Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
707/17.3T8GMR.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: ESTABELECIMENTO COMERCIAL
TRESPASSE
FORMA
NULIDADE DO NEGÓCIO
RESPONSABILIDADE PRÉ-CONTRATUAL
QUESTÃO NOVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/14/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.º SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. Para se estar perante um trespasse é mister que o objeto da transmissão se possa considerar um estabelecimento comercial, mas nada obsta que não sejam transmitidos todos os elementos que o compunham.

2. Desde que, observado o transmitido, ainda se verifique claro que o que foi transferido para a esfera patrimonial do adquirente foi o conjunto de elementos organizado para a exploração da atividade económica em que se traduz o estabelecimento comercial, não há qualquer razão para afastar a sua transmissão do conceito de trespasse.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

A Autora pediu a condenação da Ré a pagar-lhe:

.a) a quantia de 3.000,00 €, entregue pela Autora na execução do contrato celebrado com a Autora, depois de ser reconhecida judicialmente a resolução do contrato operada pela Autora;
.b) a quantia de 1.590,00 € a título de indemnização pelos danos patrimoniais e
.c) a quantia de 1.000,00 € a título de compensação pelos danos morais infligidos pela Ré à Autora.
subsidiariamente
a condenação da ré no pagamento da quantia de 3.000,00 € com base no enriquecimento sem causa, tudo acrescido de juros moratórios à taxa legal desde a citação até integral pagamento.

Alegou para tanto, em síntese,

acordou com a R. adquirir-lhe o estabelecimento de estética de que esta era proprietária, e que funcionava em espaço arrendado pela demandada, pelo preço de €5.000, a pagar fracionadamente (€2.000 com a outorga do contrato e o remanescente de forma faseada, dependente dos rendimentos que viesse a auferir); posteriormente a esse acordo, e a pedido da R., anuiu a que esta explorasse no mesmo espaço onde se encontrava instalado o estabelecimento de estética um estabelecimento comercial de venda de vestuário (pronto-a-vestir), ficando ambas responsáveis pelo pagamento da renda do locado bem como das despesas referentes aos consumos de água, electricidade, internet e alarme, na proporção de metade cada uma. Por conta do preço convencionado entregou à Ré €2.000 em 17.04.2016 e €1.000 em 19.04.2016, a qual lhe entregou as chaves do locado.

Após ter recusado pagar à Ré, em julho de 2016 o pagamento do remanescente do preço, por não ter ainda capacidade financeira para o fazer, a Ré em 20.07.2016, substituiu a fechadura da única porta que permite o acesso ao locado, sem nada lhe dizer, e impediu-a de, a partir dessa data, aceder ao espaço e abrir o seu estabelecimento comercial. Por esse motivo, por carta datada de 01.08.2016, a Autora procedeu à resolução unilateral do contrato, reclamando a devolução dos €3.000 que tinha pago à R. a título de preço.

Na contestação, em súmula,

a Ré negou ter tido alguma vez a intenção de trespassar o estabelecimento, mas aceitou, para a ajudar, que a Autora permanecesse no espaço comercial, o que seria compensado com o valor de 5.000,00 a pagar pela Autora à Ré, paulatinamente. A Autora desinteressou-se do negócio, furtou materiais ali existentes e rasgou folhas da agenda de marcações, com prejuízos para o negócio.
Deduziu reconvenção, que sofreu convite a aperfeiçoamento, satisfeito, pedindo o valor dos produtos furtados e valor desses prejuízos sofridos o negócio e pede a condenação da Autora como litigante de má-fé.

Tendo-se procedido a julgamento, veio a ser proferida sentença com a seguinte decisão:

-- Declarar nulo, por falta de forma, o contrato de trespasse celebrado entre A. e R. tendo por objecto mediato o estabelecimento comercial dedicado à prestação de serviços de estética e cuidados de beleza e que girava comercialmente sob a denominação "ESPAÇO AP";
-- Condenar a R. na restituição à A. da quantia de €3.000 (três mil euros);
-- Condenar a A. na restituição à R. dos objectos não devolvidos após 21.07.2016 (ou o respectivo valor), a apurar em incidente de liquidação, com o limite de 2 brocas, com um valor unitário de €120, 2 ponteiras, com um valor unitário de €80, 3 primários de gel, com um valor unitário de €24;
-- Absolver a R. do mais peticionado pela A. no âmbito da acção principal;
-- Absolver a A. do mais peticionado pela R. no âmbito da acção reconvencional;
-- Absolver a A. como litigante de má fé;
-- Condenar a R. como litigante de má fé em multa que se fixa em 7 (sete) UC e indemnização a favor da A. correspondente às despesas a que a obrigou, incluindo os honorários do seu mandatário, a fixar por despacho ulterior.”

O presente recurso de apelação foi interposto pela Ré, pugnando pela improcedência da ação, com a alteração da matéria de facto provada e diversa aplicação do direito.
Formula as seguintes conclusões:

1. Vem o presente recurso interposto da douta decisão proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Cível de Guimarães – Juiz 3, no Processo nº 707/17.3T8GMR, a qual, considerando que o “acordo verbal/negócio” celebrado entre a Autora e a Ré no âmbito da cedência/partilha, embora restrita a determinada parte do espaço comercial da titularidade da Ré, configura um verdadeiro “contrato de trespasse” celebrado entre as partes litigantes e, uma vez que tal acordo/contrato assim considerado pelo Tribunal a quo padece de vício em termos formais, tal contrato seria nulo e,
Consequentemente,
2. Decidiu condenar a Ré a restituir à Autora a quantia de €3.000,00, inicialmente recebida pela Ré, a título de uma parte do preço globalmente estabelecido para o negócio - €5.000,00.

Mais decidiu o Tribunal a quo, de entre o mais,

3. Absolver a Autora do pedido reconvencional deduzido pela Ré.
4. Condenar a Ré como litigante de má-fé, numa multa de sete UC’s, acrescida de indemnização à Autora por despesas e honorários do seu Mandatário.
Vejamos,
5. Decorre do despacho saneador elaborado nos autos e consta da douta sentença por referência em “II – Saneamento”, são questões essenciais a decidir nos presentes autos as seguintes, que se transcrevem com a devida vénia:
Da celebração, entre A. e R. de um contrato de compra e venda de um estabelecimento comercial (de estética);
Da validade desse contrato; na negativa, efeitos; na afirmativa,
Da eficaz resolução do mesmo e respectivos efeitos.
Da litigância de má fé de A. e R.

Assim sendo,

6. Para decidir o litígio em causa entre as partes, o Tribunal a quo, teria, em primeiro lugar, de averiguar da existência de um “aventado” contrato celebrado entre as partes;
7. Na eventualidade da existência desse contrato, a sua validade e ou invalidade e depois, sim, decidir quanto às inerentes consequências daí advindas.

Matéria de facto dada como provada:

Transcrevendo da douta sentença:

1. DOS FACTOS

1.1. Factos Provados

Com relevo para a boa decisão da causa, provados estão os seguintes factos:

a) A R. é empresária em nome individual e dedica-se (ou dedicava-se) com intuito lucrativo e, por forma habitual e sistemática, à atividade de estética, cuidados de beleza e afins, tendo a correspondente formação profissional para o efeito;
b) Em data não concretamente apurada mas posterior a Maio de 2014, a R. abriu e ficou proprietária de um espaço comercial que girava comercialmente sob a denominação "ESPAÇO AP" e que tinha por objeto a prestação de serviços de estética e cuidados de beleza;
c) O espaço referido em b) foi instalado em imóvel tomado de arrendamento pela R., sito na Rua …, da freguesia de … e concelho de Guimarães, por cujo gozo a R. pagava uma renda mensal de €250;
d) Em inícios do ano de 2016 a R. resolveu vender o espaço comercial referido em b), por lhe ter sido diagnosticado um problema de saúde decorrente de uma alergia a todo e qualquer produto de estética;
e) Em Abril de 2016 A. e R. acordaram verbalmente em que esta venderia àquela, pelo preço de €5.000, o espaço comercial referido em b);
f) A A. entregou à R. em Abril de 2016, por conta do preço referido em e), a quantia de €3.000, tendo ficado convencionado que o remanescente seria pago à medida das possibilidades da A.;
g) Após o referido em e), mas ainda em Abril de 2016, a R. propôs à A. a partilha do locado onde se encontrava instalado o espaço comercial vendido, de forma a ali instalar, adicionalmente, uma loja de pronto-a-vestir, que seria por si explorada, ficando a A. a explorar a loja de estética;
h) Para efeitos do referido em g), o espaço destinado à A. seria transferido para a parte interior/traseira do imóvel e o espaço de pronto-a-vestir ficaria instalado na parte frontal da loja, com montra virada para a rua principal, ficando A. e R. responsáveis pelo pagamento conjunto, na proporção de metade cada uma, do valor da renda do imóvel, bem como das despesas de água, luz, internet e alarme;
i) A A. aceitou a proposta referida em g) e h);
(negrito e sublinhado nossos)
8. Como se verifica da matéria de facto dada como provada supra transcrita, o Tribunal a quo considerou que a Ré é empresária – facto enumerado em 1.1. a), explorando por sua conta e risco um determinado estabelecimento (espaço) comercial instalado num imóvel arrendado – factos enumerados em 1.1. b) e c).
9. No início do ano de 2016, a Ré resolveu vender o espaço comercial – facto 1.1.d).
10. Em Abril de 2016, a Autora e a Ré acordaram verbalmente em que esta venderia àquela, pelo preço de €5.000,00, o espaço comercial em questão – facto 1.1. e).
11. Em Abril de 2016, a Autora entregou à Ré a quantia de €3.000, 00, “por conta do preço”.
12. Em Abril de 2016, a Ré propôs à Autora a partilha do locado onde se encontrava o espaço comercial vendido – facto 1.1. g).
13. A Autora aceitou a partilha do espaço comercial da Ré – facto 1.1. i).
Como decorre da matéria de facto dada como provada em referência, dúvidas não restam que o objeto do negócio celebrado entre Autora e Ré é um “estabelecimento comercial”.
14. O estabelecimento comercial é um conjunto de coisas, corpóreas e incorpóreas, devidamente organizado para a prática do comércio – cfr. A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Lex, Reprint págs. 117 a 120; Barbosa de Magalhães, Do Estabelecimento Comercial, 2ª ed., 1964 e Fernando Olavo, Direito Comercial, I, 2ª ed., 1979, pág. 259.
15. “O estabelecimento comercial, envolve um conceito normativo, cuja identidade se revela através da funcionalidade económica e destino comercial, industrial ou agrícola, de prestação de serviço, ou outro fim empresarial lícito como objeto negocial de livre circulabilidade como individualidade de direito, e diferente da soma atomística das partes dos seus valores componentes” – cfr. Ac. STJ, datado de 18-04-2002, Proc. 02B538 (Neves Ribeiro). (sublinhado nosso)
16. O estabelecimento comercial, embora contendo uma universalidade de bens como unidade económica que é, constitui uma unidade jurídica. Enquanto universalidade, o estabelecimento comercial não pode nunca ser decomposto, atomizado, nos seus elementos componentes.
17. É esta unidade jurídica, a unidade individualizada de direito (estabelecimento comercial), que está em causa nos autos.
Estabelecido, concretizado, o objeto do negócio celebrado entre as partes – o estabelecimento comercial “o espaço comercial AP”, cabe agora, definir o “compromisso” assumido por Autora e Ré.
18. O Tribunal a quo, mediante a matéria de facto dada como provada, configurou juridicamente a relação comercial estabelecida entre a Autora e a Ré, a alegada “venda” do estabelecimento comercial como um “contrato de trespasse” do estabelecimento comercial em causa.
Porém, com o devido respeito, erradamente.
Senão vejamos,
19. O aferido espaço comercial, “ESPAÇO AP”, é um estabelecimento comercial – ponto assente – facto 1.1. b).
20. Como estabelecimento comercial que é – unidade jurídica, unidade individual de direito, apenas poderá ser objeto de comércio jurídico como unidade, no seu todo.
Ora,
21. A verdade é que, Autora e Ré, continuaram “a partilhar” tal espaço comercial – cfr. pontos assentes – facto 1.1. g) e facto 1.1. i).
Refere a douta sentença que “…entre demandante e demandada foi celebrado um contrato de trepasse…”
Porém, na verdade e como consta da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal,
22. Demandante e demandada, na terminologia do Tribunal a quo, continuaram a partilhar o espaço comercial – pontos 1.1. g) e i).

Com o devido respeito,

23. Se a Ré “trespassou” o estabelecimento comercial de que é proprietária, não pode continuar a explorar o dito espaço comercial, mesmo “partilhando-o”.
De facto,
24. A Ré apenas “cedeu” à Autora, determinado espaço/uma parte do “seu” estabelecimento comercial para que a Autora pudesse ali instalar-se e, conjuntamente com ela, explorasse o dito estabelecimento comercial.

Aliás,
Resulta ainda dos factos dados como provados:

25. Autora e Ré comprometeram-se ainda a “partilhar” a renda e as despesas do estabelecimento comercial “…na proporção de metade…” cfr. – pontos assentes – factos 1.1. h) e j).
Mal andou o Tribunal a quo, perante a matéria de facto dada como provada, ao enquadrar o “negócio” verbalmente acordado entre as partes na figura jurídica de “trespasse comercial”.
Pelo contrário,
26. Não sofre qualquer dúvida a qualificação jurídica do contrato sob análise. Trata-se, efetivamente, de um “contrato de cedência/partilha de parte da exploração de estabelecimento comercial”, através do qual o titular do estabelecimento (a Ré) cedeu a outrem (a Autora), a título oneroso, a fruição “partilhada” do espaço comercial denominado “ESPAÇO AP”.
27. Autora e Ré firmaram, como resulta da matéria de facto dada provada pelo Tribunal, um mero acordo verbal, oneroso, um negócio inominado, atípico.
28. O Tribunal a quo, porém, decidiu enquadrar juridicamente o citado “acordo verbal de partilha” do espaço comercial celebrado entre a Autora e a Ré como se se tratasse de um típico “contrato de trespasse”.
Com o devido respeito, sem razão.
29. O trespasse é a transmissão definitiva e unitária de um estabelecimento comercial.
30. O Tribunal a quo, face à matéria que considerou provada, nunca poderia enquadrar a relação jurídica estabelecida entre as partes no tipo de contrato “trespasse” de estabelecimento comercial, uma vez que a relação comercial estabelecida não assumiu, como se comprovou, uma total eficácia transmissiva.
31. Decorre da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal que o alegado acordo verbal de venda/partilha do espaço comercial celebrado entre as partes é um verdadeiro contrato; porém, sempre e apenas se poderá considerar um contrato atípico/inominado contrato.
32. Os contratos atípicos não estão, como regra, sujeitos a forma.
33. É que uma das consequências da “atipicidade” deste tipo de contratos é, precisamente, a não aplicação das exigências de forma.
Porém, mesmo assim,
34. Atenta a evidente “atipicidade” do acordo celebrado entre Autora e Ré, tal acordo verbal/contrato celebrado entre a Autora e a Ré é, mesmo desprovido de forma legal, válido.
35. O contrato celebrado entre a Autora e a Ré é plenamente eficaz e válido interpartes, até porque elas não o puseram sequer em crise.
Aliás, como resulta da matéria de facto dada como provada,
36. Foi a Autora que incumpriu o acordo celebrado com a Ré, recusando-se a liquidar a parte restante do preço (€2.000,00) acordado para a cedência (parte) do espaço comercial que iria ocupar no estabelecimento comercial – cfr. ponto 1.1. j) dos factos considerados provados pelo Tribunal.
Mais,
37. A Autora resolveu o contrato – cfr. ponto 1.1. n) dos factos dados como provados.
Ora,
38. O pedido de resolução efectuado por parte da Autora, além de infundado, é absolutamente abusivo.
E, nessa posição,
39. As partes são responsáveis civilmente pelas consequências nefastas na elaboração de um contrato, mesmo em sede pré-negocial, por maioria de razão terão de ser responsabilizadas pelas consequências negativas do rompimento dos contratos já celebrados.
Como foi o caso,
40. A declaração de uma nulidade formal, como, com o devido respeito, erradamente, o Tribunal a quo decidiu, em contraposição à matéria dada como provada, no presente caso e nestas condições, é completamente desvirtuadora do sentido da lei.
Aliás,
41. Sempre o Tribunal o poderia conhecer oficiosamente.
Porém,
42. No caso sub judice, efectivamente, não foram as partes que levantaram tal questão, é estranho que o Tribunal a quo se sobreponha aos interessados, quando as partes até reclamam indemnizações uma da outra, por imputação de factos, invectivando responsabilidade de parte a parte, quanto ao rompimento contratual.
43. Muito menos tenha o Tribunal a quo enveredado por uma classificação como “contrato de trespasse” de estabelecimento comercial, como erradamente foi classificado o acordo/verbal firmado pelas partes, em concreto.
44. Não se verifica, em consequência, a nulidade contratual assim decretada pelo Tribunal a quo, face a uma “arbitrária” classificação do acordo verbal celebrado entre a Autora e a Ré, que nem as próprias partes sequer aventaram em sede de demanda judicial, e que se rejeita liminarmente.
Assim sendo,
45. Como é pacífico, os próprios litigantes o aceitam, a questão de direito que se coloca nos autos é a de saber se a actuação da Autora e ou da Ré, à luz da lei civil, configuram uma situação de responsabilidade pré-contratual e ou mesmo negocial, com obrigação de indemnizar, ou seja, aferir se foi ou não violado o disposto no artigo 227º, nº1, do Código Civil.
46. De acordo com este preceito, e no que ao caso em apreço diz respeito, temos que a violação da obrigação de iniciar e ou prosseguir negociações de antemão destinadas ao malogro, criando-se, dessa forma, à contraparte, uma confiança e expectativa legítimas, cuja frustração se apresente susceptível de lhe causar prejuízos injustos, como foi o caso – a Autora criou na Ré a expectativa do negócio, que rompeu unilateralmente.
Mais,
47. A violação das regras da boa fé negocial/contratual, como foi o caso do comportamento da Autora - a parte responsável pela ruptura negocial, responde em tal condicionalismo pelos danos que culposamente causar, entendendo-se5 que esses danos são, não só os emergentes, como os lucros cessantes.
48. A Autora, sem que ninguém a obrigasse, decidiu assumir uma conduta eticamente censurável, por ofensiva do princípio da boa fé e desrespeitadora da confiança gerada na outra parte na conclusão do negócio, para que se determinou e aprestou na perspectiva de um lucro divisado.
49. Sendo a conduta da Autora inaceitável perante o direito constituído, integra um comportamento ilícito, por presumidamente culposo.
Destarte, a Ré por se sentir lesada com o comportamento da Autora,
50. Respondeu, em sede judicial, deduzindo pedido reconvencional.
51. A reconvenção traduz-se numa modificação do objecto da acção e consiste na formulação de um pedido substancial ou pretensão autónoma por parte da Ré contra a Autora.
52. Para que tal seja lícito é necessária a verificação de determinados requisitos processuais e objetivos ou substantivos, traduzindo-se estes num certo nexo do pedido reconvencional com a acção ou com a defesa.
53. Nos termos da alínea a), nº 2, do artigo 266.° do C.P.C., a reconvenção é admissível quando pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa.
54. Através da Reconvenção deduzida, a Ré/Reconvinte pretende, entre outras motivações, que se demonstre que o pedido da Autora é absolutamente improcedente e que a Autora tinha a obrigação de o saber antecipadamente à propositura da presente acção.
55. Daqui resulta a indispensável conexão entre os factos invocados como causa de pedir na acção, defesa e reconvenção, sendo que o pedido nesta última formulado emerge de factos jurídicos que servem de fundamento à defesa, visando, entre outros propósitos, a extinção do efeito pretendido pela Autora.
56. Verifica-se, assim, conexão suficiente para que se mostre "in casu" preenchido, relativamente ao pedido reconvencional, o requisito substantivo previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 266.° do C.P.C., que permite a reconvenção quando o pedido da Ré emerge do facto jurídico que serve de fundamento à sua defesa.
57. É que, quando se exige que a reconvenção tem de emergir de facto jurídico que serve de fundamento à defesa, está-se a considerar a defesa permitida processualmente, isto é, toda a defesa a que se reporta o art. 573.° do C.P.C., apenas nela não cabendo a invocação de factos que se apresentem como totalmente alheios aos alegados na ação, o que não é, manifestamente, o caso aqui "subjudice".
58. Os factos alegados pela Ré, ora Recorrente, estão enquadrados, de forma estrita, na causa de pedir e pedido da ação.
59. Devendo o pedido reconvencional assim deduzido pela Ré ser considerado procedente, com inerente condenação da Autora por má fé processual.
A sentença do Tribunal a quo, embora douta, violou as normas nela ínsitas, nomeadamente, o disposto nos artigos 224º, 227º, 286º, 406º, 483º, 562º a 564, nº 1, 798º, 799º, nº 2, 801º, nº 1, e 1112º, todos do C.Civil; o disposto nos artigos 542º, 543º e 615º, nº 1, alíneas c), d) e e), todos do C. Processo Civil.
Pelo que,
60. O Tribunal, face à matéria que considerou como provada, nunca poderia decidir como decidiu, partindo do pressuposto jurídico de classificar o “acordo/negócio” celebrado entre a Autora e Ré, enquadrando tal “negócio”, “oficiosamente”, num contrato designando-o como “trespasse” de estabelecimento comercial, não só por falta de objeto, mas mesmo “ultrapassando oficiosamente” a litigância das partes interessadas.

CONCLUINDO,

A decisão do Tribunal “a quo”, com o devido respeito, é surpreendentemente contrária à prova produzida nos Autos, que não apreciou corretamente.
A sentença, embora douta, é por isso NULA, violando todas as normas legais e processuais aplicáveis, nomeadamente, o disposto nos artigos 224º, 227º, 286º, 406º, 483º, 562º a 564, nº 1, 798º, 799º, nº 2, 801º, nº 1, e 1112º, todos do Código Civil; o disposto nos artigos 542º, 543º e 615º, nº 1, alíneas c), d) e e), todos do C. Processo Civil.

Termos em que, nos melhores de Direito, sempre com o mui douto suprimento de V. Exªs, em face de tudo o que ficou expresso, deverá esse Venerando Tribunal dar provimento ao Recurso e, em consequência:

1. Revogar a decisão recorrida, dada a violação das normas referidas e as nela contidas, declarando-a NULA, e, consequentemente:
2. Face ao conhecimento de todas as questões ora suscitadas, deverá ser declarado que:

-- O acordo verbal/negócio/contrato celebrado entre Autora e Ré é um contrato atípico/inominado, uma vez que “o acordo” celebrado entre a Autora e Ré apenas se destinava a “partilhar” o espaço comercial designado por “AP”, nunca a “trespassar” o estabelecimento comercial no seu todo, como unidade jurídica que é;
-- Que tal “acordo de partilha” do estabelecimento comercial, por não ser um verdadeiro contrato de “trespasse”, mas sim um contrato atípico/inominado, não carece de forma;
-- Que o incumprimento do alegado contrato celebrado entre Autora e Ré se deve a culpa exclusiva da Autora, a qual se recusou a pagar parte do preço inicial acordado (€5.000,00), no montante de €2.000,00.7
-- Devendo a Autora ser condenada a pagar à Ré as quantias reclamadas em sede de Reconvenção, por justificadamente alegadas nesse âmbito, atento o incumprimento contratual da Autora.

Foram apresentadas contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido com as seguintes conclusões:

I. Nas suas alegações de recurso, a Recorrente A. P. insurge-se quanto à douta sentença, discordando da aplicação do direito. Alega ainda a Recorrente que a sentença sob sindicância enferma dos vícios enunciados nas alíneas c), d) e e) do artigo 615.º do CPC.
II. Porém, como vermos, não assiste razão à Recorrente, pelo que a decisão em sindicância deve manter-se.
III. A Recorrente, no presente recurso, tenta tirar ilações que não se mostram consentâneas com a prova produzida em audiência, mormente se atendermos ao depoimento de parte da própria Recorrente, que permite um único e inequívoco enquadramento jurídico da questão.
IV. Inexistem motivos para considerar que a sentença em crise errou na qualificação do acordo/negócio/contrato celebrado pelas partes.
V. De acordo com a prova produzida em audiência, os factos subjacentes ao negócio celebrado e ao contrato efetivado entre as partes estão perfeitamente estabilizados.
VI. Nessa medida, não restam dúvidas que Recorrente e Recorrida celebraram um contrato cujo respetivo objeto foi a compra e venda de um estabelecimento comercial de estética. E nos termos desse contrato a Recorrente transferiu para a Recorrida a propriedade e a posse do estabelecimento comercial de estética, tudo a título definitivo, livre de passivo e com todos os elementos que o integravam, nomeadamente dos equipamentos de estética. Por seu turno, a Recorrida obrigou-se ao pagamento do preço para a predita compra e venda.
VII. As teses que a Recorrente vai/foi jorrando nos autos para o negócio em exame mostram-se contraditórias e desprovidas de sentido.
VIII. A Recorrente, numa primeira fase, recusa a existência de qualquer negociação contratual para, depois, vir dizer que se tratou de um negócio cuja concretização se malogrou, como, a final, fala na efetivação de um negócio atípico, cujas premissas não seguem concretamente determinadas, mas que, no geral, muito se afastam das vontades exteriorizadas pelas partes, bem como, das condutas assumidas na execução do negócio.
IX. Certo é que a partir da concretização do negócio não mais teve a Recorrente qualquer participação na gestão do estabelecimento de estética, realidade a que sempre se mostrou alheia e desinteressada.
X. A Recorrente, convenientemente, volta a confundir o conceito de "locado" (na aceção do imóvel arrendado em que se encontra instalado o estabelecimento comercial de estética) e o estabelecimento comercial propriamente dito, que são conceitos completamente distintos e que tem uma natureza jurídica diferente.
XI. A proposta para partilha do locado a que a Recorrida anuiu é completamente diferente da partilha do estabelecimento comercial de estética.
XII. Ao contrário do que se tenta trespassar, Recorrente e Recorrida não passaram a "partilhar/comungar" do mesmo estabelecimento comercial, outrossim, a Recorrente dedicou-se ao estabelecimento de pronto a vestir e a Recorrida dedicou-se ao estabelecimento de estética, dois estabelecimentos que funcionavam num mesmo imóvel mas em espaços físicos distintos e demarcados, com gestão autónoma e independente, cada um com a sua individualidade e unidade económica própria, ficando o negócio de estética sob o domínio exclusivo da sua proprietária (a aqui Recorrida), e o estabelecimento de pronto a vestir sob a alçada, direção e gestão da Recorrente.
XIII. Por outro lado, a versão inicialmente carreada pela Recorrente, no sentido que o estabelecimento de estética compreendia também a atividade de pronto a vestir, revelou-se uma falsidade, um logro edificado pela Recorrente para impedir uma incontroversa realidade: a existência de dois estabelecimentos autónomos e independentes entre si
XIV. Por fim, o contrato invocado pela Recorrente - "contrato de cedência de parte/parcial da exploração de estabelecimento comercial" –, esse sim, não se mostra minimamente identificado ou delimitado.
XV. A própria Recorrente não é capaz de explicar os traços cateterísticos do sobredito contrato, designadamente as obrigações dele decorrentes, tais como, o preço, a duração da cedência, o objeto, as relações entre cedente e cessionária na gestão do estabelecimento, entre outros.
XVI. Seria ainda importante perceber qual a parte ou parcela do estabelecimento comercial que a Recorrente alegadamente cedeu à Recorrida, o que não se mostra igualmente articulado.
XVII. Relativamente à natureza do negócio celebrado entre as partes, o Tribunal "a quo" justificou muito bem a sua decisão, fazendo uma correta interpretação e análise da prova documental e testemunhal, identificando plenamente o contrato verbal de trespasse, não merecendo a decisão quaisquer reparos, impondo-se por si.
XVIII. Prosseguindo, dúvidas não restam que Recorrente e Recorrida convencionaram no fito da transmissão definitiva do estabelecimento comercial de estética, o que implicou a transferência para a Recorrida da propriedade do estabelecimento comercial de estética.
XIX. Ora, tendo o aludido contrato sido celebrado verbalmente, não estão in casu preenchidos os pressupostos formais, pelo que o contrato celebrado entre Recorrente e Recorrida está subjugado aos efeitos da ausência da forma legalmente exigida, os quais se traduzem na nulidade do negócio, nos termos dos artigos 286.º, 289.º e 290.º do Código Civil (CCiv).
XX. Neste quadro, nenhuma censura merece a declaração oficiosa pelo Tribunal da nulidade do contrato com base na ausência de forma, bem como, a condenação das partes na restituição de tudo o que foi prestado na execução do contrato nulo, nomeadamente o dever da Recorrente restituir à Recorrida a parte do preço que lhe havia sido entregue (€3.000,00).
XXI. Como exaustivamente se demostrou foi celebrado um contrato de trespasse entre Recorrente e Recorrida cujo respetivo objeto era um estabelecimento comercial de estética, estabelecimento que a Recorrente vinha oferecendo à Recorrida, por forma sistemática, desde os primeiros dias do ano de 2016 e que a Recorrida apenas veio a aceitar posteriormente, já depois de conseguir reunir condições financeiras para o pagamento da entrada inicial.
XXII. No âmbito do negócio de trespasse do estabelecimento comercial de estética, ficou expressamente consignada entre Recorrente e Recorrida, a possibilidade de pagamento faseado do remanescente do preço, conforme os resultados ou rendimentos do estabelecimento, sendo que tal circunstância constituiu um elemento determinante para a conclusão do negócio.
XXIII. Todavia, subitamente, dois meses após a concretização do negócio e da entrega pela Recorrida da entrada inicial no valor de € 3.000,00, a Recorrente interpela aquela primeira para pagamento da totalidade do remanescente do preço, solicitação que extravasava claramente o predito acordo de pagamento faseado.
XXIV. A atuação da Recorrente não prefigura qualquer incumprimento, na medida em que foi condição determinante para a conclusão do negócio a possibilidade de pagamento faseado do remanescente do preço do estabelecimento comercial, pelo que o pedido da Recorrente sempre seria extemporâneo.
XXV. Face à indisponibilidade da Recorrida para a entrega do montante de € 2.000,00 e concretizando as suas ameaças, a Recorrente, sem mais, substituiu a fechadura da única porta que permitia o acesso ao estabelecimento, impedindo assim o respetivo acesso pela Recorrida.
XXVI. De um momento para o outro, inusitadamente, a Recorrente despojou a Recorrida do estabelecimento comercial, arrogando-se novamente proprietária de um estabelecimento comercial que bem sabia ter vendido à Recorrida.
XXVII. O incumprimento do contrato, ou melhor, a impossibilidade da manutenção do contrato é consequência da conduta da Recorrente, não da Recorrida.
XXVIII. E, ainda que assim não fosse, inexiste fundamento de facto e ou de direito para a Recorrente concluir que a (pretensa) recusa da Recorrida em cumprir a sua obrigação tivesse como consequência a extinção automática do contrato.
XXIX. A Recorrente fundou o seu pedido reconvencional na "violação" do negócio pela Recorrida, o que fez a incorrer em responsabilidade civil pré e contratual, por culpa in contrahendo, nos termos do disposto no artigo 227º do CC.
XXX. Sem necessidade de grandes delongas, basta uma leitura superficial do pedido reconvencional da Recorrente para assumirmos a motivação que lhe está subjacente, isto é, foi o meio encontrado para desviar a atenção do essencial e para legitimar o quadro de atuação da Recorrente, criando uma realidade aparente que se mostrou plenamente refutada, mormente da prova produzida em sede de julgamento.
XXXI. De resto, como bem se evidencia na sentença recorrida, a Recorrente, após impedir o acesso ao estabelecimento pela Recorrida, voltou à posse do estabelecimento, pelo que uma eventual perda da clientela e posterior encerramento será sempre decorrente de culpa que só à Recorrente será imputável.
XXXII. Pelo que o pedido reconvencional formulado pela Recorrente só poderia mesmo improceder.
XXXIII. No que concerne à litigância de má-fé da Recorrente, basta um breve cotejo entre os articulados oferecidos pela Recorrente e a prova produzida em audiência de julgamento, especialmente por referência ao depoimento de parte da Recorrente, para aferirmos que aquela assumiu uma conduta inicial de completo desprezo pelos factos, realidade que era do seu perfeito conhecimento, alterando o acervo factual de forma conscientemente e deliberada, numa tentativa de impedir a materialização dos legítimos interesses da Recorrida.
XXXIV. Com particular acuidade, no que se refere a um dos pontos essenciais da presente demanda, a Recorrente negou perentoriamente (e sucessivamente) ter vendido o estabelecimento comercial de estética à Recorrida, tendo ficado sobejamente demostrado a falsidade da afirmação da Recorrente.
XXXV. A recorrente utilizou de forma maliciosa e abusiva o processo judicial, descurando por completo os deveres a que se encontra adstrita, nomeadamente o princípio da colaboração para a descoberta da verdade, pelo que se impõe a sua condenação como litigante de má-fé.
XXXVI. Nestes termos, a douta decisão recorrida não sofre de nenhuma das pseudas “ilegalidades” ou “vícios” que lhe vem assacadas pela Recorrente, devendo confirmar-se a sentença proferida em primeira instância.

Termos em que deve o recurso ser julgado improcedente e confirmada a douta Sentença recorrida, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA.

II. Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Face ao alegado nas conclusões das alegações há que verificar:

.1 -- se a sentença padece de nulidade;
.2 -- se se verificam os ónus da impugnação da matéria de facto, que permitam o seu conhecimento;
.3 -- se o contrato celebrado entre as partes deve ser classificado como um contrato atípico e em caso afirmativo apurar o seu regime jurídico, nomeadamente quanto à forma;
.4- se é possível conhecer nesta sede da questão da culpa in contrahendo, sem que tenha sido invocada nos articulados.

III. Factos fixados na decisão recorrida

A sentença apresenta a seguinte fixação da matéria provada:

– Factos provados:

a) A R. é empresária em nome individual e dedica-se (ou dedicava-se) com intuito lucrativo e, por forma habitual e sistemática, à atividade de estética, cuidados de beleza e afins, tendo a correspondente formação profissional para o efeito;
b) Em data não concretamente apurada mas posterior a Maio de 2014, a R. abriu e ficou proprietária de um espaço comercial que girava comercialmente sob a denominação "ESPAÇO AP" e que tinha por objeto a prestação de serviços de estética e cuidados de beleza;
c) O espaço referido em b) foi instalado em imóvel tomado de arrendamento pela R., sito na Rua …, da freguesia de … e concelho de Guimarães, por cujo gozo a R. pagava uma renda mensal de €250;
d) Em inícios do ano de 2016 a R. resolveu vender o espaço comercial referido em b), por lhe ter sido diagnosticado um problema de saúde decorrente de uma alergia a todo e qualquer produto de estética;
e) Em Abril de 2016 A. e R. acordaram verbalmente em que esta venderia àquela, pelo preço de €5.000, o espaço comercial referido em b);
f) A A. entregou à R. em Abril de 2016, por conta do preço referido em e), a quantia de €3.000, tendo ficado convencionado que o remanescente seria pago à medida das possibilidades da A.;
g) Após o referido em e), mas ainda em Abril de 2016, a R. propôs à A. a partilha do locado onde se encontrava instalado o espaço comercial vendido, de forma a ali instalar, adicionalmente, uma loja de pronto-a-vestir, que seria por si explorada, ficando a A. a explorar a loja de estética;
h) Para efeitos do referido em g), o espaço destinado à A. seria transferido para a parte interior/traseira do imóvel e o espaço de pronto-a-vestir ficaria instalado na parte frontal da loja, com montra virada para a rua principal, ficando A. e R. responsáveis pelo pagamento conjunto, na proporção de metade cada uma, do valor da renda do imóvel, bem como das despesas de água, luz, internet e alarme;
i) A A. aceitou a proposta referida em g) e h);
j) Desde o referido em e) e até 20.07.2016 a A. exerceu explorou a loja referida em b), ali recebendo clientes e prestando-lhes serviços de estética, mantendo o estabelecimento aberto ao público e conduzindo em exclusivo a gestão do mesmo, sem oposição de quem quer que fosse, e pagando, na proporção de metade, as despesas referidas em h);
k) Em meados de Julho de 2016, a R. perguntou telefonicamente à A. se lhe poderia entregar o remanescente (€2.000) ou algum do remanescente do preço acordado para o trespasse do estabelecimento;
l) Na sequência do referido em k), a A. inicialmente disponibilizou-se a entregar à R. €1.000, tendo mais tarde recusado essa entrega, o que gerou discussão entre ambas;
m) Após a discussão referida em l), na tarde de 20.07.2016, a R. procedeu à substituição da fechadura da única porta que permitia o acesso ao locado, sem que entregasse uma chave da nova fechadura à A.;
n) Por carta datada de 01.08.2016 e rececionada pela R. em 02.08.2016 a A. comunicou a esta que procedia “à resolução unilateral do contrato celebrado” pois que “As circunstâncias que ladearam a conduta de V. Exa. e que culminaram com a troca da fechadura do estabelecimento originaram uma perda objetiva do interesse da M/ Constituinte na manutenção do negócio celebrado, tudo por causa que será especialmente imputável a V. Exa. a título de culpa.”;
o) A A. aquando do referido em m) tinha na sua posse vários produtos e aparelhos de estética, relacionados com manicure.

- Factos não provados

Com relevância para a boa decisão da causa não resultaram provados quaisquer outros factos que não os enumerados em 1.1., designadamente:

a) Que em meados de Julho de 2016 a R. tenha exigido da A. o pagamento do remanescente do preço referido em e);
b) Que na sequência do referido em 1.1.m) a A. se tenha visto obrigada a desmarcar todas as marcações para o dia 21.07.2016 e dias subsequentes;
c) Que o referido em 1.2.a) tenha denegrido a imagem da A. enquanto prestadora de serviços de estética;
d) Que a partir de 21.07.2016 a R. jamais tenha permitido à A. entrar na loja referida em 1.1.b), impedindo-a de forma permanente e absoluta de exercer a sua atividade;
e) Que a A. tenha estado desempregada entre 21.07.2016 e 26.09.2016;
f) Que desde 26.09.2016 a A. apenas esteja empregada a tempo parcial;
g) Que o referido em 1.1.m) e 1.2.b), c) e d) tenham provocado na A. grande angústia e tristeza, enorme ansiedade e nervosismo;
h) Que os produtos referidos em 1.1.o) fossem 2 brocas, com um valor unitário de €120, 2 ponteiras, com um valor unitário de €80, 3 primários de gel, com um valor unitário de €24, e embalagens de cera, com um valor de €10;
i) Que aquando do referido em 1.1.m) a A. tenha rasgado e levado consigo folhas da agenda onde diariamente eram anotadas as marcações dos serviços de estética e tratamentos de beleza;
j) Que o referido em 1.2.i) tenha impedido a R. de atender as clientes que compareceram nos dia e hora agendados, levando-as a não mais procurar os seus serviços;
k) Que o referido em 1.2.i) e j) tenha levado a que a R. fosse forçada a encerrar o estabelecimento, por falta de clientela;
l) Que o referido em 1.2.k) tenha afetado o equilíbrio emocional da R..

IV. Fundamentação de Direito

.1 -- da nulidade da sentença

A Recorrente afirma que a sentença é nula, remetendo a violação para as alíneas c), d) e e), do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, mas limitando-se a sustentar tal nulidade na contradição entre a decisão e a prova produzida nos autos, afirmando que ocorreu uma incorreta apreciação desta (aliás, sem especificar de forma concreta e especificada, quer os pontos erroneamente apreciados, quer os meios de prova que levavam a conclusão diferente, quer o que concretamente pretendia que fosse assente, antes baseando toda a fundamentação jurídica do seu recurso na matéria de facto dada como provada na sentença).

Visto que não se justifica qualquer despacho de aperfeiçoamento para apreciar a questão em análise, pela sua manifesta improcedência, passa-se de imediato à apreciação da questão, que não exige grandes explicações, face à sua simplicidade.

A nulidade da sentença é apenas uma situação excecional (não obstante ser invocada quase como regra), que diz respeito às cirúrgicas situações aludidas no artigo 615º do Código de Processo Civil: falta de assinatura do juiz, omissão total dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; ininteligibilidade da decisão por oposição entre esta e os fundamentos, ambiguidade ou obscuridade; omissão de pronúncia sobre pedidos, causas de pedir ou exceções que devessem ser apreciadas ou conhecimento de questões de que não se podia tomar conhecimento; condenação em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Assim, não constituem nulidade da sentença os erros de julgamento, a deficiente seleção dos factos em que se baseia ou imperfeita valoração dos meios de prova, erros de raciocínio e até violação de caso julgado (neste último sentido, cf. Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 15.2.2007, no processo 07P336, sendo este, e todos os demais acórdãos citados sem indicação de fonte, consultados no portal dgsi.pt).

O regime das nulidades da sentença previsto no artigo 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil não diz respeito à decisão de facto, cuja impugnação está sujeita a um regime específico (cf o artigo 640º do Código de Processo Civil).

Quanto a esta questão responde diretamente o recente Acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 03/23/2017, no processo 7095/10.7TBMTS.P1. S1: “O não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. II. Tais situações reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC. III. O mesmo se deve entender nos casos em que o tribunal considere meios de prova de que lhe não era lícito socorrer-se ou não atenda a meios de prova apresentados ou produzidos, admissíveis necessários e pertinentes. Qualquer dessas eventualidades não se traduz em excesso ou omissão de pronúncia que impliquem a nulidade da sentença, mas, quando muito, em erro de julgamento a considerar em sede de apreciação de mérito.”

Há que clarificar ideias: as causas de nulidade da sentença estão taxativamente previstas no artigo 615º nº 1 do Código de Processo Civil e são de caráter formal, dizendo respeito a desvios no procedimento ocorridos na sentença que impedem que se percecione uma decisão de mérito do concreto litígio: não se confundem com todas as situações que podem inquinar uma sentença e conduzir à revogação da mesma. Não abarcam todas e quaisquer falhas de que uma sentença pode padecer.

Ora, invocando diversas alíneas do artigo 615º do Código de Processo Civil o arguente da nulidade limita-se a dizer que discorda da matéria de facto fixada na sentença (o que faz aliás em termos genéricos). Não se pode considerar, com base em tal opinião, não traduzida em ideias concretas, que “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; que o juiz não deixou de se pronunciar sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento ou condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

Diga-se desde já que foram peticionadas pela Autora e pela Ré, respetivamente, a condenação no pagamento da quantia e na entrega dos bens que foram objeto do dispositivo da sentença e que a declaração da nulidade do contrato por vicio de forma é de conhecimento oficioso, nos termos do artigo 220º do Código Civil, pelo que nunca se poderia dizer que a sentença extrapolou o peticionado.

Desta forma, não se segue a posição mais restrita quanto à oficialidade do conhecimento dos efeitos da nulidade do contrato, a qual veda a condenação na restituição do entregue se não peticionado pelas partes, face ao principio do dispositivo. Esta posição mostra-se defendida no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 06/30/2015 no processo 2943/13.2TBLRA.C1 e no voto de vencido constante do acórdão da mesma Relação de 05/10/2016, no processo 2008/10.9TBACB.C1, ambos disponíveis no portal dgsi.pt, e funda-sendo disposto no artigo 609º do Código de Processo Civil. No entanto, não se concorda com a mesma (e com todo o devido respeito, que é muito) por força do princípio da igualdade, pretendendo-se uma decisão que não cause um desequilíbrio entre a posição de ambas as partes.

Se ambas são confrontadas com uma declaração de nulidade com que não contavam, ambas devem sofrer os efeitos (quer positivos, quer negativos) dessa declaração. Caso apenas se tirem as consequências favoráveis dessa declaração para uma das partes (que fez o pedido com outros fundamentos), desprotege-se a contraparte, prejudicando-a. Visto que todas as partes agiram não tendo em conta essa ocorrência, impor as suas consequências para todas elas não contraria o princípio do dispositivo, antes implica que o tribunal quando determina os efeitos da nulidade, em cumprimento de um dever, as coloca em igualdade de circunstâncias, sem enriquecimentos de umas à custa de outras, afastando desequilíbrios nas suas posições relativas.

No entanto, no presente caso, face à existência de pedido e reconvenção que cobrem as condenações de entrega decididas, não se coloca o problema da existência de qualquer limitação imposta pelo princípio do dispositivo.
Termos em que a sentença não sofre de qualquer nulidade.

.2 -- se se verificam os ónus da impugnação da matéria de facto, que permitam o seu conhecimento;

O Recorrente afirma no final das suas conclusões que a decisão do tribunal a quo é contrária à prova produzida, não sendo claro se remete para os factos dados como provados, ou se a afirmação deve ter uma interpretação mais literal.
Na dúvida, profere-se também decisão considerando que pretendeu impugnar a matéria de facto, porquanto, como se verá, tanto não basta para rever o bem ou mal decidido dos factos dados como provados e como não provados.

Nos termos do artigo 640° do Código de Processo Civil, existem requisitos específicos para a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, os quais, se não observados, conduzem à sua rejeição.

Assim, impõe esta norma ao recorrente o ónus de:

a) especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) especificar os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação ne­le realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) especificar a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

É, assim, patente, numa primeira linha, que no novo regime foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a errada decisão da matéria de facto.
Nas conclusões não é feita nenhuma indicação concreta dos factos que foram dados como provados ou não provados que a recorrente impugna.
Também não se menciona especificadamente o que se pretende que se considere provado ou provado.
Nem tão pouco a relação entre os meios probatórios e tais factos.
Aliás, o Recorrente funda-se na matéria de facto provada, como se esta fosse a que deve ser atendida, na fundamentação da sua posição jurídica sobre a causa.
Rejeita-se a impugnação da matéria de facto, por inobservância dos ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil.

.3 -- se o contrato celebrado entre as partes deve ser classificado como um contrato atípico e em caso afirmativo apurar o seu regime jurídico, nomeadamente se está sujeito a forma legalmente imposta.

.a) O que resulta da matéria de facto provada (e só a esta há que atender), relevante para a classificação do contrato:

A Ré abriu um espaço comercial que girava comercialmente sob a denominação "ESPAÇO AP" e que tinha por objeto a prestação de serviços de estética e cuidados de beleza, instalando-o em imóvel que tomou de arrendamento; em Abril de 2016 Autora e Ré acordaram verbalmente em que esta venderia àquela, pelo preço de €5.000, esse espaço comercial e a Autora entregou à Ré, nesse mesmo mês, por conta do preço referido em e), a quantia de €3.000, tendo ficado convencionado que o remanescente seria pago à medida das suas possibilidades.

Depois desse acordo, mas ainda em abril de 2006, a Ré propôs à A. a partilha do locado onde se encontrava instalado o espaço comercial vendido, de forma a ali instalar, adicionalmente, uma loja de pronto-a-vestir, que seria por si explorada, ficando a Autora a explorar a loja de estética; para tanto, o espaço destinado à A. seria transferido para a parte interior/traseira do imóvel e o espaço de pronto-a-vestir ficaria instalado na parte frontal da loja, ficando A. e R. responsáveis pelo pagamento conjunto, na proporção de metade cada uma, do valor da renda do imóvel, bem como das despesas de água, luz, internet e alarme, o que foi aceite pela Autora, e desse abril de 2006, até o seu acesso à loja ser impedido pela Ré, a Autora explorou-a, ali recebendo clientes e prestando-lhes serviços de estética, mantendo o estabelecimento aberto ao público e conduzindo em exclusivo a gestão do mesmo, sem oposição de quem quer que fosse, e pagando, na proporção de metade, as despesas com a renda, água, eletricidade e outros fornecimentos ao locado.

.b) da classificação do contrato efetuada na sentença

A sentença classifica o contrato mencionado no primeiro acordo celebrado entre as partes como um contrato de trespasse do estabelecimento, definindo este tipo contratual como uma “transmissão definitiva, por ato entre vivos (seja a título oneroso, seja a título gratuito), da titularidade do estabelecimento comercial”, citando VARELA, Antunes, in RLJ, ano 115.º, pág. 253, nota 1, concluindo, após, que mesmo é nulo, porquanto, visto que o estabelecimento estava instalado em prédio arrendado, tinha que ser celebrado por escrito, por força do disposto nos artigos 112.º, nº 1, al. a),, 112.º, nº 1, al. a), a contrario e 1112.º, nº 3, do Código Civil.

Insurge-se a Ré contra esta classificação, focando a sua atenção no ocorrido após a celebração deste acordo: a “partilha do locado” proposta pela Ré à Autora, onde aquela instalaria, adicionalmente, um pronto-a-vestir, dividindo-se o locado em duas zonas, com duas explorações separadas.

Afirma, então, que não foi transmitida a unidade económica, mas apenas uma parte do espaço comercial, pelo que não se pode considerar que ocorreu um trespasse, o qual apenas tem lugar quando é transmitido a integralidade dos elementos que a compõem, como uma individualidade de direito.
E desta forma, entende que o “contrato de cedência de parte/parcial da exploração de estabelecimento comercial através do qual a Ré cedeu à Autora a fruição partilhada do espaço comercial” é um contrato inominado, afirmando que uma das consequências da atipicidade é a não exigência das exigência de forma.
Não obstante, não se pode concordar com a premissa do Recorrente relativa ao afastamento da classificação do contrato destes autos como um trespasse:
O conceito de trespasse, face à inexistência de definição legal, tem sido apurado pela doutrina e jurisprudência. Todas elas coincidem, grosso modo, em centrar o seu núcleo na transmissão de um estabelecimento comercial (o que, aliás, também a Recorrente aceita nas suas alegações). É conhecida e adotada pela jurisprudência a definição dada por Antunes Varela, a que recorreu a sentença em recurso.

Para a compreensão deste conceito é, pois, necessário perceber o que é um estabelecimento comercial. Também este não colheu um conceito legal, mas todas as definições encontradas pela doutrina e jurisprudência se centram na ideia de um conjunto organizado de bens e direitos destinados ao exercício de uma atividade económica. Veja-se Pinto Furtado, Curso de Direito dos arrendamentos vinculisticos, Almedina, 2ª ed, pag 376, que o define como um “complexo objetivo de bens reunidos pelo empresário para o exercício da sua atividade económica” ou ainda as seguintes definições: “a estrutura material e jurídica integrante, em regra, de uma pluralidade de coisas corpóreas e incorpóreas – coisas móveis e ou imóveis, incluindo as próprias instalações, direitos de crédito, direitos reais e a própria clientela ou aviamento - organizados com vista à realização do respectivo fim” (Ac. do STJ de 4/12/07, Proc. nº 07B4168) citado no acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 01/24/2012, no processo 239/07.8TBSTS.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, que, por sua vez, o caracteriza como uma “organização estável e autónoma de um conjunto de elementos que permitem o desempenho de uma atividade daquela natureza”.

Lida a matéria de facto provada, resulta que as partes celebraram acordo pelo qual a Ré transmitiu para a Autora a totalidade do estabelecimento comercial que montara para a prestação de serviços de estética e cuidados de beleza.
E só depois as partes celebraram novo acordo, combinando a partilha do locado, para que a Ré instalasse ali novo negócio, de pronto-a-vestir.
Logo falece a ideia da Recorrente de não se estar perante trespasse por este não ter sido acompanhado da transmissão do contrato de arrendamento.

Mas mesmo que assim fosse, que o que foram dois contratos diferentes, sucessivos no tempo, como foi assente na sentença, pudesse ser visto como apenas um contrato, por ter sido alterado o primeiro através do segundo acordo, entende-se que não é de seguir a tese da Recorrente, que o afasta do conceito de trespasse, por não ter sido efetuada a transmissão total do arrendamento conjuntamente com todos os outros elementos que compunham a organização destinada à prestação de serviço de estética.

Para se estar perante um trespasse é fundamental que se esteja, sem dúvida perante a transmissão do estabelecimento, mas nada obsta que não sejam transmitidos todos os elementos que o componham desde que, observado o transmitido, ainda se verifique claro que o que foi transferido para a esfera patrimonial do adquirente foi um conjunto de elementos organizado para a exploração de determinada atividade económica. Enfim, desde que, não obstante a retirada de um ou outro elemento que o compunham anteriormente, o objeto (conjunto de direitos e bens) transmitido ainda contenha a estrutura organizada destinada ao desenvolvimento daquela atividade económica, não há qualquer razão para afastar a sua transmissão do conceito de trespasse.

Exige-se que o objeto da transmissão se possa considerar um estabelecimento comercial (não teria qualquer sentido que a retirada de algum dos bens sem qualquer valor no conjunto impedisse que se considerasse o contrato de transmissão como trespasse, pelo que a pedra de toque tem que ser obtida no conceito central de estabelecimento comercial: se o que é transferido ainda é um estabelecimento comercial, mesmo que o mesmo esteja desfalcado de algum elemento que cumpre ainda preencher para o exercício da atividade, temos trespasse).

Neste sentido é vasta a doutrina e esta posição tem apoio na nossa jurisprudência: cf Pinto Furtado, obrigação cit, pag. 366: “Embora o lugar onde se situe o estabelecimento seja muito importante para o exercício da respetiva atividade e seja assim frequente que a transmissão do estabelecimento e da sua exploração surja associada à transmissão do gozo do prédio, deve salientar-se que não é imperioso que aquelas transmissões sejam acompanhadas de um subarrendamento do prédio ou de uma cessão da posição de arrendatário deste”. Também neste sentido, citando outra e vasta doutrina e jurisprudência e doutrina, cf o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no processo nº 239/07.8TBSTS.P1.S1c: “Também Ferrer Correia e Ângela Coelho explicam que “para se qualificar como estabelecimento determinada organização não é forçoso que estejam presentes todos os elementos que hão-de concorrer para o seu eficaz e perfeito funcionamento. Bastará que se encontrem reunidos os elementos essenciais que individualizam e dão consistência ao estabelecimento - que seja reconhecível o núcleo essencial do estabelecimento mercantil, o qual traduz a sua capacidade lucrativa ou o seu aviamento”….Nem é necessário para se falar em trespasse que a transferência abarque todos os elementos que, na altura, integram o estabelecimento, sendo admissível o trespasse parcial…o que é preciso é que “o “quid” que se faça juridicamente transitar abranja aquele mínimo de elementos essencial à existência de um estabelecimento, que não lhe falte o núcleo central e caracterizante da empresa”.

Assim, tem sido considerado pela doutrina, analisando como simples presunções iuris tantum de inexistência de trespasse a previsão do artigo 1112º nº 2 do Código Civil (cf, face ao anterior normativo, de igual teor, Pereira Coelho, “Arrendamento, Direito substantivo e Processual, RED - Revista Eletrónica de Direito|Ad Perpetuam Rei Memoriam, citando também no mesmo sentido, ORLANDO DE CARVALHO, Critério e estrutura do estabelecimento comercial 1967RLJ 110, 102 ss).

Concluindo: assente na matéria de facto provada que a Autora e Ré acordaram que esta venderia àquela o estabelecimento pelo qual prestava serviços de estética, mediante um preço, o qual foi parcialmente entregue pela Autora nos termos acordado (visto que assentaram que o restante seria pago quando a Autora pudesse) e logo recebendo o espaço onde exerceu essa atividade (cf alínea j) da matéria de facto provada), dúvidas não há que estamos perante um trespasse.

Da matéria de facto provada não resulta de forma alguma que ocorreu contrato de cedência de parte/parcial da exploração de estabelecimento comercial através do qual a Ré cedeu à Autora a fruição partilhada do espaço comercial: o estabelecimento transmitido pela Ré à Autora não coincide com o que aquela se propôs a passar a explorar após tal transmissão, mediante a divisão da loja em dois espaços diferenciados. O primeiro tinha como atividade produtiva a prestação de serviço de estética, o segundo a venda de pronto-a-vestir.

Assim, não se logra encontrar qualquer identidade entre o estabelecimento trespassado e o que a Ré pretendeu criar e instalar na parte frontal da loja (cf alíneas g) e h) da matéria de facto provada).

O que está assente é que após o acordo de transmissão do estabelecimento destinado à prestação de serviços estéticos, foi acordado entre a Autora e Ré que esta poderia instalar no mesmo espaço físico onde aquele funcionava, um conjunto de bens destinados à venda de pronto a vestir, mediante a partilha da renda e despesas desse espaço.
No entanto, o preço aqui em questão foi, nos termos em que consta da sentença e alegado pela Autora, pago pelo trespasse.
Pode caracterizar-se o acordo quanto à partilha ou divisão do espaço comercial como uma sublocação parcial ou como uma transmissão parcial da posição de arrendatário, conforme o que tenha sido acordado com o senhorio, não se pode é confundi-lo com o contrato inicial, pelo qual a Ré transmitiu à Autora o conjunto de bens (o qual, aliás, contemplou a posição de arrendatário) que organizou para explorar a atividade de prestação de serviços de estética (um trespasse).
Carece a Recorrente de razão ao pretender a atipicidade do contrato celebrado entre as partes que deu origem ao pagamento do preço cujo destino ora se discute.
Apurado que estamos perante um trespasse, no que toca ao seu regime jurídico, há, quanto à forma, que ter em atenção o disposto no nº 3 do artigo 1112º do Código Civil, que exige, pelo menos quando este contemple a transmissão da posição de arrendatário, a sua forma escrita (mencionando a exigência desta forma com base nesta norma, embora sem distinguir o seu conteúdo quanto aos bens e direitos que compõem a universalidade que é o estabelecimento comercial, cf também o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12/19/2013 no processo 585/09.1 TBMTJ-A.L1-1, consultado no portal dgsi.pt).
Porquanto a mesma não foi observada, o contrato é nulo, nulidade esta de conhecimento oficioso, nos termos dos artigos 220º e 286º do Código Civil, nos termos do artigo 220º do Código Civil.
O ordenamento jurídico comina com a nulidade os negócios que contrariem com veemência os valores ou interesses públicos que visa defender, sendo que as exigências de forma visam proteger essencialmente o interesse da segurança no comércio jurídico, fundamental no nosso sistema jurídico.

Dispõe o artigo 289º, n.º 1 do Código Civil que "Tanto a declaração de nulidade como a anulação têm efeito retractivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente".

Quanto ao fundamento desta restituição a jurisprudência dominante tem seguido a orientação doutrinal, que veio a ser acolhida no Acórdão de Uniformização do STJ n.º 4/95, de 28/3/95, publicado no DR n.º 114, I Série-A, de 17/5/95, estabelecendo: "Quando o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade de negócio jurídico invocado no pressuposto da sua validade, e se na ação tiverem sido fixados os necessários factos materiais, deve a parte ser condenada na restituição do recebido, com fundamento no n.º 1 do art. 289º do Código Civil".

Importa esclarecer que admitindo o Recorrente, e bem, que o tribunal conheça da questão da nulidade oficiosamente, como dispõe o artigo 286º do Código Civil, não pode estranhar-se que este cumpra tal dever, avaliando a mesma, apesar das partes não a terem suscitado: conhecer oficiosamente uma questão traduz-se exatamente na sua apreciação quando não for suscitada pelas partes, só por dever de ofício.

Destarte, sendo nulo o contrato, não produz os seus efeitos, não se colocando a questão de quem o cumpriu ou não, mas havendo, como foi efetuado, que apreciar as consequências da nulidade.

Por outro lado, não resulta da matéria de facto provada qualquer ato ilícito da Autora que inviabilizasse a continuação do contrato, mas sim da Ré, que a impediu de continuar a aceder ao estabelecimento (pontos m) e n) da matéria de facto provada); a existir qualquer contrato válido ou obrigação de o celebrar (o que se não verifica) não se lhe imputaria o incumprimento contratual.

.4- se é possível conhecer nesta sede da questão da culpa in contrahendo, sem que tenha sido invocada na contestação.

Os recursos são meios de impugnar decisões judiciais, pelo que o tribunal que os vai apreciar não pode conhecer questões novas, que não possam ter sido valoradas na decisão recorrida, por não lhe terem sido apresentadas pelas partes no momento devido. Por isso, permite apenas o artigo 665º nº 2 do Código de Processo Civil que o tribunal conheça questões não examinadas na decisão recorrida se estas o não foram, quando ficaram prejudicadas pela solução dada ao litígio.

Esta é uma das consequências do disposto no artigo 608º nº 2 do Código de Processo Civil, conjugado com o princípio da preclusão.
Se se não restringir o objeto dos recursos às questões que se apresentaram e apresentavam ao tribunal a quo, pôr-se-ia em causa a existência de diferentes graus de jurisdição, impedindo que as questões de determinada natureza ou valor a que a lei sujeita a mais que um escrutínio fossem objeto desse crivo.

Esta é a doutrina e jurisprudência pacífica, de que se cita, a título exemplificativo, dois excertos: “I - É regra geral do regime dos recursos que estes não podem ter como objeto a decisão de questões novas, que não tenham sido especificamente tratadas na decisão de que se recorre, mas apenas a reapreciação, em outro grau, de questões decididas pela instância inferior. A reapreciação constitui um julgamento parcelar sobre a validade dos fundamentos da decisão recorrida, como remédio contra erros de julgamento, e não um julgamento sobre matéria nova que não tenha sido objeto da decisão de que se recorre. II - O objeto e o conteúdo material da decisão recorrida constituem, por isso, o círculo que define também, como limite maior, o objeto de recurso e, consequentemente, os limites e o âmbito da intervenção e do julgamento (os poderes de cognição) do tribunal de recurso.III - No recurso não podem, pois, ser suscitadas questões novas que não tenham sido submetidas e constituído objeto específico da decisão do tribunal a quo; pela mesma razão, também o tribunal ad quem não pode assumir competência para se pronunciar ex novo sobre matéria que não tenha sido objeto da decisão recorrida.” cf Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03/25/2009 no processo nº 09P0308.

“Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis” in António Santos Abrantes Geraldes, Recursos No Novo Código De Processo Civil, 4ª ed., pag 111.

Ora, no momento próprio, na contestação, a Recorrente não alegou a responsabilidade pré-contratual da Autora (antes negando a vontade de celebrar qualquer trespasse).
Não pode agora trazer tal factualidade à liça, pretendendo que com base na mesma se aprecie do mérito da causa, por ser questão totalmente nova e precludida, apenas referida já nas alegações de recurso.

Vedado está, pois, a este tribunal conhecer da mesma.

De resto, não se vê retratada na matéria de facto provada o conjunto de eventos que pudesse eventualmente preencher os seus pressupostos como um investimento de confiança ou a violação de regras impostas pela boa-fé.
Improcede in totum o recurso, sufragando-se a sentença na parte recorrida, que se mostra muito bem elaborada.

V. Decisão:

Por todo o exposto, julga-se apelação improcedente e mantém-se integralmente a sentença recorrida.
Custas na 2ª instância pela apelante.
Guimarães, 14 de Junho de 2018

Sandra Melo
Amílcar Andrade
Heitor Gonçalves