Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1783/14.6TBGMR-F.G2
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA
CONCEITO DE DOCUMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2º SECÇÃO CÍVEL
Sumário: 1 – O documento necessário para se proceder à revisão de sentença transitada em julgado tem que ser suficiente para, só por si, poder modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida, tem que ser suficiente para destruir a prova em que a sentença se fundou, provando facto inconciliável com aquela.
2 - Uma sentença não integra o conceito de “documento” para efeitos da alínea c) do artigo 696.º do CPC que enumera taxativamente os fundamentos do recurso de revisão.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. RELATÓRIO
Por apenso a processo de insolvência, veio M, aí declarada insolvente, interpor recurso de revisão, com fundamento na alínea c) do artigo 696.º do Código de Processo Civil.
Alegou que, por sentença de 6 de maio de 2015, confirmada por acórdão desta Relação de 30 de julho de 2015, já transitada em julgado, foi indeferido liminarmente o seu pedido de exoneração do passivo restante, com fundamento no incumprimento do dever de apresentação e culpa no agravamento da sua situação financeira – artigo 238.º, n.º 1, alíneas d) e e) do CIRE.
Entretanto, por acórdão desta Relação de 29 de setembro de 2016, já transitado em julgado, proferido no apenso de qualificação de insolvência da recorrente, foi decidido revogar a sentença de 24 de novembro de 2015 que, além do mais, qualificou a insolvência como culposa, qualificando-a como fortuita, com fundamento na inexistência do dever de apresentação à insolvência da recorrente e, consequentemente, da culpa desta no aludido agravamento da sua situação financeira.
Entende a recorrente que este referido acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães é um “documento” que não pôde usar no momento próprio, porque não existia, mas que, agora, em sede de revisão, preclude os fundamentos do indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, por aí se ter considerado que a insolvente não era obrigada a apresentar-se à insolvência.
Pede que a sentença revidenda seja revogada e, por via disso, seja decidido o deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.

Foi proferida decisão que indeferiu o recurso apresentado, por se entender que o mesmo não se encontra devidamente instruído, o “documento” é posterior à prolação da decisão revidenda, bem como o “documento” em causa não constitui “documento” nos termos e para os efeitos do artigo 696.º, alínea c) do CPC.
Desta decisão foi interposto recurso, de onde se extraem as seguintes
Conclusões:
I - Como decorre da decisão recorrida, três são os fundamentos da sua prolação: a não instrução dorecurso de revisão, o facto de a decisão “documento” ser posterior à decisão revidenda e a mesma nãoconstituir “documento” nos termos e para os efeitos do disposto no artº 696º, alínea c), do CPC. Assimsendo, são essas as três questões a apreciar no presente recurso.
II – Dá-se aqui como inteiramente reproduzidas, para todos os efeitos legais, as conclusões formuladasno recurso de revisão.
III – Quanto à questão da instrução do recurso de revisão, dir-se-á que foi requerida a passagem dascertidões tidas como necessárias a essa instrução na parte final do mesmo recurso e que, quando elesubiu ao Tribunal Superior, já essas certidões estavam passadas e incorporadas nos autos, pelo que seentende que uma eventual irregularidade desse tipo como que se auto-sanou.
IV - O prazo de passagem de qualquer certidão é de 5 dias – artº 171º, do CPC – o qual, in casu, não foicumprido. Como foi entendido que o recurso de revisão não foi instruído, então devia (e não apenas podia) o MºJuiz a quo, no exercício do dever de gestão processual que lhe compete – nº 2, do artº 6º, do CPC – ordenara notificação da recorrente para suprir a ou as irregularidades verificadas, convidando-a a apresentar asreferidas certidões, assim as sanando. Na verdade, o mencionado nº 2, do arº 6º do CPC impõe ao Juiz o dever de gestão processual – e nãoapenas um poder discricionário, aquele a ser exercido ex officio, por a ele estar adstrito o Juiz.É a consagração do primado da substância sobre a forma, que enforma o nosso novo direito adjectivocivil. Em conformidade, deve ser considerado que a alegada falta de instrução do recurso constitui umamera irregularidade formal, de resto já sanada, devendo, dessa forma, evitar-se praticar um acto inútil,de todo proibido na lei adjectiva, como o seria a emissão de novas certidões.
V - Essa omissão do Mmº Juiz a quo, se não for considerada como já não sanada, gera nulidade, por termanifesto interessa para a decisão da causa, pois a falta de instrução do recurso foi a perspetiva ínsita nadecisão recorrida, nulidade essa que ora expressamente se argui para os devidos e legais efeitos, quepode ser arguida em sede de recurso, como ora se faz – artº 195º do CPC.
VI – Por sentença de 6/5/2015, proferida nos autos principais, confirmada por Acórdão do Tribunal daRelação de Guimarães, foi indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restanteapresentado pela insolvente, com fundamento no disposto nas alíneas d) e e), do nº 1, do artº 238º, doCIRE. Por outro lado, este Tribunal da Relação de Guimarães proferiu douto Acórdão, em 29/9/2016, noapenso (C) de qualificação da insolvência, revogando a sentença de 25/11/2015 que qualificou ainsolvência da recorrente como culposa, qualificando-a, agora, como fortuita, com fundamento nainexistência do dever de apresentação á insolvência a mesma insolvente (por não ser titular de umaempresa) e, por via disso, de culpa no agravamento da sua situação financeira, assim ficando precludido os fundamento do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
VII – Para efeitos de preencher o requisito da alínea c), do artº 696º, do CPC, o supracitado Acórdão doTribunal da Relação de Guimarães de 29/9/2016 é um “documento”. Neste sentido, o Acórdão do STJ de12.6.1991, in BMJ 408º-456.
A recorrente não o pode usar no momento próprio, porque não existia ainda. O “documento” emcausa tem de ser, ou pode ser, superveniente, circunstância que não impede a procedibilidade do recursode revisão onde vai ser utlizado.
VIII – Desta forma, o recurso de revisão devia ter sido admitido ou deferido, por estarem reunidas ascondições, de forma e de substância, para a sua procedibilidade.
IX – Desta forma, e sempre com o devido respeito, na decisão recorrida fez-se uma errada interpretaçãoe aplicação das supracitadas normas legais e das também citadas na mesma decisão, nomeadamente asdos artigos 6º, 171º, 195 e 696º, todos do CPC.
Assim, não tanto pelo alegado como pelo que Vossas Excelências doutamente suprirão, deve a decisãorecorrida ser revogada, com as legais consequências, e substituída por outra que admita o recurso derevisão e, se for caso disso, sane a arguida nulidade, convidando a recorrente a suprir a ou as alegadasirregularidades formais, igualmente com as legais consequências,com o que se fará, como sempre, a melhor e a mais perfeitaJ U S T I Ç A!

Não existem contra alegações.
Por decisão proferida em sede de apenso de reclamação, foi admitido o recurso interposto pela reclamante e solicitada a remessa do processo ao tribunal recorrido.
Foram colhidos os vistos legais.

A questão a resolver prende-se com os fundamentos de indeferimento liminar de recurso de revisão.

II. FUNDAMENTAÇÃO
Os factos com interesse para a decisão constam do relatório supra.

Conforme já salientámos na decisão da Reclamação apensa, o recurso de revisão é um recurso extraordinário – artigo 627.º, n.º 2 do CPC – cuja tramitação vem disciplinada nos artigos 696.º a 702.º do mesmo Código de Processo Civil.
O recurso de revisão de sentença é o meio processual destinado a impugnar decisões que já tenham transitado em julgado.
Este tipo de recurso extraordinário é o resultado do compromisso entre, por um lado, o princípio da estabilidade e segurança jurídica exigível depois do trânsito em julgado das decisões e, por outro lado, o princípio da justiça material que acautela os casos em que a sentença esteja incorrecta por ter assentado em vício grave.
Tal equilíbrio ditou a restrição dos fundamentos do recurso previstos no artigo 696.º do CPC, pelo que aí apenas estão contemplados os considerados estritamente necessários para a correcção de um vício da sentença já transitada em julgado, mas que não impliquem uma leviana repetição do julgamento.
No que aqui nos interessa, dispõe o artigo 696º alínea c) do Código de Processo Civil que «a decisão transitada em julgado pode ser objecto de revisão quando se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida».

Em primeiro lugar, devemos dizer que não vemos que pudesse ser indeferido liminarmente o recurso de revisão, com fundamento na falta de instrução do mesmo com a certidão do documento em que se funda o pedido – artigos 698.º, n.º 2 e 699.º, n.º 1 do CPC – uma vez que a recorrente, no final da petição inicial, expressamente solicita, para instrução do recurso, a passagem e junção aos autos, por via electrónica, da certidão da sentença que qualifica como “documento” para efeitos do pedido de revisão, sendo que a requerente beneficia de apoio judiciário nas duas modalidades. Trata-se de sentença proferida num apenso do processo de insolvência, cuja decisão acerca da exoneração do passivo restante, se pretende rever, neste apenso, ou seja, o “documento” em causa, consta deste mesmo processo.
A certidão em causa consta do processo eletrónico e, salvo o devido respeito, tanto basta para dar cumprimento aquele normativo. Se assim não o entendia, podia e devia a Sra. Juíza convidar a recorrente a juntar a certidão em causa, em papel, ao processo físico.
Não seria, contudo, causa de indeferimento liminar.

Outra questão é a de saber se a sentença em causa pode considerar-se “documento” para efeitos do disposto no artigo 696.º, alínea c) do CPC.
Pensamos que não e, neste sentido, veja-se Acórdãos da Relação do Porto de 19/05/2005 e de 11/01/2010, in www.dgsi.pt e do STJ, de 15/05/2001, in CJ/STJ, ano IX, tomo II, pág. 80 e de 13/01/2006, in CJ/STJ, ano XIV, tomo I, pág. 33.
O Acórdão do STJ de 15/05/2001 dá-nos conta de que a orientação dominante do STJ vai no sentido de negar a qualificação de documento para efeitos do disposto na alínea c) do artigo 771.º do CPC (atual artigo 696.º com a mesma redação no que diz respeito a esta alínea), a uma sentença.
Este entendimento decorre da forma como está estruturado o artigo 696º, uma vez que os fundamentos de revisão de uma decisão transitada em julgado estão taxativamente enunciados naquele artigo.
Assim, os casos em que uma sentença pode ser utilizada como fundamento da revisão de uma decisão judicial estão estabelecidos nas alíneas a), d) e f) do citado artigo, tendo essa enumeração que ser considerada taxativa, nos termos expostos.
Ou seja, as decisões judiciais que podem servir de fundamento para o recurso de revisão são só as referidas nessas alíneas, o que não é o caso da sentença que, aqui, se pretende utilizar como documento superveniente, para os termos da alínea c).
Mais, resulta das diversas alíneas do artigo 669.º do CPC que, na alínea c) a expressão “documento” se reporta à incorreção dos meios de prova, o que não se passa com as decisões - CARDONA FERREIRA, Guia de Recursos em Processo Civil, O Novo Regime Recursório Civil, Coimbra Editora, 2007, p. 234
A alínea c) abrange situações em que surge prova documental nova, o que não é constituído por uma sentença, que em si, não é um meio de prova – cfr. Ac. Relação do Porto de 11/01/2010, já citado.
A diferente interpretação jurídica que se possa fazer numa sentença, não está prevista no elenco taxativo dos pressupostos de revisão.

Além do mais, sempre teríamos que dizer que, o documento só é relevante quando, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida, quando seja suficiente para destruir a prova em que a sentença se fundou. Ele tem que, só por si, «provar um facto inconciliável com essa decisão, não bastando que, conjugado com as provas que foram produzidas em juízo, pudesse determinar outra mais favorável ao requerente» - cfr. Acórdãos da Relação de Coimbra de 15/12/92, in CJ 1992, tomo V, pág. 72 e de 21/05/1996, in BMJ, 457.º-458 e Acórdão do STJ de 13/07/2010, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido, o Acórdão da Relação de Lisboa de 02/06/2004, in www.dgsi.pt: “O documento superveniente apenas fundamentará e justificará o recurso extraordinário de revisão quando, por si só, seja capaz de modificar a decisão em sentido mais favorável ao recorrente. Se o documento, quando relacionado com os demais elementos probatórios produzidos em juízo, não tiver força suficiente para destruir a prova em que se fundou a sentença, não há razão para abrir um recurso de revisão”.

Ora, como resulta dos autos, a decisão de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante, fundamentou-se no incumprimento do dever de apresentação – alínea d) do n.º 1 do artigo 238.º do CIRE – e na culpa no agravamento da situação financeira – alínea e) do mesmo artigo –pelo que nunca poderia considerar-se para revisão de tal sentença a um “documento/sentença” em que apenas se considerou, para efeitos de qualificação da insolvência, que a mesma era fortuita com o fundamento na inexistência do dever de apresentação à insolvência, por não ser titular de uma empresa (presunção de culpa para efeitos de insolvência culposa, decorrente do artigo 170.º, n.º 3, alínea a) do CIRE), o que não pode considerar-se, por si só, contraditório, tendo em conta a densificação jurisprudencial que tem vindo a ser efetuada das alíneas d) e e) do artigo 238.º, referente à exoneração do passivo restante.
Mas tal, verdadeiramente, nem é relevante, face ao entendimento de que uma sentença não é um “documento” para efeitos do disposto na alínea c) do artigo 696.º do CPC.
Improcede, assim, a apelação, sendo de confirmar a decisão recorrida.

Sumário:
1 – O documento necessário para se proceder à revisão de sentença transitada em julgado tem que ser suficiente para, só por si, poder modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida, tem que ser suficiente para destruir a prova em que a sentença se fundou, provando facto inconciliável com aquela.
2 - Uma sentença não integra o conceito de “documento” para efeitos da alínea c) do artigo 696.º do CPC que enumera taxativamente os fundamentos do recurso de revisão.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
***
Guimarães, 22 de junho de 2017

Ana Cristina Duarte
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro