Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1338/19.9T9BCL.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
CONCEITO LEGAL
CRIME DE INJÚRIA
NÃO REJEIÇÃO
ARTº 311º DO CPP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) Sendo o conhecimento de uma acusação destinado, por excelência, ao julgamento, a irrelevância penal dos factos tem de ser indiscutível, inequívoca, incontroversa, evidente.
II) Contendo a acusação descritos os elementos objectivos e subjectivos do ilícito em apreço, não pode afirmar-se que os factos nela descritos não constituem crime.
IV) Ainda que a acusação particular, acompanhada pelo Ministério Público, possa vir a improceder, tal desfecho mais não é do que o resultado de um juízo de mérito, valorativo, feito em sede própria.
V) Com efeito, tendo em conta a estrutura acusatória do nosso processo penal, o juiz não pode julgar do mérito da acusação, ajuizando sobre a atipicidade da conduta imputada, aquando do despacho de saneamento do processo, proferido ao abrigo do citado art.311º.
Decisão Texto Integral:
Desembargadora Relatora: Cândida Martinho
Desembargador Adjunto: António Teixeira

Acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

1.
No processo comum com intervenção do Tribunal Singular, com o nº1338/19.9T9BCL, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Barcelos – Juiz 1 – foi proferido despacho ao abrigo do disposto no artigo 311,nºs2,al.a) e 3, do Código de Processo Penal, nos termos do qual foi decidido rejeitar a acusação particular, por manifestamente infundada, uma vez que os factos não constituem crime.

2.
Não se conformando com tal decisão veio a assistente L. T. recorrer da mesma, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:

1.A Assistente deduziu contra a arguida J. S., acusação particular pela prática de um crime de injúria p. e p. no art. 181º do C.P.
2.Os factos imputados à arguida na acusação particular deduzida pela assistente foram acompanhados pelo Ministério Público.
3.O Tribunal à quo considerou a acusação manifestamente infundada, por entender que os factos imputados não constituem crime.
4.Com o devido respeito, entende a recorrente que o Tribunal a quo não interpretou devidamente o disposto no artigo 311, n.º2 al a) e n.º3, al d) do CPP.
5.A acusação contém os elementos objetivos e subjetivos necessários para ser admitida.
6.A Acusação deverá ser aceite e não considerada manifestamente infundada porque contém a identificação da arguida, indica as disposições legais, as provas e os factos que constituem crime.
7.Para se apreciar se determinados factos constituem ou não crime mister se tornaria ter em consideração, em sede de realização de audiência de julgamento e produção de prova, as circunstâncias em que tais factos e expressões foram proferidas e se no contexto têm conotações que ofendem a reserva da intimidade e os direitos fundamentais dos visados, que podem variar consoante o sexo, factores sociais, culturais e educacionais.
8.Atendendo ao local, às circunstâncias em que foram proferidas as expressões, a quem foram dirigidas e em que circunstancias o foram, mister se terá que concluir que a arguida quis humilhar e envergonhar a assistente, o que efetivamente conseguiu, afetando assim a honra e consideração desta.
9.No sentido da posição defendida no presente recurso, faz a Recorrente referência à jurisprudência dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, datados de 06/01/2010 e 10/07/2018, do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 22/03/2017 e do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 12/01/2017, todos publicados em www.dgsi.pt.
10.Ao decidir como o fez, o despacho recorrido violou as seguintes os artigos 181º do Código Penal e artigo 311º do Código de Processo Penal.
11.Atendendo aos fundamentos supra expostos, deverá o presente Recurso ser julgado procedente, revogando-se o despacho recorrido, sendo o mesmo substituído por outro que designe dia e hora para a realização da audiência de discussão e julgamento nos seus precisos termos, imputando à arguida a prática de um crime de injúria previsto e punido pelo artigo 181º do Código Penal.

3.
A arguida respondeu ao recurso, concluindo nos seguintes termos:

i.O presente recurso está centrado na impugnação do Despacho do Tribunal que saneou e rejeitou, e bem, ao abrigo do disposto no artigo 311º nº 1 e 2 al. a) e nº 3 al. d) do Código de Processo Penal, a acusação particular deduzida pela aqui Recorrente, por manifestamente infundada, atento que os factos imputados à aqui recorrida não constituem crime.
ii.A decisão do tribunal a quo é integralmente acertada e não merece qualquer reparo.
iii.Aliás, o que é facto, é que todos os elementos probatórios constantes dos autos demonstram inequivocamente que a arguida nem sequer ofendeu verbalmente a aqui assistente, pelo que nem se veria discutir a relevância penal da conduta da arguida!
iv.O recurso apresentado pela ora Assistente Recorrente é meramente dilatório, não contendo qualquer fundamento merecedor de colher procedência.
v.A Assistente Recorrente baseou a sua sindicância no simples facto de ser necessário recorrer ao julgamento e produção de prova, para concluir que a arguida praticou o alegado, mas não provado crime de injúrias.
vi.A Assistente limita-se a questionar, e muito mal diga-se, o modo como o Tribunal a quo formou a sua convicção relativamente aos factos, tentando impor uma tese de aceitação da acusação particular e consequente sujeição a julgamento da arguida, mas não há motivação para o efeito.
vii.Não existe nos autos nenhum elemento que contribua ou aponte, de forma inquestionável, para uma decisão diferente da que foi proferida pelo Tribunal a quo.
viii.A versão apresentada pelo julgador do Tribunal a quo foi fundamentada.
ix.O Tribunal a quo indica fundamentando que “ Considerando, ora a identidade da expressão valorada, ora as condições/ contexto em que a expressão foi proferida(…) a prolação da expressão em causa não tem relevância penal, por maioria de razão a prolação da expressão no contexto em que decorre a acusação deduzida(…) não constitui a prática do crime imputado à arguida”.
x.A prova que eventualmente seria produzida em audiência de discussão e julgamento, bem como toda a fundamentação vertida e motivada em douto despacho, não impõe, de todo, qualquer outra decisão do que aquela foi proferida.
xi.Decidiu muito bem o tribunal a quo, ao rejeitar, por manifestamente infundada, a acusação particular formulada pela assistente.

TERMOS EM QUE DEVE A DECISÃO OBJECTO DE RECURSO SER CONFIRMADA, NEGANDO-SE PROVIMENTO AO RECURSO INTERPOSTO,
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA»
4.

O Exmo Procurador da República junto da primeira instância veio também responder ao recurso, pugnando pela sua improcedência.

Em sede de conclusões aduziu o seguinte (transcrição):

“1 – Em síntese, de tudo atrás explanado, o douto despacho recorrido deverá ser mantido na íntegra, uma vez que tendo em conta todo o supra exposto, o Mmº Juiz a quo, em nosso entender, decidiu de forma correta ao proferir o douto despacho.
2 – Assim sendo, in casu o douto despacho recorrido não padece de qualquer errada interpretação jurídica, pelo que dúvidas não restam, que não foi violado qualquer norma jurídica e/ou Princípios Gerais do Direito invocados.
3 – Mais uma vez falece razão à recorrente/assistente relativamente aos restantes argumentos, pelo que o Tribunal a quo não violou qualquer norma jurídica e nem qualquer Princípio Geral de Direito e/ou Constitucional.
Este é o nosso parecer – improcedência do presente recurso.
Agindo Vs Exs com saber e ponderação farão a costumada JUSTIÇA”.

5.
Neste Tribunal da Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto, perfilhando da posição assumida pela primeira instância, emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6.
Cumprido o art. 417º,nº2, do C.P.P., não foi apresentada qualquer resposta.


II. Fundamentação

Dispõe o art. 412º,nº1, do Código de Processo Penal, que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
O objeto do processo define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º, todos do mesmo diploma legal - naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cf.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, VolIII, 1994,pág.340, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).
No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pela recorrente, a única questão a decidir prende-se em saber se a situação processual configurada nos autos representa um caso de “acusação manifestamente infundada” e como tal merecedora de rejeição judicial.

B) Decisão Recorrida

«Autue como processo comum com intervenção do Tribunal Singular.
***
Nos termos do disposto no artigo 311º, n.º 2 do Código de Processo Penal, “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada”.
A acusação considera-se manifestamente infundada quando não contenha a identificação do arguido, ou a indicação dos factos, se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam ou se os factos não constituírem crime (art. 311.º, nº 3, do C. de Processo Penal).
*
A assistente L. T. deduziu acusação particular contra J. S., imputando-lhe a prática de um crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, nº 1, do C. Penal.
Para tanto, e em síntese, alega que, tendo-se deslocado a um estabelecimento comercial, acompanhada de mais 8 pessoas, se dirigiu à arguida para que a mesma, por ser a proprietária do dito estabelecimento, diligenciasse pela limpeza da mesa onde a queixosa se encontrava com os amigos, tendo a acusada proferido a seguinte expressão: “se não estás bem, podes ir embora, aqui não metes mais os pés e vai pró caralho…”. Tais expressões fizeram a assistente sentir-se envergonhada, discriminada e lesada na sua honra e consideração.
***
Dispõe o artigo 181º, n.º 1 do referido diploma legal que “quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, é punido com prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias”.
Conforme directamente decorre da inserção sistemática do tipo de crime em análise e a mais resulta da epígrafe do capítulo VI do título I do livro II do Cód. Penal, o bem jurídico protegido no crime de injúrias é a honra.
Ultrapassadas que estão as concepções extremadas - fácticas e normativas - que, na tentativa de precisar o conteúdo do referido bem, ora o reconduziram à distinção entre honra subjectiva e honra externa, filiando a primeira na ideia que alguém tem das suas próprias qualidades e a segunda na ideia que de alguém têm os restantes membros de uma comunidade, ora vincularam o respectivo conteúdo ao efectivo cumprimento de deveres éticos, acabando por restringir a consentida relevância à chamada honra merecida, pode dizer-se que a honra deverá ser hoje entendida como uma decorrência directa da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da Constituição da República Portuguesa) e, nessa medida, como um conceito normativo, cuja concretização não dispensará convocação de uma dimensão fáctica ou existencial do homem enquanto ser social, enquanto pessoa empenhada na realização dos seus planos de vida e ideais de excelência.
Deste modo, aderimos a uma visão mista fáctico-normativa do conceito de honra - de resto, entre nós tradicionalmente prevalecente -, entendendo-a necessariamente como um bem jurídico complexo, que inclui, por um lado, um valor pessoal e interior de cada indivíduo, o interesse da estima que cada um tem por si próprio, radicado na sua inviolável dignidade pessoal (honra interior), e, por outro, a própria reputação ou consideração exterior, o apreço social pelas qualidades determinantes da unicidade do indivíduo enquanto pessoa e os demais valores pessoais por ele adquiridos no plano moral, intelectual, sexual, profissional ou político, o bom nome e reputação, o direito ao crédito pessoal e o direito ao decoro (honra exterior). (vide Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, p. 607, Coimbra Editora). Trata-se aqui de duas dimensões de um mesmo fenómeno, protegidas, em termos cumulativos e de forma tendencialmente parificada, através dos tipos legais das injúrias e da difamação (neste sentido, Beleza dos Santos, “Algumas considerações jurídicas sobre os crimes de difamação e de injúria”, RLJ, ano 92, pg. 165 e ss., e, mais recentemente, Costa Andrade, “Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal”, Coimbra Ed., 1996, p. 86).
Consistindo, portanto, a lesão da honra na violação de uma pretensão de respeito, de reconhecimento da dignidade devida à pessoa humana, a actividade de subsunção de determinada conduta obrigará a que se avalie se a imputação ou o juízo de valor formulados são objectivamente adequados para diminuir, desacreditar ou desprestigiar socialmente o visado.
Porém, como vem sido entendido pela doutrina (citada) e pela jurisprudência (cfr. situação análoga decidida no Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 27/04/2016, relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, no processo n.º 427/13.8GAARC.P1), nem toda a falta de respeito, ultraje ou prolação de uma expressão obscena com tal fito constitui injúria, por carecer de dignidade penal.
Aderindo ao citado acórdão, que se passa a transcrever
«salvo o devido respeito por opinião contrária, entendemos que a expressão “vai para o caralho” não preenche a previsão normativa do estatuído no artº 181º do C. Penal, onde se diz, recorde-se, que comete o crime de injúria «Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração». // Com efeito, a mesma, de forma clara, evidente e linear, não imputa à assistente qualquer facto ou juízo de valor. // Como se escreveu no Ac. R. Évora de 28.05.2013, a respeito de idêntica expressão, «sendo indiscutivelmente rudes, assumidamente ordinárias, claramente grosseiras, e obviamente deselegantes, que qualificam negativamente quem as profere e que ofendem as normas de convivência social e aquele mínimo de respeito comunitário que é suposto existir, não atingem, contudo, aquele núcleo essencial do conceito de honra e consideração de forma a merecer a tutela penal. // Na verdade, uma coisa é a grosseria, a má educação, a utilização de linguagem desbragada ou obscena e outra, bem diversa, é que tal comportamento, eticamente reprovavelmente e moralmente censurável, traduza um atentado à personalidade moral do interlocutor». // Com efeito, há que ter em consideração que “a ofensa à honra ou consideração não é suscetível de confusão com a ofensa às normas de convivência social, ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras, ainda que direcionadas a pessoa identificada, distinção que importa ter bem presente porque estas últimas, ainda que possam gerar repulsa social, não são objeto de sanção penal” [Ac.R.Coimbra de 06.01.2010, proferido no Proc. nº 862/08.3TAPBL.C1, Des. Jorge Jacob]. // A jurisprudência tem entendido que a mera verbalização de palavras obscenas, são absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom-nome ou a reputação do visado. Traduzem um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral, que fere as regras do civismo exigível na convivência social. Contudo, esse tipo de comportamento, socialmente desconsiderado, tido por boçal e ordinário e violador das normas consuetudinárias da ética e da moral, é destituído de relevância penal [Cfr., entre outros, Acs.R.Porto de 25.06.2003 (Proc. nº 0312710, Des. Francisco Marcolino); de 19.04.2006 (Proc. nº 0515927, Des. Élia São Pedro) e 19.12.2007 (Proc. nº 0745811, Des. Olga Maurício)]. // Ao proferir a expressão “vai para o caralho”, o arguido não emitiu qualquer juízo de valor em relação à pessoa da assistente, nem lhe imputou qualquer facto, ainda que sob a forma de suspeita, e as palavras que lhe dirigiu não são suscetíveis de ofender a honra ou consideração da assistente, pese embora se reconheça (à referida expressão), como se disse, a forma grosseira, rude, boçal até, de transmitir a sua indignação perante a circunstância de a assistente se encontrar junto à mina. // Como se escreveu em Acórdão desta Relação [Ac. RP de 12.06.02, Recurso 332/02] “o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”. // Conclui-se, assim, que a expressão utilizada pelo arguido é inócua, isto é, deixa intocada a honra da assistente, importando ter em mente que o bem jurídico a que alude a incriminação a que se vem fazendo referência, não é por qualquer forma atingido, não se olvidando que o direito penal visa a tutela de bens jurídicos, pelo qualquer conduta que não os afete é atípica, isto é, não é punível. // Impõe-se, por isso, a absolvição do arguido».
Considerando, ora a identidade da expressão valorada, ora as condições/contexto em que a expressão foi proferida, logo se alcança que, se nos processos das decisões deixadas citadas (em que, aliás, o ambiente contextual amplifica o grau da ofensividade das palavras dirigidas, ao contrário do que sucede no presente caso – cfr. a propósito desta especificidade o decidido no recurso para uniformização de jurisprudência com o n.º 427/13.8GAARC.P1-A.S1 do STJ) se entendeu que a prolação da expressão em causa não tem relevância penal, por maioria de razão a prolação da expressão no contexto em que decorre da acusação deduzida – em que a emissão da declaração obviamente grosseira e impolida resulta mais de um desabafo do que, propriamente, de um ataque à consideração de quem quer que seja – não constitui a prática do crime imputado à arguida.

DECISÃO

Nestes termos, ao abrigo do disposto no artigo 311º, n.º 1, n.º 2 al. a), e n.º 3 al. d) do Código do Processo Penal, decido rejeitar a acusação particular, por manifestamente infundada, uma vez que os factos imputados não constituem crime.
(…)»

C) Apreciando

Vejamos então se a situação configurada nos autos representa um caso de “acusação manifestamente infundada” e como tal merecedora de rejeição judicial.
O art.311.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, estabelece que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente pode despachar no sentido, designadamente, «a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada».

O n.º3, deste artigo, clarifica que «Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não identificar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.»

A Lei n.º 59/98, de 25 de agosto ao aditar o n.º3 ao art.311.º do C.P.P., prevendo de modo claro e taxativo as situações que podem levar à conclusão de se estar perante uma acusação manifestamente infundada, pressuposto da sua rejeição, limitou os poderes do juiz sobre a acusação, antes do julgamento. Excluída ficou assim a rejeição da acusação fundada em manifesta insuficiência de prova indiciária, tornando claro que o juiz de julgamento não pode fazer a apreciação crítica dos indícios probatórios colhidos no inquérito, determinando a caducidade da jurisprudência fixada pelo Acórdão nº 4/93, de 17 de Fevereiro (DR, I-A, de 26 de Março de 1993).
De entre os casos expressamente previstos no citado nº3, em que, para os efeitos do nº2, a acusação se considera manifestamente infundada, interessa-nos, em particular, o que vem previsto na alínea d), que se verifica quando os factos descritos na acusação “não constituírem crime”.
A este propósito, refere Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal, pág.790, que “O fundamento da inexistência de factos na acusação que constituam crime só pode ser aferido diante do texto da acusação, quando faltem os elementos típicos objectivos e subjectivos de qualquer ilícito criminal da lei penal portuguesa ou quando se trate de conduta penalmente irrelevante”.
Porém, sendo o conhecimento de uma acusação destinado, por excelência, ao julgamento, tal irrelevância penal dos factos tem de ser indiscutível, inequívoca, incontroversa, evidente.
Assim vem entendendo a maioria da jurisprudência.
Como se referiu no Acórdão da Relação de Lisboa, de 7/12/2010, Proc.475/08.0TAAGH.L1, in C.J, Tomo V, pág.145, “I. Quando o juiz rejeita a acusação por manifestamente infundada considerando que os factos não constituem crime mediante uma interpretação divergente de quem deduziu essa acusação viola o princípio acusatório. II. Face a este princípio, ao proferir o despacho a que alude o art.311º, nº2, C.P.P., o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada, por os factos não constituírem crime, quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada. III. Uma opinião divergente, como a manifestada pelo Mmo Juiz recorrido, apoiada numa análise do contexto em que ocorreram os factos, por muito válida que seja, não assegura o princípio do contraditório (…)”.
Ainda a este propósito, os Acórdãos da Relação de Coimbra, de 12/07/2011, Proc. 66/11.8GAACB.C1, in dgsi “(…) Só quando de forma inequívoca os factos constam da acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la”, da Relação do Porto de 21/10/2015, Proc.658/14.3GAVFR.P1 “I. Só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam da acusação não constituam crime é que o Tribunal ao abrigo do art.311º,nº3,d), do C.P.P., pode rejeitar a acusação. II. Havendo divergências na jurisprudência sobre a integração dos factos descritos na acusação como constituindo crime, só após o julgamento o tribunal pode tomar posição sobre a qualificação jurídica dos factos como integrando ou não o crime imputado”, da Relação de Évora de 8/7/2010, Proc.1083/08.0TAABF.E1, “I. A previsão da al.d) do nº3 do artigo 311º do C.P.P. que impõe a rejeição da acusação, só contempla os casos em que os factos nela descritos, claramente, notoriamente, não constituem crime (…)” e de 15 de outubro de 2013, proferido no processo 321/12.OTDEVR.E.1, “(…) a alínea d), do nº3, do art.311º, do Código de Processo Penal, não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colide com acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime (…)”.
Na situação em apreço, a Mma Juiz rejeitou a acusação com base no disposto na citada alínea d), porquanto considerou que os factos descritos não constituíam crime.
Está em causa a imputação à arguida de um crime de injúria, p. e p. pelo art.181º,nº1, do C.Penal.
Entendeu a Mma Juiz que a expressão “vai pró caralho”, dirigida pela arguida à assistente, nas condições/contexto em que ocorreu e segundo doutrina seguida em algumas decisões que citou a tal respeito, nas quais estava em causa a mesma expressão, carecia de relevância penal.
Pese embora concordemos com o entendimento de que o apuramento da verificação do ilícito não pode pois circunscrever-se a uma valoração isolada e objectiva das expressões, impondo-se que as mesmas sejam analisadas em função do circunstancialismo de tempo, de modo e de lugar em que foram proferidas, da relação existente entre a assistente e a arguida, tendo ainda em conta realidades relacionadas com o contexto sociocultural e a maior ou menor adequação social do comportamento, a verdade é que não sendo inequívoco o juízo feito pela Mma Juiz a respeito da atipicidade da conduta imputada à arguida, impunha-se que o mesmo não tivesse sido feito no momento processual em que o foi, ou seja, aquando do saneamento do processo a que se reporta o citado artigo 311º do C.P.P., mas apenas em julgamento.
De facto, contendo a acusação descritos os elementos objectivos e subjectivos do ilícito em apreço, não pode afirmar-se que os factos nela descritos não constituem crime.
Ainda que tal acusação particular, acompanhada pelo Ministério Público, possa vir a improceder, tal desfecho mais não é do que o resultado de um juízo de mérito, valorativo, feito em sede própria.
Com efeito, tendo em conta a estrutura acusatória do nosso processo penal, o juiz não pode julgar do mérito da acusação, ajuizando sobre a atipicidade da conduta imputada, aquando do despacho de saneamento do processo, proferido ao abrigo do citado art.311º.
“Neste momento, de recebimento da acusação, o tribunal só pode rejeitar a acusação por manifestamente infundada quando a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora de um crime, juízo que tem de assentar numa constatação objectivamente inequívoca e incontroversa da inexistência de factos que sustentam a imputação efectuada.
Uma opinião divergente, como a manifestada pelo Mmo. Juiz recorrido, traduz-se na formulação de um pré-juízo pelo juiz de julgamento sobre o mérito da acusação, o que não é admissível.
Sendo descritos na acusação factos susceptíveis de ofender a honra e consideração da assistente, não pode afirmar-se de forma inequívoca que os factos que dela constam não constituem crime.
A acusação pode vir a improceder, mas esse será um juízo que o tribunal fará na fase própria, o julgamento, devendo o Mmo Juiz, neste momento, limitar-se a marcar data para o efeito, pois face ao texto da acusação não é possível afirmar que os factos nela descritos não constituem crime” - Acórdão da Relação de Lisboa de 24/9/2019, Proc.1450/18.1T9SNT.L1.

Por tudo exposto, sem necessidade de mais considerações, deverá o despacho recorrido ser substituído por outro que designe dia para a realização da audiência de julgamento.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Penal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso, devendo o despacho recorrido, não se verificando outras circunstâncias que o impeçam, ser substituído por outro que designe dia para a realização da audiência de julgamento.

Sem custas.
Guimarães, 12 de abril de 2021.