Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1910/18.4T8VCT.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
VIOLAÇÃO DO DEVER DE LEALDADE
FARMACÊUTICO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I - No que respeita à impugnação da matéria de facto cumpre ainda dizer que ao juiz incumbe apreciar livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto e não existindo nem discrepâncias, nem contradições, nem obscuridade, nem ambiguidade, nem cometimento de erro que importe corrigir, não pode, nem deve o tribunal ad quem alterar a factualidade apurada.
II - A noção de justa causa de despedimento, pressupõe um comportamento culposo do trabalhador, violador de deveres estruturantes da relação de trabalho, que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral
III - Integra justa causa de despedimento, por violação dos deveres de lealdade e de obediência, o comportamento do trabalhador que agindo em substituição do empregador aproveitando-se dessa situação estabelece um acordo paralelo com um laboratório concorrente de um outro com quem o empregador tinha uma acordo comercial no sentido de vender os seus produtos, tendo por fim passar a vender preferencialmente os produtos deste, recebendo em troca os colaboradores da Ré (nos quais se incluía o autor) que aceitassem vender tais produtos, um incentivo económico por cada produto vendido.

Vera Sottomayor
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

APELANTE: T. C.
APELADA: X, LDA

Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, Juízo do Trabalho de Viana do Castelo – Juiz 1

I – RELATÓRIO

T. C., residente na Estrada …, nº. …, Viana do Castelo, instaurou a presente acção, com processo especial, de impugnação da regularidade e licitude do despedimento promovido pela sua entidade empregadora a X, LDA., com sede na Avenida …, Edifício …, Loja .., Ponte de Lima, apresentou para tanto o respectivo formulário a que alude o artigo 98.º-C do CPT. e requereu a declaração da ilicitude ou irregularidade do seu despedimento, com as legais consequências.
Realizada a audiência de partes e não tendo sido obtida a conciliação, a entidade empregadora apresentou o respectivo articulado pugnando pela improcedência da acção e manutenção da decisão de despedimento com justa causa, uma vez que o autor praticou os factos que constam na nota de culpa, os quais inviabilizam a manutenção da relação laboral. O empregador deduziu ainda incidente de oposição à reintegração.
O autor apresentou a sua contestação/reconvenção, na qual suscita a caducidade do direito da ré a instaurar o processo disciplinar; a nulidade do procedimento disciplinar, por a nota de culpa conter apenas acusações genéricas e não contextualizadas e por fim nega a prática dos factos que constam da decisão do despedimento. Peticiona condenação do empregador a reconhecer a ilicitude do seu despedimento e a reintegrá-lo ou, em caso de opção pela indemnização ou procedência da oposição, a pagar-lhe:
- a quantia de €34.470,00 a título de indemnização pelo despedimento;
- as retribuições que deixou d auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da sentença;
- a quantia de €1.915,00 a título de férias vencidas em 1/1/2018;
- a quantia de €4.277,00 a título de formação profissional;
- a quantia de €57,47 a título de despesas de deslocação;
- a quantia de €1.182,20 a título de diferenças do subsídio de alimentação;
- a quantia de €624,15 a título do tempo em que esteve na disponibilidade da R. e que não lhe foi pago;
- a quantia de €840,45 a título de trabalho suplementar em dias normais;
- a quantia de €31,45 a título de trabalho suplementar prestado em dias normais, por trabalho consecutivo;
- a quantia de €5.807, 93 a título de indemnização pela não concessão de dias de descanso compensatório;
- a quantia de €369,93 a título de trabalho suplementar a que se refere o artº. 239 da contestação;
- a quantia de €4.379,55 a título de trabalho suplementar prestado em dias de descanso complementar;
- a quantia de €2.350,20 a título de trabalho suplementar prestado em dias de descanso obrigatório;
- a quantia de 1.254,75 a título de trabalho suplementar prestado em dias feriados;
- a quantia de €42.403,50 a título de trabalho suplementar prestado e não registado;
- a quantia de €50,76 de juros de mora vencidos;
- a quantia de €10.000,00 a título de danos de natureza não patrimonial;
- juros de mora vencidos desde a citação e até integral pagamento.
O empregador veio responder ao pedido reconvencional pugnando pela sua improcedência, com excepção das quantias reclamadas a título de férias não gozadas no montante de €1.815,00; formação profissional não proporcionada nos últimos três anos e €57,47 de despesas de deslocação.

Os autos prosseguiram a sua normal tramitação e realizada a audiência de julgamento, foi pelo Mmo. Juíz a quo proferida sentença, que terminou com o seguinte dispositivo:
“Assim, e face a tudo o exposto, decide-se:
Julgar a presente acção apenas parcialmente procedente, condenando a R. a pagar ao A.:
- a quantia de €1.815,00 a título de férias não gozadas;
- a quantia de €57,47 de despesas de deslocação;
- a quantia de €366,49 de formação não proporcionada;
- juros de mora, vencidos e vincendos, sobre estas quantias, à taxa de 4%.
Vai a R. absolvida de tudo o restante peticionado.
Custas por A. e R., na proporção do respectivo decaimento.
Valor da acção: €75.544,34
Registe e notifique.”

Inconformado com o decidido apelou o Autor para este Tribunal da Relação, terminando a sua alegação mediante a prolação das seguintes conclusões:
“CONCLUSÕES:

I - Analisada a prova produzida, temos que discordar veementemente da decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre a matéria de facto dada como provada sob o item “6 – O laboratório “Y” tinha um reduzido número de produtos à venda no estabelecimento de farmácia da R.”, já que resulta demonstrada da “Listagem do Histórico de vendas” junta aos autos, a fls. 74 e 74v e, a título de exemplo, dos depoimentos das testemunhas … um número considerável de existências dos produtos da marca “Y” à venda no estabelecimento da recorrida (cerca de 25 referências) ao invés das diminutas referências (cerca de 5) existentes à venda dos produtos da marca “W”.
II - O facto vertido no item 6, tal como provado, pode ter contribuído – erradamente - para a conclusão de que o comportamento do recorrente teria tido maiores repercussões na gestão das encomendas e vendas da farmácia do que aquelas que, na realidade, se verificaram, influindo no sentido da decisão tomada pelo Meritíssimo Juiz a quo!
III - A factualidade que foi dada como não provada sob as alíneas c) e d) deveria estar incluída nos factos provados, com suporte, desde logo, nas declarações do Recorrente (feitas de forma clara, espontânea, fluida e sem quaisquer incongruências ou contradições), tomadas na sessão de julgamento… …das quais se retira, … que a recorrida estava ao corrente da proposta apresentada pelo delegado da marca “Y”, à qual não se opôs e, por outro lado … que a legal representante se insurgiu contra a inscrição do recorrente no Sindicato, tendo ameaçado que o iria despedir.
IV - Tal factualidade assume importância já que o despedimento de que o recorrente foi objeto mostra-se desprovido de sustentação, devendo-se a um motivo persecutório, dada a coincidência temporal entre o momento da inscrição do recorrente no sindicato e o conhecimento desse facto pela recorrida – facto dado como provado sob o ponto 16 - e a quase imediata instauração de um processo disciplinar que leva ao seu imediato despedimento, se considerarmos a antiguidade, as funções e a conduta anterior do recorrente – itens 1, 2, 3 e 4 dos factos provados!
V - Com importância para a análise do episódio com especial relevo em discussão nestes autos (proposta de venda dos produtos da marca “Y”) importa perceber, de entre outros circunstancialismos, se reunir-se com delegados de Informação Médica e de Vendas fazia parte da amálgama de funções que haviam sido atribuídas ao recorrente (sendo certo que se pode defender que tal decorrerá já dos itens 2 e 3 dos factos provados).
VI – Foi alegado pelo recorrente e feita prova no sentido de que o relacionamento com tais delegados fazia parte das suas funções …
VII - Inexistem também consequências para a recorrida do episódio relatado no ponto 7 dos factos provados, razão pela qual, certamente, nada é dado como provado nesse sentido! Deveria, no entanto, constar expressamente da factualidade assente, porque relevante, que nem houve aumento das vendas dos produtos da marca “Y”, em face do histórico das vendas dessa marca em meses anteriores, nem houve aumento de encomendas posteriores desses produtos, o que nos permite concluir não ter havido prejuízos para a recorrida (nesse sentido, atente-se ao histórico das vendas dessa marca, junto a fls. 74 e 74v e ainda, às declarações …
VIII - Embora seja certo que foi dado como provado que: “4 - Para a R., o A. representava um exemplo e uma referência de liderança para os demais trabalhadores.”, nada é mencionado expressamente quanto à existência ou ausência de antecedentes disciplinares, o que também é facto relevante para a valoração da sanção que lhe foi aplicada.
IX - Dada a importância desta factualidade para a decisão a tomar (pois não estamos perante factos instrumentais ou secundários e/ou de meros argumentos jurídicos), o Tribunal a quo sobre esse facto nada disse, contrariando o ónus que sobre si impendia (n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil, aplicável in casu ex vi do n.º 2 do artigo 2.º do Cód. Processo do Trabalho), existindo uma omissão de pronúncia, nulidade esta que desde já se argui para os devidos efeitos legais (art. 615.º, n.º 1, al d) do Cód. Proc. Civil).
X – Na sequência, tem que se determinar a ampliação da matéria de facto dada como provada nos termos supra expostos (este é um poder-dever atribuído a este Venerando Tribunal, nos termos do art.º 662.º do Código de Processo Civil, que não está limitado pelos depoimentos e demais provas que lhe tenham sido indicados pelo recorrente, podendo avaliar livremente todas as provas carreadas para os autos e valorá-las e ponderálas, recorrendo às regras da experiência, aos critérios da lógica, aos seus próprios conhecimentos das pessoas e das coisas, socorrendo-se delas para formar a sua própria convicção).
XI – Quanto aos factos elencados sob os itens 7 e 8, resulta evidente que são imputados ao recorrente comportamentos e atitudes de forma genérica, vaga e abstrata, não os concretizando, nem sendo feita uma descrição suficientemente pormenorizada dos respetivos circunstancialismos de tempo (não cumprindo tal ónus a mera referência a “no mês de Agosto de 2017”, quando o item 7 dos factos provados se reporta a vários factos), modo e lugar e demais circunstâncias concretas, só assim, sendo possível concluir pela existência ou não de justa causa, face ao grau de gravidade da conduta em si mesma e nas suas consequências, que determine a impossibilidade da manutenção do vínculo laboral” – vide neste sentido Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 21/09/2004, com o n.º conv. JTRP00037180 e de 16/03/2009 com o n.º conv. JTRP 000423223, ambos relatados por Juiz Desembargador Ferreira da Costa, in www.dgsi.pt.
XII - Para que se verifique justa causa de despedimento é necessária a existência cumulativa dos seguintes requisitos: comportamento culposo do trabalhador; gravidade das consequências; impossibilidade imediata e prática de manutenção da relação laboral; atualidade do comportamento e proporcionalidade e adequabilidade do despedimento à gravidade da infração e culpabilidade do infrator. - cfr. n.º 1 do artigo 351.º do Código do Trabalho.
XIII - Do elenco da factualidade dada como provada, nota-se um claro défice de densificação e concretização no plano factual, uma vez que não acolhe os conceitos normativos de que dependa a verificação da justa causa que sustenta um despedimento lícito, não resultando evidenciados conceitos essenciais como sejam, desde logo, os da “culpa”, “ilicitude” e “consciência dessa ilicitude” por parte do recorrente, “consequências” da sua conduta do recorrente e muito menos a “gravidade” destas, não permitindo, também, alcançar cabalmente as motivações e finalidades visadas pelo recorrente, nem, consequentemente, qualificar com exatidão todos os contornos do inerente juízo de censura, tão pouco, inexistindo a concretização das consequências, isto é, de que forma o alegado comportamento do recorrente impossibilitou, de forma imediata, pela sua gravidade, a subsistência das relações que o contrato de trabalho celebrado entre as partes pressupõe, não demonstrando a realidade das relações de trabalho em que as situações ocorridas incidiram, as circunstâncias específicas que rodearam tais situações, que a conduta do recorrente tenha provocado qualquer tipo de prejuízos à recorrida!
XIV - Era à Recorrida que incumbia fazer a prova dos elementos constitutivos da justa causa para que possa justificar o despedimento do recorrente, sendo que, se o não conseguiu, presume-se que o mesmo foi despedido sem justa causa. – cfr. Romano Martinez, Direito do Trabalho, 4ª Edição, Almedina, Coimbra, 2007, pp. 997 e segs.).
XV - Como vem sendo entendimento da jurisprudência: “Não se verifica a impossibilidade prática da subsistência da relação de trabalho quando a matéria provada não é suficientemente esclarecedora para aferir da gravidade do comportamento ilícito do trabalhador, designadamente nas suas consequências” – cfr. ac. STJ, de 20.9.2006: proc. 06S899.dgsi.Net. -, razão pela qual deverá ser declarada, sem mais, a ilicitude do despedimento do recorrente.

Sem prescindir,
XVI - O tribunal recorrido fez uma errada interpretação dos factos dados como provados sob os itens 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7 e 8 e, consequentemente, uma errada subsunção desses factos ao direito aplicável.
XVII - Do comportamento que resulta do item 7 (episódio referente aos produtos da marca “Y”) e tendo por referência os factos que foram dados como provados, não resulta evidenciado que estejam preenchidos os requisitos necessários para concluirmos estarmos face um ilícito disciplinar motivador de qualquer sancionamento!
XVIII - Em primeiro lugar, dada a amplitude e natureza de funções que haviam sido acometidas ao recorrente, sobretudo desde Maio de 2017 (factos 2 e 3 do elenco dos factos provados), é legítimo concluir que o relacionamento com delegados de informação médica e de vendas estava incluído nas mesmas, ou, pelo menos seria legítimo que o recorrente assim o entendesse.
XIX - Em segundo lugar, a obtenção de prémios/incentivos pelos trabalhadores em função das vendas de determinados produtos é prática habitual neste ramo de atividade, tendo sido demonstrado que os trabalhadores da recorrida já receberiam prémios pela venda de certos produtos/marcas (depoimentos …
XX - Em terceiro lugar, não é de crer que, se o recorrente tivesse consciência da ilicitude e gravidade do seu comportamento e fosse sua real intenção prejudicar a recorrida, adotasse o comportamento relatado no ponto 7, nas instalações da própria recorrida, à vista de todos, e disso desse conhecimento aos seus colegas (veja-se, nesse sentido, a título exemplificativo, o que é dito pela Testemunha …
XXI - Em quarto lugar, inexistem consequências daquele episódio para a recorrida, pois nem houve aumento das vendas dos produtos da marca “Y” em face do histórico das vendas dessa marca em meses anteriores, nem houve aumento de encomendas posteriores desses produtos, o que nos permite concluir não ter havido prejuízo para a recorrida (nesse sentido, atente-se ao documento junto a fls. 74 e 74v. e às declarações …
XXII - Em quinto lugar, o Recorrente não retirou qualquer proveito ou benefício, de qualquer espécie, de tal comportamento (ver alínea a) dos factos não provados: “que o A. tenha recebido montantes da “Y” relativamente ao acordo referido em 7)”;
XXIII - Em sexto lugar, da atitude da própria recorrida terá de se concluir que a mesma não vê nos comportamentos deste particular episódio em concreto, qualquer ilícito disciplinar quando, em face do comportamento do seu trabalhador P. E. – que também conversou com o delegado dos produtos “Y” e chegou mesmo a receber prémios pela venda dos mesmos (confirmado pela testemunha … -, não instaurou, que seja do conhecimento do recorrente, processo disciplinar que culminasse com o seu despedimento ou sequer com a aplicação de uma qualquer sanção disciplinar menos gravosa, o que consubstancia abuso de direito por parte da recorrida, por violação do princípio da igualdade (entendimento perfilhado por Pedro Romano Martinez, in Direito do Trabalho, p. 599).

Ainda que assim se não entenda,
XXIV – Do preceituado no n.º 1 do artigo 351.º do Código do Trabalho, resulta que só um comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho constituiu justa causa de despedimento, sendo que, na apreciação deste conceito, deve atender-se no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes, não se bastando com a simples materialidade do comportamento, ainda que literalmente subsumível num pretenso tipo legal de justa causa, consubstanciando-se o despedimento como a mais mortífera arma na mão da entidade patronal quando nada mais há a fazer por aquela concreta relação laboral. – cfr. a título meramente exemplificativo, o entendimento do Acórdão da Relação de Lisboa, de 19/04/1982, in CJ, 82, 2, 265.
XXV - Para estarmos em face de um despedimento lícito, necessário é que nenhum outro procedimento/sanção, à luz dos princípios da necessidade, da adequação e da proporcionalidade, se revele adequado e proporcional a sanar a crise contratual, sendo imperioso que o trabalhador destrua ou abale, de forma irreparável e irremediável, a confiança na idoneidade futura da sua conduta, não sendo suficiente basear-se apenas na perda de confiança…
XXVI - Analisado o comportamento imputado ao recorrente no item 7 dos factos provados, competindo ao mesmo, além do mais, a aquisição, armazenamento e venda ao público de medicamentos e outros produtos com fins medicinais, cosméticos ou outros, prestar informações e aconselhar na utilização daqueles produtos (item 2 dos factos provados) e tarefas relacionadas com a gerência do estabelecimento em que prestava funções, (item 3 dos factos provados), é lícito incluir nas suas competências a apresentação aos seus colegas da proposta enunciada no citado item.
XXVII - Por um lado, a proposta não contempla o recebimento pelo recorrente de qualquer valor, mas antes pelos trabalhadores da recorrida, por outro lado essa proposta não significa que, doravante, se desse preferência à venda dos produtos da “Y” em confronto com os da “W”. Antes tem de interpretar-se essa proposta como um incentivo aos trabalhadores da recorrida V. N., R. A., C. A. e P. E. porque eram eles quem os vendiam e não o recorrente e, finalmente, na verdadeira interpretação do sentido dessa proposta, tem de atender-se que não houve qualquer intenção de o recorrente prejudicar a recorrida, nem dela retirar qualquer benefício, já que, se houvesse essa intenção, no uso das suas competências de gerência do estabelecimento, o recorrente impunha/ordenava, sem mais, a venda dos produtos “Y” em detrimento dos produtos “W”, o que claramente não fez (limitando-se a apresentar essa proposta).
XXVIII - O particular enquadramento explicitado mitiga a gravidade da infração imputada ao recorrente, bem como a censurabilidade do respetivo comportamento, daí que, ainda que a relação de confiança existente entre as partes até pudesse ter sido abalada, não se rompeu.
XXIX - Aliado a esse enquadramento, o facto de, para a recorrida, o recorrente representar um exemplo e uma referência de liderança para os demais trabalhadores (cfr. item 4 dos factos provados), a sua antiguidade (cfr. item 1 dos factos provados), a natureza das funções que vinha desempenhando de forma exemplar (itens 2 e 3 dos factos provados) e a ausência de antecedentes disciplinares, tudo deveria ter levado a recorrida à adoção de um comportamento distinto, não podendo aplicar outra sanção que não conservatória do vínculo laboral.
XXX – Embora tenha sido dado como provado que: “Os colegas do A. consideram que o seu regresso se traduziria num elemento profundamente perturbador das relações entre eles e com a gerência, sentindo-se agastados com o comportamento daquele.” (ponto 23 dos factos provados), tal mais não são que meras perceções opinativas dos colegas do recorrente – cujos depoimentos foram parciais, pois são trabalhadores da recorrida -, daí que, isoladas, não possam relevar para efeitos de apreciação da licitude do seu despedimento, sendo certo que nenhum facto dado como provado materializa as concretas consequências que o comportamento do recorrente tenha na relação com a própria recorrida e que permita concluir, de forma inequívoca, da imediata impossibilidade da sua subsistência.
XXXI - Ponderado o conjunto da factualidade assente, e sabendo-se que o despedimento deve reservar-se para os comportamentos mais graves (sob pena de inconstitucional – art. 53.º da Constituição da República Portuguesa), a que estejam aliadas “consequências apreciáveis” e uma “culpa grave”, não assumindo o comportamento do recorrente um afrontamento ostensivo, rebelde e sem qualquer justificação à entidade patronal, sempre seria adequada, suficiente e proporcional ao caso lançar mão de uma sanção conservadora do vínculo laboral que se tivesse como proporcional, adequada e suficiente para o punir e para o afastar da prática de novas infrações, nunca se justificando sancionar o recorrente com a mais grave das sanções disciplinares que têm assento nas diversas alíneas do n.º 1 do artigo 328.º do Cód. do Trabalho.

XXXIII – Foi dado como provado, sob o item 24 da factualidade assente que, em consequência do suprarreferido processo disciplinar, consequente suspensão e posterior despedimento, o recorrente ficou abatido, triste, desalentado, perdeu o apetite, tinha dificuldades em dormir e chorava com facilidade; desenvolveu um quadro de depressão, para a qual passou a tomar medicação.
XXXIV - Sendo o despedimento considerado ilícito, e tendo-se dado como provados os factos do item 24 da factualidade assente, tem o recorrente direito às indemnizações previstas na al. a) do n.º 1 do artigo 389.º, do artigo 390.º, n.º 1 e do artigo 391.º, todos do Cód. do Trabalho, podendo este Venerando Tribunal condenar a recorrida nas quantias oportunamente reclamadas pelo recorrente e a que supra se fez alusão, dado que os presentes autos dispõem de elementos suficientes para a prolação dessa decisão.
XXXV - A douta sentença recorrida violou, pois, por errada interpretação o disposto nos artigos 466.º, 608.º, n.º 2 e art. 615.º, n.º 1, al. d) todos do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do estabelecido no n.º 2 do artigo 2.º do Cód. de Proc. Trabalho; nos artigos 328.º, n.º 1, 330.º, n.º 1, 351.º, n.s 1, 2 e 3, 381.º, 389.º, n.º 1, al a), 390.º, n.º 1 e art. 391.º, todos do Cód. do Trabalho; no art. 53.º da Constituição da República Portuguesa e no artigo 487.º, n.º 2 do Cód. Civil.
NESTES TERMOS e nos melhores de direito aplicáveis, deve julgar-se procedente o presente recurso…
O Empregador veio responder ao recurso, concluindo pela sua improcedência.
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação, pelo Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
O Recorrente respondeu ao parecer manifestando a sua discordância e concluindo não ser o mesmo merecedor de acolhimento, por não se ter debruçado sobre a questão de fundo.
Mostram-se colhidos os vistos dos senhores juízes adjuntos e cumpre decidir.

II - OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões do recorrente (artigos 608.º n.º 2, 635.º, nº 4 e 639.º, nºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do art.º 1.º n.º 2, al. a) e art.º 87.º do Código do Processo do Trabalho (CPT)), não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nele não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, no recurso interposto, colocam-se à apreciação deste Tribunal da Relação as seguintes questões:

1 - Da impugnação da matéria de facto;
2 – Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
3 – Da impugnação da matéria de direito;

A – Da justa causa de despedimento;

B - Das consequências decorrentes da ilicitude do despedimento

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

São os seguintes os factos provados:
1 - O A. desempenhava as funções de Farmacêutico de grau I, sob as ordens, direcção e fiscalização da R. desde 6/4/2009.
2 - No exercício das suas funções, competia ao A. a preparação, conservação, selecção, aquisição, armazenamento e venda ao público de medicamentos e outros produtos com fins medicinais, cosméticos ou outros, para uso humano ou veterinário, na farmácia da R.; mais lhe competia prestar informações e aconselhar na utilização daqueles produtos.
3 - Desde Maio de 2017, por ser o farmacêutico com maior antiguidade ao serviço da R., esta passou a delegar no A. algumas tarefas relacionadas com a gerência do estabelecimento em que prestava funções, passando, por isso, a exercer funções de responsabilidade e especial confiança.
4 - Para a R., o A. representava um exemplo e uma referência de liderança para os demais trabalhadores.
5 - A R. tem acordos comerciais com o laboratório “W” para venda de produtos deste laboratório, tendo a R. instruído os seus funcionários no sentido de procurarem vender preferencialmente os produtos deste em relação aos da concorrência.
6 - O laboratório “Y” tinha um reduzido número de produtos à venda no estabelecimento de farmácia da R.
7 - No mês de Agosto de 2017, após uma reunião com o delegado que representava o laboratório “Y”, o A. apresentou uma proposta expressa aos seus colegas de trabalho V. N., R. A., C. A. e P. E., no sentido de receberem um incentivo pecuniário por cada produto vendido do “Y” em vez do produto do “W”, incentivo esse que seria pago directamente ao trabalhador e não à R.
8 - A “Y” chegou a pagar o referido incentivo a um dos trabalhadores referidos em 7), para tanto tendo tido acesso a um extracto de vendas facultado pelo A.
9 - No dia 9 de Janeiro de 2018, houve uma tentativa de acesso ao sistema informático da R. a partir de uma conta titulada pelo A.
10 – Em 7 de Dezembro de 2017, a R. procedeu à abertura de inquérito prévio relativamente a factos praticados pelo A., tendo determinado a sua suspensão preventiva por carta recepcionada por este em 13/12/2017.
11 - No âmbito desse processo de inquérito, a R. procedeu à inquirição de cinco testemunhas.
12 - No dia 19 de Dezembro de 2017, foi proferido relatório final desse processo de inquérito.
13 - Por carta registada com a/r, recebida pelo A. no dia 22/12/2017, a R. enviou ao A. a nota de culpa de fls. 78-verso a 82-verso (que aqui se dá por integralmente reproduzida).
14 - Posteriormente, a R. enviou ao A. nota de culpa complementar, a qual foi recepcionada por este no dia 30/1/2018 (documento de fls. 102 a 110 (que aqui se dá por integralmente reproduzida).
15 - No dia 27/3/2018, a R. remeteu ao A. a decisão final do processo disciplinar, na qual lhe foi aplicada a sanção de despedimento, sem direito a indemnização ou compensação (documento de fls. 134 a 147, que aqui se dá por integralmente reproduzido).
16 - O A. inscreveu-se no Sindicato Nacional dos Farmacêuticos no dia 10/10/2017, facto de que deu conhecimento à R. no dia 15/11/2017.
17 - O A. auferia ultimamente a remuneração mensal de €1.815,00, acrescido de €100,00 de abono para falhas e €5,00/dia a título de subsídio de alimentação.
18 - A R. não pagou ao A.:
a quantia de €1.815,00 a título das férias vencidas em 1/1/2018 e não gozadas;
a quantia de €57,47 a título de despesas de deslocação;
a quantia referente à formação profissional não assegurada ao A. nos últimos 3 anos de vigência do contrato.
19 - Em 2013, o A. usufruiu 3,30 horas de formação profissional e, em 2014, usufruiu 32,00 horas de formação profissional.
20 - A R. pagou os seguintes dias de subsídio de refeição:
2009
Junho – 14 dias
Dezembro – 15 dias
2010
Janeiro – 20 dias
Fevereiro – 19 dias
Abril – 21 dias
Maio - 12 dias
Junho – 20 dias
Julho – 21 dias
Agosto – 22 dias
Setembro – 21 dias
Dezembro – 16 dias
2011
Janeiro – 21 dias
Fevereiro – 20 dias
Março – 22 dias
Abril – 19 dias
Maio – 12 dias
Junho – 20 dias
Julho - 21 dias
Agosto – 22 dias
Setembro – 21 dias
Dezembro – 16 dias
2012
Janeiro – 14 dias
Março – 22 dias
Abril – 19 dias
Junho - 20 dias
Julho – 17 dias
Agosto – 22 dias
Setembro – 15 dias
Outubro – 18 dias
Novembro – 21 dias
Dezembro – 15 dias
2013
Janeiro – 21 dias
Março – 15 dias
Abril – 20 dias
Maio – 22 dias
Junho – 19 dias
Julho – 21 dias
Agosto – 21 dias
Setembro - 15 dias
Outubro – 19 dias
Novembro – 16 dias
Dezembro – 16 dias
2014
Janeiro – 22 dias
Fevereiro – 20 dias
Março – 15 dias
Abril – 20 dias
Maio – 21 dias
Junho – 20 dias
Julho – 8 dias
Agosto – 15 dias
Setembro – 22 dias
Outubro – 18 dias
Dezembro – 8 dias
2015
Janeiro – 15 dias
Fevereiro – 8 dias
Março – 12 dias
Abril – 21 dias
Maio – 20 dias
Junho – 12 dias
Julho – 23 dias
Agosto – 21 dias
Setembro – 17 dias
Outubro – 22 dias
Novembro – 16 dias
Dezembro – 16 dias
2016
Janeiro – 20 dias
Fevereiro – 20 dias
Março – 22 dias
Abril – 20 dias
Maio – 16 dias
Junho – 21 dias
Julho – 11 dias
Agosto – 22 dias
Setembro – 16 dias
Outubro – 16 dias
Novembro – 18 dias
Dezembro – 19 dias
2017
Janeiro – 22 dias
Fevereiro – 19 dias
Março – 18 dias
Abril – 18 dias
Maio – 22 dias
Junho – 21 dias
Julho – 11 dias
Agosto – 22 dias
Setembro – 16 dias
Outubro – 19 dias
Novembro – 21 dias
Dezembro – 14 dias
21 - No dia 1/8/2013, o A. e a R. acordaram que aquele prestaria o seu trabalho em regime de adaptabilidade, subscrevendo o documento de fls. 328-verso e 329 (que aqui se dá por integralmente reproduzido).
22 - A R. é uma empresa que tem cerca de oito trabalhadores.
23 - Os colegas do A. consideram que o seu regresso se traduziria num elemento profundamente perturbador das relações entre eles e com a gerência, sentindo-se agastados com o comportamento daquele.
24 - Em consequência do supra referido processo disciplinar, consequente suspensão e posterior despedimento, o A. ficou abatido, triste, desalentado, perdeu o apetite, tinha dificuldades em dormir e chorava com facilidade; desenvolveu um quadro de depressão, para a qual passou a tomar medicação.

São os seguintes os factos não provados:
a) - que o A. tenha recebido montantes da “Y” relativamente ao acordo referido em 7);
b) - que o A. tenha acedido à conta da R. na Google Drive e eliminado um documento que tinha os códigos de acesso às contas bancárias, contas dos fornecedores e outras;
c) - que o A. tenha informado a R. de que o delegado da “Y” tinha feito uma proposta no sentido de conceder incentivos a todos os trabalhadores da farmácia, com o objectivo de aumentar a venda dos seus produtos e que a R. tenha dado o seu acordo a tal proposta; que já antes a “Y” tivesse celebrado um acordo idêntico, gratificando com a entrega de cartões ...;
d) – que o A. tenha mostrado à legal representante da R. o resultado do seu pedido de informações ao sindicato, esta, fora de si, lhe tenha dito “quem quiser trabalhar comigo não será sindicalizado, acabou de cavar a sua sepultura” e que o iria despedir;
e) - que, nos dias referidos no art.º 215 da p.i., a R. tivesse concedido ao A. aqueles períodos de descanso, determinando que este estivesse de “prevenção” nas horas ai referidas;
f) - que o A. tenha prestado trabalho para a R. nos dias referidos nos artºs. 222 a 226, 228, 236, 238, 241, 244, 247, 250 da p.i., nas horas ali referidas;
g) - que a R. apenas tenha pago as remunerações nos dias referidos no art.º 257 da p.i.;

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

1 - Da impugnação da matéria de facto

O Recorrente nas suas conclusões, mais precisamente nas enumeradas de I a VIII defende que a decisão proferida pela 1ª instância sobre a matéria de facto deve ser alterada, sustentando que o ponto de facto 6 dos pontos de facto provados deve ter uma outra redacção e os factos que constam das alíneas c) e d) dos pontos de facto não provados devem passar a constar dos factos provados. Mais requerer ainda a ampliação da matéria de facto, designadamente no que respeita aos antecedentes disciplinares.
Indica como meios de prova para fundamentar a sua pretensão os documentos juntos aos autos, bem como os depoimentos de R. A., P. E., V. N., C. A. e as declarações prestadas pelo próprio recorrente, pretendendo assim com referência à decisão sobre a matéria de facto, a sua alteração, com reapreciação da prova gravada, designadamente do depoimento testemunhal e documental junto aos autos.
(…)
Pretende o recorrente que os pontos c) e d) dos factos não provados, que a seguir se transcrevem, passem a constar dos factos provados.
“c) - que o A. tenha informado a R. de que o delegado da “Y” tinha feito uma proposta no sentido de conceder incentivos a todos os trabalhadores da farmácia, com o objectivo de aumentar a venda dos seus produtos e que a R. tenha dado o seu acordo a tal proposta; que já antes a “Y” tivesse celebrado um acordo idêntico, gratificando com a entrega de cartões ...;
d) – que o A. tenha mostrado à legal representante da R. o resultado do seu pedido de informações ao sindicato, esta, fora de si, lhe tenha dito “quem quiser trabalhar comigo não será sindicalizado, acabou de cavar a sua sepultura” e que o iria despedir;
Sustenta a sua pretensão única e exclusivamente nas declarações por si prestadas em audiência de julgamento cujos trechos transcreveu.

O Tribunal a quo motivou esta factualidade dada como não provada da seguinte forma:
“- quanto à al. c) – nenhuma das testemunhas ouvidas em audiência afirmou que a gerente tivesse conhecimento desse acordo com aquele laboratório; pelo contrário, resultava de vários desses depoimentos que aquele esquema estava a ser montado à revelia da entidade empregadora; ninguém fez referência a acordos anteriores com o referido laboratório;
- quanto à al. d) – ninguém se pronunciou quanto a essa factualidade;

A questão que importa agora analisar é a da valorização das declarações de parte, pois efectivamente a única prova produzida relativamente ao que se pretende agora que seja dado como provada decorre apenas das declarações prestadas pelo autor, que foram contrarias pelos depoimentos prestados pelos seus colegas de trabalho no que respeita à al. c) e foram contrariadas pelas declarações prestadas pela legal representante da Ré relativamente à al. d).

Prescreve o artigo 466.º do CPC. o seguinte:

“1 - As partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1.ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento direto.
2 - Às declarações das partes aplica-se o disposto no artigo 417.º e ainda, com as necessárias adaptações, o estabelecido na secção anterior.
3 - O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão.”

O Código de Processo Civil de 2013 introduziu este normativo, que constitui um novo e autónomo meio de prova, tendo carácter inovador figura ao lado da prova por confissão. As declarações de parte não podem ser requeridas pela parte contrária, mas nada obsta a que o depoimento de parte, na parte não confessória possa ser livremente apreciado pelo julgador, desde que observada a devida cautela, pois por natureza é um depoimento interessado.
Quanto às razões que levaram à introdução das declarações de parte meio de prova, refere o Dr. Luís Filipe Pires de Sousa, in As Malquistas Declarações de Parte, em Colóquio organizado pelo STJ, sobre o Novo Código de Processo Civil, disponível na página do mesmo Tribunal, que “até à entrada em vigor do atual Código de Processo Civil, a parte estava impedida de depor como testemunha (art. 617 do CPC), podendo ser ouvida pelo juiz para a prestação de esclarecimentos sobre a matéria de facto (art. 265.2. do CPC) sendo que tais esclarecimentos não podiam ser valorados de per si como meios probatórios.”
Ora, este inovador meio de prova, dirige-se, às situações de facto em que apenas tenham tido intervenção as próprias partes, ou relativamente às quais as partes tenham tido uma percepção directa privilegiada em que são reduzidas as possibilidades de produção de prova (documental, testemunhal ou pericial), em virtude de terem ocorrido na presença circunscrita das partes. E, sujeitá-las a arrolar testemunhas sem conhecimento directo, que apenas reproduzam o que teriam ouvido dizer ou que expressem a sua opinião, tem muito pouco interesse e pouco ou nenhum valor processual.
Importa salientar que tais declarações serão sempre livremente apreciadas pelo tribunal, conforme resulta do nº 3 do artigo 466.º do CPC., na parte em que não representem confissão.
Como defende JOSÉ LEBRE DE FREITAS, em “A Acção Declarativa Comum, à luz do Código de Processo Civil de 2013”, pág. 278, a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, maxime se ambas as partes tiverem sido efectivamente ouvidas.
Com efeito, entendemos que a valorização das declarações de parte deve respeitar apenas o princípio da livre apreciação da prova, já que inexiste obstáculo legal a que aquelas declarações possam fundar a convicção do tribunal, desde que este possa, no confronto dos demais meios de prova, concluir pela sua credibilidade.
Contudo, consideramos que tais declarações devem ser atendidas e valoradas com especial cautela e cuidado, já que como meio probatório, não deixam de ser declarações interessadas, parciais e não isentas, em que quem as produz tem um manifesto interesse na acção, sendo por isso de considerar, em regra, de irrazoável e insensato, que sem o auxílio de quaisquer outros meios probatórios, o Tribunal desse como provados os factos pela própria parte alegados e por ela, tão só, admitidos.
Importa assim que o relato efectuado pela parte esteja espontaneamente contextualizado e seja coerente, quer em termos temporais, espaciais e emocionais e que seja credenciado por outros meios de prova, designadamente que as declarações da parte sejam confirmadas, por outros dados, que ainda indirectamente, demonstrem a veracidade da declaração. Caso contrário a declaração revelará força probatória de tal forma débil que não deve ser tida em conta.
Na verdade, a prova dos factos favoráveis ao depoente e cuja prova lhe incumbe não se pode basear apenas na simples declaração dos mesmos, é necessária a corroboração de algum outro elemento de prova, com os demais dados e circunstâncias, sob pena de se desvirtuarem as regras elementares sobre o ónus probatório e das acções serem decididas apenas com as declarações das próprias partes
Por estas razões, concordamos com o decidido, no que respeita aos pontos de facto não provados sob as alíneas c) e d), pois no que respeita a alínea c) dos factos não provados as testemunhas arroladas pela Ré, cujos depoimentos se afiguram de credíveis foram unânimes ao afirmarem que a legal representante da Ré não foi informada da proposta apresentada pelo delegado da Y e por isso não podia ter dado o seu acordo, contrariando assim as declarações prestadas pelo autor. Relativamente à alínea d) dos pontos de facto não provados e inexistindo outros meios de prova que minimamente corroborem a versão da parte, que por sua vez foi negada de forma perentória pela legal representante da Ré, o mesmo não deve ser valorado, sob pena de se desvirtuar na totalidade o ónus probatório e que as acções se decidam apenas com as declarações das próprias partes.
É assim de manter a decisão proferida pelo tribunal a quo quanto à matéria de facto não provada, pois a globalidade da prova produzida não permite outra conclusão, sendo que os juízos de valor subjectivos, formulados pelo recorrente, não têm o condão de impor a sua própria convicção à convicção do juiz.
Improcede esta impugnação da matéria de facto.
(…)

2 – Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia

Quanto à nulidade da sentença por omissão de pronúncia prevista na al. d) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC. suscitada pelo recorrente pelo facto do Tribunal a quo não se ter pronunciado sobre esta factualidade que se pretendia que fosse aditada aos factos provados incumbe dizer o seguinte:
No que respeita à nulidade da sentença por omissão de pronúncia, esta decorre do incumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 608.º do mesmo Código, nos termos do qual «o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras», prevendo ainda aquele dispositivo que o juiz não «pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras».
Importa salientar que conforme dispõe o art.º 5.º, n.º 3, do CPC., o Juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação das regras de direito, mas apenas tem de se pronunciar “sobre questões que devesse apreciar” e “conhecer de questões de que não podia deixar de tomar conhecimento”.
Quer isto dizer que ao Tribunal cabe o dever de conhecer do objecto do processo, definido pelo pedido deduzido e respectiva causa de pedir.
Resumindo, o Tribunal tem de apreciar e decidir as questões processuais trazidas aos autos pelas partes – pedidos formulados e excepções deduzidas - e todos os factos em que assentam, mas não está obrigado a pronunciar-se sobre todos os argumentos esgrimidos pelas partes nos autos, nem tão pouco está obrigado a complementar o acervo fáctico trazido pelas partes aos autos.
Ou seja, a omissão de pronúncia circunscreve-se às questões de que o tribunal tenha o dever de conhecer para a decisão da causa e de que não haja conhecido, realidade distinta da invocação de um facto ou invocação de um argumento pela parte sobre os quais o tribunal não se tenha pronunciado.
A questão suscitada pelo Recorrente subjacente a este vício respeita ao facto do tribunal a quo não se ter pronunciado sobre determinada factualidade por si alegada, que no seu entender se revela de essencial para a boa decisão da causa.
Ora, salvo o devido respeito, por opinião em contrário teremos de dizer que não existe o apontado vício da sentença, pelos motivos acima expostos. Contudo, ainda assim diremos, que basta uma leitura atenta da decisão recorrida para constatar que o juiz a quo se pronunciou sobre tal factualidade ao entender ao contrário do defendido pela recorrente, que “(n)ão se responde à restante matéria de facto alegada pelas partes por ser irrelevante para a decisão da causa, por se traduzir em alegações genéricas ou por já se encontrar prejudicada pelas restantes respostas, nomeadamente de carácter restritivo.” E efectivamente assim é, pois em sede de apreciação da impugnação da matéria de facto não vislumbramos qualquer razão que impusesse o aditamento da factualidade pretendida pela recorrente, que sempre seria de considerar como de factualidade instrumental ou secundária para a boa decisão da causa
Não padece a decisão recorrida de qualquer omissão de pronúncia, improcede assim a conclusão n.º IX e X do recurso de apelação.

3 – Da impugnação da decisão de direito

A - Da justa causa do despedimento.

Mantendo-se a factualidade dada como assente em 1ª instância no que respeita aos factos motivadores do despedimento, importa agora averiguar da verificação da justa causa do despedimento da iniciativa do empregador, já que o Recorrente defende que a factualidade provada é insuficiente para se concluir pela licitude do despedimento, designadamente por a factualidade provada revelar um claro défice de densificação e concretização no plano factual.

A 1ª instância conclui pela licitude do despedimento e para tanto desenvolveu a seguinte argumentação:
“Ora, passando em revista a nota de culpa notificada ao autor, bem como a nota de culpa complementar, verifica-se que ela está, em grande parte, ferida dos vícios que se acabam de elencar, sendo, nessa medida, um exemplo do que não deve ser feito.
Na realidade, referir que o trabalhador se recusa a efectuar o atendimento ao balcão, e a vender medicamentos, mesmo quando há maior afluência de clientela, muitas vezes por estar a jogar no telemóvel ou a efectuar pesquisas no computador, ou que ele procurava intimidar e desmotivar os seus colegas de trabalho, que denegria a imagem da gerente, que instigava os outros funcionários contra a entidade empregadora, sem indicar episódios concretos, situando tais factos no tempo, traduz-se numa imputação vaga e genérica que não permite uma conveniente defesa por parte do imputado, nem uma conveniente apreciação por parte do tribunal.
Repita-se: rechear a nota de culpa de imputações genéricas, sem que se especifique quais os episódios que demonstram as atitudes efectivamente tomadas pelo trabalhador, não preenche o ónus legalmente imposto de uma descrição completa e circunstanciada dos factos concretos que consubstanciam a violação dos deveres laborais.
Em todo o caso, e apesar destas extensas e notórias deficiências, na nota de culpa aparecem outros factos suficientemente concretizados, cumprindo cabalmente o que lei exige, a saber: o episódio referente ao laboratório “Y” e o episódio referente ao acesso indevido ao sistema informático da R.
Significa isto que a consequência não é a nulidade de toda a nota de culpa, mas tão só que o tribunal apenas poderá atender aos comportamentos do A. que ali apareçam suficiente e correctamente descritos, os agora enunciados, ignorando os restantes.
Cumpre, então, apurar se o despedimento que foi aplicado ao A. se apresenta como sanção justificada ao comportamento que aquele adoptou, tendo em atenção os factos que se deram como provados e os que constavam da nota de culpa, nos termos já delimitados, pois que só estes podem ser apreciados.
Constitui justa causa de despedimento, o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral – artº. 351, nº. 1, do C.Trabalho.
Enumera a lei todo um conjunto de comportamentos do trabalhador susceptíveis de constituir justa causa de despedimento – nº. 2 da citada disposição legal.
É, no entanto, entendimento pacífico da jurisprudência e da doutrina que esta enumeração de comportamentos culposos é meramente exemplificativa, pois que, para além destes, muitos outros factos ou situações podem ocorrer que justifiquem a rotura do vínculo contratual.
Aliás, o mais importante núcleo de violações do contrato susceptíveis de consubstanciar uma justa causa decorre do não cumprimento do princípio da boa fé, o qual não é inteiramente absorvido pelo princípio da leal colaboração, tal como se encontra plasmado naquele normativo.
A violação do princípio da boa fé traduz-se numa afectação da base de confiança que deve existir entre trabalhador e entidade patronal, violando o dever de leal colaboração, cujo respeito é indispensável para o implemento dos fins económicos da empresa.
Sendo certo, em todo o caso, que tudo depende de uma ponderada análise dos interesses conflituantes, não esquecendo que, como é generalizadamente aceite, se entende que se devem mostrar presentes três requisitos para que ocorra a justa causa: a) um elemento subjectivo – traduzido num comportamento culposo do trabalhador, por acção ou omissão; b) um elemento objectivo – traduzido na impossibilidade de subsistência da relação de trabalho; e c) um nexo de causalidade entre aquele comportamento e esta impossibilidade.
Pois bem, apliquemos o que vimos de dizer ao caso dos autos.
Aqui está em causa a apreciação de dois comportamentos do trabalhador que consubstanciariam um comportamento disciplinar ilícito: o acesso indevido ao sistema informático da R. e o acordo efectuado com o laboratório “Y”.
Adiante-se, desde já, que no que se refere ao primeiro, apenas se provou que, no dia 9/1/2018, houve uma tentativa de acesso ao sistema informático da R. a partir de uma conta titulada pelo A., o qual já se encontrava suspenso, por estar a decorrer o processo disciplinar.
Parece-nos evidente que o que se deu como provado não é suficiente para se puder imputar ao trabalhador um comportamento violador dos seus deveres laborais.
Mas já conclusão totalmente diferente se terá que retirar do segundo.
Com efeito, a entidade empregadora explora um estabelecimento de farmácia e tinha, como é corrente nestas situações e é do conhecimento comum, um acordo comercial com um laboratório no sentido de vender preferencialmente os seus produtos.
Destes acordos resulta sempre uma vantagem económica para as farmácias, que se concretiza em comissões ou facilidades comerciais.
Por essa razão, a R. havia instruído os seus trabalhadores no sentido de procurarem vender preferencialmente os produtos daquele fornecedor em detrimento dos outros.
Ora, o A. efectuou um acordo paralelo com o representante de um outro laboratório, de forma a passar a vender antes os produtos deste e recebendo em troca um incentivo pecuniário por cada produto assim vendido.
Este comportamento do A. não configura apenas uma desobediência frontal a uma ordem da sua entidade empregadora; traduz-se num acto de extrema deslealdade, que nos remete para a violação do dever plasmado no artº. 128, nº. 1, f), do C. do Trabalho.
Ou seja, consubstancia um acto de concorrência desleal, passando a efectuar negócios por conta própria a partir das instalações da sua entidade empregadora, com o intuito de obter um benefício patrimonial a que não tinha direito e prejudicando objectivamente a R.
Mas, pior do que isso, procurou envolver neste seu esquema ilícito grande parte dos seus colegas, propondo-lhes a participação naquele negócio, com o qual receberiam um incentivo pecuniário.
Este aliciamento é que torna a sua conduta particularmente grave, pois que nos permite dizer que o objectivo do A., para além da obtenção para si de um ganho patrimonial, era ainda e sobretudo prejudicar claramente a sua entidade empregadora.
Assim configurado, não restam quaisquer dúvidas que esse comportamento tem a gravidade suficiente para se poder afirmar que colocou em causa a manutenção da relação laboral.
E é irrelevante, para este efeito, que, ao contrário do que aconteceu com um dos seus colegas, não se tenha provado que o A. tenha efectivamente obtido um lucro com esta actividade ilícita
O A., sublinhe-se, não era um qualquer trabalhador, mas um funcionário em quem a R. depositava inteira confiança, delegando-lhe tarefas de gerência e considerando-o como um exemplo e uma referência para os demais trabalhadores.
Se o cumprimento dos deveres de lealdade e fidelidade, por parte de qualquer trabalhador, é importante, o cumprimento desses mesmos deveres no caso do A. era conditio sine qua non para que a confiança entre empregador e trabalhador se pudesse manter.
Afigura-se-nos evidente que não é, por isso, de todo razoável impor à R. a manutenção de uma relação tendencialmente duradoura como é a laboral, após a quebra de confiança particularmente significativa que resultava do comportamento daquele.
Neste caso, compreende-se que a reacção terá, inapelavelmente, de ser exemplar, sob pena da multiplicação destas violações dos interesses da empresa se tornarem, em termos da sua organização, absolutamente incomportáveis.
Estão, assim, preenchidos os dois requisitos essenciais para que seja permitido afirmar a existência de justa causa, sendo que o terceiro – o nexo de causalidade entre um e outro - é de tal forma evidente que não exige explicações suplementares.
Conclui-se, desta forma, pela existência de justa causa, o que determina a total improcedência da acção, no que a esta parte diz respeito, mormente quanto aos danos de natureza não patrimonial.”
Antes de mais cumpre dizer que, bem andou o tribunal a quo ao considerar de verificada a justa causa de despedimento, pois apesar de ser parca a factualidade provada com relevo para a boa decisão da causa, o certo é que a gravidade da conduta do autor tornou imediata, irremediável e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
Nos termos do art.º 351º nº1 do Cód. do Trabalho, constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.

Neste conceito genérico de justa causa concorrem três elementos essenciais, a saber:

a)- elemento subjectivo - traduzido num comportamento culposo e grave do trabalhador por ação ou omissão;
b)- elemento objectivo - que se traduz numa situação de impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação de trabalho;
c)- um nexo de causalidade - entre aquele comportamento e esta impossibilidade.

Analisando ainda a definição que resulta do n.º 1 do art.º 351º do Cód. do Trabalho, podemos afirmar que justa causa de despedimento tem como requisitos um comportamento ilícito, culposo e grave do trabalhador, a impossibilidade prática e imediata de subsistência do vínculo laboral e o nexo de causalidade entre estes dois elementos.
A ilicitude refere-se à violação dos deveres laborais do trabalhador, o que exclui as condutas lícitas e aquelas que, embora sendo ilícitas, se referem à sua vida pessoal e não têm incidência na relação laboral. A culpa deve ser apreciada atendendo critério geral do bom pai de família, mas também ao perfil laboral específico do trabalhador, designadamente às suas competências técnicas e à natureza das funções que desempenha. A gravidade pode estar relacionada com o comportamento em si mesmo ou com as suas consequências para o vínculo laboral.
De tudo isto resulta que só em casos culposos e particularmente graves é admissível o despedimento do trabalhador. Todavia, tanto a culpa como a gravidade do comportamento (em si mesmo e nas suas consequências) e o decorrente juízo de prognose da aludida impossibilidade estruturam-se em critérios objetivos e de razoabilidade de acordo com o entendimento de um bom pai de família ou de um empregador normal em face das circunstâncias de cada caso em concreto.
Na apreciação da justa causa – em concreto – atender-se-á ao comportamento do trabalhador no quadro de gestão da empresa, tendo em conta os danos resultantes da conduta censurada, as funções exercidas na empresa, sem olvidar os reflexos da sua conduta nos seus companheiros e/ou subordinados e demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes (art. 351º nº3 do Cód. do Trabalho).
A justa causa traduz-se, assim, numa situação de impossibilidade prática, de inexigibilidade no confronto dos interesses opostos das partes – essencialmente o da urgência da desvinculação do empregador e o da conservação do vínculo por parte do trabalhador.
E de tal sorte que, face à vocação de perenidade subjacente à relação de trabalho, apenas se justifica o recurso à sanção expulsiva ou rescisória que o despedimento configura, quando se revelarem inadequadas para o caso as medidas conservatórias ou corretivas, representando a continuidade do vínculo laboral uma insuportável e injusta imposição ao empregador em função do princípio da proporcionalidade.
Por outro lado, sempre que a exigência da manutenção contrato e das relações pessoais e patrimoniais que ele pressupõe sejam de molde a ferir de modo desmesurado e violento a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do empregador, não poderá deixar de concluir-se pela impossibilidade prática de manutenção da relação de trabalho.
Assim, existirá impossibilidade prática de subsistência da relação laboral sempre que, nas circunstâncias concretas, a permanência do contrato, com a subsistência das relações pessoais e patrimoniais que isso implica, venha a ferir, de modo exagerado e violento (e por isso injusto), a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal colocada na posição do empregador, ou seja, sempre que a continuidade do vínculo represente uma insuportável e injusta imposição ao empregador.
Conclui-se assim que releva aqui particularmente a exigência geral da boa-fé na execução dos contratos (art. 762.º do Código Civil), atenta a específica natureza deste tipo de vínculo obrigacional, caracterizado pela sua vocação duradoura e pessoal das relações dele emergentes, sendo por isso necessário que o comportamento do trabalhador se apresente caracterizado como susceptível de destruir ou abalar seriamente a confiança, ou de criar no espírito do empregador dúvidas ou reservas sobre a idoneidade futura da sua conduta.
A rutura da relação laboral terá sempre de ser irremediável, na medida em que nenhuma outra sanção seja suscetível de sanar a crise contratual aberta por aquele comportamento culposo.

Prescreve, ainda, o citado artigo 351º do C.T. que:

“2. Constituem, nomeadamente, justa causa de despedimento os seguintes comportamentos do trabalhador:

a) Desobediência ilegítima às ordens dadas por responsáveis hierarquicamente superiores;
d) Desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do cargo ou posto de trabalho a que está afecto;
e) Lesão de interesses patrimoniais sérios da empresa;”

Esta norma é a concretização dos deveres do trabalhador plasmados no art. 128.º, n.º 1, alíneas a), c) e) e f) do mesmo código, segundo as quais: Sem prejuízo de outras obrigações, o trabalhador deve respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade; deve realizar o trabalho com zelo e diligência; deve cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes à execução ou disciplina do trabalho; e deve guardar lealdade ao empregador.
No âmbito da sua relação laboral o trabalhador está vinculado a vários deveres, destacando no que aqui releva, o dever de lealdade, de transparência e de boa fé, como forma de garantir e conservar a confiança mútua que tem de existir e que se revela indispensável à manutenção dessa relação contratual.
No que respeita ao dever de lealdade importa salientar que é um dos deveres acessórios autónomos da prestação principal e que onera o trabalhador no contexto da relação de trabalho, já que no seu sentido mais amplo é o dever orientador geral da conduta do trabalhador no cumprimento do contrato num duplo sentido que se materializa no envolvimento pessoal do trabalhador no vínculo e na componente organizacional do contrato.
Como se refere a este propósito no Acórdão do STJ de 19-11-2014, proferido no Proc. n.º 525/07.7TTFUN.L2.S1(relator António Leones Dantas), consultável em www.dgsi.pt
O elemento «da pessoalidade explica que a lealdade do trabalhador no contrato seja, até certo ponto, uma lealdade pessoal, cuja quebra grave pode constituir motivo para a cessação do contrato. É este elemento de pessoalidade, traduzido na lealdade pessoal, que justifica por exemplo, o relevo de condutas extra-laborais do trabalhador graves para efeito de configuração de uma situação de justa causa de despedimento, bem como o relevo da perda da confiança pessoal do empregador no trabalhador para o mesmo efeito».
Por outro lado, «a componente organizacional do contrato de trabalho justifica que o dever de lealdade do trabalhador não se cifre apenas em regras de comportamento para com a contraparte mas também na exigência de um comportamento correcto do ponto de vista dos interesses da organização», dependendo, nesta segunda dimensão, o grau de intensidade do dever de lealdade e as consequências do seu incumprimento «do tipo de funções do trabalhador e da natureza do seu vínculo de trabalho em concreto».
No dizer de MONTEIRO FERNANDES, «o que pode dar-se por seguro é que o dever geral de lealdade tem uma faceta subjectiva que decorre da sua estreita relação com a permanência de confiança entre as partes (nos casos em que este elemento pode considerar-se suporte essencial de celebração do contrato e da continuidade das relações que nele se fundam)», sendo necessário «que a conduta do trabalhador não seja em si mesma, susceptível de destruir ou abalar tal confiança, isto é, capaz de criar no espírito do empregador a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta daquele», sendo certo que «este traço do dever de lealdade é tanto mais acentuado quanto mais extensa for a (eventual) delegação de poderes no trabalhador e quanto maior for a atinência das funções exercidas à realização final do interesse do empregador».”
Acresce ainda dizer que a violação do dever de lealdade que impende sobre o trabalhador não depende da verificação, em concreto, de um efetivo prejuízo para o empregador, sendo suficiente a potencialidade desse prejuízo. Por outro lado, a quebra da confiança entre empregador e trabalhador não se afere pela existência de prejuízos, podendo até existir sem estes, basta que o comportamento do trabalhador seja apto a gerar no empregador a dúvida sobre a idoneidade da sua conduta futura.
Retornando ao caso dos autos importa averiguar da factualidade que releva para apreciação da justa causa, que no caso se consubstancia especialmente na violação, por parte do trabalhador, dos deveres de lealdade e de obediência para com o seu empregador

Estão apurados os seguintes factos:

- O A. desempenhava as funções de Farmacêutico de grau I, sob as ordens, direcção e fiscalização da R. desde 6/4/2009.
- No exercício das suas funções, competia ao A. a preparação, conservação, selecção, aquisição, armazenamento e venda ao público de medicamentos e outros produtos com fins medicinais, cosméticos ou outros, para uso humano ou veterinário, na farmácia da R.; mais lhe competia prestar informações e aconselhar na utilização daqueles produtos.
- Desde Maio de 2017, por ser o farmacêutico com maior antiguidade ao serviço da R., esta passou a delegar no A. algumas tarefas relacionadas com a gerência do estabelecimento em que prestava funções, passando, por isso, a exercer funções de responsabilidade e especial confiança.
- Para a R., o A. representava um exemplo e uma referência de liderança para os demais trabalhadores.
- A R. tem acordos comerciais com o laboratório “W” para venda de produtos deste laboratório, tendo a R. instruído os seus funcionários no sentido de procurarem vender preferencialmente os produtos deste em relação aos da concorrência.
- O laboratório “Y” tinha um reduzido número de produtos à venda no estabelecimento de farmácia da R.
- No mês de Agosto de 2017, após uma reunião com o delegado que representava o laboratório “Y”, o A. apresentou uma proposta expressa aos seus colegas de trabalho V. N., R. A., C. A. e P. E., no sentido de receberem um incentivo pecuniário por cada produto vendido do “Y” em vez do produto do “W”, incentivo esse que seria pago directamente ao trabalhador e não à R.
- A “Y” chegou a pagar o referido incentivo a um dos trabalhadores referidos em 7), para tanto tendo tido acesso a um extracto de vendas facultado pelo A.
- No dia 9 de Janeiro de 2018, houve uma tentativa de acesso ao sistema informático da R. a partir de uma conta titulada pelo A.

Atenta o teor da factualidade provada podemos concluir que são dois os episódios que sustentam a justa causa de despedimento do autor. Começando pelo episódio que ocorreu no dia 9 de Janeiro de 2018 referente ao acesso indevido ao sistema informático da Ré, teremos de concluir, tal como conclui o Tribunal a quo que este episódio não é suficiente para que se possa imputar ao autor qualquer comportamento violador dos seus deveres laborais.
Quanto ao episódio relativo ao acordo firmado entre o autor e o laboratório “Y”, com o propósito de obter ganho económico para si e para os demais colaboradores que aceitassem tal acordo, a liquidar pelo referido laboratório, na venda de produtos daquele laboratório, em vez dos produtos do “W com quem a Ré tinha um acordo comercial para venda de produtos deste laboratório, tendo instruído os seus funcionários no sentido de procurarem vender preferencialmente os produtos deste em relação aos da concorrência, teremos de dizer que esta factualidade não é de considerar de genérica, vaga ou abstracta, como defende o recorrente. Ao invés da mesma resulta suficientemente pormenorizado o circunstancialismo de tempo, lugar e modo em que os factos ocorreram, de forma a poder concluir-se pelo comportamento culposo e ilícito do trabalhador.
É certo que não se apurou em que consistia o quantum desse incentivo, nem se apurou que concreto incentivo foi pago e a quem, nem se apurou em que medida tal acordo trouxe benefícios para o recorrente e prejuízos para a recorrida, nem se provou que prejuízos resultaram para a gestão da Ré. Contudo a factualidade provada permite-nos concluir quer pela violação do dever de obediência e cumprimento das diretrizes emanadas pelo empregador, quer pela violação, com gravidade extrema do dever de lealdade do autor para com o seu empregador que não deixa margem para duvidar que se tornou imediata e irremediavelmente impossível a manutenção da relação laboral.
Ao contrário do pretendido pelo recorrente esta factualidade não integra imputações genéricas, mas sim trata-se de factualidade da qual consta a descrição suficiente e circunstanciada dos factos concretos que consubstanciam a violação dos deveres laborais sendo suficientemente esclarecedora para aferir da gravidade do comportamento ilícito do autor e tanto basta para não se poder concluir pela falta de concretização da factualidade provada.
Não é exigível que empregador tenha de manter ao seu serviço um funcionário em quem depositava a sua total confiança, sendo quem o substituía na sua ausência, que aproveitando-se dessa situação estabelece um acordo paralelo com um laboratório concorrente de um outro com quem o empregador tinha uma acordo comercial no sentido de vender preferencialmente os seus produtos, tendo por fim passar a vender preferencialmente os produtos deste, recebendo em troca os colaboradores da Ré (nos quais se incluía o autor) que aceitassem vender tais produtos, um incentivo económico por cada produto vendido.
Sem margem para dúvida que para além da conduta do autor revelar um alto grau de deslealdade para com o empregador, que iria concerteza a médio prazo prejudicar o empregador ao passarem a vender os produtos de um laboratório em detrimento daqueles que pertenciam ao laboratório com o qual o empregador havia firmado um acordo comercial. A gravidade da conduta do autor, ainda que desprovida de grandes pormenores e omissa de reais prejuízos, leva-nos a concluir pela perda imediata da confiança que tem necessariamente de existir entre empregador e trabalhador que tem a responsabilidade de além do mais substituir o gerente na sua ausência, o que revela desde logo a impossibilidade de manutenção da relação de trabalho.
O Autor não só desobedeceu de forma ilegítima às ordens emanadas pelo empregador, no sentido de cumprir a instrução relativa à venda dos produtos da W, como propôs aos seus colegas que aceitassem vender os produtos da Y em detrimento dos da W recebendo como contrapartida um incentivo monetário, como sobretudo violou o dever de lealdade de forma irremediável, ao negociar em nome do empregador um acordo do qual, ao que tudo indica, só traria vantagens para os colaboradores da Ré e prejuízos para esta, uma vez que em substituição dos produtos que a tinha dado instruções para os seus colaboradores darem preferência nas vendas iriam ser substituídos pelos produtos em que os colaboradores ganhariam um incentivo monetário com as vendas.
Acresce dizer que ainda que coubesse nas competências do autor em sede de substituição do empregador apresentar e transmitir aos seus colegas as propostas formuladas pelos delegados dos Laboratórios, ainda assim, ditam as regras da experiência que tal teria de ser feito com o conhecimento e o consentimento da gerência, o que o autor não logrou provar. E não sem consentimento da Ré, ciente de que estava em causa a venda de produtos concorrentes com outros, que a Ré se tinha obrigado a comercializar para obter vantagens económicas. Da factualidade provada não resulta que o autor tivesse autorizado a negociar ou a concluir acordos comerciais, com propostas de recebimentos de quantias monetárias a título pessoal decorrentes da venda de produtos de laboratório concorrente com um laboratório com o qual o empregador já havia celebrado um acordo comercial equivalente, tudo à revelia da Ré
Quanto ao facto da proposta da Y não contemplar o recebimento pelo autor de qualquer valor, parece-nos ser uma conclusão descabida, pois o autor e não deixava de ser funcionário da Ré que tinha como uma das suas funções o atendimento ao público, por isso desde que fosse ele a vender os produtos da Y, obteria vantagem económica. Como também nos parece óbvio que podendo cada um dos funcionários da Ré auferir uma importância monetária por cada produto que vendessem da Y, os que aderissem a esta proposta passariam a dar preferência à venda destes produtos, pois beneficiariam de imediato de vantagem económica, tal como sucedeu com o P. E., que em pouco tempo terá recebido 52,50€ da Y pela venda de produtos deste Laboratório. Claro que a proposta da Y era um incentivo para os colaboradores da Ré, que para além de não trazer qualquer vantagem a esta a prejudicaria nos seus compromissos designadamente com os assumidos com o outro laboratório concorrente, pois ao contrário do por si estabelecido, os seus colaboradores iriam dar preferência aos produtos da Y, já que na venda destes receberiam beneficio directo. Não temos dúvidas em afirmar que a relação de confiança entre as partes não ficou só abalada, mas efetivamente rompeu-se.
Por outro lado, também não se mostram provados quaisquer factos com relevância atenuativa que justificassem a aplicação de uma outra sanção disciplinar conservatória, em vez do despedimento, pois a antiguidade do autor e o facto de durante vários anos ter desempenhado as suas funções de forma exemplar, não impõe comportamento distinto em face da gravidade da situação. Ao invés os próprios colegas do autor consideram que o seu regresso se traduziria num elemento profundamente perturbador das relações entre eles e com a gerência, sentindo-se agastados com o comportamento daquele.
Em suma, quebrou-se de forma irremediável a confiança que deve existir entre empregador e trabalhador deixando assim de existir o suporte mínimo para a manutenção da relação contratual.

Improcede também neste segmento a apelação, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso, designadamente as consequências decorrentes da ilicitude do despedimento.

V- DECISÃO

Pelo exposto e ao abrigo do disposto nos artigos 87.º do CPT. e 663.º do CPC., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães, em negar provimento ao recurso de apelação interposto por T. C., confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo do Recorrente.
Notifique.
15 de Junho de 2021

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Antero Dinis Ramos Veiga