Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
338/19.3T8GMR.G2
Relator: ANTÓNIO SOBRINHO
Descritores: CESSÃO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL
APURAMENTO DOS RENDIMENTOS
VALOR ANUAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

I - O apuramento dos rendimentos objecto de cessão para efeitos do artº 240º, nº 2, do CIRE, deve ser feita por referência ao período de um ano.
II- Assim, no relatório anual a apresentar pelo Sr. Fiduciário deve atender-se ao valor anual dos rendimentos (diferença entre o rendimento global auferido pelo insolvente e o montante anual fixado como indisponível).
III – Tal cômputo dos rendimentos do devedor para efeitos de cessão do rendimento disponível é o que lhe assegura a tutela efectiva de receber o valor fixado judicialmente de sustento mínimo durante o período de cessão.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – Relatório;

Recorrente: J. L. (apelante);
*****
J. L. requereu, oportunamente, a declaração do seu estado de insolvência e a exoneração do passivo restante.
Tendo sido admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo, foi de seguida proferido despacho sobre a cessão do rendimento disponível do devedor, fixando-se o montante de 700,00€ como o valor excluído do rendimento disponível a ceder pelo mesmo, conforme sentença proferida em 26.09.2019, transitada em julgado.
Posteriormente, através de requerimento apresentado em 30.11.2020 foi apresentado o relatório anual pela Srª Fiduciária, nos termos do artº 240º, nº 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), no qual se informa que o devedor no primeiro ano da exoneração do passivo restante auferiu rendimentos que excederam o valor fixado como indisponível no montante de € 1.535,89 (mil quinhentos e trinta e cinco euros e oitenta e nove cêntimos).
De seguida, o devedor apresenta requerimento no qual requereu que “o cálculo do valor do rendimento a ceder aos credores, seja feito com base no rendimento anual do insolvente e, em consequência, seja Exmª Senhor Administradora da Insolvência notificada para apresentar relatório devidamente rectificado”.

Após audição da Srª Fiduciária, foi então proferido, em 08.01.2021, o seguinte despacho:
«No caso concreto foi fixado um valor mensal e não anual, assim consideramos correta a apreciação da Fiduciária, sendo que caso as quantias que excedam aquele valor nos meses em que ocorreram, deveriam ter sido comunicadas ao processo e justificada a sua não cedência, pelo exposto, considera-se que o valor apurado pelo Fiduciário se mostra acertado.
Notifique.».

Inconformado com esta decisão, veio agora o requerente/devedor interpor o presente recurso de apelação, em cujas alegações apresenta, em súmula, as seguintes alegações:

1ª A sentença é nula por falta de fundamentação, quer de facto, quer de direito, pois não indica matéria de facto, nem tão-pouco disposição legal que pudesse levar àquela decisão.
2ª Além disso, todas as decisões devem ser fundamentadas para que o destinatário a consiga interpretar e entender porque foi decidido daquela forma e não de outra.
3ª Até mesmo para o destinatário estar preparado para recorrer da mesma, contrariando-a, ou, por outro lado, conformando-se com ela.
4ª Pelo que, a sentença é nula impondo-se a sua revogação e substituição por outra que não padeça do vício a ela assacado.
5ª O rendimento indisponível deve ser feito, tendo em conta a média anual dos rendimentos, uma vez que se assim não for não fica garantido o mínimo indispensável ao seu sustento e do seu agregado familiar, que é composto por um filho menor, ainda menino que não deve nunca ficar privado do essencial à sua subsistência com o mínimo conforto.
6ª Se se mantiver este cálculo não ficará sequer garantido o salário mínimo nacional ao insolvente, o que é violador de normas fundamentais.
7ª Pelo que, deve ser dado provimento ao requerimento apresentado pelo insolvente com a referência 108517799, e seja notificada a Senhor Fiduciária para que reformule o relatório apresentado.
O despacho viola as normas ínsitas nos artigos 1º da CRP, 239º do CIRE e n.º 3, do art.º 607º e al. b) do n.º 1, do art.º 615º do CPC.

Não foram apresentadas contra-alegações.

II – Delimitação do objecto do recurso; questão a apreciar;

O objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões das alegações, nos termos do artº 639º, do Código de Processo Civil (doravante CPC).

I – As questões de direito suscitadas pelo recorrente são as seguintes:

a) Nulidade do despacho por falta de fundamentação;
b) Indeferimento do pedido do insolvente/devedor de rectificação/alteração do valor apurado pela Srª fiduciária e a disponibilizar a esta para os fins da insolvência.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos;

1. De facto;

A factualidade a considerar é a que consta do Relatório supra e ainda o seguinte:

1. Na sentença proferida em 26.09.2019, transitada em julgado, fixou-se o montante de 700,00€ como o valor excluído do rendimento disponível a ceder pelo mesmo, nos seguintes termos:
«Considerando tais factos, entendemos que o montante relativo às exclusões previstas na alínea b) do n.º 3 do artigo 239.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, deve fixar-se no equivalente a € 700,00, que se considera ser o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade».
2. Através de requerimento apresentado em 30.11.2020 foi apresentado o relatório anual pela Srª Fiduciária, nos termos do artº 240º, nº 2, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), no qual se informa que o devedor no primeiro ano da exoneração do passivo restante auferiu rendimentos que excederam o valor fixado como indisponível no montante de € 1.535,89 (mil quinhentos e trinta e cinco euros e oitenta e nove cêntimos), assim discriminado:
Mês Rendimento indisponível - Retribuição mensal - Remanescente
10/2019 700,00 € 753,98 € 53,98 €
11/2019 700,00 € 753,98 € 53,98 €
12/2019 700,00 € 753,98 € 53,98 €
01/2020 700,00 € 691,48 € 0,00 €
02/2020 700,00 € 807,60 € 107,60 €
03/2020 700,00 € 711,50 € 11,50 €
04/2020 700,00 € 449,73 € 0,00 €
05/2020 700,00 € 703,00 € 3,00 €
06/2020 700,00 € 678,73 € 0,00 €
07/2020 700,00 € 1 951,85 € 1 251,85
08/2020 700,00 € 644,73 € 0,00 €
09/2020 700,00 € 616,40 € 0,00 €
TOTAL 8 400,00€ € 9 516,96 € 1 535,89


2. De direito;

I – As questões de direito suscitadas pelo recorrente são as seguintes:

a) Nulidade do despacho por falta de fundamentação;
b) Indeferimento do pedido do insolvente/devedor de rectificação/alteração do valor apurado pela Srª fiduciária e a disponibilizar a esta para os fins da insolvência;

No que concerne à invocada nulidade do despacho, argumenta o recorrente que o mesmo padece de falta de fundamentação de facto e de direito, por não indicar a matéria de facto e disposição legal que conduz à decisão tomada, devendo ser fundamentada para que o destinatário a consiga interpretar e entender e para o destinatário estar preparado para recorrer da mesma.
Carece de razão.
As nulidades da decisão previstas no artº 615º do CPC - aplicável aos despachos, por força do disposto no artº 613º, nº 3, do CPC - são deficiências da sentença que não podem confundir-se com o erro de julgamento (nem com as nulidades processuais propriamente ditas), o qual se traduz antes numa desconformidade entre a decisão e o direito (substantivo ou adjectivo) aplicável.
Nesta última situação, o tribunal fundamenta a decisão, mas decide mal; resolve num certo sentido as questões colocadas porque interpretou e/ou aplicou mal o direito (cfr. Ac. RC de 15.4.08, in www.dgsi.pt).
Como se resumiu no Ac. RL de 10.5.95 (in CJ, 1995, t. 3, pág. 179), “As nulidades da sentença estão limitadas aos casos previstos nas diversas alíneas do nº 1 do art. 668º do C.P.C.. Não se verificando nenhuma das causas previstas naquele número pode haver uma sentença com um ou vários erros de julgamento, mas o que não haverá é nulidade da decisão.”
Assim, a sentença será nula, além do mais, quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão ou quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Como é entendimento doutrinal e jurisprudencial unânime, só a ausência total de fundamentação [caso da citada al.b)] acarreta a nulidade da sentença.
Já não uma fundamentação incompleta, inexacta ou sucinta.
No caso sub judice, o despacho mostra-se minimamente fundamentado, discriminando-se nele a materialidade fáctica e as razões que conduziram juridicamente à improcedência do pedido, a saber a invocada fixação de um valor mensal e não anual quanto ao montante excluído do rendimento disponível, aquando da prolação da sentença, e o dever de comunicação oportuna por parte do devedor.
Acresce que não ocorre a invocada ininteligibilidade da decisão, seja por ambiguidade, seja por obscuridade, uma vez que o apelante, seu destinatário, não só compreendeu convenientemente os motivos que estiveram na base do indeferimento do seu pedido, como reagiu, não se conformando e interpondo o competente recurso relativamente à substância e mérito do decidido.
Inexiste, pois, o apontado vício de nulidade do despacho.

Insurge-se ainda o recorrente quanto ao indeferimento do pedido do insolvente/devedor de rectificação/alteração do valor apurado pela Srª fiduciária e a disponibilizar a esta para os fins da insolvência.
Esgrime que o rendimento indisponível deve ser feito, tendo em conta a média anual dos rendimentos, uma vez que se assim não for não fica garantido o mínimo indispensável ao seu sustento e do seu agregado familiar e que, mantendo-se esse cálculo não ficará garantido o salário mínimo nacional ao insolvente, o que é violador de normas fundamentais.
Acolhe-se tal entendimento.
No que concerne à figura jurídica da exoneração do passivo restante, relativa ao insolvente que seja pessoa singular, pode-se ler, no preâmbulo do DL nº 53/04, de 18.3, que aprovou o C.I.R.E., as seguintes considerações: “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica.
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.
Esclareça-se que a aplicação deste regime é independente da de outros procedimentos extrajudiciais ou afins destinados ao tratamento do sobreendividamento de pessoas singulares, designadamente daqueles que relevem da legislação especial relativa a consumidores.”
A exoneração do passivo restante não tem, pois, como principal fim a satisfação dos credores da insolvência, tal como o previsto no artigo 1º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – embora, reflexamente, não esqueça por completo esses interesses, na medida em que são impostos apertados limites para a sua admissão (1).
Trata-se pois de um regime inovador pelo qual se faculta aos devedores pessoas singulares a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não sejam integralmente pagos no respectivo processo ou nos cinco anos posteriores ao seu encerramento. Visa-se com esta medida, conceder ao devedor um fresh start, permitindo-lhe recomeçar a sua actividade, sem o peso da insolvência anterior (2).
Assenta este na ideia de que quem passou por um processo de insolvência aprende com os seus erros e terá no futuro um comportamento mais equilibrado no plano financeiro.
Sendo admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, nos termos do art. 239º, nºs 1 e 2, do CIRE, no qual determinará que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, denominado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário para os fins do art. 241º (pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida; reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas; pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efectuadas; distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência).
No final do período da cessão, será então proferida decisão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência (cfr. art. 244º) e, sendo a mesma concedida, dar-se-á, de acordo com o art. 245º, a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, salvaguardando-se, contudo, os que vêm referidos no nº 2 deste último preceito (3).
Por seu turno, o art. 239º, nº 2, estabelece que «o despacho inicial determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado período de cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores de insolvência, nos termos e para os efeitos do artigo seguinte.»
Depois, no nº 3 do mesmo preceito estatui-se que «integram o rendimento disponível os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a)dos créditos a que se refere o art. 115 cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) do que seja razoavelmente necessário para: (i) o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; (ii) o exercício pelo devedor da sua actividade profissional; (iii) outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.».
A decisão deste recurso prende-se reflexamente com a interpretação a dar ao preceituado no art. 239º, nº 3, al. b), i), para efeitos de fixação do montante excluído do rendimento disponível - o qual foi arbitrado na sentença em 700,00€ - e primordialmente com a objectivação do seu apuramento, tendo em conta o relatório da Srª fiduciário de 30.11.2020, conforme materialidade fáctica supra mencionada no ponto III-1.2
A exclusão que aqui se aprecia, consignada na subalínea i), trata-se da resposta natural, forçosa e obrigatória às necessidades e exigências que a subsistência e sustento colocam ao devedor insolvente.
Na definição da amplitude do rendimento disponível, «fosse qual fosse a técnica legislativa utilizada, sempre teria que ficar de fora do “rendimento disponível” a ceder uma parte do rendimento do devedor/insolvente; parte essa suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a sua existência» (4).
Esta exclusão surge, aliás, como uma exigência do princípio da dignidade humana, contido no princípio do Estado de Direito, afirmado no art. 1º da Constituição da República e a que se alude na al. a) do nº 1 do art. 59º do mesmo diploma fundamental, a propósito da retribuição do trabalho.
O reconhecimento do princípio da dignidade humana exige do ordenamento jurídico o estabelecimento de normas que salvaguardem a todas as pessoas o mínimo julgado indispensável a uma existência condigna.
Como se escreveu no Acórdão da Relação do Porto de 24.01.2012 (5), «[a] função interna do património, de que decorre a exclusão prevista na subalínea i), mais não representa do que uma aplicação prática daquele princípio supra-constitucional e enquanto alicerce da existência digna das pessoas – suporte da sua vida económica – reflecte-se em diversas normas da legislação ordinária, designadamente em normas destinadas a conferir justo e adequado equilíbrio entre os conflituantes interesses legítimos do credor (a obtenção da prestação) e os interesses do devedor (o direito inalienável à manutenção de um nível de subsistência condigno), do que são exemplos o art. 239º, nº 3, al. b), i) e o art. 824º, nºs 1 e 2 do Cód. do Proc. Civil» (6).
O rendimento disponível, nos termos do disposto no artº 239º nº3 CIRE, é integrado pelos rendimentos que advenham por qualquer título ao devedor, com exclusão daquilo que “seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, 3 vezes o salário mínimo nacional”.
Este rendimento excluído da cessão – correctamente designado como “rendimento indisponível” – encontra-se assim caracterizado como a parte suficiente e indispensável a poder suportar economicamente a existência do devedor; por forma exemplificativa, a norma legal indica tal limite de sobrevivência como não podendo exceder 3 vezes o salário mínimo nacional, salvo decisão judicial em contrário, naturalmente fundamentada, como o deve ser qualquer decisão judicial.
Certo é também que, visando o processo falimentar a execução universal do património do devedor e a satisfação tanto quanto possível integral dos direitos dos credores, a interpretação relativamente ao montante devido a título de rendimento indisponível, nos casos concretos, deve obedecer aos critérios interpretativos e ao princípio constitucional da “proibição do excesso” (artº 18º nº2 CRP), traduzindo-se, tanto quanto possível em adequação (isto é, apropriação ao caso), necessidade e proporcionalidade (justa medida) – assim, Gomes Canotilho, Direito Constitucional, Coimbra, 3ª ed., pgs. 428ss.

Volvendo ao caso concreto, temos que a sentença fixou o rendimento, dito indisponível, “no equivalente a € 700,00, que se considera ser o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade”, não se fazendo nela qualquer referência ao valor do salário mínimo garantido ou à sua periocidade.
Colocou-se aí, sim, a tónica de que esse valor é o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade ao devedor.
Ademais, os diversos diplomas que fixam, cada ano, o valor do salário mínimo nacional, como seja o recente o Decreto-Lei n.º 109-A/2020, de 31 de Dezembro, referem-se “ao valor que fixa a retribuição mínima mensal garantida”.
Ou seja, aquilatando dos argumentos acima aduzidos, o apuramento do rendimento disponível a ceder ao fiduciário há-de ter em conta preliminarmente que, no caso concreto, esteja garantido o rendimento ’indisponível’ ao devedor fixado de 700,00€, enquanto valor de sustento minimamente digno.
Daí que, no caso sub judice, deva atender-se ao valor anual (diferença entre o rendimento global auferido pelo insolvente e o montante anual fixado como ‘indisponível’), e não mensal, como única forma de ser assegurado que, durante o período de cessão de rendimentos, o devedor usufrui daquele valor - 700,00€ - de sustento digno que lhe foi fixado.
É que (a dignidade de) tal sustento mínimo impõe-se dia a dia (durante cada um dos meses e ao longo do ano) e não se compadece com a fórmula matemática do seu apuramento mensal que na prática lhe cerceia o real rendimento ‘indisponível’ fixado de 700,00€, ao longo do período de cessão do rendimento disponível.
Além disso, está em causa o exercício da sua tutela efectiva, de forma a garantir ainda situações de baixa por doença, em que há, em regra, uma diminuição do salário, sendo certo que in casu o seu valor-base coincide com os ditos 700,00€.
Está, assim, em causa também o princípio da equidade na aferição e distribuição dos rendimentos, face ao instituto da cessão do rendimento disponível e sua exclusão, ante o circunstancialismo concreto, mormente a invocada situação de baixa por doença na qual os rendimentos do devedor diminuíram mensalmente e abaixo dos fixados 700,00€.
Situações similares de redução dos rendimentos com intermitência não necessariamente mensal, ocorrem com base no ‘lay-off’, trabalho temporário ou ocasional, trabalho independente ou de prestação de serviços (cujos rendimentos são percebidos conforme facturação dos serviços prestados, frequentemente sem periocidade mensal), o que contribuem para o cercear do montante fixado de sustento mínimo, à luz de um apuramento rígido, de mês a mês, dos rendimentos auferidos.
Tudo isto, sem se descurar que as regras contabilísticas e fiscais de apuramento do rendimento têm por base um cálculo anual, v.g. em sede do imposto de ‘IRS’.
Ou seja, o período de referência do rendimento disponível, para efeitos de cálculo do valor a ceder, deverá ser calculado numa base anual (de ano civil e fiscal) para que seja possível assegurar a existência todos os meses do valor que foi estabelecido como sendo o quantum indispensável para a sobrevivência do insolvente e seu agregado familiar.
Isto porque nem do apontado artº 239º, nºs 2 e 3, do CIRE, nem da sentença que fixou o referenciado valor de 700,00€, como rendimento ‘indisponível’, decorre que o apuramento do rendimento disponível a ceder obedeça a um cálculo puramente mensal.
Aliás, no apontado nº 2 refere-se unicamente ao rendimento disponível que o devedor venha a auferir durante o período da cessão, isto é, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência.
Não estabelece uma periocidade mensal para o apuramento da cessão do rendimento disponível.
Tão pouco a estabelece os artº 240º, nº2 e 241º, nº 1, ambos do CIRE.
Ao invés, impõem ao fiduciário o envio anual do relatório relativo à cessão de rendimentos e afectação, no final de cada ano, do montante recebido.
Também não colhe a argumentação de que o salário é pago com a periodicidade mensal e de que uma das obrigações do devedor é a de entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão, para afastar o seu apuramento com base em periocidade anual, como defendido.
O que importa salvaguardar, isso sim, é que seja assegurado efectivamente ao devedor o valor fixado judicialmente de sustento mínimo durante todo o período de cessão.
E, como constatado, só o seu cômputo com base numa matriz anual assegura tal escopo, salvaguardando-se os princípios constitucionais de equidade, confiança e tutela efectiva.
Deste modo, tratando-se de problemática em que a jurisprudência não é uniforme, pelas considerações expostas sufraga-se o entendimento plasmado nos Acórdãos do TRP de 22.05.2019, proc. 1756/16.4T8STS-D.P1 e de 01.03.2021, proc. 1784/19.8T8STS.P1; do TRL de 22.09.2020, proc. 6074/13.7TBVFX-L1-1, e no Acórdão do TRE de 17.01.2019, proc. 344/16.0T8OLH.E1, não se acompanhando a posição defendida nos Acórdãos do TRC de 22.10.2019, proc. 2455/11.9TJCBR.C1, e do TRG de 14.05.2020, proc.4225/18.4T8GMR-D.G1 (este, com voto de vencido no sentido aqui acolhido).

Por tudo o expendido, revoga-se o despacho recorrido, devendo a Srª fiduciária reformular o relatório anual apresentado em 31.11.2020, tendo em conta o apuramento anual dos rendimentos do devedor nos termos sobreditos.

Procede, assim, a apelação.

III. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido e determinando-se que a Srª fiduciária reformule o relatório anual apresentado em 31.11.2020, tendo em conta o apuramento anual dos rendimentos do devedor nos termos sobreditos.

Sem custas.
Guimarães, 22.04.2021


1. Veja-se o acórdão do STJ de 21-10-2010, proc. nº 850/09.9TBVLG-D.P1.S1, in dgsi.pt.
2. Luís Menezes Leitão, CIRE Anotado, 4ª ed. págs. 236/7.
3. Refere-se este nº 2 aos créditos por alimentos – a), às indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade – b), aos créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações – c) e aos créditos tributários – d).
4. Cfr. Ac. RP de 15.07.2009, proc. 268/09.7 TBOAZ-D.P1, in www.dgsi.pt.
5. Proc. 1122/11.8TBGDM-B.P1, in www.dgsi.pt.
6. Nesta última norma consagra-se a impenhorabilidade de dois terços dos vencimentos, salários ou prestações de natureza semelhante, auferidos pelo executado [nº 1, a)], bem como de dois terços de prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante [nº 1, b)].