Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3695/12.9TBGMR.G1
Relator: MARIA DOS ANJOS MELO NOGUEIRA
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
CESSAÇÃO
REQUISITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – Na causa da cessação prevista na alínea a), do art.º 243.º, do CIRE, exige-se, por um lado, que exista dolo grave ou culpa grave na violação, por outro lado que essa violação seja causa adequada a prejudicar o ressarcimento creditório, pelo que a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, com base nessa causa, aplicável por força do disposto no n.º 1, do art. 244.º, do mesmo diploma, depende da verificação ou não dessas condições.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM EM CONFERÊNCIA NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - Relatório:

Por sentença datada de 24.10.2012, foi declarada a insolvência de Carlos.

Ao apresentar-se à insolvência o insolvente requereu a exoneração do passivo restante.

Por despacho datado de 07.02.2013, a fls. 157ss, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante, nessa data tendo sido encerrado o processo de insolvência.

Da decisão de fixação do valor do rendimento disponível recorreu o insolvente, sendo que por Ac. Tribunal da Relação de 04.06.2013 proferido no âmbito do apenso D foi decidido fixar o valor do rendimento a ceder nas quantias que ao insolvente fossem pagas a título de subsídio de férias e de natal.

O Exmo. Sr. Fiduciário remeteu aos autos os relatórios a que alude o art. 61.º/1 CIRE (aplicável ex vi art. 240.º/2 CIRE).
Foram ouvidos o insolvente, o fiduciário e os credores reconhecidos nos termos e para os efeitos do disposto no art. 244.º/1 CIRE.
*
Foi, então, proferida decisão que, ao abrigo do disposto no art. 243.º/1/al.a), do CIRE, recusou a exoneração do passivo restante requerida por Carlos.
*
II-Objecto do recurso

Não se conformando com a decisão proferida, veio o insolvente interpor recurso juntando, para o efeito, as suas alegações e apresentando, a final, as seguintes conclusões:

A- A douta sentença recorrida violou manifestamente o disposto no artº 239.0 e 243.0 do CIRE.
B- O recorrente, somente, foi notificado por carta registada com aviso de recepção, datada de 25 de Julho de 2013, onde era notificado que tinha que depositar os valores recebidos a título de subsídio de férias e de Natal, indicando o numero da conta e o respectivo NIB, juntando fotocópia de parte do acórdão do Tribunal da Relação, não foi notificado para fazer os depósitos referente a quaisquer meses.
C- Após ter recebido a notificação o recorrente fez em Agosto de 2013 o primeiro depósito, cumprindo, assim, a notificação.
D- Antes da notificação não tinha nem número de conta nem NIB para efectuar quaisquer depósitos.
E- Após a primeiro depósito o recorrente não foi notificado de que tinha que efectuar quaisquer outros depósitos anteriores à notificação.
F- Relativamente ao subsidio de férias recebido antes da notificação o mesmo é referente à férias de 2012, altura em que não se encontrava em insolvência e entendeu que tal subsidio não era para entregar pois entendeu que são devidos para depósito os rendimentos auferidos e a que tem direito durante o estado de insolvente e após notificação para efectuar os depósitos.
G- Note-se que a senhora fiduciária fez vários requerimentos a dar conta que o recorrente não cumpria a sentença de primeira instância, ou seja não fica só com o salário mínimo entregando todo o restante, não teve em conta o acórdão do Tribunal desta Relação, chegando a fazer um requerimento aos autos a dar conhecimento ao M.º Juiz que o recorrente não entregou o valor devolvido a titulo de IRS.
H- Depois de contactada é que a senhora fiduciária se apercebeu do acordão proferido por este Tribunal e fez um requerimento a dar conta da contradição de requerimentos por si apresentados,
I- Ao que o recorrente respondeu por requerimento de 4 de Julho de 2018 que:

Ao insolvente não interessa saber se há, ou não, contradição entre os relatórios ' interessa isso sim, saber se há algum valor em falta para ser efectuado o depósito.'
Este requerimento foi notificada a senhora fiduciária que nada respondeu - nem se havia qualquer diferença de valores entregues ou se havia qualquer falta de entrega em qualquer mês desde 2013 a 2018.
J- Nunca o requerente foi notificado ou pelo Tribunal ou pela senhora fiduciária a dar-lhe conta de quaisquer falta de entrega de numerário, diferença do recebido em relação ao entregue ou feito qualquer depósito a mais.
L- Relativamente ao dito subsídio de férias de 2012 que quando se venceu o recorrente ainda não tinha sido declarado insolvente, NUNCA a senhora fiduciária ou mesmo o Tribunal se pronunciou sobre o mesmo e, diga-se de passagem, somente CINCO anos depois é que o Tribunal toma uma posição sem nunca ter dado o direito ao recorrente se pronunciar sobre essa matéria - falhou o princípio do contraditório, o que constitui uma nulidade que aqui se argui para todos os legais efeitos.
M- Nas contas do recorrente somente está em falta o mês de Outubro de 2015, somente agora com a douta sentença se percebeu essa falta, e já foi feito esse depósito,
N- Embora não conste da douta sentença recorrida, provavelmente por a senhora fiduciária não ter comunicado ao processo, relativamente, ao ano de 2018 foi feito, em Junho, o depósito do subsídio de férias, no valor de €851,16, pois acabou o pagamento em duodécimos.
O- O recorrente cumpriu, com excepção do mês de Outubro de 2015, que já depositou, tudo a que estava obrigado,
P- Em Junho, Julho e Agosto de 2015 não fez depósitos de €63,93, mas em Setembro entregou/depositou €997,02, não sabendo, agora se já estava incluído o mês de Outubro ou não, depositou agora à cautela.
Q- Se essa questão fosse levantada em tempo útil e não passados 3 anos, nada disto acontecia, e o recorrente deveria ser notificado em tempo útil da falta desse depósito e não foi, falhando, novamente, o principio do contraditório o que constitui uma nulidade, que se argui para todos os legais efeitos,
R- Nulidades que só agora tomou conhecimento estando em tempo para a sua arguição, o que faz pelo presente recurso.
S- É sabido que com o volume de processos os senhores Juízes não possam fazer uma gestão dos processos como gostariam, mas para isso têm os senhores administradores de insolvência/fiduciários para fazer todo este controle e não podem dizer que têm processos a mais pois, não são obrigados a ter processos a mais, ao contrário do Senhores Juízes.
T- Já fez o pagamento do mês em falta e segundo as suas contas o recorrente fez o depósito do citado mês de Outubro de 2015 e das diferenças de valores, que uma vez depositados a mais outra vezes a menos, tudo valores de montante na ordem de cêntimos, somente houve 4 vezes que depositou a menos - €1,50 e 4 vezes que depositou a menos €2,69 (porque efectivamente não tinha esse valor para depositar) desde 2013 a 2018, no valor de €40,50. Para os pobres todos os cêntimos contam.
U- Sendo certo que o recorrente mandava um e.mail à fiduciária a dizer que havia feito o depósito, nunca recebeu em resposta NADA e face a isso deixou de mandar e continuou a fazer os depósitos.
V- A douta sentença recorrida violou manifestamente o disposto no art.º 243.º do CIRE, devendo ser revogada e substituída por outra que seja reconhecido ao recorrente a exoneração do passivo restante.
X- Se, assim, não se entender, deve este Venerando Tribunal ordenar à senhora fiduciária que apure todos os depósitos feitos pelo recorrente e notificar, o mesmo, na eventualidade de haver quaisquer diferenças ou qualquer quantia por entregar, para fazer e respectivo depósito, sendo certo que o recorrente faculta todos os recibos da entidade patronal, como sempre fez, e face a as essas entregas de documentos, nunca foi notificado fosse para o que fosse.
E, V. Excelências dando provimento ao presente recurso estão a fazer a costumada Justiça.
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O recurso foi recebido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
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Foram colhidos os vistos legais.
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III-O Direito

Como resulta do disposto nos art.os 608.º, n.º 2, ex vi do art. 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º,, nº. 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil (C.P.C.), sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio, este Tribunal só poderá conhecer das que constem das conclusões que definem, assim, o âmbito e objecto do recurso.

Deste modo, e tendo em consideração as conclusões acima transcritas cumpre decidir se deve ser revogada a decisão de recusa de exoneração do passivo restante, por forma a ser substituída por outra que determine a concessão dessa exoneração ou determine as diligências necessárias a apurar todos os depósitos feitos pelo recorrente, notificando-o, na eventualidade de haver quaisquer diferenças ou qualquer quantia por entregar, para fazer e respectivo depósito.
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- Fundamentação de facto

Factos dados como provados

a) Por sentença datada de 24.10.2012, foi declarada a insolvência de Carlos, na sequência da apresentação, por este, à insolvência;
b) Por despacho datado de 07.02.2013, a fls. 157ss, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante, tendo por Ac. Tribunal da Relação de 04.06.2013 proferido no âmbito do apenso D sido fixado o valor do rendimento a ceder nas quantias que ao insolvente fossem pagas a título de subsídio de férias e de natal;
c) O processo de insolvência foi encerrado em 07.02.2013;
d) O insolvente cedeu à Exma. Sra. Fiduciária as seguintes quantias (cfr. fls. 229ss, 240ss, 251ss, 319ss, 332ss, 364ss, 425ss, 476ss e 491ss):



e) O insolvente auferiu os seguintes rendimentos ilíquidos a título de subsídio de férias e de natal durante o período de cessão (cfr. fls. 238, recibos a fls. 274ss, 344ss, 389ss, 466ss e 519ss):

f) Ao insolvente não são conhecidos antecedentes criminais (cfr. fls.530).
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Dos autos resultam, ainda, os seguintes factos:

1-Na decisão que declarou encerrado o processo de insolvência consignou-se que ‘a exoneração requerida será concedida desde que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), o rendimento disponível que o insolvente venha a auferir se considere cedido ao fiduciário abaixo indicado, com exclusão do que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do devedor, que se fixa no salário mínimo nacional’.
2-Mais aí se acrescentando que durante o período de cessão fica o devedor obrigado a, entre o mais aí consignado, entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos que exceda o salário mínimo nacional, incluindo-se no rendimento disponível todo e qualquer subsídio de férias e natal.
3-Por requerimento de 9.4.2014, a AI veio informar nos autos ter enviado, a 12.7.2013, CR/AR ao insolvente para lhe comunicar o teor do despacho de exoneração do passivo restante e os dados da conta bancária aberta em nome da massa insolvente – cfr. fls. 230, do p.p.
4- Por requerimento de 12 de Novembro de 2015, a AI veio expor que:

-‘Até à data, o insolvente tem procedido à entrega mensal dos duodécimos do subsídio de Natal, que ascende, actualmente, a € 65,12 – cfr. extractos já juntos aos autos.

Sucede, contudo, que não procedeu à entrega dos valores recebidos a título de subsídio de férias referentes aos anos de 2013, 2014 e 2015, nos montantes de €768,77, € 762,51 e € 782,39, respectivamente, e aos reembolsos de IRS que lhe foram efectuados, nos valores de € 539,69 e os € 1.105,88, referenciados no despacho proferido em 28/10/2015, com a referência 142996486.

Por tal facto, deve o insolvente ser notificado para proceder à entrega dos mencionados subsídios de férias e reembolsos de IRS por si recebidos, sob pena da eventual cessação antecipada da exoneração, nos termos do art. 243º do CIRE, o que se requer’.
5-O Banco A, S.A., credora reclamante, veio, em face da notificação efectuada para o feito, dizer que, s.m.o, os subsídios de férias e reembolsos referidos no despacho de 28.OUT.2015 constituem rendimento disponível e, nessa medida, a ceder ao fiduciário.
Não tendo tais rendimentos sido cedidos, como considerou depreender-se do despacho em questão, veio requer que os insolventes fossem notificados para esclarecer o motivo pelo qual o não fizeram e para, imediatamente, entregarem à Sr.ª Fiduciária as verbas em questão.
Não sendo fornecida pelos insolventes a informação solicitada e/ou não sendo entregues à Sr.ª Fiduciária as quantias, requereu que fosse determinada a cessação antecipada da exoneração do passivo restante
6-Com cópia do requerimento apresentado pelo Banco A, determinou-se a notificação do insolvente para em 10 dias, querendo, se pronunciar.
7- Nos termos e para os efeitos do disposto no art. 243.º/3 CIRE, com cópia do requerimento apresentado pelo Banco A (e com o esclarecimento expresso que o insolvente foi notificado para querendo, em 10 dias, se pronunciar sobre ele) determinou-se, ainda, a notificação da Exma. Sra. Fiduciária bem como os demais credores para em 10 dias, querendo, se pronunciarem sobre a eventual cessação antecipada da exoneração do passivo restante.
8-A 11.10.2017, o insolvente apresentou requerimento em que afirmou não ter sido condenado a fazer a entrega do valor que recebe a titulo de devolução do IRS, informando que, o valor que recebe a titulo de devolução sempre o destinou ao pagamento das propinas da filha que frequenta o Ensino Superior e sempre guardou esse dinheiro para pagar as propinas na Escola Superior, conforme documento que anexou.
9-Notificada a AI veio a mesma pronunciar-se referindo que ‘conforme despacho proferido em 26/09/2017, o reembolso de imposto ao insolvente que fosse superior ao valor do salário mínimo nacional (€557,00) ou, ainda que inferior, se somado a eventual vencimento/prestação social auferido que fosse superior a esse montante, deveria ser cedido à fiduciária, sob pena de violação pelo insolvente da obrigação que o art. 239º, n.º 4, al. c) CIRE sobre si faz recair, o que poderá fundamentar uma recusa da requerida exoneração.
Por tal facto, o montante recebido a título de reembolso de IRS deveria ter sido cedido à fiduciária, devendo o insolvente ser notificado para repor o valor em causa, sob pena de violação da obrigação a que alude o art. 239º, n.º 4, al. c) CIRE e eventual cessação antecipada da exoneração’.
10-Como o referiu, o insolvente, nos meses de Setembro de 2016 e Agosto de 2017, cedeu € 67,93 e € 69,94, respectivamente, ou seja, do confronto com os valores líquidos dos recibos de vencimento juntos, resulta que o insolvente deveria ter cedido os montantes de € 346,79, em Setembro de 2016, e de € 467,69, em Agosto de 2017.
Por tal facto, requereu a notificação do insolvente para proceder, sob pena de violação do disposto no art. 239.º, n.º 4, al. c) do CIRE e eventual cessação antecipada da exoneração,:

- à junção dos recibos do vencimento por si auferido entre os meses de Outubro de 2016 e Julho de 2017;
- à reposição dos valores em falta desde o mês de Setembro de 2016, nomeadamente, o correspondente ao reembolso de IRS.
11- Perante os elementos juntos aos autos, foi, então, mencionado que o insolvente deveria ter cedido, para além da quantia de € 1.539,99, o montante de € 4.451,40, correspondente aos seguintes valores parcelares:
- em Setembro de 2016 auferiu o vencimento líquido de € 903,79 (- € 530,00 - € 67,93), valor remanescente a ceder = € 305,86;
- em Outubro de 2016 auferiu o vencimento líquido de € 895,25 (- € 530,00 - € 67,93), valor remanescente a ceder = € 297,32;
- em Novembro de 2016 auferiu o vencimento líquido de € 917,91 (- € 530,00 - € 67,93), valor remanescente a ceder = € 319,98;
- em Dezembro de 2016 auferiu o vencimento líquido de € 909,37 (- € 530,00 - € 67,93), valor remanescente a ceder = € 311,44;
- em Janeiro de 2017 auferiu o vencimento líquido de € 889,23 (- € 557,00 - € 34,97), valor remanescente a ceder = € 297,26;
- em Fevereiro de 2017 auferiu o vencimento líquido de € 1.056,25 (- € 557,00 - € 34,97), valor remanescente a ceder = € 464,25;
- em Março de 2017 auferiu o vencimento líquido de € 973,56 (- € 557,00 - € 34,97), valor remanescente a ceder = € 381,59;
- em Abril de 2017 auferiu o vencimento líquido de € 993,84 (- € 557,00 - € 35,47), valor remanescente a ceder = € 401,37;
- em Maio de 2017 auferiu o vencimento líquido de € 1.006,24 (- € 557,00 - € 35,47), valor remanescente a ceder = € 413,77;
- em Junho de 2017 auferiu o vencimento líquido de € 1.854,03 (- € 557,00 - € 886,62), valor remanescente a ceder = € 410,41;
- em Julho de 2017 auferiu o vencimento líquido de € 1.007,40 (- € 557,00), valor remanescente a ceder = € 450,40;
- em agosto de 2017 auferiu o vencimento líquido de € 1.024,69 (- € 557,00 - € 35,34 - € 34,47), valor remanescente a ceder = € 397,75.

Acrescentou, ainda, que, conforme despacho proferido em 26/09/2017, o devedor deveria ainda ter procedido à entrega do montante recebido a título de reembolso de IRS do ano de 2016, sob pena de violação pelo insolvente da obrigação que o art. 239º, n.º 4, al. c) do CIRE sobre si faz recair, podendo tal violação determinar a cessação antecipada da exoneração.

Assim, em face da factualidade supra exposta, considerou adequado que o insolvente fosse notificado para proceder ao pagamento dos valores devidos e não entregues para a conta fiduciária aberta no Banco B com o IBAN (...).
12-Vindo novamente prestar a informação a que se refere o art.º 240.º do CIRE, foi referido que:

-Nos termos do despacho de admissão da exoneração do passivo restante o rendimento disponível do insolvente, objecto de cessão, seria integrado por todos os rendimentos que adviessem a qualquer título, com exclusão do correspondente a um salário mínimo nacional, que se fixou como necessário para o sustento minimamente condigno.

Todavia, considerando que, após recurso de apelação apresentado pelo insolvente, o Tribunal da Relação de Guimarães, 2.ª Secção Cível, em 04/06/2013, concedeu provimento ao mesmo, perante os elementos juntos aos autos, considerou ter o insolvente cumprido as obrigações a que se encontrava adstrito, pelo que se emitiu parecer no sentido de ser concedida a exoneração do passivo restante com os efeitos do art.º 245.º do CIRE.
13-Face a tal parecer, foi proferido despacho no seguintes termos:

- ‘Os relatórios remetidos aos autos pela Exma. Sra. Fiduciária nos termos e para os efeitos do disposto no art. 61.º/1, ex vi art. 240.º/2, ambos do CIRE, em 15.09.2015 e em 13.07.2016 apresentam valores incompatíveis relativamente aos montantes que terão sido objecto de cessão.

Assim, notifique a Exma. Sra. Fiduciária para em 10 dias esclarecer essa aparente contradição, mais devendo, no mesmo prazo, indicar qual o valor global cedido pelo insolvente durante o período de cessão.
Não sendo dada resposta no prazo concedido, insista com cominação de multa.
*
Concatenados os recibos de vencimento juntos aos autos pelo insolvente com as informações prestadas pela Exma. Sra. Fiduciária quanto aos montantes cedidos constata-se que ainda que processados ao insolvente montantes a título de subsídio de natal e de férias nos meses de Março a Julho de 2013 e Junho a Agosto e Outubro de 2014 este não efectuou quaisquer entregas reportadas aos subsídios auferidos nesses meses.

Assim, notifique o insolvente para em 10 dias, querendo, se pronunciar sobre tais omissões”.

14-O insolvente veio pronunciar-se, entendendo que o que tinha a entregar foi entregue à senhora Fiduciária, esclarecendo que começou a fazer as entregas após a data do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães e o restante pagou conforme documentos que juntou, pelo que, se dispôs a entregar qualquer duodécimo (na altura era assim pagos os subsídios) por si não detectado por alguma falha de entrega.
15-Perante o esclarecimento requerido, a Sr.ª Fiduciária, veio esclarecer o seguinte, quanto à aparente contradição de valores:

-No relatório a que alude o art. 240º do CIRE junto aos autos em 15/09/2015 consta que o insolvente tinha cedido o montante global de € 2.251,23, o qual foi afecto ao pagamento parcial da conta de custas.

Por sua vez, no relatório anual junto aos autos em 13/07/2016, refere-se que o insolvente cedeu a quantia global de € 1.457,53.

Ora, o montante de € 1.457,53 corresponde ao somatório dos valores cedidos mensalmente pelo insolvente por referência ao período compreendido entre 24/09/2015 e 21/06/2016, relativo ao ano de cessão em causa.

A mencionada quantia de € 1.457,53 acresce, por conseguinte, ao montante de € 2.251,23 previamente cedido pelo insolvente – no período compreendido entre 28/08/2013 e 15/09/2015.
Pelo exposto e salvo melhor entendimento, inexiste incompatibilidade de valores relativamente aos montantes objecto de cessão nos relatórios apresentados em 15/09/2015 e 13/07/2016’.

Já quanto ao valor global cedido pelo insolvente durante o período de cessão referiu que:

-‘Durante o período de cessão, o insolvente cedeu o valor global de € 6.690,04 - cfr. extracto bancário que se junta – mediante as entregas mensais infra elencadas:

- em 28/08/2013, o montante de € 77,96;
- em 27/09/2013, o montante de € 77,96;
- em 29/10/2013, o montante de € 77,96;
- em 27/11/2013, o montante de € 77,96;
- em 02/01/2014, o montante de € 77,96;
- em 30/01/2014, o montante de € 74,90;
- em 27/02/2014, o montante de € 74,98;
- em 02/04/2014, o montante de € 66,29;
- em 30/04/2014, o montante de € 66,29;
- em 28/05/2014, o montante de € 66,29;
- em 03/07/2014, o montante de € 842,10;
- em 01/09/2014, o montante de € 70,93;
- em 01/10/2014, o montante de € 70,93;
- em 03/11/2014, o montante de € 70,93;
- em 28/11/2014, o montante de € 65,12;
- em 31/12/2014, o montante de € 65,12;
- em 30/01/2015, o montante de € 65,12;
- em 03/03/2015, o montante de € 65,12;
- em 01/04/2015, o montante de € 65,12;
- em 04/05/2015, o montante de € 65,12;
- em 03/06/2015, o montante de € 65,12;
- em 24/09/2015, o montante de € 997,02;
- em 02/12/2015, o montante de € 63,93;
- em 30/12/2015, o montante de € 63,93;
- em 03/02/2016, o montante de € 63,93;
- em 01/03/2016, o montante de € 66,93;
- em 01/04/2016, o montante de € 66,93;
- em 27/04/2016, o montante de € 66,93;
- em 02/06/2016, o montante de € 67,93;
- em 29/06/2016, o montante de € 877,28;
- em 01/08/2016, o montante de € 67,93;
- em 30/08/2016, o montante de € 67,93;
- em 26/09/2016, o montante de € 67,93;
- em 28/10/2016, o montante de € 67,93;
- em 29/11/2016, o montante de € 67,93;
- em 27/12/2016, o montante de € 67,93;
- em 31/01/2017, o montante de € 34,97;
- em 23/02/2017, o montante de € 34,97;
- em 30/03/2017, o montante de € 34,97;
- em 27/04/2017, o montante de € 35,47;
- em 29/05/2017, o montante de € 35,47;
- em 28/06/2017, o montante de € 886,62;
- em 02/08/2017, o montante de € 35,47;
- em 29/08/2017, o montante de € 34,47;
- em 28/09/2017, o montante de € 35,47;
- em 27/10/2017, o montante de € 35,47;
- em 28/11/2017, o montante de € 461,05 e
- em 02/01/2018, o montante de € 35,47.

15-Notificado, o insolvente veio pronunciar-se, referindo não lhe interessar saber se há, ou não, contradição entre os relatórios, mas sim se há algum valor em falta para ser efectuado o depósito, pelo que, deduzindo do requerimento apresentado pela senhora fiduciária que não há qualquer quantia por pagar, nada há a depositar, requerendo, assim, o prosseguimento dos autos, e, assim, perfazendo os cinco anos, se considere o mesmo reabilitado.
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- Fundamentação de Direito

Como se salientou no preâmbulo ao Decreto-Lei nº. 53/2004, de 18 de Março, por via do mecanismo designado por «exoneração do passivo restante» (artigos 235.º a 248.º do citado Código), pretende-se “conjugar o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica”.

Este procedimento de exoneração do passivo restante corresponde a uma filosofia da «fresh start» em que ocorre a extinção das dívidas e a libertação do devedor por forma a que este não fique inibido de começar de novo e poder retomar a sua actividade económica.

A “exoneração do passivo restante” resulta, como se refere no preâmbulo do CIRE, da conjugação de dois princípios fundamentais: o ressarcimento dos credores e a reabilitação económica das pessoas singulares de boa fé.

A concessão desse benefício pressupõe, todavia, que essas pessoas observem, no referido período de cinco anos, o dever de ceder o rendimento disponível a um fiduciário que afectará os montantes recebidos ao pagamento aos credores, por forma a que, no fim desse período, tendo o devedor cumprido todos os deveres que assumiu com os credores, seja libertado das dívidas que ainda não tenham sido liquidadas, por se extinguir o que não foi pago no processo no período de cessão.
É um benefício, no entanto, que se concede com contrapartidas e condições directamente ligadas à satisfação mínima dos credores.
Pois, como convém não esquecer, o princípio fundamental que informa todo o CIRE é o do ressarcimento dos credores.

Assim, durante o período de cessão, o devedor fica obrigado a mostrar uma conduta exemplar, designadamente, nos termos das als. a) e c), respectivamente, do nº4 do art.239º, a não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado e entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão.

Pois, uma vez que parte dos seus rendimentos (a parte disponível) será para ceder ao fiduciário, este tem de ser informado, bem como o tribunal, de qualquer circunstância que afecte os mesmos de forma a apurar se se encontra a ser cumprido o dever previsto na al.c), que, por sua vez, impõe ao devedor que os entregue de imediato, mal os receba e que não espere por qualquer momento mais oportuno para si para o fazer.

Assunção Cristas (artigo publicado na Revista Themis (edição especial 2005 “Novo Direito da Insolvência”, F.D.U.N.L, pag.167) agrupa estas obrigações em três áreas: obrigações destinadas a garantir a transparência da situação patrimonial e pessoal do insolvente (al.a) e b)), obrigações destinadas a garantir que o devedor é diligente na procura da manutenção de um rendimento que possa satisfazer os credores (al.b) e d)) e obrigações que se destinam a atestar a probidade e lisura de comportamento do próprio devedor (al.a), c) e e)).

Por sua vez, nos termos do disposto no art.239.º, n.º 3, integram o rendimento disponível todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão:

a)Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz;
b) Do que seja razoavelmente necessário para:

i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional;
ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional;
iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor.

Acresce que, como se dispõe no art. 243°, nº 1, als. a) e b) do CIRE, antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:

a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.°, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.° 1 do artigo 238.°, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente. (…)

3. Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1 o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe for fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.

Acontece que a primeira causa da cessação antecipada (prevista na alínea a) do art.º 243.º) exige uma dupla condição: por um lado, que exista dolo grave ou culpa grave na violação; por outro lado que essa violação seja causa adequada a prejudicar o ressarcimento creditório.

Não tendo havido lugar a cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência- cfr. n.º 1, do art. 244.º, do CIRE – acrescentando-se no seu n.º 2, que a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.

Face ao exposto, cumpre, pois, apurar se o devedor violou dolosamente ou com grave negligência alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.°, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;

Ora, a negligência grosseira corresponde à falta grave e indesculpável, que consiste na omissão dos deveres de cuidado, por não se ter usado daquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas, pelo que se exige um dever de prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo.
São estes comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa fé, cuja observância por parte do devedor é impeditiva de lhe ser reconhecida possibilidade de se libertar de alguma das suas dívidas, e assim, conseguir a reabilitação económica.

Já para que se verifique um “prejuízo para os credores” necessário se torna a verificação de comportamentos que impossibilitem, dificultem ou diminuam a possibilidade de os credores obterem a satisfação dos seus créditos: uma diminuição do património, uma oneração do mesmo ou comportamentos geradores de novos dividas a acrescer àquelas que já integravam o passivo que o devedor já não conseguia satisfazer.

Como decorre dos autos, em termos concretos, o insolvente, sempre que notificado, prestou os esclarecimentos requeridos, as informações solicitadas, juntou os documentos pedidos e apresentou, inclusive, justificação para o facto de não ter procedido à entrega dos valores por si recebidos a título de reembolso do IRS, sem que alguma vez se tivesse considerado injustificada a utilização desses valores para pagamento das propinas da sua filha, e, consequentemente, se tivesse determinado a sua entrega à fiduciária.

Por outro lado, apontou, ainda, o facto de apenas estar obrigado a entregar os valores por si recebidos a título de subsídio de férias e natal, em conformidade com o decidido por este tribunal, sem oposição ou contrariedade da posição por si assumida nos autos, quanto a tais valores.

Como tal, tem de se entender ressalvada essa entrega e essa despesa.

Já quanto aos valores reportados na al.e), como tendo sido por si recebidos, há que ter em conta que se tratam de quantias ilíquidas, daí o diferencial entre os valores entregues e recebidos.

Por outro lado, pese embora nalguns meses essas entregas não tenham sido prontamente efectuadas, o facto é que, como se constata, noutros meses, procedeu-se a duas entregas de valores, pelo que sempre se teria de proceder à respectiva compensação em relação aos meses anteriores em falta.

Relativamente ao facto de não se ter procedido, de imediato, à entrega dos valores devidos, a não ser após notificação do teor do recurso interposto e de acordo com o aí determinado, também não se pode esquecer que tal circunstância não serviu para fundamentar uma cessação antecipada do procedimento de exoneração.

Aliás, nunca se permitiu ao devedor insolvente repor qualquer valor em falta, dado que nunca o mesmo foi notificado para o fazer, nem nunca previamente se especificou quais os concretos valores que lhe eram devidos e que se encontravam por entregar, apontando-se-lhe qual o incumprimento susceptível de fundamentar a decisão final que veio a ser proferida, tanto mais que a própria fiduciária veio, a final, concluir não existir qualquer quantia por pagar ou a depositar, requerendo, assim, a reabilitação do insolvente.

Por outro lado, os credores, a não ser o Banco A quanto à concreta situação já reportada quanto às quantias recebidas a título de reembolso de IRS, já considerada como justificada (quanto mais não fosse por omissão), nunca vieram requerer a cessação antecipada da exoneração, nem se manifestaram contra a reabilitação do insolvente.

Acresce que, como se reforça, a existir um qualquer incumprimento por parte do devedor, nunca ao mesmo foi dada a possibilidade de cumprir em determinado prazo, e mesmo, previamente, poder exercer o seu direito ao contraditório (artigo 3.º, n.º 3 do Código Processo Civil).

Pois, só com a prolação da sentença é que teve conhecimento dos valores que o tribunal considerava estarem em falta, pese embora, previamente, tenha vindo aos autos sempre defender encontrar-se a cumprir o determinado, sem que alguma tivesse sido notificado de que assim não era e que incorria em erro, lapso, falha ou incumprimento.

Ora, como decorre do disposto no artigo 3.º, n.º 3 do Código Processo Civil, “O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”.

Por essa via, não subsistirão dúvidas de que na estruturação de um processo justo o tribunal deve prevenir e, na medida do possível, obviar a que os pleiteantes sejam surpreendidos com decisões para as quais as suas exposições não foram tomadas em consideração.

Trata-se de emanações dos princípios de cooperação, boa-fé processual e colaboração entre as partes e entre estas e o tribunal, que se julga não suficientemente observadas no caso concreto.

De qualquer das formas, entendemos que o comportamento do devedor, perante o exposto, e mesmo mencionado pela fiduciária, não reveste uma violação, com grave negligência, das obrigações que lhe foram impostas, e um consequente prejuízo da satisfação dos créditos sobre a insolvência.

Como tal, não se verificando tais requisitos e, consequentemente, não se enquadrando a situação na al. a), do n.º 1, do art. 243°, do CIRE, aplicável por força do disposto no n.º 2, do art. 244.º, do mesmo diploma, deve ser concedida a exoneração do passivo restante do devedor, revogando-se, consequentemente, a decisão que a recusou.

Nestes termos, tem, pois, de proceder o recurso interposto.
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IV-Decisão

Pelo exposto acordam os juízes nesta Relação em julgar procedente a apelação, revogando, consequentemente, a decisão recorrida nos termos supra expostos.
Sem custas.
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TRG, 11.10.2018
(O presente acórdão foi elaborado em processador de texto pela primeira signatária)

Maria dos Anjos S. Melo Nogueira
Desembargador José Carlos Dias Cravo
Desembargador António Manuel Antunes Figueiredo de Almeida