Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
5329/19.1T8VNF-B.G2
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
REQUISITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
A conduta tipificada na alínea d) do nº. 2 do artº. 186º do CIRE, numa leitura consentânea com o nº. 1, exige que do ato de disposição de bens do devedor resulte simultaneamente prejuízo para o mesmo devedor e proveito do(s) administrador(es) ou terceiro(s).
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO.

Por sentença datada de 10/9/2019, foi declarada a insolvência de “T...-Unipessoal, Ldª”, na sequência do requerimento apresentado em juízo em 6/09/2019 pela mesma.
O senhor Administrador da Insolvência apresentou o parecer a que alude o disposto no artº. 188º, nº. 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), propondo a qualificação da insolvência como culposa da sociedade “T...-Unipessoal, Ldª”, devendo ser afectado AA, seu único gerente.
Foi declarado aberto o incidente por despacho datado de 9/01/2020.
Foram pedidos esclarecimentos a fim de instruir os autos.
O Ministério Público apresentou parecer propondo a qualificação da insolvência como culposa e a afectação de AA, o qual ficar inibido para administrar patrimónios de terceiros entre 2 a 10 anos, e para o exercício do comércio entre 2 a 10 anos, bem como para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa. Mais disse que deve determinar-se a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente por si detidos, a existirem, e a sua condenação na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos. Disse ainda que deve o afectado ser expressamente cominado que o não cumprimento do determinado em c) e d) o fará incorrer na prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo art 348º, nº1, al b) do Cod. Penal.
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Foi proferido despacho a determinar a notificação da devedora e citação do proposto afetado para querendo opor-se.
O requerido AA apresentou oposição, pugnando pela qualificação da insolvência como fortuita.
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Dispensada a realização da audiência prévia, foi proferido despacho saneador em 19/5/2021, no qual se procedeu à enunciação do objeto do litígio e à identificação dos temas da prova, que não foi objecto de reclamação.
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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo sido então proferida decisão que decidiu:

a) qualificar como culposa a insolvência de T...-Unipessoal, Ldª, declarando afectada pela mesma AA;
b) fixar em 4 (quatro) anos o período da sua inibição para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa e em igual período a inibição do requerido para administrar patrimónios de terceiros;
c) determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA e condeno-o na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
d) condenar o requerido AA a pagar aos credores o montante correspondente ao total dos créditos reconhecidos na lista apresentada pela senhora Administradora da Insolvência nos termos do art. 129º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que não forem pagos pelo produto da liquidação do activo;
e) indeferir a pretensão do Ministério Público de cominação, pelo não cumprimento das inibições acima decretadas, com o crime de desobediência.
Mais atribuiu a responsabilidade pelas custas ao requerido AA.
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Inconformado, veio o requerido interpor recurso, ao qual o MP apresentou resposta, recurso que culminou pela declaração de anulação da decisão recorrida por verificação de nulidade processual, determinando-se que o contraditório omitido fosse cumprido e que se seguissem os demais termos legais, tudo conforme acórdão de 27/12/2021.
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Recebidos os autos em 1ª instância, foram notificados o AI, o MP, a insolvente e o requerido porque, face à factualidade coligida na sentença, designadamente as alíneas E, F e G) da factualidade provada, ser possível a verificação do preenchimento da alínea do art. 186º, nº 2, d), e porque urge apurar se o gerente da insolvente escolheu os credores a que quis pagar (ainda que o possa ter feito com boas intenções, isto é, para que a sociedade continuasse em laboração), em claro prejuízo do credor garantido (Banco 1..., S.A.), que deixou de receber uma quantia a que tinha direito e que tinha direito de receber com preferência aos demais credores da insolvente (este será o tema da prova a aditar aos anteriormentes enunciados), para, querendo, se pronunciarem e indicarem os meios probatórios que julguem necessários face ao que ficou supra referido.
O requerido requereu que pudesse prestar novas declarações ao novo tema de prova, o que foi admitido.
Em audiência, e face à ausência do requerido alegadamente por motivos de saúde, foi prescindida a produção das suas declarações.
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Foi então proferida sentença, constando a seguinte decisão:
“a) qualifico como culposa a insolvência de T...-Unipessoal, Ldª, declarando afectada pela mesma AA;
b) fixo em 4 (quatro) anos o período da sua inibição para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa e em igual período a inibição do requerido para administrar patrimónios de terceiros;
c) determino a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos por AA e condeno-o na restituição dos bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos;
d) condeno, ainda, o requerido AA a pagar aos credores o montante máximo de € 207.940,97, até às forças do seu património, para pagamento das quantias reconhecidas aos credores no apenso de Reclamação de Créditos que não tenham sido satisfeitas pelo produto da liquidação do activo;
e) Indefiro a pretensão do Ministério Público de cominação, pelo não cumprimento das inibições acima decretadas, com o crime de desobediência.”
As custas foram imputadas ao requerido e determinado o cumprimento do artº. 189º, nº. 3 do CIRE.
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Inconformada, o requerido AA apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“I. Vem o presente recurso interposto das seguintes decisões: 1 – Da decisão proferida sobre a matéria de facto, especificando-se infra quais os concretos pontos de facto que se consideram incorretamente julgados, quais os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa da recorrida e qual a decisão que, no entender do recorrente, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 – Da decisão de direito que se traduz na sentença que qualificou como culposa a insolvência do recorrente, declarando-o afetado pela mesma e, em consequência, fixando em 4 (quatro) anos o período da inibição28 para o exercício do comércio, ocupação de cargo de titular de órgão 28 É feita, por mero lapso de escrita, menção à inibição de BB quando a Sentença se refere, naturalmente, ao ora recorrente. de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa; Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos e condená-lo na restituição de eventuais bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos, bem como na condenação a indemnizar os seus credores no montante máximo de € 207.940,97, até às forças do seu património, para pagamento das quantias reconhecidas aos credores no apenso de Reclamação de Créditos que não tenham sido satisfeitos pelo produto da liquidação do ativo.
II. Com referência à matéria de facto incorretamente julgada, apontam-se os seguintes pontos: Ter o Mm. º Juiz a quo considerado como provado que: “G. Desse montante global de 207.940,97€, o gerente da insolvente emitiu um cheque no valor de dez mil euros a favor da sua ex-esposa (CC – cfr fls 171)(…). “; K. Em 2016 era devedora de 45.819,58€ ao Estado e em 2017 era devedora de 24.714,83€ ao Instituto de Segurança Social.”
III. No que concerne ao ponto G. da matéria de facto dada como assente, inexiste qualquer documento que prove que o recorrente tenha emitido um cheque a favor da sua ex-mulher, designadamente a fls. 171… a que a decisão recorrida faz alusão na respetiva fundamentação, porquanto tal não corresponde à verdade, o que resulta do documento, da própria oposição e das declarações do Sr. Administrador da Insolvência, concretamente na sessão de 28/06/2021, ao minuto 00:06:09.
IV. Passando ao ponto K. da matéria de facto dada como assente, contrariamente ao vertido no Parecer do AI e do MP, não corresponde à realidade que a T... fosse devedora em 2016 da quantia de 45.819,58€ ao Estado e de 24.714,83€ à Segurança Social.
V. Resulta da documentação junta aos autos com os pareceres e na reclamação de créditos do Estado que o valor em dívida, incluindo custas, no terminus de 2016 perfazia o montante de 9.298,87€ (nove mil duzentos e noventa e oito euros e oitenta e sete cêntimos) que estava abrangido por um plano de pagamento prestacional.
VI. No que concerne ao Instituto da Segurança Social, inexistia qualquer dívida em 2016, conforme resulta da reclamação de créditos junta com o parecer do Sr. Administrador de Insolvência e da respetiva certidão de dívida, sendo que o valor em dívida em 2017, incluindo os juros calculados até 2019, perfazia o montante de 5.704,58€.
VII. Consequentemente, da análise conjugada da prova documental [Reclamação de Créditos da Autoridade Tributária e Aduaneira, reclamação de créditos do Instituto da Segurança Social, I.P., especificamente o documento número ... com ela junto, das declarações prestadas pelo Sr. Administrador da Insolvência na sessão de 28/06/2021, ao minuto 00:06:09 e da inexistência de qualquer cheque emitido à ex-mulher do recorrente], impunha-se que o tribunal desse como provados, apenas, os seguintes factos: “G. Desse montante global de 207.940,97€, o gerente da insolvente efectuou duas transferências bancárias: uma no valor de 28.000,00€ para uma conta por si titulada e uma outra, no valor de 115.000,00€ para conta titulada por um seu filho (DD).”; K. Em 2016 era devedora de 9.298,87€ ao Estado e em 2017 era devedora de 5.704,58€, incluindo juros de mora calculados até 16.09.2019, ao Instituto de Segurança Social.”
VIII. Entende, ainda, o recorrente que deverá ser aditado um facto provado, vital para a qualificação jurídica que o Tribunal a quo veio a fazer da factualidade dada como provada e como não provada, com o seguinte teor: “O gerente da insolvente estabeleceu em 15 de agosto de 2020 um acordo de regularização de dívida com a N... – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., no âmbito do acionamento por parte da Banco 1..., S.A. da garantia autónoma n.º ...46, associada ao empréstimo número ...91 garantido por penhor do estabelecimento comercial da insolvente, encontrando-se a aguardar a aceitação da citada instituição financeira à proposta apresentada para liquidação da responsabilidade remanescente”.
IX. Tais factos, que se pretendem aditar como provados, estão demonstrados pela i. reclamação de créditos efetuada pelo credor Banco 1... e respetiva documentação com ela junta, ii. e pelos documentos números ...55 e ...56 juntos com a oposição e pelo documento número ... junto com o requerimento datado de 28-06-2021 com a referência Citius ...46.
X. Quanto à matéria de direito, atenta a factualidade dada como provada, como não provada e a que o recorrente entende que deveria ter decisão diferente, bem como da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e toda a constante dos autos, resulta inequívoco que a conduta do recorrente não preenche os requisitos da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
XI. Sem prejuízo e por mera cautela de patrocínio, a douta Sentença recorrida incorre ainda, salvo mais esclarecida opinião, numa interpretação e inerente aplicação incorreta e inconstitucional do disposto na alínea e) do n.º 2 e do n.º 4 do artigo 189.º do CIRE.
XII. No que respeita à (alegada) disposição dos bens da devedora em proveito de terceiros (artigo 186.º, n. º 2, alínea d) do CIRE), refere a Sentença, sumariamente, que o único facto apontado à atuação do gerente da sociedade insolvente é a circunstância de não ter alocado o produto da venda do estabelecimento comercial ao pagamento da parte do crédito garantido do credor Banco 1..., nada dizendo já quanto à credora N..., supõe-se que pelo facto de o recorrente ter, com esta última, um plano de pagamento estabelecido.
XIII. Sem prejuízo do disposto no artigo 6.º do Código Civil, o recorrente, na qualidade de legal representante da T..., quando celebrou o contato de Trespasse do estabelecimento comercial nunca e em momento algum se recordou ou, sequer, equacionou acerca da impossibilidade legal de o fazer, sem proceder ao pagamento do empréstimo que estava garantido pelo penhor do estabelecimento.
XIV. Tendo, após a venda do estabelecimento comercial, a sociedade insolvente continuado a liquidar as prestações bancárias à Banco 1... conforme decorre dos documentos número ... a ...0, ...5, ...8, ...52 e ...53, ...63..., 296, 532 e 533, 642, 646, 648 783 e 787 e, de forma completamente clara, do documento número ... (extrato bancário da conta da Banco 1... da sociedade insolvente) onde estão lançados a débito todos os movimentos de cobrança do crédito, com o descritivo “Cobrança de Prestação”.
XV. Apercebendo-se de tal situação de impossibilidade contratual e legal, o recorrente estabeleceu, pessoalmente, o aludido acordo de pagamento do capital e juros em dívida com a N..., aguardando a aceitação da Banco 1... para a liquidação do valor restante, nos termos propostos.
XVI. Da análise e decomposição da alínea d) do número 2 do artigo 186.º do CIRE, que serve para tutelar o património da sociedade em defesa dos seus credores, é imposta pela lei, para além da saída do património e/ou da colocação do mesmo fora da disponibilidade da sociedade a favor de outrem, uma exigência adicional que consiste no facto de tal ou tais atos de disposição sejam feitos em proveito pessoal dos administradores ou de terceiros.
XVII. Afastado que se encontra pela douta decisão recorrida qualquer ato de disposição a favor do recorrente, entende-se que este terceiro requisito de o ato de disposição (venda do estabelecimento comercial) a favor e em proveito pessoal e de terceiros não se encontra, in casu, cabalmente preenchido.
XVIII. Por um lado, porque a insolvente vendeu o estabelecimento comercial e o produto dessa venda ingressou integralmente no seu ativo, tendo continuado a pagar, durante meses, a todos os seus credores, incluindo a Banco 1..., de forma indiscriminada, o que resulta da matéria de facto dada como provada no ponto I., não tendo, sequer, a douta decisão recorrida concluído que a insolvente incumpriu o dever de apresentação à insolvência.
XIX. Por outro, porque o recorrente estabeleceu de imediato um acordo com o credor garantido N... e encontra-se a aguardar aceitação ao acordo proposto à Banco 1..., sendo certo que tais obrigações encontram-se todas garantidas por aval do recorrente.
XX. Não resultou, ainda, da prova produzida qualquer proveito para o terceiro que adquiriu o estabelecimento, porquanto o pagou à insolvente, pelo valor de mercado, sem prejuízo de tal facto não ser, sequer, colocado em equação pelo Ministério Público, pelo Sr. Administrador da Insolvência ou pela douta decisão recorrida, caso contrário o segundo poderia e deveria ter procedido à resolução de tal negócio, o que não sucedeu.
XXI. Não resultou, ainda, provado qualquer proveito para quaisquer outros terceiros advenientes de tal venda.
XXII. Partindo o Tribunal a quo não de uma definição de “proveito de terceiros” (o que sucederia por exemplo se o estabelecimento tivesse sido vendido por um valor muito abaixo do valor de mercado, beneficiando o seu adquirente) mas, erradamente e salvo mais esclarecida opinião, de uma definição de “prejuízo de terceiros”.
XXIII. O ato de disposição (venda do estabelecimento) e o produto resultante de tal ato reverteu integralmente (matéria de facto dada como provada) para a sociedade para pagar, indiscriminadamente, aos seus credores e para o normal e corrente funcionamento da sociedade.
XXIV. A interpretação, que salvo o devido respeito não parece resultar do sentido literal da norma ou da esclarecida jurisprudência e doutrina que sobre ela se debruçou, dada pela decisão recorrida é a de que os “terceiros” a favor de quem o ato de disposição resultou, são todos os credores, onde se incluí a própria Banco 1..., e todos os fornecedores da sociedade a quem, com normalidade, a insolvente continuou a pagar e a comprar, respetivamente.
XXV. A decisão recorrida em vez de se debruçar sobre um eventual favorecimento de terceiros e de quem seriam esses terceiros, faz uma interpretação e aplicação da lei a contrario, ou seja, cinge-se ao alegado prejuízo causado a um credor.
XXVI. O que, tendo por apreço opinião contrária, não nos parece resultar da norma, nem ser esse o espírito que lhe está subjacente.
XXVII. Da factualidade dada como provada e não provada, não se poderá, portanto, extrair que o ato de disposição tenha sido realizado, conforme exige a alínea d) do número 2 do artigo 186.º do CIRE, em proveito pessoal, do terceiro adquirente ou de quaisquer outros terceiros, tendo-se, por conseguinte, que concluir que está afastado o requisito de tal ato de disposição ter produzido proveito ao recorrente, na qualidade de legal represente da sociedade, ao terceiro adquirente do estabelecimento ou a quaisquer terceiros, não se mostrando preenchidos os requisitos previstos na alínea d) do número 2 do artigo 186.º do CIRE.
XXVIII. Por último, quanto à condenação no pagamento de indemnização aos credores (al. e) – primeira parte - do n.º 2 e n.º 4 do art.º 189.º do CIRE) da quantia de 207.940,97€, não se compreende, s.m.o., a condenação do recorrente.
XXIX. O Tribunal a quo dá como provado (alíneas F) e I) da matéria de facto dada como provada) que os 207.940,97€ entraram, até “ao último cêntimo”, na esfera da Sociedade e que a sociedade não incumpriu, sequer, o seu dever de apresentação à insolvência ou, ainda, que – em razão da venda do estabelecimento – se tenha agravado o passivo da sociedade e, consequentemente, a sua situação de insolvência.
XXX. Dá, ainda, como provado que o produto da venda serviu para prosseguir a atividade corrente da sociedade e pagar, indiscriminadamente, a todos os restantes credores sociais (incluindo-se a própria Banco 1...), não tendo sentido a conclusão de que a Banco 1... ou qualquer outro credor ficou prejudicado pelo facto de a insolvente não lhes ter entregue tal montante de 207.940,97€, porquanto, incompativelmente, é dado – e bem - como provado que tal quantia, insiste-se, entrou integralmente nos cofres da sociedade.
XXXI. A douta Sentença recorrida não identifica quais os credores que, no seu entender, foram beneficiados pela atuação do afetado, apenas referindo que foi prejudicada a Banco 1... pelo não recebimento do crédito garantido.
XXXII. A mesma Sentença não identifica qual a atuação do afetado que acabou por atingir o direito desses mesmos credores a receberem em sede de liquidação o que já receberam, integralmente, no decurso da continuação da atividade da insolvente, i.e. a receberem em dobro o produto da venda.
XXXIII. O recorrente não tem, por conseguinte, que indemnizar os credores da insolvência, porquanto não se locupletou com um único cêntimo, nem se beneficiou a si ou a quaisquer terceiros.
XXXIV. Caso assim não se entenda, o que por mera hipótese se admite, o único “prejuízo” causado foi no montante de 45.535,74€, correspondente ao valor garantido por penhor à Banco 1..., S.A. em dívida quanto ao empréstimo número ...91, e não de 207.940,97€, o que resulta da reclamação de créditos de tal credor e dos documentos números ... a ... com ela juntos.
XXXV. A decisão ora recorrida é, portanto, inadequada, desproporcional e excessiva face a um possível prejuízo causado a um único credor, in casu à Banco 1..., e, portanto, inconstitucional, devendo a aplicação da norma do artigo 189º, n.º 2, alínea e), do CIRE, ter uma aplicação casuística a tais princípios constitucionais.
XXXVI. Assim, o Tribunal a quo aplica e interpreta a norma de forma matematizada, não ponderando, como deveria, por um lado, a medida da culpa (que não se verifica onda possa residir) e, por outro, a medida do prejuízo causado pela conduta do afetado, que, também, não se vislumbra que tenha ocorrido.
XXXVII. A douta Sentença recorrida sustenta a sua condenação num alegado “prejuízo de terceiros”, não os identificando, quando a norma em apreço se refere ao “proveito de terceiros”, que também não se verificou e que o Tribunal a quo não identifica.
XXXVIII. A indemnização fixada no indicado montante não se mostra devidamente ponderada e decidida, sendo desproporcional e que coloca em causa, de forma irresoluta e desproporcionada, a subsistência económica, presente e futura, do aqui recorrente e de todo o seu agregado familiar composto por dois filhos que dele também dependem.
XXXIX. Não se podendo entender de outra forma, a referida disposição legal, até porque, a conceder-se assim, colocar-se-ia em questão uma flagrante violação de princípios de ordem constitucional, atenta a total falta de proporcionalidade, à inadequação ostentada, afrontosamente violadora do princípio da proibição do abuso do direito, do número n.º 4, do CIRE, e, ainda, dos artigos 18.º n.º 2, 266.º n.º 2, princípio da proporcionalidade, e bem assim, da adequação e da proibição do excesso, e ainda o artigo 20.º todos da Constituição da República Portuguesa e, em última análise, do número 2.º do artigo 17.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
XL. Ao decidir de uma forma contrária ao supra alegado, o Tribunal recorrido praticou erro notório na apreciação e valoração das provas e erro de julgamento na decisão da matéria de facto e da factualidade dada como provada, acabando a decisão recorrida por fazer também uma menos correta interpretação e aplicação do direito ao caso concreto, violando, entre outros, o disposto nos artigos 185º, n.º 1, alínea d) do n.º 2 do art.º 186º e do art.º 189.º todos do CIRE, dos artigos 3.º, n.º 3, 5.º n.º 3 do Código de Processo Civil, do artigo 334.º do Código Civil (princípio da proibição do abuso do direito), bem como dos princípios, de matriz constitucional, da adequação e proibição do excesso, da adequação e da proporcionalidade, (artigos 18.º n.º 2, 20.º 266.º n.º 2 todos da Constituição da República Portuguesa e, em última análise, do número 2 do artigo 17.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.”
Pede a revogação da decisão recorrida, concluindo-se que não se acham preenchidos os requisitos previstos na alínea d) do número 2 do artigo 186.º do CIRE, com as legais consequências de tal facto advenientes. Subsidiariamente, que o recorrente não seja condenado no pagamento de qualquer indemnização ou, assim não se entendendo, deverá a condenação ser circunscrita ao prejuízo concretamente causado, apenas, ao credor garantido, Banco 1..., S.A., pelo não recebimento da quantia garantida pelo penhor sobre o estabelecimento comercial até ao montante que este não vier a receber após o terminus da liquidação do ativo.
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O M.P. apresentou contra-alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

“Analisada a douta sentença recorrida, verifica-se que a mesma cumpriu, no essencial, o dever de fundamentação imposto por lei, pois, discriminou os factos que considerou provados e apontou as provas em que se fundamentou a convicção, indicando, interpretando e aplicando as normas jurídicas correspondentes.
A factualidade dada como assente revela em toda a sua plenitude o nexo de causalidade existente entre a conduta do recorrente e a insolvência que veio a ser declarada, sendo linear o preenchimento do estatuído no artº 186º, nº 2, al. d), do CIRE.
Não se verifica a violação de qualquer preceito legal.
Assim sendo, negando provimento ao recurso deverá a douta sentença recorrida ser confirmada.”
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O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata, nos autos, e efeito meramente devolutivo, o que foi confirmado por este Tribunal.
Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.

Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-deve ser alterada a decisão sobre a matéria de facto que consta dos pontos G) e K) (provados) e aditado novo ponto nos termos preconizados;
-se com base na alteração ou independentemente da mesma, não se verifica o preenchimento da situação prevista no artº. 186º, nº. 2, d), do CIRE, ou outra;
-na afirmativa, da correta aplicação do disposto no artº. 189º, nº. 2, e) e nº. 4, do CIRE.
***
III   FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

O Tribunal recorrido assentou na seguinte matéria (decisão que se transcreve):

“Resultaram provados os seguintes factos, os únicos com relevância para a decisão da causa:
A. Nos autos principais foi proferida sentença a 10/9/2019, já transitada em julgado, a declarar a insolvência de “T...-Unipessoal, Ldª”.
B. A insolvente, com o NIPC ..., com sede na Avª ..., ..., ..., ..., tinha por objecto o “comércio a retalho em supermercados e hipermercados, produção, comercialização por grosso e actividades de artigos de decoração de artigos cerâmicos de uso doméstico e ornamental”.
C. A insolvente foi constituída em 11/1/22010 e desde então foi AA o seu único gerente até ao encerramento.
D. Em 2014, a insolvente iniciou a exploração de estabelecimento comercial de marca própria (“K...”).
E. Em 18/5/2016, e para garantia das responsabilidades decorrentes e emergentes de contrato de financiamento com a Banco 1..., no valor de 150.000,00€, a insolvente ofereceu em penhor o estabelecimento comercial “K...”.
F. Em 3/9/2018, a insolvente procedeu à venda do direito e trespasse do estabelecimento comercial “K...”, pelo montante de 160.000,00€ e o respectivo stock de mercadorias existente pelo montante de 47.940,97€ à empresa “J...-Unipessoal, Ldª.
G. Desse montante global de 207.940,97€, o gerente da insolvente emitiu um cheque no valor de dez mil euros a favor da sua ex-esposa (CC – cfr fls 171) e efectuou duas transferências bancárias: uma no valor de 28.000,00€ para uma conta por si titulada e uma outra, no valor de 115.000,00€ para conta titulada por um seu filho (DD).
H. Não entregou tal quantia para pagamento do credito garantido por penhor constituído a favor da Banco 1....
I. A totalidade desse valor regressou, posteriormente, à esfera jurídica da insolvente, tendo sido utilizados para liquidar algumas dividas da insolvente para com alguns credores, concretamente, fornecedores, empréstimos bancários, tributos e contribuições, bem como em gastos correntes da actividade, como salários e despesas de deslocação.
J. A devedora apresentou-se à insolvência em Setembro de 2019.
K. Em 2016 era devedora de 45.819,58€ ao Estado e em 2017 era devedora de 24.714,83€ ao Instituto de Segurança Social.
L. Após 3/9/2018 venceram-se as seguintes dividas da insolvente:
- A..., Lda. – capital em dívida no valor global de 1.599, euros (vencidos após 3-09-2018):
• fatura ...53, no valor de 543,85 euros, emitida em 2018-08-07 e vencida desde 06-09-2018;
• fatura ...60, no valor de 93,88 euros, emitida em 2018-08-14 e vencida em 13-09-2018;
• fatura ...51, no valor de 446,71 euros, emitida em 2018-08-21 e vencida desde 05-09-2018;
• fatura ...29, no valor de 252,50 euros, emitida em 2018-08-25 e vencida desde 09-09-2018;
• fatura ...13, no valor de 262,74 euros, emitida em 2018-08-31 e vencida desde 15-09-2018
- Banco 2..., S.A. – capital em dívida no valor global de 67.041,30 euros (vencidos após 3-09-2018)
• Contrato de empréstimo, no valor de 30.000,00 euros, celebrado em 27-12-2016, com capital em dívida no valor de 14.503,91 euros desde 27-03-2019;
• Abertura de crédito com valor máximo de 25.000,00 euros, celebrado em 3-01-2017, com capital em dívida no valor de 25.000,00 euros desde 3-07-2019;
• Contrato de empréstimo, no valor de 26.500,00 euros, celebrado em 27-12-2016, com capital em dívida no valor de 16.045,48 euros desde 18-03-2019;
• Descoberto bancário no valor de 1.037,39 euros desde 10-09-2019.
- Banco 1..., S.A. – capital em dívida no valor global de 123.050,26 euros (vencidos após 3-09-2018):
• Contrato de empréstimo, no valor de 150.000,00 euros, celebrado em 18-05-2016, com capital em dívida no valor de 45.535,74 euros desde 27-03-2019;
• Abertura de crédito com valor máximo de 82.500,00 euros, celebrado em 7-08-2018, com capital em dívida no valor de 77.514,52 euros desde 7-03-2019;
- E... - Comercialização de Energia, S.A. – capital em dívida no valor global de 3.933,07 euros (vencidos após 3-09-2018):
• fatura n.º ...01, no valor de 1.954,10 euros, emitida em 17/08/2018, vencida em 17/09/2018,
• fatura n.º ...55, no valor de 1.916,22 euros, emitida em 17/09/2018, vencida em 17/10/2018,
• fatura n.º ...74, no valor de 14,83 euros, emitida em 15/10/2018, vencida em 14/11/2018,
• fatura n.º ...30, no valor de 12,54 euros, emitida em 15/08/2018, vencida em 14/09/2018,
• fatura n.º ...43, no valor de 14,23 euros, emitida em 15/09/2018, vencida em 15/10/2018,
• fatura n.º ...80, no valor de 21,15 euros, emitida em 15/07/2018, vencida em 14/08/2018
- Estado - Fazenda Pública.
- F... - Indústria e Comércio Alimentar, S.A. – capital em dívida no valor global de 1.546,62 euros (vencidos após 3-09-2018):
• FT J 048007, no valor de 303,36 euros, emitida em 9-08-2018, vencida em 8-09-2018;
• FT A 052906, no valor de 291,26 euros, emitida em 16-08-2018, vencida em 15-09-2018;
• FT N 043199, no valor de 384,85 euros, emitida em 23-08-2018, vencida em 22-09-2018;
• FT J 048458, no valor de 567,15 euros, emitida em 30-08-2018, vencida em 29-09-2018;
- Instituto de Segurança Social, I.P. – capital em dívida no valor global de 8.449,20 euros (vencidos após 3-09-2018).
- J... - Distribuição Alimentar, Lda.
• fatura n.º ...8, no valor de 75,60 euros, emitida em 25-09-2018, vencida em 27-09-2018,
- N..., Sociedade de Garantia Mútua, S.A.
• Garantia Autónoma, no valor de 75.000,00 euros, emitida em 27-05-2016 com beneficiário a Banco 1..., S.A., com capital em dívida no valor de 45.535,73 euros desde 28-06-2019;
- R... - Cash & Carry, S.A. – capital em dívida no valor global de 7.936,19 euros (vencidos após 3-09-2018)
• fatura n.º ...19, no valor de 474,36 euros, emitida em 4-08-2018 e vencida em 3-09-2018;
• fatura n.º ...70, no valor de 502,23 euros, emitida em 10-08-2018 e vencida em 9-09-2018;
• fatura n.º ...55, no valor de 85,35 euros, emitida em 13-08-2018 e vencida em 12-09-2018;
• fatura n.º ...21, no valor de 1.554,29 euros, emitida em 14-08-2018 e vencida em 13-09-2018;
• fatura n.º ...32, no valor de 2.251,12 euros, emitida em 18-08-2018 e vencida em 17-09-2018;
• fatura n.º ...33, no valor de 70,81 euros, emitida em 18-08-2018 e vencida em 17-09-2018;
• fatura n.º ...98, no valor de 526,05 euros, emitida em 20-08-2018 e vencida em 19-09-2018;
• fatura n.º ...96, no valor de 1.066,21 euros, emitida em 20-08-2018 e vencida em 19-09-2018;
• fatura n.º ...43, no valor de 200,86 euros, emitida em 23-08-2018 e vencida em 22-09-2018;
• fatura n.º ...26, no valor de 270,79 euros, emitida em 24-08-2018 e vencida em 23-09-2018;
• fatura n.º ...27, no valor de 66,16 euros, emitida em 24-08-2018 e vencida em 23-09-2018;
• fatura n.º ...59, no valor de 45,95 euros, emitida em 25-08-2018 e vencida em 24-09-2018;
• fatura n.º ...19, no valor de 474,36 euros, emitida em 4-08-2018 e vencida em 3-09-2018;
• fatura n.º ...58, no valor de 1.379,26 euros, emitida em 25-08-2018 e vencida em 24-09-2018;
• fatura n.º ...52, no valor de 442,20 euros, emitida em 29-08-2018 e vencida em 28-09-2018;
• fatura n.º ...14, no valor de 637,38 euros, emitida em 30-08-2018 e vencida em 29-09-2018;
• fatura n.º ...10, no valor de 85,54 euros, emitida em 6-09-2018 e vencida em 6-10-2018;
• fatura n.º ...11, no valor de 26,74 euros, emitida em 6-09-2018 e vencida em 6-10-2018;
• Desde 14-08-2018 até 6-09-2018 foram emitidas Notas de crédito, no valor global de 1.749,11 euros.
*
MATÉRIA DE FACTO NÃO PROVADA

M. Parte desse valor regressou, posteriormente, à conta titulada pela insolvente no Banco 2... SA (101.283,36€) e na Banco 1... SA (21.411,92€), valores estes que foram parcialmente utilizados para liquidar algumas dividas da insolvente para com alguns credores em prejuízo de outros.
N. Com a venda desse activo, a insolvente viu-se numa situação de descapitalização, agravando a sua situação financeira.
O. Com a venda do direito e trespasse do estabelecimento comercial “K...” em Setembro de 2018, a insolvente deixou de ter qualquer fonte geradora de receitas que pudessem fazer face às obrigações assumidas.
P. No âmbito da sua actividade de exportação e venda de artigos de cerâmica, a empresa apenas facturou o valor de 5.404,92 euros.”
***
IV   MÉRITO DO RECURSO.
-IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO.

Cumpre começar por analisar se o recorrente cumpriu os requisitos de ordem formal que permitam a este Tribunal apreciar a impugnação que faz da matéria de facto, nomeadamente se indica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; se especifica na motivação os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; fundando-se a impugnação em parte na prova gravada, se indica na motivação as passagens da gravação relevantes; apreciando criticamente os meios de prova, se expressa na motivação a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas; tudo conforme resulta do disposto no artº. 640º, nºs. 1 e 2, do Código Processo Civil (C.P.C.) e vem melhor mencionado na obra de Abrantes Geraldes “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, Almedina, 4ª Edição, pags. 155 e 156. 
Conforme Acs. do STJ, designadamente de 29/10/2015, 03/05/2016 e de 21/03/2019 (todos consultáveis em www.dgs.pt, como todos os que se citarão sem indicação de outra fonte), podemos distinguir nestas exigências um ónus primário ou fundamental de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente da impugnação, e um ónus secundário tendente a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado aos meios de prova gravados relevantes para a apreciação da impugnação deduzida. No primeiro caso cabem as exigências de concretização dos pontos de factos que se consideram incorretamente julgados, especificação dos concretos meios de prova que sustentam a decisão errada e/ou diversa (sendo que o Tribunal pode considerar esses e ao abrigo do princípio do inquisitório, outros que entenda relevantes, apreciando livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto impugnado, excepto no que respeita a factos para cuja prova a lei exija formalidades especiais ou que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados por documento, acordo ou confissão, conforme artº. 607º, nº. 5 do C.P.C.), e a indicação do sentido em que se deveria ter julgado a matéria de facto, na posição do recorrente, ou da decisão a proferir (artº. 640º, nº. 1, a), b) e c)). No segundo caso cabe a exigência de indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver reapreciados (a), nº. 2, do artº. 640º). Em ambos os casos a cominação para a falta de cumprimento das exigências é a rejeição imediata do recurso (cfr. a dita disposição), sem possibilidade de prévia oportunidade de aperfeiçoamento da peça. Em ambos os casos os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade devem orientar a decisão de rejeição (-já que a parte ficará prejudicada ao não ver apreciado o seu recurso por motivos de ordem formal). A “nuance” entre os dois casos decorrerá do bom senso com que se analisam as exigências, as quais antes de mais têm que ver com o facto de possibilitar á parte contrária um efetivo exercício do contraditório para além de serem decorrência dos princípios estruturantes da cooperação e da lealdade e boa fé processuais, visando-se com elas assegurar a seriedade do próprio recurso. Se as primeiras exigências são imprescindíveis a esse exercício e orientam também o Tribunal de recurso relativamente ao que se lhe pretende sujeitar, a segunda exigência, tendo em vista a melhor orientação para esse efeito, ainda que seja cumprida de forma imprecisa, caso a parte contrária tendo apreendido convenientemente o alcance do visado, e o Tribunal esteja habilitado ao pretendido reexame, não se imporá a rejeição do recurso, mas antes o seu aproveitamento. Desde modo se dará prevalência ao mérito sobre a forma, princípio informador do atual C.P.C..
Além disso, a sanção de rejeição do recurso apenas poderá abarcar o segmento relativo à impugnação da matéria de facto e, dentro deste segmento, apenas pode abranger os pontos relativamente aos quais tenham sido desrespeitadas as referidas regras.
Por último, e continuando a seguir a orientação do nosso STJ, face ao que se pretende assegurar com cada um dos ónus, a especificação dos pontos concretos de facto deve constar das conclusões (artºs. 635º, nº. 4, 640º, nº. 1, a), e 639º, nº. 1, do C.P.C.). No mais (meios de prova concretos e indicação das passagens das gravações) basta que contem do corpo das alegações.
*
Revertendo ao caso, está claramente indicada e sintetizada a matéria que a recorrente pretende ver reapreciada -“G. Desse montante global de 207.940,97€, o gerente da insolvente emitiu um cheque no valor de dez mil euros a favor da sua ex-esposa (CC – cfr fls 171)(…). “; K. Em 2016 era devedora de 45.819,58€ ao Estado e em 2017 era devedora de 24.714,83€ ao Instituto de Segurança Social.”-, bem como o sentido que pretende relativamente à mesma: “G. Desse montante global de 207.940,97€, o gerente da insolvente efectuou duas transferências bancárias: uma no valor de 28.000,00€ para uma conta por si titulada e uma outra, no valor de 115.000,00€ para conta titulada por um seu filho (DD).”; K. Em 2016 era devedora de 9.298,87€ ao Estado e em 2017 era devedora de 5.704,58€, incluindo juros de mora calculados até 16.09.2019, ao Instituto de Segurança Social.”
Igualmente pretende aditar um novo facto aos provados: “O gerente da insolvente estabeleceu em 15 de agosto de 2020 um acordo de regularização de dívida com a N... – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., no âmbito do acionamento por parte da Banco 1..., S.A. da garantia autónoma n.º ...46, associada ao empréstimo número ...91 garantido por penhor do estabelecimento comercial da insolvente, encontrando-se a aguardar a aceitação da citada instituição financeira à proposta apresentada para liquidação da responsabilidade remanescente”.

Relativamente à indicação dos meios de prova:
-G) e K) –“inexiste qualquer documento que prove que o recorrente tenha emitido um cheque a favor da sua ex-mulher, designadamente a fls. 171… a que a decisão recorrida faz alusão na respetiva fundamentação, porquanto tal não corresponde à verdade, o que resulta do documento, da própria oposição e das declarações do Sr. Administrador da Insolvência, concretamente na sessão de 28/06/2021, ao minuto 00:06:09”; análise conjugada da prova documental [Reclamação de Créditos da Autoridade Tributária e Aduaneira, reclamação de créditos do Instituto da Segurança Social, I.P., especificamente o documento número ... com ela junto, das declarações prestadas pelo Sr. Administrador da Insolvência na sessão de 28/06/2021, ao minuto 00:06:09 e da inexistência de qualquer cheque emitido à ex-mulher do recorrente];
-facto a aditar: i. reclamação de créditos efetuada pelo credor Banco 1... e respetiva documentação com ela junta, ii. e pelos documentos números ...55 e ...56 juntos com a oposição e pelo documento número ... junto com o requerimento datado de 28-06-2021 com a referência Citius ...46.
Verificado o cumprimento dos ónus, resta analisar e contrapor os elementos constantes dos autos.
*
Neste âmbito cabe enunciar os princípios a que, na nossa perspetiva, deve obedecer a reapreciação a fazer em sede de recurso.
A propósito da reapreciação da matéria de facto, dispõe o artº. 662º, n.º 1, do C.P.C. que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” A Relação usa do princípio da livre apreciação da prova com a mesma amplitude de poderes da 1ª instância, nos termos que resultam do nº. 5 do artº. 607º do C.P.C.. Assim, após análise conjugada de todos os meios de prova produzidos, a Relação deve proceder a reapreciação da prova, de acordo com a própria convicção que sobre eles forma, sem quaisquer limitações, a não ser as impostas pelas regras de direito material. A propósito refere também Abrantes Geraldes na mesma obra, pag. 273, "(…) a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência”. E a pags. 274 (…) “a Relação tem autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daquelas que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia”.  
Sintetizando a nossa posição, o Tribunal da Relação nesta sua função de reapreciação da decisão de facto não opera apenas em casos de erros manifestos de apreciação, mas também pode formar uma convicção diversa da 1ª instância sobre os pontos de facto impugnados, o que deve levar a nova decisão que contenha esse resultado, fundamentadamente, ou seja, com base bastante para alterar aquela que foi a convicção (errada) do juiz de 1ª instância (erro de julgamento).
Partindo do princípio do dispositivo, deve o recorrente indicar os meios de prova que no seu entender deviam ter feito o Tribunal “a quo” encetado caminho diverso no seu juízo probatório; contudo, o Tribunal “ad quem” não está limitado a essa indicação – que será seu ponto de partida e pode até ser o bastante- podendo e devendo se tal se impuser (além dos demais poderes conferidos em termos de retorno à primeira instância ou de oficiosidade) socorrer-se de todos os meios de prova produzidos nos autos para confirmar ou rebater a argumentação do recorrente.
O Ac. desta Relação de 29-10-2020 sintetiza os princípios a ter em consideração na atuação do Tribunal de recurso, de modo que nos dispensamos aqui de reproduzir por não se justificar.
Voltando ao artº. 607º, nº. 1, do C.P.C., este dispõe que, em princípio, o Tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os Juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, com ressalva das situações em que a lei dispuser, diferentemente: quando não dispense a exigência de uma determinada formalidade especial, quando os factos só possam ser provados por documento ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
A prova visa o convencimento do juiz sobre a realidade dos factos –artº. 341º do C.C..
Essa prova não é, não tem de ser, a prova absoluta.
O tribunal aprecia livremente os meios de prova e o tribunal é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada meio de prova produzido. Em cada caso o tribunal é livre para considerar suficiente a prova testemunhal produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório (ou seja, com maior capacidade para convencer o juiz da probabilidade do facto em discussão). Coisa diferente é a questão do standard ou padrão de prova, a qual já tem que ver com a questão do ónus da prova ou da determinação do conceito de dúvida relevante para operar a consequência desse ónus – no sentido de que a lei manda que na dúvida o juiz decida contra a parte onerada com a prova (cfr. artºs. 346.º do C.C. e 414º do C.P.C.).
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Começando pela alínea G), está em causa este segmento: “G. Desse montante global de 207.940,97€, o gerente da insolvente emitiu um cheque no valor de dez mil euros a favor da sua ex-esposa (CC – cfr fls 171)…”.
Diz o recorrente que o Tribunal incorreu em erro, não resultando tal situação de fls. 171. A tal conjuga a oposição e as declarações do AI.
Antes de mais, da oposição –que obviamente não é um meio de prova, antes a versão do próprio recorrente- o que resulta é que “… a quantia de 10.000,00 euros (dez mil euros) não a favor da sua mulher, mas da sua cunhada CC que havia efetuado um empréstimo, de idêntico montante, à sociedade.” E justifica, embora, se bem atingimos, de forma aqui contraditória: “E o Oponente, erradamente assume e por tal facto se penitencia, fê-lo apenas e só com receio que o credor Autoridade Tributária e Aduaneira, com quem estava a estabelecer um plano de pagamento prestacional, pudesse penhorar a conta bancária e bloquear o futuro e normal funcionamento da sociedade.” (…) “Tendo, contudo, tal dinheiro sido, imediatamente, transferido para duas contas tituladas pelo Oponente, na Banco 1... S.A. e no Banco 2..., S.A., de onde foram feitos os pagamentos constantes do quadro infra e que, resumidamente, decompõem o momento pós-trespasse e todos os movimentos a débito e a crédito efetuados pela T....”
Ora, do confronto dos documentos ... junto com o requerimento do AI em 16/9/2020, com o 51 da oposição, e ainda atento o 1 do requerimento do AI de 7/1/2021, resulta que os € 10.000,00 foram levantados pelo requerido ao balcão. Isso mesmo foi esclarecido pelo AI no depoimento prestado em audiência conforme destacado pelo recorrente.
Assim, efetivamente aquele segmento terá de ser corrigido (e não ser eliminada aquela referência), ficando a constar que “G. Desse montante global de 207.940,97€, o gerente da insolvente emitiu um cheque no valor de dez mil euros que levantou ao bacão – cfr fls 171) e efectuou duas transferências bancárias: uma no valor de 28.000,00€ para uma conta por si titulada e uma outra, no valor de 115.000,00€ para conta titulada por um seu filho (DD).”
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A alínea a seguir impugnada diz “K. Em 2016 era devedora de 45.819,58€ ao Estado e em 2017 era devedora de 24.714,83€ ao Instituto de Segurança Social.”.
Ora, o recorrente contesta estes valores pugnando antes que conste “K. Em 2016 era devedora de 9.298,87€ ao Estado e em 2017 era devedora de 5.704,58€, incluindo juros de mora calculados até 16.09.2019, ao Instituto de Segurança Social.”
Baseia-se para o efeito na reclamação de créditos apresentada, e desde logo no doc. ... junto então pela Segurança Social.
Compulsado o requerimento de 1/1/2020 –parecer-apresentado pelo AI e docs. que o acompanham, nomeadamente a reclamação apresentada pela S.S. e docs. que então juntou-, a dívida de € 24.714,83 não se reporta na totalidade a 2017, iniciando-se antes a sua constituição a janeiro de 2017 e sendo aquele valor devido por referência a 16/9/2019- cfr. as certidões da S.S. juntas.
Igualmente no que respeita ao crédito da AT, da documentação junta com o mesmo parecer o que resulta é que o cálculo daquele valor em dívida reporta-se a 16/9/2019. Do confronto entre esses e o doc. ...54 junto com a oposição, quanto ao pagamento prestacional, tal reporta-se apenas a um dos processos mencionados naquela outra documentação: processo ...29 (já o outro processo mencionado no doc. ...54 não consta na certidão da AT). Assim, com data de 11/1/2017 foi autorizado o pagamento em prestações do valor de € 7.563,34 relativo a dois processos. Porem, tal não releva na medida em que (ao contrário do outro processo em que foi deferido o pagamento prestacional) quanto ao processo elencado ele continua a figurar na certidão de dívida de 16/9/2019, o que só pode querer dizer que relativamente ao mesmo permaneceu valor por liquidar.
Retifica-se por isso a k) não no sentido propugnado, mas antes corrigindo-se e passando a constar: “K. Em 16/9/2019 era devedora de 45.819,58€ ao Estado e em 16/9/2019 era devedora de 24.714,83€ ao Instituto de Segurança Social.”.
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Pretende o recorrente acrescentar aos factos que: “O gerente da insolvente estabeleceu em 15 de agosto de 2020 um acordo de regularização de dívida com a N... – Sociedade de Garantia Mútua, S.A., no âmbito do acionamento por parte da Banco 1..., S.A. da garantia autónoma n.º ...46, associada ao empréstimo número ...91 garantido por penhor do estabelecimento comercial da insolvente, encontrando-se a aguardar a aceitação da citada instituição financeira à proposta apresentada para liquidação da responsabilidade remanescente”.
Ora, estamo-nos a reportar a factos de 15/8/2020, levados a cabo pelo recorrente a título pessoal, que não releva para efeitos de qualificação da insolvência (o que resultará claro da aplicação do direito aos factos). A declaração de insolvência reporta-se a 10/9/2019. O presente incidente de qualificação iniciou-se a 1/1/2020.
A introdução de correções quando se reporta ao aditamento de matéria deve obedecer a um princípio de utilidade, mas também a impugnação propriamente dita de factos, na medida em que só importa considerar o que puder ser relevante segundo as soluções de direito com que o Tribunal se vai confrontar. Em sede recursiva pretende-se, através da modificação de decisão da matéria de facto, que seja reapreciada a pretensão do recorrente, aferindo da existência ou inexistência do direito reclamado, pelo que a reapreciação da matéria de facto e de todas as demais questões suscitadas, está limitada ao efeito útil que da mesma possa provir para os autos, em função do objecto processual delineado pela parte e assim já antes submetido à apreciação do tribunal recorrido, ou seja, terá de ter repercussão na aplicação do direito pelo tribunal de recurso. Por isso se vem dizendo que é no pressuposto do seu efeito útil que importa apreciar o recurso quanto à impugnação da matéria de facto e proceder apenas às alterações que se impõem e que importam para a boa decisão da causa, ou seja, na medida em que tenha algum efeito sobre a decisão a proferir.
Conforme Ac. da Rel. do Porto de 23/04/2018 (relator Jorge Seabra), no contexto de cada decisão a proferir, em função do concreto objeto do processo delimitado pelas partes, do regime jurídico aplicável e da pertinente subsunção jurídica, se as questões suscitadas pelas partes não assumirem relevo para a decisão do litígio ou se estiverem prejudicadas pela solução de fundo dada a esse litígio, o tribunal, por razões de celeridade e de economia processual, ficará dispensado de delas conhecer mostrando-se, também por este motivo, desnecessária a reapreciação dos meios de prova indicados pelo recorrente.
Diz também o Ac. do STJ e 17-05-2017 (relatora Fernanda Isabel Pereira) que relativamente ao conhecimento da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o “…princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo - pelo juiz, pela secretaria e pelas partes - desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo. (…)
Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questões que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela (s) parte (s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.”
No mesmo sentido, podem ver-se os Acs. da Rel. de Guimarães de 10/09/2015 (relatora Manuela Fialho), de 2/05/2019 (relatora Maria Amália Santos); de 11/07/2017 e de 22/10/2020 (relatora Maria João Matos), além de outros; e da Rel. de Lisboa 17/4/2018 (relator Torres Vouga), e de 30-04-2019 (relator José Capacete).
Por tudo o exposto, rejeita-se e improcede esta pretensão por inútil.
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Apenas de notar que no caso das outras duas alíneas apreciamos a impugnação, muito embora elas não tenham sido fundamento da decisão desfavorável ao recorrente, mas apenas na perspetiva da ponderação de todas as perspetivas de aplicação do direito, caso este Tribunal optasse por enquadramento diverso.
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-DECISÃO DE DIREITO.

Neste como noutros casos, e porque se justifica face á apreciação que se impõe, iremos iniciar a abordagem reproduzindo a parte introdutória que consta do Acórdão proferido no processo 5474/17.... (mesma relatora), e atendendo a que entretanto o regime foi alterado pela Lei nº. 9/2022 de 11/1, atualizando o que então dissemos.
O incidente de qualificação da insolvência que, como resulta do artº. 185º, do CIRE, pode ser qualificada como culposa ou fortuita, seguindo de perto o Ac. desta Relação de 5/3/2020 (wwwdgsi.pt).
Este incidente constitui uma fase do processo de insolvência que se destina a averiguar quais as razões que conduziram à situação de insolvência e, consequentemente, se essas razões foram puramente fortuitas ou correspondem antes a uma atuação negligente ou mesmo com intuitos fraudulentos do devedor (Ac. da Rel. do Porto de 23/4/2018, relator Miguel Baldaia de Morais, www.dgsi.pt).

O artº. 186º do CIRE define os casos de insolvência culposa, pelo que a noção de insolvência fortuita vai resultar por exclusão de partes: é fortuita a insolvência que não se possa qualificar como culposa à luz dos critérios definidos no artº. 186º, do CIRE.

A redação atual deste artigo é a seguinte:
1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com eles especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação; d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros e em prejuízo da empresa;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário ao interesse deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º
3 - Presume-se unicamente a existência de culpa grave quando os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja uma pessoa singular tenham incumprido:
a) O dever de requerer a declaração de insolvência;
b) A obrigação de elaborar as contas anuais, no prazo legal, de submetê-las à devida fiscalização ou de as depositar na conservatória do registo comercial.
4 - O disposto nos n.os 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à atuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
5 - Se a pessoa singular insolvente não estiver obrigada a apresentar-se à insolvência, esta não será considerada culposa em virtude da mera omissão ou retardamento na apresentação, ainda que determinante de um agravamento da situação economia do insolvente.

Resulta assim do nº. 1 do artigo a definição de insolvência culposa (que se aplica quer à pessoa coletiva, quer á pessoa singular); os seus requisitos –cumulativos- são:
1) o facto inerente à atuação, por ação ou omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência;
2) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave);
3) e o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.
Nas alíneas a) a i), do seu nº. 2, tipificam-se taxativamente um conjunto de situações que quando se verifiquem integram uma presunção “iuris et de iure” (absolutas) de que a insolvência é culposa. Não se aplicam a pessoas singulares, salva a hipótese do nº. 4.

Conforme se disse no Ac. desta Relação de 5/3/2020 (relatora Rosália Cunha, www.dgsi.pt) “Bem se compreende que assim seja pois aí se elenca uma série de comportamentos que afetam negativamente, e de forma muito significativa, o património do devedor, e eles próprios apontam, de modo inequívoco, para a intenção de obstaculizar ou dificultar gravemente o ressarcimento dos credores, justificando-se, por isso, que se estabeleça uma presunção inilidível de que a insolvência é culposa quando tais comportamentos se verifiquem.”
Significa isto que, uma vez demonstrado o facto nelas enunciado, fica, desde logo, estabelecido o juízo normativo de culpa do administrador, sem necessidade de demonstração do nexo causal entre a omissão dos deveres constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento. Destarte, a simples ocorrência de alguma das situações elencadas nas diversas alíneas do nº 2 do sobredito art. 186º conduz inexoravelmente à atribuição de carácter culposo à insolvência, ou seja, à qualificação de insolvência como culposa -Acs. da Rel. de Guimarães de 29/6/2010 e 1/6/2017, e de 5/3/2020, dgsi.pt. Como se diz no segundo citado “Esta previsão legislativa emerge da circunstância de a indagação do carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, ou dos seus administradores, e da relação de causalidade entre essa conduta e o facto da insolvência ou do seu agravamento, de que depende a qualificação da insolvência como culposa, se revelar muitas vezes extraordinariamente difícil. Assim, e em ordem a possibilitar essa qualificação, o legislador consagrou um conjunto tipificado (e taxativo) de factos graves e de situações que exigem uma ponderação casuística, temporalmente balizadas pelo período correspondente aos três anos anteriores à entrada em juízo do processo de insolvência. Neste âmbito temporal, e perante a prova dos aludidos factos índice, previstos no nº 2 do citado art. 186º, a lei não presume apenas a existência de culpa, mas também a existência da causalidade entre a actuação e a criação ou o agravamento do estado de insolvência, para os fins previstos no nº 1 do art. 186º do CIRE.”. No mesmo sentido, Ac. do STJ de 15/2/2018 (relator José Rainho, www.dgsi.pt).
Já no caso do nº. 3 do mesmo artigo estamos perante situações de presunção “iuris tantum” de culpa grave do administrador ou gerente que incumpriu algum dos deveres mencionados nas alíneas a) e b), com aplicação apenas às pessoas coletivas (salva a hipótese do nº. 4).
Estas presunções são ilidíveis mediante prova em contrário –artº. 350º, nº. 2, do C.C..
Conforme Ac. desta Relação de 29/6/2010 (relatora Rosa Tching, www.dgsi.pt) “Significa isto que, uma vez constatada a omissão de algum dos deveres enunciados nas ditas alíneas, a lei faz presumir a culpa grave do administrador ou gerente. Mas porque a culpa grave, assim presumida, por si só não é suficiente para qualificar a insolvência como culposa, por faltar um dos requisitos previstos no nº 1 do citado art. 186º, necessário se torna demonstrar o nexo de causalidade entre aquela omissão culposa e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. E bem se compreende, nestas situações, a necessidade de verificação deste requisito, ou seja, que foram essas omissões que provocaram a insolvência ou a agravaram. É que o administrador ou gerente pode ter atuado com culpa grave mas em nada ter contribuído para a criação ou o agravamento da situação de insolvência”.
Consagra-se aqui uma “cláusula geral aberta”, nas palavras de Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões (“Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, Almedina, 2013, pag. 508); e a mesma, exige, “para a qualificação da insolvência como culposa, não apenas uma conduta dolosa ou com culpa grave do devedor e seus administradores mas também um nexo de causalidade entre essa conduta e a situação de insolvência, consistente na contribuição desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência” -Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Direito da Insolvência”, 3ª edição, Almedina, 2011, pag. 283 a 284.
São por isso e em suma requisitos cumulativos da qualificação de uma insolvência como culposa: o facto inerente à atuação, por ação ou por omissão, do devedor ou dos seus administradores, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; a ilicitude desse comportamento; a culpa qualificada do seu autor (dolo ou culpa grave); e o nexo causal entre aquela atuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência. –Ac desta Rel. de 1/2/2018, com exaustiva e cuidada análise da questão das presunções previstas (www.dgsi.pt).”.
Veja-se ainda, mais recente, sobre igual tema o Ac. desta Relação de 9/7/2020 (relator José Alberto Moreira Dias).
A introdução da expressão “unicamente” no nº. 3 do artº. 186º, alteração operada pela lei referida, veio consagrar a posição de que demos nota e que já perfilhávamos (e assumida também na sentença recorrida), de que “apenas” se presume a culpa grave, mas não o nexo causal (ou a “insolvência culposa”), pelo que a alteração legislativa neste item não interfere com a nossa decisão –cfr. Ac. da Rel. de Coimbra, de 14/6/2022 (relator Paulo Correia).
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Após concluir que não se verifica o preenchimento das condutas integradoras das alíneas a), nº. 2, e a), nº. 3, do artº. 186º (por ausência de prova da factualidade a tal necessária), o Tribunal recorrido passou à análise da alínea d) do nº. 2, essa sim entendendo verificar-se, por provada a conduta qualificadora. E para tanto atentou:
- Em 18/5/2016, e para garantia das responsabilidades decorrentes e emergentes de contrato de financiamento com a Banco 1..., no valor de 150.000,00€, a insolvente ofereceu em penhor o estabelecimento comercial “K...” – alínea E) da matéria de facto assente;
- Em 3/9/2018, a insolvente procedeu à venda do direito e trespasse do estabelecimento comercial “K...”, pelo montante de 160.000,00€ e o respectivo stock de mercadorias existente pelo montante de 47.940,97€ à empresa “J...-Unipessoal, Ldª – alínea F) da matéria de facto assente;
- Não entregou tal quantia para pagamento do crédito garantido por penhor constituído a favor da Banco 1... – alínea H) da matéria de facto assente.
“Ao agir desta forma, o gerente da insolvente escolheu os credores a que quis pagar (ainda que o possa ter feito com boas intenções, isto é, para que a sociedade continuasse em laboração), em claro prejuízo do credor garantido, que deixou de receber uma quantia a que tinha direito e que tinha direito de receber com preferência aos demais credores da insolvente.
Aliás, ainda hoje o crédito garantido não foi ressarcido, tendo sido reclamado pelo credor neste processo e tendo o mesmo sido reconhecido como comum, a par dos demais, sem qualquer privilégio ou garantia, uma vez que desapareceu a quantia monetária objecto do penhor, isto é, foi-lhe dado destino diverso daquele que deveria ter tido.
Com esta conduta, o gerente da insolvente dispôs de bens da devedora em proveito de terceiros, preenchendo a alínea d) do nº 2 do art. 186º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas: utilizou a quantia resultante da venda do direito e trespasse do estabelecimento comercial “K...” para pagamento a outros credores que não o credor que tinha o penhor, Banco 1..., em claro prejuízo desta.”
O recorrente rebate este enquadramento; sucede porém que estriba-se em factos que não constam da matéria provada (nomeadamente face à sua rejeição), ou seja:
Conclusão XIV “Tendo, após a venda do estabelecimento comercial, a sociedade insolvente continuado a liquidar as prestações bancárias à Banco 1... conforme decorre dos documentos número ... a ...0, ...5, ...8, ...52 e ...53, ...63..., 296, 532 e 533, 642, 646, 648 783 e 787 e, de forma completamente clara, do documento número ... (extrato bancário da conta da Banco 1... da sociedade insolvente) onde estão lançados a débito todos os movimentos de cobrança do crédito, com o descritivo “Cobrança de Prestação” -não consta exatamente isso, sem prejuízo da análise que se fará;
Conclusão XV “Apercebendo-se de tal situação de impossibilidade contratual e legal, o recorrente estabeleceu, pessoalmente, o aludido acordo de pagamento do capital e juros em dívida com a N..., aguardando a aceitação da Banco 1... para a liquidação do valor restante, nos termos propostos.” –não foi aceite a sua introdução.
O recorrente, ainda assim e não obstante, coloca a tónica do seu recurso no facto de não resultar dos factos apurados o “proveito pessoal dos administradores ou de terceiros”.
Recorre ainda ao facto elencado na alínea I), em que se diz que, depois de na H) referir-se que “Não entregou tal quantia para pagamento do credito garantido por penhor constituído a favor da Banco 1...”, quantia essa da venda do direito e trespasse do estabelecimento dado de penhor à Banco 1..., “A totalidade desse valor regressou, posteriormente, à esfera jurídica da insolvente, tendo sido utilizados para liquidar algumas dividas da insolvente para com alguns credores, concretamente, fornecedores, empréstimos bancários, tributos e contribuições, bem como em gastos correntes da actividade, como salários e despesas de deslocação.”
Em primeiro lugar, sendo a Banco 1... credora à data, não se pode excluir a mesma desses pagamentos (não tal e qual como dizia na conclusão XIV o recorrente, mas nestes termos mais genéricos relativos a pagamentos de empréstimos bancários).
Em segundo, nem o Tribunal recorrido enveredou pelo “proveito do administrador”, nem isso está em causa face à matéria destacada.
O Tribunal recorrido frisa o destino diverso dado ao dinheiro do trespasse, dispondo o administrador de bens da devedora; o prejuízo da Banco 1... e o proveito dos outros credores.
Pode desde logo discutir-se se o terceiro a que a norma se refere é necessariamente o beneficiado/aquirente com o bem, e não os outros credores –posição que parece ser a que resulta da leitura do Ac. desta Relação de 1/6/2017, relator Pedro Damião e Cunha.
Aceitemos que não há essa restrição.
Tendemos a concordar com o recorrente; o facto do valor em causa de não ter sido utilizado para o cumprimento do contrato de financiamento que beneficiava da garantia, prejudicando a Banco 1..., não resulta de forma tão linear num ato em proveito de terceiros –que sendo credores recebem o que lhes é devido (este proveito não pode ser retirado a contrario do prejuízo de outrem), embora é certo “passando por cima” do credor garantido.
Aceitemos que o seu proveito derive dessa circunstância, e continuemos a apreciar.
Outro obstáculo se coloca: o detrimento/prejuízo para o qual a norma está pensada, a contrario do proveito, é o da devedora/insolvente, e não de um outro credor (neste caso projeta-se na posição da Banco 1... enquanto credora) –situações que estão previstas noutras disposições do CIRE, nomeadamente quando se consagra o princípio da igualdade de credores que não é o interesse que neste incidente se pretende salvaguardar. É isso que resulta da leitura dos nºs. 1 e 2, neste caso d), sendo que o nº. 2 não pode ser lido sem o enquadramento do nº. 1.
A propósito da interpretação desta alínea d) remetemos para o acórdão da mesma relatora proferido no processo 5451/18...., em 18/3/2021. Veja-se ainda o Ac. desta Rel. a que já fizemos referência de 9/7/2020.
Reproduzindo o que dissemos a propósito naquele acórdão: “Conforme nos diz Luís Carvalho Fernandes (Themis, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, 2005, pag 95, nota 23), o que está em causa nas alíneas a) e d), bem como nas alíneas b), e) e g), são “…comportamentos dos administradores do insolvente que, afectando a situação patrimonial deste, implicam concomitantemente benefício para o próprio administrador que os adopta ou para terceiros”.
Catarina Serra (Cadernos de Direito Privado, nº. 21, Janeiro/Março 2008, pag. 65), ao escrever que nas alíneas a) a g) “… estão os factos a que, na maioria das situações, mais frequentemente se deve a insolvência: a prática de actos de delapidação do património do devedor e aquilo que, no contexto da insolvência de um devedor que não seja uma pessoa humana, podem considerar-se infracções ao dever geral de fidelidade (ou lealdade) dos administradores, formalmente consagrado no artigo 64º, n.º1, alínea b), do CSC – a condução da actividade do devedor de modo a beneficiar os interesses pessoais ou de terceiros”.
Luís Manuel Teles de Menezes Leitão refere “actos destinados ao empobrecimento do património do devedor” (Direito da Insolvência, 9ª Edição, pag. 286].
O património de uma sociedade, enquanto “conjunto de relações jurídicas com valor económico, isto é, avaliável em dinheiro de que é sujeito activo e passivo uma dada pessoa”, é um fundo real de bens e direito, efectivo, concreto e continuamente variável na sua composição e montante –Paulo de Tarso Domingues, “Capital e património sociais, lucros e reservas”, em “Estudos de Direito das Sociedades”, pag. 135 da 5ª edição.
Pode ser encarado por três perspectivas: i) como património global, abrangendo todos os direitos e obrigações susceptíveis de avaliação pecuniária de que a sociedade é titular num determinado momento; ii) como património ilíquido ou bruto, enquanto engloba os elementos do activo da sociedade (bens e direitos), sem ter em conta o passivo; e ii) como património líquido, que consiste no valor do activo depois de descontado o passivo – cf. Paulo de Tarso Domingues, obra citada, págs. 135 e 136
Assim, na alínea a), estão em causa ações que, quando realizadas com intenção de prejudicar os credores, preenchem o crime de insolvência dolosa previsto na alínea a) do n.º 1 do artigo 227.º do Código Penal.
Pelo confronto entre as alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, resulta que a noção de património que a lei adota para este efeito é a de património ilíquido ou bruto, ou seja, o ativo da sociedade sem que se tenha em conta o passivo, esse, objeto de atenção legislativa na alínea b) do mesmo preceito.
Pretende-se fazer referência a bens, direitos e ativos, que, concretamente, podem ser destruídos, danificados ou inutilizados, condutas cuja caracterização não é possível se adotarmos qualquer das demais noções de património, que se traduzem em cifras e não em bens ou direitos concretos.
Seguindo a interpretação que se afigura correta e com pertinência para este caso que consta do Ac. da Rel. de Coimbra de 17/03/2020 (www.dgsi.pt), a expressão “feito desaparecer… o património do devedor” compreende as ações que fazem sair bens (bens, direitos e ativos) do património do devedor de forma tal que o destino deles não seja conhecido.
Pedro Caeiro (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial Tomo II, pags. 412 e 413), diz em anotação ao artº. 227º do Código Penal que estão em causa “condutas que provocam uma diminuição real do património”; com elas “o devedor deprecia realmente o valor do seu património, causando por essa forma uma situação de insolvência. No que diz respeito à expressão “fazer desaparecer parte do seu património”, parece que ela servirá para atalhar os casos em que não se descobre o paradeiro de bens que supostamente se deviam encontrar na titularidade do devedor. Não se importa se eles foram objecto de uma alienação real ou tão só-fictícia, importa tão só que os credores não conseguem atingi-los para garantir a satisfação das suas dívidas, pelo que o valor ostensivo do património resulta, em qualquer caso diminuído”.
Diferente é a ocultação reporta-se à ocultação física de bens do devedor e à ocultação jurídica. Na primeira terá de se desconhecer o paradeiro dos bens. Na segunda caberão os casos em que há um acordo entre a transmitente e os transmissários dos bens no sentido de simularem as transmissões, com a intenção de esconderem a verdadeira titularidade dos mesmos.
E relativamente à alínea d), o que aí se prevê são atos de disposição (por exemplo, venda) de bens do devedor em proveito pessoal dos administradores, de direito ou de facto, ou de terceiros.
E conforme Ac. da Rel. de Coimbra “supra” citado, “Para estes efeitos, devem considerar-se “actos de disposição” tanto aqueles que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor (como sucede, por exemplo com a venda ou a doação de bens) como os que, não implicando necessariamente tal saída, retiram-lhe, no entanto, a disponibilidade deles, colocando-os na disponibilidade de outrem. Cita-se em abono desta interpretação o Acórdão do STJ proferido em 15-02-2018, no processo n.º 7352/15.4T8VNG-A, publicado em www.dgsi.pt onde se escreveu: “a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens do insolvente é transferida para o terceiro, mas também quando, independentemente disso, é consentido a este que use, goze e frua os bens, que deles retire as respetivas utilidades em benefício próprio. Neste caso o insolvente fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietário desses bens, ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos”. É certo, entretanto, que para os fins em presença só há que falar em proveito quando o ato de disposição se traduz na outorga de um benefício sem uma justa ou legítima correspondência prestacional (se existe correspondência prestacional do terceiro, não há proveito deste, mas sim o recebimento do que lhe compete, justa e legitimamente, receber)”.
A exigência feita na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE de que o acto de disposição seja feito em proveito pessoal dos administradores (de direito ou de facto) ou de terceiros serve para excluir do alcance da norma os actos de disposição que “produzam uma perda absoluta do direito, ou seja, a extinção do direito sem que lhe corresponda qualquer aquisição” [seguimos neste aspecto o entendimento de Pedro Sousa Macedo, Manual de Direito das Falências, Volume II, Livraria Almedina, Coimbra 1968, página 220, a propósito do conceito de actos onerosos constante do artigo 1202º, alínea d) do Código de Processo Civil de 1961, que se presumiam celebrados de má-fé].
Interpretada com o sentido e o alcance acabados de expor, a alínea d) compreende a transmissão da propriedade de um bem, da qual resulte proveito apenas para os administradores de facto ou para um terceiro.”
Cremos que a nota que distingue a ação de ocultação no sentido jurídico da alínea a), da conduta prevista na alínea d), é a forma sub-reptícia como a transferência é feita na primeira (“camuflado” por atos jurídicos simulados), enquanto que na alínea d) haverá uma qualquer conduta “visível”, para além da questão do proveito pessoal ou de terceiros.
Relativamente à interpretação das alíneas a) e d) no Acórdão da Relação de Coimbra de 28/05/2013 (www.dgsi.pt), diz-se em relação à primeira que “a ocultação … deve abranger casos … em que o bem é vendido a um terceiro, podendo, inclusive, este revendê-lo, e assim sucessivamente. Tal alienação, retirando os bens da esfera jurídica do devedor, implica um descaminho que pode impedir, ou, pelo menos - o que é o bastante para satisfazer a ratio legis -, dificultar, o seu acesso e o seu accionamento por parte do credor. A lei não exige a ocultação total no sentido de se tornar impossível o seu acesso ou conhecimento, mas apenas parcial no sentido de vontade, concretizada, de subtrair o bem ao direito/conhecimento do credor e respectiva acção legal, pelo que, e precisamente por isso, não exige ocultação no sentido físico, mas apenas no aspecto da situação jurídica do bem. Aliás concomitantemente à ocultação a lei prevê o desaparecimento, o qual se revela um mais, no sentido da gravidade do descaminho…” E no Ac. da Rel. do Porto de 7/12/2016 (www.dgsi.pt) diz que “No que concerne à previsão da alínea d), o proveito pessoal ou de terceiros compreende todas as situações em que os bens da sociedade insolvente são colocados à disposição do administrador ou de terceiros, ou seja, a previsão legal é preenchida não apenas quando por negócio jurídico a titularidade do direito sobre os bens da insolvente é transferida para o administrador ou para terceiros, mas também quando independentemente disso é consentido a estes que usem os bens, que deles retirem proveito e utilidade em benefício próprio e sem qualquer retorno para a insolvente e esta fica, na prática, numa situação equivalente à de não ser proprietária desses bens ou de não ter qualquer direito de gozo dos mesmos.”
De facto, o dever de lealdade que a disposição inculca reporta-se à devida pelos administradores à própria sociedade devedora, e não em relação aos outros credores –divergimos aqui do entendimento sufragado nos Acs. da Rel. do Porto de 24/10/2022 (relatora Fátima Andrade) e de 28/10/2021 (relator Joaquim Correia Gomes). A apologia da posição aí defendida não será, a nosso ver, a ilação a retirar do Ac. do STJ de 15/2/2018 (relator José Tainho), ao contrário do que se diz naquele primeiro (-frisando-se neste acórdão do STJ o propósito dos Insolventes de “subtrair ao seu património o único bem que possuíam sem que existisse qualquer contrapartida para a massa insolvente).
Veja-se ainda o que se diz no Ac. da Rel. do Porto de 7/12/2016 (relator Aristides Rodrigues de Almeida), que interpretamos no sentido que expusemos: “É certo que na descrição da situação nela prevista - terem disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros – não se faz qualquer referência à importância económica dos bens objecto dessa actuação e à necessidade de o seu relevo patrimonial ser significativo – ao contrário da alínea a) –. Isso é assim porque, cremos, a preocupação subjacente à previsão legal já não é directamente a preservação do património da devedora (indirectamente sim), mas antes evitar que esse património que deverá ser afecto à satisfação dos credores redunde afinal em benefício ilegítimo dos próprios administradores ou de terceiros.
Todavia, julgamos que em qualquer circunstância esses bens têm de ter algum relevo económico, não nos parecendo conforme à ordem jurídica qualificar uma insolvência como culposa e imputar aos gerentes as consequências dessa qualificação apenas porque um dos administradores ou um terceiro se apropriou de um bem da insolvente de escasso valor económico, cujo interesse para o funcionamento da devedora nas condições existentes à data não fosse significativo.
Com efeito, é necessário não esquecer que a qualificação da insolvência como culposa não implica renúncia nem prejudica o accionamento pelo administrador de insolvência dos mecanismos jurídicos de tutela dos interesses dos credores, designadamente a resolução em benefício da massa insolvente.
Por outro lado, conforme resulta do n.º 1 do artigo 186.º, o núcleo genético dessa qualificação centra-se na relação entre a situação de insolvência e a actuação que se pretende evitar, reclamando que esta actuação seja não apenas dolosa ou com culpa grave como também que seja causa da criação da situação de insolvência ou do seu agravamento. As hipóteses de facto elencadas nas alíneas do n.º 2 são situações às quais o legislador associou de forma automática essa qualificação, mas apenas porque presumiu que aquelas características essenciais definidas no n.º 1 estão naturalmente presentes nessas situações. Nessa medida, parece legítimo que na dúvida sobre a dimensão normativa de algum dos elementos necessários para o preenchimento dessas situações o intérprete possa recorrer ao contributo dos requisitos do n.º 1 para tomar a sua decisão.
Por isso, ignorando-se a quantidade e valores dos bens entregues à sociedade terceira, sabendo-se que nessa altura a insolvente já tinha a sua actividade paralisada e, portanto, não seriam esses bens a impedir a situação de insolvência, sendo possível a resolução em benefício da massa insolvente da disposição desses bens e sendo o terceiro beneficiado uma entidade que (embora indirectamente através do seu sócio gerente) contribuiu durante algum tempo para a insolvente conseguir cumprir negócios que de outra forma iria incumprir, não recebendo a sua remuneração e incorrendo em novas responsabilidades, decidimos que a situação provada nos autos não permite qualificar a insolvência como culposa ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.”
Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda (“CIRE Anotado, pag. 681 da 3ª edição) “… as várias alíneas do preceito exigem uma ponderação casuística. Em termos genéricos, pode, contudo, dizer-se que todas elas envolvem, por via direta ou indireta, efeitos negativos para o património do insolvente, geradores ou agravantes da situação de insolvência, tal como a define o art.º 3.º”.
Ora, clarificando o nosso modo de ver, a situação em apreço de que resultou claro prejuízo para o credor garantido –a Banco 1...-, conforme se constata da reclamação de créditos e se destaca na sentença recorrida, não basta para a tipificação da conduta, só após o que opera a presunção de culpa e de nexo entre a atuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência; e a nossa análise situa-se ainda no facto pois que quando a lei refere “disposto dos bens do devedor”, no contexto do nº. 1, tal tem de significar a retirada dos bens ou do seu equivalente da esfera do devedor (sem contrapartida, ou sem a contrapartida “justa”) e por isso tem inerente o conceito de prejuízo. Daí que a norma não prescinda da verificação de prejuízo (ainda que indireto) para o património do devedor.
Da leitura da jurisprudência produzida sobre a matéria, nomeadamente da citada, analisando a questão da necessidade da consideração de património razoável na alínea d), tal como referido expressamente na a), resulta estar subjacente à resposta positiva o pressuposto da prova do prejuízo para o devedor, portanto algo prévio à presunção do nexo.
Reitera-se que o princípio da igualdade dos credores é transversal ao CIRE (cfr. artº. 194º no que concerne ao plano de insolvência), mas manifesta-se em determinadas situações e não se densifica noutras, como é esta situação. De facto, e no que ao caso importa, verificamos a salvaguarda do artº. 120º quando se verifique prejuízo dos credores (para além de ações de impugnação pauliana intentadas antes da declaração de insolvência). Veja-se num caso com semelhanças a decisão do Ac. da Rel. de Coimbra de 11/10/2022 (relator Arlindo Oliveira).
Parece-nos pertinente a seguinte passagem da autoria de Carneiro da Frada (“ A responsabilidade dos Administradores na Insolvência”, ROA ano 66, vol. II, pag. 698): “Neste âmbito, tudo deve ser interpretado “…com ponderação, de modo a alcançar um efeito responsabilizante equilibrado que, sem deixar de dissuadir condutas manifestamente injustificáveis dos administradores e de ordenar a reparação dos prejuízos por elas causadas, respeite, por outro lado, a autonomia decisória que têm de ter e o cenário de risco em que muitas vezes a actividade de administração se processa e se tem de desejar possa desenvolver-se (sem risco de responsabilidade)…”.
Por tudo o exposto, consideramos que não se mostra preenchida a alínea d) do nº. 2, do artº. 186º do CIRE.
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Resta acrescentar que da factualidade alterada não resulta qualquer diferente consideração quanto ao não preenchimento das alíneas a) do nº. 2, e a) do nº. 3, do mesmo artº. 186º.
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Não sendo de atribuir o caráter culposo da insolvência, ela terá de se considerar fortuita.
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Nesta medida, procede o recurso interposto, ficando prejudicadas as demais questões suscitadas que se prendiam com as consequências a retirar da qualificação como culposo, nomeadamente a prevista no artº. 189º, nºs. 2, e), e 4 do CIRE (artº. 608º, nº. 2, do C.P.C., ex vi artº. 663º, nº. 2, do mesmo código).
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso do requerido totalmente procedente, e em consequência, concedem provimento à apelação, revogando a sentença recorrida e qualificando como fortuita a insolvência de “T...-Unipessoal, Ldª”.
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Custas a cargo da massa insolvente (artº. 304º do CIRE).
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Guimarães, 27 de abril de 2023.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
2º Adjunto: Eugénia Pedro

(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)