convencida que a pessoa que se aproximou de si na Caixa ... era uma mulher, mas que não reparou, sendo afinal um homem, que depois viu a conduzir o veículo.
Por seu lado, o demandante reafirmou que as duas pessoas que circulavam no carro eram do sexo masculino.

Ora, o Tribunal Coletivo, ao escalpelizar as declarações dos demandantes, em ordem a justificar por que razão lhe pareceram credíveis e isentas, não se furtou a analisar a contradição apontada pelo recorrente relativamente ao género (masculino) dos dois autores dos factos, explicitando assertivamente o raciocínio lógico em que assentou a sua convicção, como se retira do seguinte trecho da motivação da decisão de facto (transcrição):

«(…) apreciados quer o teor da denúncia quer as declarações da ofendida e do seu marido em sede de inquérito e em sede de julgamento, poderíamos, numa análise apressada, concluir pela existência de uma contradição insuperável e levar a que o tribunal ficasse com dúvidas quanto à autoria dos factos.
Porém, da análise mais atenta, conjugada em particular com o visionamento das imagens recolhidas no interior da CAIXA ... e no interior e exterior do “Supermercado ...” que efectuámos na audiência de julgamento (e que retiram a “paralisação” dos fotogramas), encontrámos de forma absolutamente arrebatadora a resposta objetiva e clara para as razões que levaram a que a ofendida, uma mulher com 74 anos de idade à data dos factos e de linguagem simples, tivesse feito as afirmações que fez.
Na verdade, da visualização das imagens recolhidas na CAIXA ..., pudemos verificar que houve efetivamente uma mulher que esteve bem próxima da ofendida no balcão da CAIXA ..., quando esta estava a receber o seu dinheiro, a qual envergava uma camisola “cor de sulfato” (cor que é assim mencionada por uma mulher que vive numa zona essencialmente rural e onde a utilização deste tipo de produto químico é frequente).
Mas que importância terá este pormenor?
A resposta a esta interrogação é simples: visualizadas as imagens do “Supermercado ...” verificou-se que o tal J. S. envergava uma camisola precisamente “cor de sulfato”, daí que a ofendida tenha feito esta associação de imagens por referência à tal mulher da CAIXA .... E sendo a ofendida idosa (à data com 74 anos, como vimos) é consabido que as pessoas a partir de uma determinada idade se tornam naturalmente mais desconfiadas e, em face de tudo o que lhe aconteceu e do trauma que naturalmente sofreu, fez aquelas declarações de uma forma absolutamente genuína.
Assim, com relação ao teor de tais declarações, afigura-se-nos pertinente realçar que, não obstante algumas dificuldades de expressão verbal na transmissão do que se passou, que ficaram notoriamente a dever-se à sua humilde condição social e baixo nível cultural e de instrução e que, associadas ao desconforto que o assunto provoca à sua verbalização e ao próprio confronto (forte, diga-se) a que foi sujeita em face daquela supra mencionada confusão ao longo da audiência de julgamento, sobretudo por uma parte de uma pessoa com consideráveis dificuldades dessa natureza, acentuaram ainda mais essas dificuldades, a ofendida descreveu os factos nos termos que vieram a dar-se como assentes, sem que daí tenha resultado prejudicada a espontaneidade, sinceridade e credibilidade das suas declarações.
Na verdade, tais complicações não foram impeditivas de que com relação a esta materialidade, tenha prestado as suas declarações de um modo suficientemente claro, objetivo e consistente (em conjugação com a visualização das imagens e não apenas dos fotogramas - que nunca é demais repeti-lo), e que o tribunal considerou sincero, designadamente, em razão da amargura e da revolta que foi exteriorizando ao longo das declarações que prestou, enquanto procedia à descrição dos factos, o que sempre sem relevantes hesitações, e com absoluto rigor sequencial e cronológico, associada à evidente constatação que se extrai do contacto direto com a ofendida, mulher simples e humilde, que revela uma capacidade ou nível intelectual, pouco acentuada, e que torna pouco provável que os factos relatados possam ser fruto de fantasias ou confabulações pessoais ou induzidos por outrem, construídos em ordem a obtenção de benefícios secundários ou para tirar desforço de alguém, sendo também estas as principais razões por que o tribunal considerou as suas declarações merecedoras de credibilidade.
E o mesmo se diga em relação ao seu marido, também ofendido, o qual se reportou igualmente à existência de uma mulher nas suas declarações de fls. 54 e que depois corrigiu quer nas declarações que prestou e constantes a fls. 120 quer na audiência de julgamento, sendo certo que tal confusão terá advindo, certamente, daquilo que a mulher então lhe transmitiu e que também a confundiu como já vimos supra. Ademais, e pese embora tenha visto “o esticão” feito à mulher, o certo que, estando o ofendido mais concentrado na mudança do pneu, não terá estado certamente atento a todas as características individuais do homem por que foi abordado nem tão-pouco daquele que se encontrava no interior do veículo.
Pelas razões vindas de aduzir, as suas declarações afiguraram-se-nos igualmente merecedoras de credibilidade.
Ademais, quer aquelas declarações dos demandantes quer os depoimentos das testemunhas encontram sustentabilidade nos restantes elementos de prova supra enunciados, em particular as imagens recolhidas e que o tribunal teve o cuidado de visualizar.»

Em suma, a coincidência de um dos participantes no assalto vestir uma camisola de cor invulgar (sulfato), idêntica à da camisola da mulher que, momento antes, no balcão da Caixa ..., esteve ao lado da demandante e a viu receber o dinheiro que esta levantou, fez com que a mesma associasse esses factos e inferisse que a referida mulher, sabedora de que ela tinha consigo uma considerável quantia monetária, a seguiu, estando, pois, envolvida no assalto. Nessa decorrência, como o indivíduo que saiu do veículo automóvel em que os dois assaltantes se fizeram transportar e que lhe sacou a bolsa era um homem, e como não se apercebeu das características físicas da pessoa que estava ao volante desse veículo, presumiu que esta seria a referida mulher.
Ora, pelas razões explanadas no transcrito excerto da motivação da decisão de facto, mormente as humildes condições pessoais da demandante, a desconfiança que sentiu relativamente à mulher que viu na Caixa … e a situação traumatizante por que passou, é perfeitamente natural que a mesma tenha feito a referida associação e a subsequente inferência.
Aliás, tal explicação já ela apresentara na sua reinquirição em inquérito dia 14-01-2015, certamente ao ser confrontada com o facto de nas imagens recolhidas no "Supermercado ..." os suspeitos serem dois indivíduos do sexo masculino, esclarecendo, como supra expusemos, que na apresentação da denúncia referiu estar implicada uma mulher por ter associado a cor da camisola com a da senhora que viu na Caixa ... em atitude suspeita, sendo que não chegou a ver a cara da pessoa conduzia o veículo, desconhecendo se era do sexo feminino ou masculino.
Por seu turno, o demandante, igualmente reinquirido em inquérito, esclareceu que não se apercebeu do género do condutor do veículo, tendo afirmado que era uma senhora com base no que a esposa lhe tinha dito.
É certo que subsiste uma discrepância entre essas segundas declarações dos ofendidos em inquérito e aquilo que os mesmos declararam em audiência, ao afirmarem categoricamente que os dois assaltantes eram do sexo masculino.
Da mesma forma que a justificação apresentada pela demandante na sessão do dia 09-10-2019 não é completamente compreensível, uma vez que a pessoa que se aproximou dela na Caixa ... é uma mulher e não um homem, como resulta da visualização das imagens e, aliás, o tribunal a quo considerou.
Todavia, não podemos olvidar o contexto e a finalidade desta nova audição em audiência, a solicitação da própria, visando tornar compatíveis todas as declarações prestadas no processo, de modo a evitar o referido procedimento criminal.
Por seu lado, como bem considerou o tribunal a quo, a mencionada discrepância entre as segundas declarações em inquérito e as efetuadas em audiência não é impeditiva da atribuição de credibilidade a estas últimas, quer pela forma isenta, desinteressada, objetiva, espontânea e consistente como foram prestadas, quer, sobretudo, por terem sido corroboradas por outros meios de prova.
Desde logo, pelas imagens recolhidas no interior e no exterior do "Supermercado ...", onde são identificáveis dois suspeitos do sexo masculino, um deles efetivamente envergando uma camisola cor sulfato (ainda que sendo o J. S.).
Mas também por vários elementos de natureza indiciária que, inclusivamente, apontam de forma inequívoca para a participação do arguido nos factos.
Em primeiro lugar, a circunstância de o veículo BMW utilizado no assalto estar registado em seu nome, como resulta da pesquisa ao registo automóvel de proprietários e da cópia do documento único, juntos a fls. 62 e 1865, respetivamente.
Também o facto de os dados de localização celular relativos ao cartão Sim da Uso que se encontrava no telemóvel da marca Samsung apreendido na busca efetuada à residência do arguido, sita na zona de …, revelarem que entre os dias 5 e 9 de janeiro de 2015, aquele cartão operou em telemóvel com localizações na região norte (Porto, Trofa e Guimarães), incluindo no dia 08, pelas 18:27, ou seja, cerca de três horas após os factos, na última referida localidade (cf. fls. 3073).
Bem como a apreensão, na mesma busca, de uma peça de vestuário (casaco de cor bege) em tudo semelhante ao usado pelo suspeito identificado nas imagens captadas na Caixa ... (cf. fls. auto de apreensão de fls. 1793 a 1795 e 2ª fotografia de fls. 1818). E ainda a apreensão, na busca ao interior de um outro veículo, alugado e utilizado pelo arguido, de marca Seat Leon, de dois autocolantes em material retrorrefletor, com os algarismos "69" e um autocolante no mesmo material, com as letras "TT", habitualmente utilizados na alteração de matrículas de veículos utilizados na prática de crimes, como sucedeu no caso dos autos (cf. autos de busca e apreensão de fls. 1830 a 1844).
Por fim, o depósito em numerário na conta bancária do arguido, no dia 12-01-2015, ou seja quatro dias após o assalto, da quantia de € 900,00 (cf. fls. 752), correspondente a metade do valor da quantia subtraída aos ofendidos, o que é compatível e altamente sugestivo de uma divisão igualitária do produto do roubo pelos dois participantes no mesmo.
Importa ter presente que nem só quando o arguido confessa os factos, quando ocorrem situações de flagrante delito, quando há testemunhas presenciais ou outras fontes de prova direta é que poderá haver condenações, sob pena de se permitirem amplos espaços de impunidade[20]. Com efeito, são variadas e frequentes as situações em que não há prova direta sobre os factos porque, normalmente, o agente do crime procura cometê-lo sem ser notado, às escondidas, dissimulada ou sorrateiramente, sem que por isso possa deixar de ser punido.
Apesar das objeções que ainda lhe são colocadas[21], presentemente está consolidado na jurisprudência[22] e na doutrina[23] o entendimento de que, para a prova dos factos em processo penal, é perfeitamente legítimo o recurso à prova indireta, indiciária, circunstancial ou por presunções, reconhecendo-se-lhe um papel fundamental e uma virtualidade incriminatória para afastar a presunção de inocência. Assim, a prova segura dos factos relevantes pode resultar de um raciocínio lógico e indutivo com base em factos ou acontecimentos instrumentais ou circunstanciais, mediante a aplicação de regras gerais empíricas ou de máximas da experiência.
Quer a prova direta quer a prova indireta são modos igualmente legítimos de chegar ao conhecimento da realidade do factum probandum: pela primeira via ou método, “a perceção dá imediatamente um juízo sobre um facto principal”, ao passo que na segunda “a perceção é racionalizada numa proposição, prosseguindo silogisticamente para outra proposição, à base de regras gerais que servem de premissas maiores do silogismo, e que podem ser regras jurídicas ou máximas da experiência. A esta sequência de proposição em proposição chama-se presunção”[24].
Sendo admissíveis em processo penal as provas não proibidas por lei (art. 125º), nelas se inclui necessariamente a prova por presunções, que embora prevista em termos gerais no art. 349º do Código Civil, é válida como definição do meio ou processo lógico de aquisição de factos no processo penal.
Essa prova por presunções parte de um facto conhecido (o facto base, facto indiciante ou, simplesmente, indício) para afirmar um facto desconhecido (o factum probandum ou facto consequência), recorrendo a um juízo de normalidade (de probabilidade), alicerçado em regras da experiência comum, que permite chegar, sem necessidade de uma averiguação casuística, a um resultado verdadeiro. Bastam, pois, as presunções simples, naturais ou hominis, que se encontram na base de qualquer juízo probatório, enquanto meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção, e que cedem por simples contraprova, ou seja, por prova que origine a dúvida sobre a sua exatidão no caso concreto.
A prova indiciária ou indireta é, pois, aquela que se refere a factos diversos do tema da prova (prova direta), mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto a esse tema.
Materialmente, os requisitos do funcionamento da prova indiciária exigem, em primeiro lugar, que os factos indiciários estejam plenamente provados, desejavelmente por prova direta.
Por outro lado, que a base indiciária seja constituída por uma pluralidade de indícios, embora seja de admitir a suficiência de um só, desde que assuma uma relevância especial, ou seja, que tenha uma particular força persuasiva.
Conforme refere Santos Cabral[25], «[q]uando não se fundamentem em leis naturais que não admitem exceção, os indícios devem ser vários.
Todavia, a exigência formulada por alguns autores no sentido de existência de um determinado número de indícios concordantes não se afigura de todo razoável e antes se reconduzir a uma experiência matemática de algo que se situa no domínio da lógica. De concreto pensamos que apenas se pode formular a exigência daquela pluralidade de indícios quando os mesmos considerados isoladamente não permitirem a certeza da inferência.
Porém, quando o indício, mesmo isolado, é veemente, embora único, e eventualmente assente apenas na máxima da experiência o mesmo será suficiente para formar a convicção sobre o facto.»
Mais se exige que os vários indícios sejam graves, precisos e concordantes.
A gravidade do indício está diretamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste às objeções e que tem uma elevada carga de persuasividade, como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. De todo o modo, quando são plurais, os indícios não têm que ser todos graves, a ponto de um pequeno indício, quando conjugado com outro ou outros, poder ter uma importância determinante.
Por seu turno, o indício é preciso quando não é suscetível de outras interpretações. Mas, sobretudo, o facto indiciante deve estar amplamente provado.
Por fim, os indícios devem ser concordantes, convergindo na direção da mesma conclusão. Resultando a prova indiciária do concurso de vários factos que demonstram a existência de um terceiro, que é precisamente aquele que se pretende averiguar, a concorrência de vários indícios numa mesma direção, partindo de pontos diferentes, aumenta as probabilidades de cada um deles com uma nova probabilidade que resulta da união de todas as outras.
Verificados estes requisitos, o funcionamento da prova indiciária desenvolve-se em três momentos distintos: a demonstração do facto base ou indício que, num segundo momento, faz despoletar no raciocínio do julgador uma regra da experiência ou da ciência, que permite, num terceiro momento, inferir outro facto, que será o facto sob julgamento. Assim, em primeiro lugar é necessário que os indícios sejam verificados, precisados e avaliados. Em seguida, tem lugar a sua combinação ou síntese. Esta operação intelectual efetiva-se com a colocação respetiva de cada facto ou circunstância acessória, e a sua coordenação com as demais circunstâncias e factos, e dá lugar à reconstrução do facto principal. Esta síntese de factos indicadores constitui a pedra de toque para avaliar a exatidão e valor dos indícios, assim como também releva para excluir a possibilidade de falsificação dos indícios.
Relevante é que haja uma compreensão global dos indícios existentes, através do estabelecimento de correlações intrínsecas e apelando à razão e às regras da lógica, que permite e avaliza a passagem da multiplicidade de probabilidades, mais ou menos adquiridas, para um estado de certeza sobre o factum probandum. É, pois, fundamental que os indícios e as máximas da experiência (elementos de uma operação lógica, de um raciocínio indutivo) sejam aptos a converter-se em prova inequívoca, eliminando a dúvida razoável, sobre o facto-consequência. A essência da prova indiciária reside na conexão entre o facto-base e o facto-consequência, fundamentada no princípio da normalidade conectado a uma máxima da experiência. Mas, sendo esta uma regra, não pertencendo ao mundo dos factos, origina um juízo de probabilidade e não de certeza. Daí que a força probatória de um indício seja maior ou menor consoante seja mais ou menos estreito o nexo lógico e prático entre ele (facto indiciante) e o factum probandum.
Do exposto resulta que o princípio da normalidade, como fundamento que é de toda a presunção abstrata, concede um conhecimento que não é pleno, mas sim provável. Mas, só quando a presunção abstrata se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respetiva valoração judicial, se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.

Sintetizando, podemos dizer que, pese embora a prova indiciária não tenha uma regulamentação legal específica[26], o direito à presunção de inocência poderá ser posto em causa através de uma prova indireta ou indiciária, sempre que concorram as seguintes condições:

- Uma pluralidade de factos-base ou indícios (embora possa bastar apenas um, especialmente relevante), que sejam graves, precisos e concordantes.
- Alcançados a partir de prova direta (testemunhal, pericial, documental, etc.), com observância dos requisitos de validade do procedimento probatório.
- Carácter periférico dos factos-base relativamente ao facto a provar.
- Inter-relacionação entre os factos-base.
- Racionalidade do juízo de inferência, conforme com as regras da vida e da experiência comum ou com base em conhecimentos técnicos ou científicos comummente aceites.
- Expressão na decisão da motivação de como se chegou à inferência.

No entanto, é inquestionável que a avaliação dos indícios pelo juiz implica uma especial atenção aos factos que se alinham num sentido oposto ao dos indícios culpabilizantes, pois que a sua comparação é que torna possível a decisão sobre a existência e a gravidade das provas.
Os factos que visam o enfraquecimento da responsabilidade do agente sustentada na prova indiciária, são de duas ordens: uns impedem absolutamente esse efeito ou, pelo menos, dificilmente permitem a sua afirmação (factos chamados de indícios da inocência ou contra presunções). Os outros debilitam os indícios e permitem a afirmação de uma explicação inteiramente favorável ao arguido sobre os factos que permitiam afirmar a convicção de responsabilidade criminal (são chamados de contraindícios, porque emergem da necessidade de contrapor aos indícios culpabilizantes outros factos indício que aniquilem a sua força em face das regras de experiência).
Tal como perante os indícios, também para o funcionamento destes contraindícios é imperioso o recurso às regras da experiência e a afirmação de um processo lógico e linear que, sem qualquer dúvida, permita estabelecer uma relação de causa e efeito perante o facto contra indiciante, infirmando a conclusão que se tinha extraído do facto indício. O funcionamento do contraindício (indício negativo) tem como pressuposto básico a afirmação de uma regra de experiência que permita, perante um determinado facto, afirmar que está debilitada a conclusão que se extraiu dos indícios de teor positivo. O contraindício destina-se a infirmar a força da presunção produzida e, caso não tenha capacidade para tanto, pela sua pouca credibilidade, mantém-se a presunção que se pretendia ilidir.
Note-se, porém, que, sendo certo que em teoria tudo é possível, não serão meras possibilidades abstratas que têm a virtualidade de destruir o juízo de inferência que conduz ao factum probandum.
Existindo a possibilidade razoável de uma solução alternativa, ou de uma explicação racional e plausível diferente, dever-se-á sempre aplicar a mais favorável ao acusado, de acordo com o princípio in dubio pro reo.
Ora, operando com as enunciadas regras sobre o funcionamento da prova indireta ou indiciária, parece-nos seguro que os apontados elementos consubstanciam um conjunto de “factos base” ou indícios, interrelacionados, obtidos por prova direta, que não só apontam para uma fortíssima probabilidade do envolvimento do recorrente na prática dos factos dados como provados nos pontos por ele impugnados, como não admitem explicações alternativas plausíveis, inexistindo também contraindícios a sopesar, pelo que são aptos a estabelecer uma ligação precisa e direta ou um juízo de inferência seguro com os factos probandos, em termos de se alcançar uma certeza jurídica sobre a sua ocorrência.
Embora o funcionamento de tal presunção pudesse ser afastado ou enfraquecido por eventuais explicações que o arguido, dispondo-se a prestar declarações, apresentasse para a utilização do seu veículo na prática dos factos, para a sua presença na zona norte no dia dos mesmos (residindo ele em …), para ter em seu poder os referidos autocolantes em material retrorrefletor e para o mencionado depósito bancário na sua conta, o certo é que em momento algum, mormente em audiência, o fez, não tendo sequer comparecido ao julgamento, que decorreu na sua ausência.
Assim, permanece intocado o juízo probatório fundado na presunção natural decorrente desses factos indiciários, não sendo, de todo, correta a alegação do recorrente de que só através das declarações dos demandantes em audiência se entendeu pô-lo na cena do roubo (conclusão XXX), pelo que se mostra inteiramente justificada a opção do tribunal a quo.

3.4.4 - Donde se infere não ter também cabimento a violação do princípio in dubio pro reo, igualmente invocado pelo recorrente (conclusões XXXI e LIII).
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, será dado como não provado se lhe for desfavorável, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa.
Contudo, para tanto não basta dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou que derivem da sua interpretação da factualidade revelada nos autos. Acresce que não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio, mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada. A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio[27].
A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Terá de ser uma dúvida séria, positiva, racional e que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a íntima convicção do tribunal, que seja argumentada e coerente.
Em suma, o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
No âmbito dos seus poderes de cognição sobre a matéria de facto, compete ao tribunal da relação sindicar a concreta utilização do princípio in dubio pro reo por parte da primeira instância.
Com efeito, a violação desse princípio pode resultar da análise do texto da própria decisão recorrida e do processo decisório nela evidenciado, ocorrendo quando se concluir que o tribunal recorrido ficou em dúvida quanto a elementos que permitem estabelecer o grau de culpabilidade do arguido e, nesse estado de dúvida, decidiu contra ele, o que não sucede no caso vertente, uma vez que a motivação da decisão de facto é clara em arredar a existência de qualquer dúvida sobre a participação do arguido nos factos.
Para além dessa situação, de verificação pouco frequente, a imputação da violação do princípio in dubio pro reo torna necessário demonstrar a existência de erro na apreciação dos meios probatórios produzidos, através do reexame dos mesmos, com vista a evidenciar que, em face da carência ou insuficiência da prova, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida quanto a factos relevantes para a responsabilidade criminal do arguido.
No caso vertente, o recorrente faz assentar a alegada violação desse princípio na circunstância de o Tribunal Coletivo ter dado como provada a sua intervenção nos factos, nomeadamente por ter atribuído credibilidade às declarações prestadas pelos demandantes em audiência ao afirmarem que os assaltantes eram dois homens.
Porém, pelas razões expostas, é de concluir pela inteira correção desse juízo de inferência lógica efetuado pelo tribunal a quo, o que, no âmbito da reapreciação da prova, afasta a conclusão de que os Mmºs. Juízes deveriam ter ficado em estado de dúvida sobre os factos impugnados.
Concluímos assim que, em relação a esses pontos de facto, o tribunal a quo, norteando-se pelo princípio da livre apreciação da prova e pelas regras da experiência comum, procedeu a uma avaliação global da prova produzida, nada havendo a censurar no processo lógico e racional subjacente à formação da sua convicção, o qual se mostra explicitado em termos perfeitamente percetíveis e assimiláveis, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, pelo que nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em primeira instância, subtraído a qualquer dúvida, inexistindo motivos para reconhecer razão ao recorrente quando invoca a violação do princípio in dubio pro reo, não se encontrando fundamento que imponha uma decisão diferente.
Improcede, assim, a questão da impugnação ampla da matéria de facto, mantendo-se inalterada a factualidade dada como provada.

3.5 – 5ª Questão: o não preenchimento dos elementos típicos do crime de falsificação, por se tratar de uma falsificação grosseira

O recorrente, louvando-se na jurisprudência que cita[28], sustenta que os factos provados não preenchem o tipo legal de crime de falsificação de documento por que foi condenado, porquanto, tendo a matrícula do veículo automóvel aposto material sintético autocolante por cima dos números, essa alteração resultou de tal modo imperfeita que, para um qualquer observador medianamente conhecedor e informado, tornava-se imediatamente percetível que os dígitos alterados não correspondiam aos originais, querendo com isto significar que se tratava de uma falsificação grosseira.

O crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo art. 256º do Código Penal, é um crime comum, de perigo abstrato e de mera atividade, que tutela o bem jurídico segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório[29] e que tem como elementos constitutivos do respetivo tipo:

- Que o agente fabrique ou elabore documento falso [al. a) do n.º 1], falsifique ou altere documento [al. b)], abuse da assinatura de outra pessoa para falsificar ou contrafazer documento [al. c)], faça constar falsamente de documento facto juridicamente relevante [al. d)], use documento falsificado ou contrafeito [al. e)] ou, por qualquer meio, faculte ou detenha documento falsificado ou contrafeito [al. f)];
- O dolo genérico, ou seja, o conhecimento e vontade de praticar o facto, com consciência da sua censurabilidade; e
- O dolo específico, a intenção de causar prejuízo a terceiro, de obter para si ou outra para pessoa benefício ilegítimo, ou de preparar, facilitar, executar ou encobrir outro crime.

Assim, e em suma, o documento é falso quando não corresponde à realidade, o que tanto pode ocorrer com o fabrico de documentos falsos e a alteração de documentos verdadeiros (falsificações materiais), como com a falsificação do conteúdo de documento verdadeiro (falsificação ideológica).

In casu, face aos factos provados, a ação típica traduziu-se em o veículo automóvel conduzido e utilizado pelo recorrente na prática do crime de roubo ter aposta e ostentar uma matrícula que não coincidia com a verdadeira, por ter havido uma alteração quanto aos dois primeiros números que a compunham, de modo a dificultar a sua identificação (pontos 6ª e 16ª), tendo o arguido agido com o propósito de iludir a identificação do veículo e bem assim de enganar as autoridades policiais, consciente que violava um interesse do Estado na identificação e controlo dos veículos, causando-lhe um prejuízo, pois pôs em perigo a fé pública atribuída às matrículas, enquanto meio identificador dos veículos e valor de segurança e da credibilidade que a verdade intrínseca da matrícula encerra enquanto tal, atuando de forma livre, deliberada e conscientemente, sabendo ser a sua conduta proibida e punida por lei (cf. pontos 20º, 21º e 22º dos factos provados).
É pacífico o entendimento de que falsificação grosseira (não punível criminalmente) é aquela que qualquer pessoa comum pode detetar num mero exame perfunctório do documento, sem qualquer esforço, e em que a desconformidade com a realidade é, pois, imediatamente apreensível por qualquer observador.
A não punibilidade da falsificação grosseria encontra justificação na insusceptibilidade de a mesma causar qualquer prejuízo ou benefício ilegítimos, não se verificando (nem mesmo em abstrato) o perigo que a criminalização da falsificação pretende afastar.
Assim, mesmo que a falsificação de um documento (ou um uso de documento falso) se consume, mesmo que não estejamos perante simples tentativa, poderá tal falsificação (ou uso de documento falso) não ser punível se estivermos perante uma falsificação grosseira. Por esta ser notória para qualquer pessoa comum, não representa qualquer perigo, independentemente de ter sido consumada (sem qualquer resultado danoso, ou sequer qualquer perigo de resultado danosos) a falsificação do documento ou o uso do documento falso.
Sustenta o recorrente ser essa a situação que se verifica nos autos. Vejamos se assim é.
Importa começar por precisar que não tendo o recorrente impugnado a decisão sobre a correspondente matéria de facto ao abrigo do disposto no art. 412º, n.ºs 3 e 4, para que se possa concluir pela existência de um "falso grosseiro", isto é, de um documento inidóneo para enganar seja quem for, é necessário que do acórdão recorrido constem factos donde tal resulte inequivocamente. Não os havendo, não pode este tribunal de recurso suprir essa carência através da sua própria análise do documento, pois isso seria decidir sobre matéria de facto que não foi objeto de impugnação.
Ora, os factos provados de modo algum permitem concluir por uma falsificação grosseria. O que daí consta (cf. pontos 6º e 16º) é que o veículo conduzido pelo arguido ostentava uma matrícula distinta da sua, isto é, não coincidente com a verdadeira, por ter havido uma alteração nos dois primeiros números que a compunham, de modo a dificultar a sua identificação.
Ao invés do que parece pressupor o recorrente, não resulta da decisão de facto que os ditos números se apresentavam somente "desbotados ou clareados", nem tão pouco que a referida alteração se concretizou numa aposição de material sintético autocolante por cima dos números de tal modo imperfeita que a tornou imediatamente percetível. De lado algum, incluindo a motivação da decisão de facto, se infere a alegada imperfeição.
Factualidade aquela que se mantém inalterada, por não ter sido impugnada pelo recorrente nem padecer, como vimos, do vício de insuficiência para a decisão, nem ainda de qualquer outro dos vícios de conhecimento oficioso previstos no art. 410º, n.º 2.
Refira-se que, contrariamente ao que também sustenta o recorrente, do simples facto de a alteração na matrícula ser feita através da aposição de um autocolante (o que, repita-se, não se retira dos factos provados), não decorre necessariamente o carácter grosseiro da falsificação.
A natureza grosseira, ou não, da falsificação depende de não ter, ou ter, aptidão para enganar terceiros, o que implica uma avaliação consoante o fim a que se destina.
Serão, assim, as concretas circunstâncias do caso que permitirão concluir, ou não, pela natureza grosseira da falsificação, por só elas poderem revelar a possibilidade de a viciação atingir o bem jurídico protegido pela incriminação.
No caso dos autos, verificamos que o arguido e o referido J. S., atuando de comum acordo, depois de se aperceberem que a ofendida levantou uma considerável quantia em dinheiro numa instituição bancária, seguiram os ofendidos até ao parque do estabelecimento comercial onde estes estacionaram a sua viatura e furaram-lhe um dos pneus, a fim de, quando os mesmos retomassem a marcha, se vissem obrigados a parar para substituir o pneu, o que fizeram, momento em que o J. S. os abordou, oferecendo-se para os ajudar nessa tarefa, tendo puxado com força a bolsa que a ofendida trazia, apropriando-se dela e do respetivo conteúdo, contra a sua vontade, após o que se introduziu rapidamente no veículo conduzido pelo arguido, pondo-se ambos em fuga. Para tanto, fizeram-se transportar neste veículo, que ostentava uma matrícula distinta da sua, com uma alteração nos seus dois primeiros números, querendo fazer crer que lhe correspondia uma matrícula diferente da verdadeira, de modo a dificultar a sua identificação.
Claro está que a intenção dos agentes era evitar que se pudesse chegar à sua identificação através da referida chapa de matrícula, quer porque os ofendidos ou terceiras pessoas a fixassem, quer por recurso às imagens de vigilância instaladas no parque de estacionamento do estabelecimento comercial, conseguindo, assim, ficar impunes.
Neste contexto, não faria qualquer sentido usar uma chapa de matrícula falsificada se não fosse para ocultar a verdadeira identificação do veículo e, através dela, impedir a identidade do seu utilizador na prática de factos ilícitos.
Com efeito, ninguém se dá ao trabalho de viciar a matrícula de uma viatura, para a utilizar na prática de roubos, se não considerar que essa viciação é apta ao fim a que se destina, ou seja, impossibilitar a identificação do veículo e, consequentemente, do autor dos crimes, quando estes se põem em fuga, rapidamente, do local, sendo nesse momento fugaz que alguém tentará aperceber-se da matrícula e fixá-la.
Daí que, alguma eventual imperfeição na colocação de autocolantes - que, no caso, não está demonstrada - designadamente falta de alinhamento dos números ou cores visivelmente diferentes, seja irrelevante e insuscetível de revelar a existência de um falso grosseiro, se o veículo estiver em andamento, a ausentar-se rapidamente do local, ou a sua imagem for captada através de câmaras de vigilância, como efetivamente sucedeu.
É completamente diferente a perceção que se tem da chapa de matrícula de um veículo parado e observado a curta distância daquela que se tem relativamente a um veículo em andamento rápido ou visualizado em imagens captadas por uma câmara de vigilância do parque de estacionamento de um estabelecimento comercial.
Na primeira hipótese, qualquer pessoa, numa análise perfunctória da matrícula, se aperceberá de uma eventual viciação feita através da colocação de material sintético autocolante por cima dos números ou letras de forma imperfeita. O que, manifestamente, não acontecerá na segunda situação.
As concretas circunstâncias do caso não seriam, pois, aptas a revelar a existência de uma falsificação grosseira, porquanto a imagem do veículo em andamento rápido ou captada por uma câmara de vigilância não permitiria ver que a chapa de matrícula estava viciada.
Em suma, no quadro do plano posto em prática pelos autores dos factos, a viciação operada na matrícula era perfeitamente apta a provocar, como efetivamente provocou, engano acerca da identificação relevante do veículo que utilizaram no cometimento do crime de roubo, não sendo a desconformidade do documento com a realidade imediatamente apreensível por qualquer observador, pelo que, ao invés do sustentado pelo recorrente, não estamos perante um "falso grosseiro".

Pelo exposto, por não merecer censura a conclusão do tribunal a quo no sentido da verificação dos elementos típicos do crime de falsificação de documento, o recurso improcede quanto a esta questão.

3.6 – 6ª Questão: a atenuação especial da pena

Tendo sido condenado nas penas parcelares de 3 anos de prisão e de 10 meses de prisão e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução, pugna por fim o recorrente (conclusões LXIII e LXIV) pela redução desta pena única para 2 anos de prisão, alegando, para tanto, que o tribunal a quo não atendeu a que as vítimas foram totalmente ressarcidas, não atenuando, por via disso, especialmente a pena nos termos do disposto no art. 72º, n.º 2, al. c), do Código Penal, violando este dispositivo legal.

3.6.1 - De acordo com o n.º 1 do citado preceito, “[o] tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”.

Refere Figueiredo Dias[30] que “[a]o legislador compete, desde logo, estatuir as molduras penais cabidas a cada tipo de factos que descreve na PE do Código CP e em legislação extravagante, valorando para o efeito a gravidade máxima e mínima que o ilícito de cada um daqueles tipos de factos pode presumivelmente assumir. Mas porque o sistema não poderia funcionar de forma justa e eficaz se não fosse dotado, a este propósito, de válvulas de segurança, o legislador prevê ainda aquelas circunstâncias que, em casos especiais, podem agravar ou atenuar os limites máximo e (ou) mínimo das molduras penais, cabidas como regra a um certo tipo de factos (circunstâncias modificativas). (...) Quando, em hipóteses especiais, existam circunstâncias que diminuam por forma acentuada as exigências de punição do facto, deixando aparecer a sua imagem global especialmente atenuada, relativamente ao complexo «normal» de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites da moldura penal respetiva, aí teremos um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa. São estas as hipóteses de atenuação especial da pena. (...) A diminuição da culpa ou das exigências da prevenção só poderá, por seu lado, considerar-se acentuada quando a imagem global do facto, resultante da atuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respetivo.”.
Daí o entendimento de que a atenuação especial da pena só em casos extraordinários ou excecionais pode ter lugar, já que para a generalidade dos casos existem as molduras penais normais, com os seus limites máximo e mínimo próprios.
No n.º 2 do citado art. 72º são enumeradas várias circunstâncias suscetíveis de serem consideradas para o efeito do disposto no n.º 1, concretamente a que é invocada pelo recorrente: ter havido atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados [al. c)].
No entanto, tais situações não têm o efeito automático de atenuar especialmente a pena, apenas o possuindo se e na medida em que desencadeiem o efeito de diminuir, de forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção, nos termos sobreditos, funcionando esta diminuição como um verdadeiro pressuposto material da atenuação especial da pena.
Conforme resulta expressamente da letra da lei, a enumeração nela efetuada não é taxativa, podendo atender-se a outras circunstâncias aí não previstas, desde que sejam reveladoras de uma diminuição acentuada da culpa, da ilicitude ou da necessidade da pena.
Uma vez verificados os respetivos pressupostos, a atenuação especial da pena não fica no arbítrio ou na discricionariedade do juiz, antes constituindo um dever ou uma obrigação.

3.6.2 - Esclareça-se que apesar de o recorrente se limitar a aludir à pena única, pretendendo que seja reduzida por aplicação do instituto da atenuação especial da pena, o certo é que esta atenuação, a ter lugar, só ocorrerá relativamente a cada uma das penas parcelares, com reflexo, obviamente, na pena do concurso de crimes.
O recorrente fundamenta a sua pretensão no facto de ter procedido à reparação integral do dano causado aos ofendidos, o que, efetivamente, se mostra comprovado pela declaração junta aos autos por estes, já depois do encerramento da discussão da causa, dando conta que receberam integralmente dos demandados e arguidos a indemnização civil peticionada (cf. fls. 3844), mais declarando desistir da queixa apresentada contra os mesmos.
Como resulta da citada al. c) do n.º 2 do art. 72º do Código Penal, a reparação dos danos causados apenas é suscetível de conduzir ao preenchimento do pressuposto material da atenuação especial da pena na medida em que revele um arrependimento sincero do agente, nessa medida diminuindo a necessidade da pena.
O que, todavia, não será o caso, porquanto a referida reparação, por sinal de valor não muito elevado (€ 2.040,00) apenas ocorreu mais de quatro anos sobre os factos, depois da produção integral da prova e poucos dias antes da data designada para a leitura do acórdão, previsivelmente condenatório, surgindo mais como fator despoletador da desistência de queixa, válida em relação ao crime de dano, com reflexos na medida da pena, do que como revelador de um arrependimento sincero, aliás, incompatível com o inconformismo que o recorrente continua insistentemente a manifestar em relação à sua comprovada participação nos factos.
Acresce que da matéria provada resulta claro que a imagem global do facto não é especialmente atenuada, relativamente ao complexo “normal” de casos que o legislador terá tido ante os olhos quando fixou os limites das molduras penais respetivas, não se justificando, pois, proceder à atenuação especial da pena.
Com efeito, para além do emprego de violência em relação a uma pessoa de idade (74 anos), sacando-lhe a bolsa que continha, além do mais, a significativa quantia de € 1.800,00 (roubo por esticão, causando-lhe dores físicas), destaque-se o grau de planificação da conduta e os estratagemas utilizados, incluindo a vigilância na instituição bancária onde a ofendida tinha levantado aquele dinheiro, o seguimento dos ofendidos até ao parque do estabelecimento comercial onde estacionaram o seu veículo, o furo intencional do pneu deste para os obrigar a parar, oferecendo-se para os ajudar a substituí-lo, e a falsificação da matrícula da viatura em que os agentes se faziam transportar, por forma a dificultar a sua identificação, o que tudo é revelador de um grau de culpa e de ilicitude elevados.
Quanto à necessidade da pena, as exigências de prevenção geral são muito acentuadas, atendendo à reação da comunidade perante a frequência com que são cometidos crimes de roubo, para mais com os contornos do caso concreto, perpetrado por esticão contra pessoas de idade, provocando intranquilidade social. Por seu turno, são expressivas as necessidades de prevenção especial, já que o arguido apresenta um considerável percurso criminal, com quatro condenações anteriores, pela prática de um crime de falsificação de documento, um crime de dano, um crime de furto simples e dois crimes de furto qualificado.
Conclui-se, assim, que quer a ilicitude quer a culpa não podem ser consideradas reduzidas ou diminutas, e que, por outro lado, existem significativas exigências de prevenção.
Como tal, fica arredada a possibilidade de atenuar especialmente a pena ao abrigo do disposto no art. 72º, n.ºs 1 e 2, al. c), do Código Penal.

Improcede, pois, esta pretensão do recorrente.


III. DISPOSITIVO

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, J. B., confirmando o acórdão recorrido.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quatro unidades de conta (arts. 513º, n.º 1, do CPP e 8º, n.º 9, do RCP, e Tabela III anexa a este último diploma).
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(Texto elaborado pelo relator e revisto por ambos os signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
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Guimarães, 25 de maio de 2020

(Jorge Bispo)
(Pedro Miguel Cunha Lopes)
(assinado eletronicamente, conforme assinaturas apostas no canto superior esquerdo da primeira página)


1. - Todas as transcrições efetuadas respeitam o respetivo original, salvo correção de gralhas evidentes, a formatação e a ortografia utilizada, que são da responsabilidade do relator.
2. - Acórdãos desta Relação de Guimarães de 28-2-2011 (processo n.º 168/03.4GAEPS-A.G) e de 23-03-2009 (processo n.º 2546/08-2), da Relação do Porto de 13-10-2004 (processo n.º 0344547), de 06-10-2004 (processo n.º 0441909), de 18-02-2004 (processo n.º 0316524), de 31-03-2004 (processo n.º 0440048), de 14-04-2004 (processo n.º 0316298), de 04-02-2004 (processo n.º 0316050), de 07-01-2004 (processo n.º 0315968) e de 18-10-2006 (processo n.º 3261/06), da Relação de Lisboa de 20-04-2006 (processo n.º 2158/2006-9) e de 11-12-2008 (processo n.º 8876/2008), da Relação de Coimbra de 26-09-2007 (processo n.º 225/01.1PBTMR-A.C1) e da Relação de Évora de 17-06-2008 (in Coletânea de Jurisprudência, XXXIII, tomo 3, pág. 261) e de 25-10-2005 (processo n.º 2256/05-1). No sentido da notificação por contacto pessoal se pronunciou também o Tribunal Constitucional nos seus acórdãos n.ºs 278/03, 274/03, 429/03, a propósito da norma idêntica contida no artº 334º, n.º 6, e nos acórdãos. n.º 312/2005 e 422/2005.
3. - No âmbito dos processos, respetivamente, n.ºs 86/17.9GBODM.E1, 445/09.OGASXL.L1, 18/11.8TAOFR.C1, 414/10.8TAMGR.C1, 83/08.5JAGRD.C1 e 161/03.7GAMIR.C2, todos disponíveis em http//www.dgsi.pt.
4. - Coimbra Editora, págs. 832 a 833.
5. - Proferido no processo n.º 03P2711, disponível em http://www.dgsi.pt.
6. - Proferidos nos processos, respetivamente, n.ºs 585/09.6GBVVD.G1, 1349/06.4TBLSD.P1, ambos disponíveis em http//www.dgsi.pt.
7. - Proferida no processo n.º 1384/13.6TABRG.G1.
8. - Proferido no processo n.º 40/12.7IDVRL.G2, disponível em http://www.dgsi.pt.
9. - Neste sentido, vd. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995.
10. - Cf. os acórdãos do STJ de 14-07-2010 (processo n.º 408/08.3PRLSB.L2.S1), 25-03-2010 (processo n.º 427/08.0TBSTB.E1.S1), 24-02-2010 (processo n.º 563/03.0PRPRT) e 13-01-2010 (processo 274/08.9JASTB.L1.S1), todos disponíveis em http//www.dgsi.pt.
11. - Vd. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, 5ª Edição, Revista e atualizada, Verbo, pág. 256.
12. - Cf. o acórdão uniformizador de jurisprudência referido na nota 9.
13. - Vd. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., pág. 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pág. 77 e ss..
14. - Então designado por "assento", publicado no Diário da República n.º 294/1998, Série I-A, de 22-12-1998.
15. - Vd. Germano Marques da Silva, ob. cit., pág. 341.
16. - Vd. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., pág. 74.
17. - Cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 18-01-2018 (processo n.º 563/14.3TABRG.S1), de 17-03-2016 (processo n.º 849/12.1JACBR.C1.S1), de 20-01-2010 (processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1), de 14-03-2007 (processo n.º 07P21) e de 23-05-2007 (processo n.º 07P1498) e do TRP de 11-07-2001 (processo n.º 110407), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
18. - Cf. o acórdão do STJ de 25-03-2010 (processo n.º 427/08.OTBSTB.E1.S1), disponível em http://www.dgsi.pt.
19. - Proferido no processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
20. - Vd. Francisco Pastor Alcoy, Prueba de Indícios, Credibilidad del Acusado y Presunción de Inocentía, Tirant lo Blanch, Valência, 2003, p. 145.
21. - Vd. Euclides Dâmaso Simões, Prova Indiciária (Contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente), Revista Julgar, n.º 2, 2007, pág. 203 e ss..
22. - Cf., nomeadamente, os acórdãos do STJ de 17-03-2016 (processo n.º 849/12.1JACBR.C1.S1), de 09-02-2012 (processo n.º 1/09.3FAHRT.L1.S1), de 09-02-2012 (processo n.º 233/08.1PBGDM.P3.S1, de 07-04-2011 (processo n.º 936/08.0JAPRT.S1), de 06-10-2010 (processo n.º 936/08.JAPRT), de 12-03-2009 (processo n.º 09P0395) e de 12-09-2007 (processo n.º 07P4588), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
23. - Vd. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume II, Lisboa, Verbo, 1993, pág. 82; e Mittermaier, Tratado dela Prueba en Materia Criminal, Madrid, Hijos de Réus Editores, 6ª edição, págs. 366 e 387.
24. - Vd. Germano Marques da Silva, obra citada na nota anterior, pág. 79.
25. - In Prova indiciária e as novas formas de criminalidade, Revista Julgar, n.º 17, Maio/Agosto de 2012, pág. 13 e ss..
26. - À semelhança, aliás, do que sucede noutros países, como, por exemplo, Espanha, em que tem sido a jurisprudência constitucional e do Supremo Tribunal a estabelecer os requisitos do seu funcionamento.
27. - Cf. o acórdão do STJ de 04-11-1998, in BMJ n.º 481, pág. 265.
28. - Mormente o acórdão da Relação de Lisboa de 17-03-2010 (processo n.º 1286/08.8PCAMD.L1), disponível em disponível em http://www.pgdlisboa.pt, no qual são citados, em sentido com ele concordante, os acórdãos da mesma Relação de 25-02-2009 (processo n.º 1461/06.0PCCSC.L1) e de 28-10-2004 (processo n.º 2407/04).
29. - Vd. Helena Moniz, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 680.
30. - In Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, págs. 192, 302 e 306.