Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2098/08.4TBBCL-B.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: EXECUÇÃO
VENDA
INCIDENTE DE ENTREGA DO IMÓVEL VENDIDO
SUSPENSÃO DA ENTREGA
JUNÇÃO DE DOCUMENTOS EM FASE DE RECURSO
QUESTÃO NOVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/29/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (do relator):

1- A junção de documento em fase de recurso com fundamento de que essa junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido pela 1ª Instância tem como pressuposto que, essa decisão, comporte elementos de novidade para o apresentante do documento, no sentido de que a mesma tenha sido, de todo, surpreendente para aquele, face ao que lhe seria expectável, perante os elementos do processo, como acontece quando a decisão em causa se tenha baseado em meios de prova inesperadamente juntos oficiosamente pelo tribunal, em que já não era possível ao apresentante do documento juntá-lo aos autos, ou nos casos em que essa decisão se tenha fundado em preceito jurídico ou interpretação, com cuja apreciação aquele não podia justificada e razoavelmente contar.

2- Na fase de recurso não é admitida a alegação de factos novos, sob pena de violação dos princípios estruturante do processo civil da estabilidade da instância, do dispositivo e do contraditório.

3- Na fase de recurso também não é admitido que se suscitem questões novas, uma vez que os recursos são os meios de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se procura eliminar ou corrigir decisões inválidas, erradas ou injustas, visando modificar essas decisões, e não criar decisões sobre questões novas, que não tenham sido suscitadas junto do tribunal recorrido.

4- Destinando-se o documento junto com as alegações de recurso a fazer prova de novos factos, apenas alegados pelos apelantes nas suas alegações de recurso, esse documento, em nenhuma circunstância, pode ser junto aos autos, por não se verificarem os requisitos do art. 423º, n.º 1 do CPC.

5- O pedido de entrega do art. 828º do CPC é um incidente da ação executiva para pagamento de quantia certa, que é enxertado nessa execução e que não tem a virtualidade de a paralisar.

6- Da leitura conjugada dos arts. 861º, n.º 6 e 863º, n.º 3 do CPC resulta que neles se prevêem duas situações distintas referentes a imóvel a entregar que constitua a residência principal do executado: a) a enunciada nos n.ºs 3 a 5 do art. 863º do CPC, em que mediante atestado médico se mostre que a diligência de entrega do imóvel põe em risco de vida a pessoa ou pessoas que se encontrem nesse imóvel; e b) a prevista na segunda parte do n.º 6 do art. 861º, em que se suscitam sérias dificuldades no realojamento dessa pessoa ou pessoas.

7- A primeira situação implica que o agente de execução tenha de suspender, de imediato, a diligência de entrega do imóvel, enquanto a segunda situação (sérias dificuldades no realojamento) apenas implica que o agente de execução tem, previamente à data designada para a entrega do imóvel, comunicar essas dificuldades à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes.

8- Essa comunicação destina-se a permitir que a câmara e essas entidades tomem conhecimento das dificuldades de realojamento das pessoas a desalojar, dando-lhes a possibilidade de analisar a situação e, eventualmente, se essas dificuldades de realojamento forem verdadeiros e caso aquelas disponham de possibilidades para realojar essas pessoas, na data designada para a realização do desalojamento, providenciarem solução para o problema, mas não determinam a suspensão das diligências executórias para a entrega do imóvel.

9- A diversidade de soluções jurídicas consignadas na lei para as duas situações referidas em 6) decorre da circunstância de, no caso de sérias dificuldades no realojamento” das pessoas a desalojar, não existir fundamento constitucional que permita o legislador sacrificar o direito fundamental à propriedade do adquirente do imóvel, a favor dos terceiros, ocupantes deste, quando esses terceiros nenhum direito têm a essa ocupação e não cumprir ao proprietário solucionar os problemas habitacionais dessas pessoas, mas antes ao Estado dentro da “reserva do possível”.

10- O regime fixado art. 861º, n.º 6 do CPC quando se verifique uma situação de “sérias dificuldades no realojamento” ou a interpretação referida em 7) que se faz do preceito em causa não viola os arts. 1º, 20º, 25º e 34º da CRP.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães.

I- RELATÓRIO.

Nos autos de execução para pagamento de quantia certa, que Banco A, S.A. – Sociedade Aberta, instaurou contra C. F. e mulher, Maria e outros, vieram os executados C. F. e Maria requerer, ao abrigo do disposto nos arts. 861º do CPC, 1º, 20º, 25º e 34º da Constituição da República Portuguesa, a suspensão da diligência de entrega do imóvel vendido, com os seguintes fundamentos:

O imóvel que foi objeto da venda constitui a casa de morada de família dos executados, que são pessoas pobres, de parcos rendimentos e não dispõem de condições para encontrar alojamento alternativo;
Os executados encontram-se reformados e contam com rendimentos que rondam os 350,00 euros mensais cada;
A manter-se a decisão de entrega, aqueles serão colocados na rua, a viver à chuva e ao vento;
Acresce que o executado C. F. padece de doenças graves, que determinaram a sua invalidez por doença ortopédica, conforme documento de fls.7, e já solicitou atestado de invalidez, que protesta juntar aos autos, mal aquele seja emitido pelo Hospital da Prelada;
O executado José encontra-se praticamente invisual, padecendo de gravíssimas dificuldades de visão – baixo potencial visual -, encontrando-se a ser acompanhado pelo Hospital de Braga, conforme documento de fls. 8;
Assim, face às sérias dificuldades de realojamento e aos problemas de saúde que afetam os executados, impõe-se suspender a diligência de entrega do imóvel e comunicar à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes aquelas dificuldades e problemas de saúde dos executados até que estas os consigam realojar.
Concluem pedindo que seja decretada, de imediato, a suspensão da diligência de entrega do imóvel.
Juntam um documento.

Observado o contraditório, nada foi dito na sequência do requerido.

Foi proferida decisão, indeferindo a suspensão requerida, constando essa decisão do seguinte teor:

“Nos presentes autos, concretizada que se encontra a venda do imóvel identificado nos autos, está agendada para o próximo dia 23/07/2018, pelas 10H, a diligência para entrega do imóvel ao adquirente, com a presença da força pública.

Vieram os executados C. F. e esposa MARIA, requerer nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 861.º do CPC e artigos 1.º, 20.º, 25.º e 34.º da Constituição da República Portuguesa, a SUSPENSÃO DA DILIGÊNCIA DE ENTREGA DO IMÓVEL, alegando que o imóvel que foi objeto de venda nos presentes autos constitui casa de morada de família dos executados, que são pessoas pobres de parcos rendimentos e não dispõem de condições para encontrar alojamento alternativo. Encontram-se reformados, com rendimentos mensais diminutos que rondam os 350,00€ cada. Sendo que a manter-se a decisão serão colocados na rua. Têm por isso os mesmos, gravíssimas dificuldades de alojamento alternativo à sua casa de morada de família desde há mais de 30 anos a esta parte.
Por outro lado o executado C. F. padece de doença grave ortopédica que determinou a sua invalidez.
O executado José encontra-se praticamente invisual, padecendo de gravíssimas dificuldades de visão – baixo potencial visual, encontrando-se a ser acompanhado pelo departamento de especialidade do Hospital de Braga, em virtude de estar praticamente cego.

Vejamos.

Dispõe o art.º861.º, n.º6, do C.P.C. vigente – à semelhança do que sucedia com o anterior artigo 930.º, n.º6, do CPC – que “tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.º3 a 5 do artigo 863.º e, caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes”.

Por sua vez, dispõe o art.º 863.º, do CPC, n.º3 que “tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda”, seguindo-se, depois, o formalismo previsto nos n.º4 e 5 do referido artigo 863.º, em tudo idêntico ao que sucedia no anterior artigo 930.º- B, n.º3 a 6, do CPC.

Estabelece o art. 861º, nº 6: “Tratando-se da casa de habitação principal do executado, é aplicável o disposto nos n.ºs 3 a 6 do artigo 863, e caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento do executado, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes”.

Por seu turno determinam os nºs 3 a 6 do art. 863:

“3 - Tratando-se de arrendamento para habitação, o agente de execução suspende as diligências executórias, quando se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.
4 - Nos casos referidos nos n.ºs 2 e 3, o agente de execução lavra certidão das ocorrências, junta os documentos exibidos e adverte o detentor, ou a pessoa que se encontra no local, de que a execução prossegue, salvo se, no prazo de 10 dias, solicitar ao juiz a confirmação da suspensão, juntando ao requerimento os documentos disponíveis, dando do facto imediato conhecimento ao exequente ou ao seu representante.
5 - No prazo de 15 dias, o juiz de execução, ouvido o exequente, decide manter a execução suspensa ou ordena a imediata prossecução dos autos.
6 - O exequente pode requerer, à sua custa, o exame do doente por dois médicos nomeados pelo juiz, decidindo este da suspensão, segundo a equidade.”

Assim, ao diligenciar pela entrega do imóvel vendido, o agente de execução suspende as respetivas diligências, se o imóvel constituir a habitação principal do executado e este ali continue a residir, nos casos em que se mostre, por atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução, que a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local, por razões de doença aguda.

De acordo com este preceito, para que o agente de execução suspenda as diligências para desocupação e entrega do imóvel ao adquirente, é necessário (nº 3):

1 – que seja apresentado atestado médico;
2 – que o atestado indique fundadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução;
3 – que o atestado indique fundadamente que a imediata desocupação põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local;
4 – que o risco de vida seja decorrente de doença aguda (e não crónica como parece ser o caso dos autos).

Mas, nos termos do nº 4, para que a suspensão da execução se mantenha, é necessário:

1 – que o ocupante do imóvel solicite ao juiz a confirmação da suspensão, juntando ao requerimento os documentos disponíveis;
2 – que o faça no prazo de 10 dias após a suspensão das diligências determinada pelo solicitador de execução.

Ora, perante estes requisitos, apesar de ainda não ter havido suspensão entrega por parte do agente de execução, entrega essa que ainda não se concretizou, afigura-se-nos não oferecer dúvida de que o pedido de deferimento formulado pelos executados terá de ser rejeitado.

É que, como ficou dito, para que o deferimento da desocupação seja viável, é necessário que a imediata evacuação ponha em risco de vida do ocupante, que esse risco seja decorrente de doença aguda e não de doença crónica, que esse risco seja atestado por um médico e que este no atestado indique qual o prazo durante o qual se deve suspender a desocupação, e que corresponderá, parece óbvio, ao período em que se mantiver o risco de vida decorrente daquela doença aguda.

No caso, nenhum destes requisitos se verificam.

Desde logo, os executados não apresentaram qualquer documento médico que ateste que sofrem de doença aguda, que a imediata desocupação põe em risco a sua vida, e qual o período em que se deve manter a suspensão da desocupação e da entrega do imóvel ao adquirente.
Acresce que resulta da própria alegação que tais mazelas não põem em risco a sua vida.
Resultando do próprio requerimento da executada que as razões invocadas não integram os fundamentos legais que permitem o deferimento da desocupação do imóvel, vai o mesmo indeferido.
Diga-se ainda que não existem qualquer violação de normas constitucionais.
Assim, indefere-se a requerida suspensão.
Notifique, sendo a agente de execução para efeitos, sendo o caso, de antecipadamente comunicar o facto à Câmara Municipal e às entidades assistenciais competentes.
Notifique”.

Inconformados com a referida decisão vieram os executados C. F. e Maria dela interpor o presente recurso de apelação, em que apresentam as seguintes conclusões:

I. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido no processo acima identificado, que indeferiu o pedido de suspensão da diligência de entrega do imóvel, determinado nos presentes autos.
II. O presente recurso tem na sua base o entendimento que o despacho datado de 12/07/2018, com referência 159234731, não se adequa aos elementos que foram carreados para os autos, os quais acarretariam, necessariamente, a suspensão da diligência de entrega do imóvel, que constitui casa de habitação principal dos executados.
III. No entanto, o douto Tribunal recorrido entendeu ser de indeferir o pedido de suspensão daquela diligência.
IV. Salvo o devido respeito por melhor entendimento, os recorrentes consideram que, atento os elementos carreados para os autos, o pedido de suspensão da diligência de entrega do imóvel deveria ter sido decretado.
V. A presente execução tem por base uma livrança subscrita por José e mulher, S. C., e avalizada pelos executados, ora recorrentes.
VI. Além da garantia prestada/avalizada, por escritura pública, outorgada, os recorrentes constituíram a favor do recorrido Banco, hipoteca sobre o seguinte imóvel:
Prédio urbano situado no Lugar (...),freguesia de (...), conselho de Barcelos, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº (...) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (...).
VII. Tal imóvel, após penhora, foi adjudicado a CB & CC Lda.
VIII. Sucede, porém, que o imóvel em questão, constitui casa de morada de família dos ora recorrentes, na qual residem há mais de 30 anos, juntamente com uma filha e um neto de 4 anos de idade.
IX. Constituindo, por isso, a única casa, o único teto, que os recorrentes e a sua família têm para morar.
X. Ademais, os recorrentes não dispõem de condições financeiras para adquirir ou sequer arrendar uma casa.
XI. De tal modo que os serviços de apoio ao arrendamento habitacional da Câmara Municipal sinalizaram a situação deste agregado familiar como muito grave.
XII. A acrescer às dificuldades de realojamento deste agregado, está o facto de o recorrente C. F. padecer de doença grave, nomeadamente do foro cardíaco,
XIII. A qual se comprova através do atestado médico que apenas se junta nesta fase, uma vez que o mesmo apenas foi emitido na data nele aposta e não antes por motivo alheio ao recorrente.
XIV. Tudo ao abrigo do disposto nos artigos 651.º, nº 1, 425º e 423º, todos do CPC.
XV. Saliente-se que do referido atestado consta que o recorrente, além de outras doenças, padece de bradicardia.
XVI. Sendo que a bradicardia grave pode, em casos extremos, gerar a morte, devido à falta de oxigénio no cérebro.
XVII. Perante as dificuldades apresentadas de alojamento e a doença de que padece o recorrente C. F., foi apresentado pedido de suspensão da diligência de entrega do imóvel.
XVIII. Não obstante, o tribunal recorrido “fez tábua rasa” do pedido apresentado pelos recorrentes em 25/05/2018.
XIX. Porquanto, entre a data da prolação do despacho ora recorrido e aquele requerimento apresentado pelos recorridos decorreram cerca de dois meses.
XX. Tendo sido, inclusivamente, marcada data para entrega do imóvel, mesmo sem haver decisão quanto ao pedido de suspensão.
XXI. Motivo pelo qual não poderão os recorrentes concordar com o teor do despacho recorrido, uma vez que a situação dos autos merece uma melhor ponderação e decisão diversa.
XXII. O artigo 861.º, n.º 6 in fine do CPC prevê duas situações bem distintas: O caso em que o executado preenche os requisitos do artigo 863.º n.ºs 3 a 5, situação de “suspensão de execução”; E o caso em que o executado não preenche os requisitos do art. 863.º n.ºs 3 a 5, mas ainda assim existem “sérias dificuldades no seu realojamento”.
XXIII. No caso concreto, parece-nos, que estamos tanto perante uma situação de risco para a vida, tendo em conta os argumentos supra expostos, como de dificuldade de realojamento.
XXIV. Destarte, além de estarmos perante um executado que padece de doença grave, aguda, que pode culminar com a morte, estão também verificadas sérias dificuldades de realojamento,
XXV. Uma vez que os serviços assistenciais não conseguiram, pelo menos até à data, assegurar o alojamento deste agregado familiar,
XXVI. Que, reitere-se, é composto por duas pessoas de idade avançada e por um menor, com 4 anos de idade.
XXVII. Pelo que, deve-se suspender a diligência de entrega coerciva do imóvel.
XXVIII. Deste modo, o douto despacho recorrido violou o artigo 861.º, n.º 6 do CPC, bem como os artigos 1.º, 20.º, 25.º e 34.º da Constituição da República Portuguesa.

Nestes termos e pelo exposto, deverá ser dado provimento ao recurso e, em consequência, deverá ser revogado e substituído por outro que defira o requerimento dos executados de 25/05/2018 (Ref.ª: 7142653).
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos apelantes, não podendo esta Relação conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4 e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
No seguimento desta orientação, as questões que se encontram submetidas à apreciação desta Relação são as seguintes:

a- questão prévia: da admissibilidade da junção aos autos pelos apelantes, em sede de recurso, do documento de fls. 35 verso (relatório médico emitido pela Unidade de Saúde B. em 19/07/2018);
b- se a decisão proferida, ao indeferir a suspensão da diligência de entrega do imóvel, padece de erro de direito por violar o disposto nos arts. 861º, n.º 6 do CPC, 1º, 20º, 25º e 34º da Constituição da República Portuguesa (doravante “CRP”).
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A- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para a apreciação do presente recurso são os que constam do relatório acima elaborado.
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B- FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

Enunciadas que estão as questões que se encontram submetidas pelos apelantes à apreciação desta Relação, a primeira questão a apreciar, como não podia deixar de ser, é a da admissibilidade legal da junção aos autos do relatório médico de fls. 35 verso, emitido pela Unidade de Saúde B. em 19/07/2018.

B.1- Da questão prévia – admissibilidade da junção do documento.

Os apelantes requerem a junção aos autos do relatório médico de fls. 35 verso, emitido em 19/07/2018, pela Unidade de Saúde B., justificando a junção do mesmo apenas nesta fase de recurso com o facto daquele relatório só ter sido emitido na data que nele se encontra aposta, por motivos alheios àqueles e, bem assim, por tal documento se revelar absolutamente essencial para a apreciação do recurso.

Urge verificar se assiste aos apelantes o direito a requerer a junção aos autos do enunciado documento na presente fase recursiva, juntamente com as suas alegações de recurso.

Como é sabido, nos termos do disposto no n.º 1 do art. 423º do CPC, os documentos destinados a fazer prova dos fundamentos da ação ou da defesa devem ser apresentados com o articulado em que se aleguem os factos correspondentes.

A prova documental pode ainda ser junta aos autos até ao 20º dia anterior à da data em que se realize a audiência final, mas neste caso a parte apresentante fica sujeita a multa, exceto se provar que não pôde oferecer o documento com o articulado (n.º 2 do art. 423º do CPC).

Posteriormente ao vigésimo dia que antecede a data da realização efetiva da audiência final, ainda podem ser juntos aos autos documentos até ao encerramento da discussão em 1ª Instância (1), desde que se verifique alguma das seguintes circunstâncias: a) se a apresentação do documento não foi possível até àquela data-limite, caso em que a junção deve ter lugar logo que isso se torne possível, sem se aguardar qualquer dilação; ou b) se a junção se tiver tornado necessária em consequência de ocorrência posterior.

Enuncie-se que este regime legal é substancialmente distinto daquele que vigorava antes da revisão operada ao CPC pela Lei n.º 41/2013, de 26/06, em que o limite para a apresentação de documentos era o encerramento da discussão em 1ª instância (embora sujeito a multa, exceto se o apresentante provasse que não pôde juntar o documento em causa aos autos com o articulado correspondente), o que tinha por efeitos provocar, frequentes vezes, o adiamento da audiência final ou a suspensão dos trabalhos, de modo a assegurar o exercício do contraditório, além de que essa junção em plena audiência final funcionava como elemento de pressão e de perturbação dos depoimentos em curso e fomentava a deslealdade processual, posto que as partes iam libertando documentos, ao longo da audiência final, à medida que a prova ia sendo produzida e das suas conveniências probatórias, com as inerentes perturbações para os depoimentos em curso, prejuízos para a celeridade processual e a deslealdade processual que está imanente a semelhantes condutas.

Pondo termo a essas práticas, numa manifestação de efetividade do princípio da boa-fé processual e promovendo a celeridade processual, na sequência da revisão ao CPC operada pela Lei n.º 41/2013, de 26/6, estabeleceu-se, como regra, que a partir do vigésimo dia em que se venha a realizar a audiência final, não é admitida a junção aos autos de documentos, por forma a garantir o efetivo contraditório e que a audiência final se realize na data designada para o efeito, sem pressões e/ou incidentes.

Essa regra, como referido, apenas comporta duas exceções: 1º) a impossibilidade da parte de juntar aos autos o documento até ao vigésimo dia que antecede a realização da audiência final; 2º) a junção se ter tornado necessária em virtude de ocorrência posterior a esse prazo-limite.

Quanto ao primeiro caso - impossibilidade da parte de juntar aos autos o documento até ao vigésimo dia que antecede a realização da audiência final -, essa impossibilidade pode ser: a) objetiva, isto é, o documento só foi produzido após aquele prazo-limite e não podia ser antes por respeitar a factos ocorridos historicamente em data posterior a esse prazo-limite; ou b) subjetiva, isto é, quando a parte só teve conhecimento da existência do documento ou dos factos a que se reporta após o decurso daquele prazo limite, apesar do documento respeitar a factos anteriores ao decurso desse prazo.

Em relação à impossibilidade objetiva, naturalmente que a prova da impossibilidade da parte em juntar aos autos o documento até àquele prazo limite decorre da análise do teor do próprio documento – o documento reporta-se a factos ocorridos após o decurso daquele prazo limite, pelo que naturalmente que o documento apenas podia ser emitido após o decurso desse prazo e ser junto aos autos pela parte após o decurso do mesmo.

Já na impossibilidade subjetiva não é assim, na medida em que o documento reporta-se a factos anteriores ao decurso do prazo limite do vigésimo dia que antecede a audiência final, podendo, inclusivamente, o próprio documento ser anterior a esse prazo limite, só que a parte desconhecia a existência desse documento ou os factos a que se reporta.

Compreende-se, assim, que quanto à impossibilidade subjetiva, à parte que pretenda juntar aos autos o documento após o decurso do prazo limite do vigésimo dia que antecede a realização da audiência legal e até ao encerramento da discussão em 1ª instância, não baste alegar que só teve conhecimento da existência desse documento após o decurso desse prazo, na medida em que essa impossibilidade pressupõe que o desconhecimento da existência do documento em causa não derive de culpa sua, pelo que o apresentante terá de alegar e provar factos dos quais derivem que o seu desconhecimento em relação à existência do documento em causa não ficou a dever-se a negligência sua (2).

Acresce que, mais uma vez, impõe-se realçar que quer na impossibilidade objetiva, quer na subjetiva, a parte tem de requerer a junção aos autos do documento logo que isso se torne possível, sem aguardar qualquer dilação (3).

Em relação à outra situação excecional em que é admitida a junção aos autos de documento após o decurso daquele prazo limite - a junção se ter tornado necessária em virtude de ocorrência posterior –, o elemento legitimador dessa junção tardia assenta na “ocorrência posterior” ao decurso desse prazo limite, isto é, o documento em causa tem de se destinar à prova ou contraprova de factos ocorridos após o termo desse prazo limite (4).

Após o encerramento da discussão em 1ª Instância, não é admitida a junção aos autos de documentos exceto no caso de recurso.

Na verdade, havendo recurso, como acontece no caso, os arts. 425º e 651º, n.º 1 do CPC, admitem que sejam juntos aos autos documentos, com as alegações de recurso, em duas situações excecionais: a) a junção do documento não ter sido possível até àquele momento, isto é, casos de impossibilidade objetivo ou subjectiva (5) de junção anterior do documento, com o sentido e o alcance acima referidos; ou b) a junção do documento se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido pela 1ª Instância.

A junção de documento em fase de recurso com fundamento em a junção se ter revelada necessária em virtude do julgamento da 1ª instância pressupõe que esse julgamento seja de todo surpreendente para as partes relativamente ao que seria expectável para as mesmas em face dos elementos do processo, ou seja, é necessário que a decisão se tenha baseado em meio de prova não esperado, designadamente, em meio probatório inesperadamente junto aos autos pelo tribunal ou em preceito com cuja apreciação as partes não tivessem justificadamente contado (6).

Dito por outras palavras, para que a junção do documento seja permitida na fase de recurso com fundamento no julgamento realizado pela 1ª Instância, não basta que essa junção seja necessária em face deste julgamento, sendo antes essencial que a junção apenas se tenha tornado necessária em virtude desse julgamento, isto é, que este se tenha ancorado num elemento de cariz “inovatório”.

Deste modo, se a junção do documento era necessária para fundamentar a ação ou a defesa antes de ser proferida a decisão da 1ª Instância e se essa decisão se baseou em meios de prova com que as partes razoavelmente podiam contar, como seja depoimentos testemunhais ou de parte, declarações de parte, documentos, prova pericial ou por inspeção judicial, respetivamente, arrolados e requeridos pelas partes ou oficiosamente determinadas pelo juiz, mas neste último caso, em momento processual em que ainda era possível às partes carrear para os autos o documento que se propõem juntar em sede de alegações, então a junção aos autos do documento em causa com as alegações não ocorre em virtude do julgamento realizado pela 1ª Instância, posto que as partes tiveram oportunidade de controlar a prova produzida em que assentou a decisão da 1ª instância e tiveram, inclusivamente, a oportunidade de juntar aos autos o documento que se propõem juntar na fase de recurso.

No entanto, se a decisão da 1ª Instância se baseou em meio probatório não oferecido pelas partes, mas antes junto aos autos por iniciativa do tribunal, em momento processual em que já não lhes era possível juntar aos autos o documento que agora se propõem juntar aos mesmos na fase de recurso, ou quando essa decisão tenha assentado em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não podiam contar, em obediência ao princípio do contraditório, na sua dimensão positiva de proibição de prolação de decisões surpresa (art. 3º, n.º 3 do CPC), impõe-se admitir a junção aos autos do documento em causa na fase das alegações de recurso, uma vez que, nestes casos, e exclusivamente neles, se pode, com propriedade, afirmar que essa junção se tornou efetivamente necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª Instância (7).

Assentes nestas premissas, revertendo ao caso em análise, nele os executados requerem a suspensão imediata da diligência de entrega do imóvel vendido, com fundamento deste ser a sua casa de morada de família desde há mais de trinta anos, e terem gravíssimas dificuldades de alojamento alternativo, em virtude de serem pessoas de parcos rendimentos, dado que se encontram reformados, com rendimentos mensais que rondam os 350,00 euros para cada um, pelo que caso não seja deferida essa suspensão, serão colocados na rua, a viver à chuva e ao vento.

Mais alegam que o executado C. F. padece de doença ortopédica que determinou a sua invalidez, conforme documento que juntam aos autos a fls. 7, tendo este já solicitado o competente atestado de invalidez, conforme documento de fls. 7, protestando juntar aos autos esse atestado mal este lhe seja facultado pelo Hospital da Prelada.

Também alegam que o executado José está praticamente invisual, padecendo de gravíssimas dificuldades de visão – baixo potencial, encontrando-se a ser acompanhado pelo departamento de especialidade do Hospital de Braga, em virtude de estar praticamente cego, conforme documento de fls. 6.

Concluem que reúnem os requisitos para ver decretada a suspensão requerida, escrevendo o seguinte:

O art. 861º, n.º 6, in fine do CPC prevê duas situações bem distintas: O caso em que o executado preenche os requisitos do art. 863º, n.ºs 3 a 5 situação de “suspensão de execução” e o caso em que o executado não preenche os requisitos do art. 863º, n.ºs 3 a 5 mas ainda assim existem “sérias dificuldades no seu realojamento.

No primeiro caso, o fundamento não tem que ver com dificuldades de alojamento, mas sim com a ocorrência de risco para a vida da pessoa pelos simples facto de ter de desocupar a habitação (quer tenha ou não outro local para habitar; o ato de desocupação e remoção coloca em risco a sua vida). Neste caso, suspende-se a execução.

No segundo caso, não existe qualquer risco para a vida. Existem apenas “sérias dificuldades no realojamento” do executado. Neste caso não há lugar à suspensão da execução, dizendo o legislador que há lugar à comunicação antecipada do facto à câmara municipal e às entidades competentes” – arts. 13º a 18º do requerimento apresentado.

Como se demonstrou supra os executados enfernam quer de patologias graves, invalidez ortopédica e visual, como não têm condições de realojamento.

O preceito é claro numa coisa: a comunicação tem que ser antecipada – os executados cumprem em concreto a comunicação antecipada. Com efeito, tal comunicação antecipada não pode ter outro sentido que não seja o de, perante sérias dificuldades no realojamento do executado, a câmara municipal ou as entidades assistenciais competentes poderem intervir de molde a impedir que seres humanos fiquem sem alojamento, na rua, ao relento – o que redundaria in casu não fora o decretamento da suspensão que ora se pugna – arts. 19º a 22º do requerimento.

A ratio legis de tal preceito só pode radicar na circunstância de o domicílio ter de ser visto como uma projeção especial da pessoa que reside em certa habitação, uma forma de uma pessoa afirmar a sua dignidade humana”, conforme explicou o Tribunal Constitucional in Acórdão TC de 14-07-1994, Relator Ribeiro Mendes). O tribunal da Relação de Lisboa já se pronunciou sobre situação semelhante à dos presentes autos, ordenando aliás a prévia “investigação sobre as dificuldades de realojamento da executada (Acórdão do TRL de 02-07-2013, Processo 23647/09.5T2SNT.L1) – arts. 23º e 24º do requerimento.

Assim, verificadas que sejam sérias dificuldades de realojamento, deve-se suspender a diligência de entrega coerciva. Não se trata de suspender a execução, mas sim de suspender a concreta diligência de entrega coerciva. Nem se pretende que a suspensão da diligência seja ad eternum, mas tão só que permita a sociedade – o Estado, as instituições do Estado, as instituições governamentais – consigam o realojamento do cidadão que, de outro modo, ficará na rua, ao relento – o que expressamente se pugna – arts. 25º a 27º do requerimento, sendo que o destacado é nosso.

É em nome da Lei, nomeadamente da Lei Fundamental e da dignidade da pessoa humana que o próprio Tribunal (e o agente de execução, nos casos em que exista) deve suspender “o despejo” em tais circunstâncias e deve exigir por parte da câmara municipal e das entidades assistenciais competentes o cumprimento dos princípios de uns e deveres de outros) de natureza constitucional em presença” – art. 28º do requerimento apresentado.

Resulta do que se acaba de transcrever que os apelantes, mediante a apresentação do requerimento de fls. 2 a 12 que, em parte, se acaba de transcrever, requereram a suspensão da diligência de entrega do imóvel com fundamento na circunstância deste ser a sua casa de morada de família, e de por via dos seus parcos recursos económicos terem dificuldades em se realojarem, requerendo que, por via dessas dificuldades de realojamento, aliadas aos problemas de saúde do apelante C. F. e do executado José, se suspenda a entrega do imóvel até que a câmara municipal e as entidades assistenciais os consigam realojar, sob pena de se postergar o disposto nos arts. 861º, n.º 6 do CPC, 1º, 20º, 25º e 34º da CRP.

Em abono desta sua posição, os apelantes alegam que uma coisa é a suspensão da execução, hipótese sobre que versa o art. 863º, n.ºs 3 a 5 do CPC, a qual tem como pressuposto que o ato de desocupação coloque, de per se, em risco de vida a pessoa ou pessoas a desalojar, e outra, diversa, é a suspensão da entrega coerciva do imóvel, hipótese sobre que não versa aquele art. 863º, n.ºs 3 a 5, mas que contende apenas com as dificuldades no realojamento das pessoas a desalojar, dando lugar à comunicação à câmara municipal e às entidades assistenciais para que diligenciem pelo realojamento das pessoas a desalojar, com a suspensão das diligências de entrega do imóvel até essas entidades proverem a esse realojamento.

Ou seja, segundo a alegação clara e inequívoca dos requerentes, o requerimento que apresentam não se funda na circunstância do desalojamento daqueles do prédio colocar as respetivas vidas em perigo – facto este que nem sequer alegam – e, daí que, inclusivamente, não peçam a suspensão da execução -, mas funda-se, exclusivamente, nas suas dificuldades de realojamento e daí que, dentro daquela sua perspetiva em procederem à distinção entre “suspensão da execução” e “suspensão da diligência de entrega do imóvel”, peçam a suspensão da diligência de entrega.

Note-se, que para além de não alegarem que as patologias de que padecem o apelante C. F. e o executado José (patologias essas que discriminam nos itens 8º, 9º e 11º do requerimento que apresentaram) põem em risco a vida destes, os apelantes, nesse requerimento, não alegam terem requerido qualquer relatório médico à Unidade de Saúde B. referente ao apelante C. F., para prova das patologias que alegadamente o afetarão, patologias essas que, conforme alegam, se resumem a doença ortopédica, que terá determinado a sua invalidez.
Aliás, nesse requerimento, os apelantes nem sequer fazem qualquer referência à Unidade de Saúde B..
O que os apelantes sustentam, no item 10º desse seu requerimento, é que o apelante C. F. já solicitou o competente atestado de invalidez, junto do Hospital da Prelada, conforme atesta pelo documento que junta aos autos de fls. 7, e compromete-se a juntar aos autos esse atestado logo que o mesmo seja emanado pela identificada unidade hospitalar.

Acontece que conforme decorre da simples leitura da decisão recorrida, a interpretação jurídica que era defendida pelos apelantes no seu requerimento, fazendo a distinção entre “suspensão da execução” e “suspensão da diligência de entrega do imóvel” não obteve a aquiescência do tribunal a quo, que entendeu que para que ocorresse a suspensão das diligências de entrega do imóvel era necessário “que a imediata evacuação ponha em risco de vida o ocupante, que esse risco seja decorrente de doença aguda e não de doença crónica, que esse risco seja atestado por um médico e que este, no atestado médico, indique qual o prazo durante o qual se deve suspender a desocupação, e que corresponderá, parece óbvio, ao período em que se mantiver o risco de vida decorrente daquela doença aguda”, concluindo que: “no caso, nenhum destes requisitos se verificam. Desde logo, os executados não apresentaram qualquer documento médico que ateste que sofrem de doença aguda, que a imediata desocupação põe em risco a sua vida, e qual o período em que se deve manter a suspensão da desocupação e da entrega do imóvel ao adquirente. Acresce que resulta da própria alegação que tais mazelas não põem em risco a sua vida” e, em consequência, extraindo a ilação desse raciocínio assim explanado, determinou: “resultando do próprio requerimento da executada que as razões invocadas não integram os fundamentos legais que permitem o deferimento da desocupação do imóvel, vai o mesmo indeferido”, acrescentando “Diga-se ainda que não existem qualquer violação de normas constitucionais”, indeferindo a requerida suspensão e ordenando que se comunicasse essa decisão ao agente de execução para efeitos, sendo o caso, antecipadamente comunicar o facto à Câmara Municipal e às entidades assistenciais competentes.

De acordo com o assim decidido, entendeu a 1ª Instância, não colher a posição jurídica operada pelos apelantes quando fazem a distinção entre “suspensão da execução” e “suspensão da diligência de entrega do imóvel” e, bem assim que as dificuldades de realojamento invocadas pelos apelantes, pelos motivos que aduzem nesse seu requerimento de fls. 2 a 12, não constituem fundamento legal para a suspensão da diligência de entrega do imóvel, mas apenas, caso essas dificuldades de realojamento se verifiquem, são fundamento legal para a mera comunicação antecipada à câmara municipal e às entidades assistenciais para proverem ao realojamento daqueles, tanto assim que mandou notificar a decisão recorrida ao agente de execução “para efeitos, sendo o caso, de antecipadamente comunicar o facto à Câmara Municipal e às entidades competentes”.
Requerem os apelantes a junção aos autos do relatório médico de fls. 35 verso, emitido em 19/07/2018 pela Unidade de Saúde B., alegando que apenas o fazem em sede de alegações de recurso uma vez que aquele apenas foi emitido na data nele aposta e não antes, por motivo a que aqueles são alheios.

Acontece que basta a mera leitura desse relatório, para se verificar que apesar desse documento ter sido emitido pela Unidade de Saúde B. em 19/07/2018, o mesmo reporta-se a factos ocorridos em momento anterior a 25/05/2018, data da entrada em juízo do requerimento dos apelantes de suspensão da diligência de entrega do imóvel.

Com efeito, lê-se nesse relatório médico, que se reporta ao apelante C. F., o seguinte:

“Doente de 66 anos de idade.
Seguido em consulta de Medicina Interna até 2016 por encefalopatia de Wernicke e anemia perniciosa.
Internamento em 2013 por litíase vesicular, tendo sido submetido em 2014 a cloecistectomia laparoscópica.
Trata-se de um doente com várias co morbilidades, nomeadamente, HTA e patologia diabética. A nível gastro-intestinal com gastrite crónica moderada associada a metaplasia intestinal.
Em setembro de 2017 com anemia normocítica e normocrónica em contexto provável de doença crónica.
A nível oftalmológico: seguido no Hospital de Braga por oclusão vascular do OD. Também com antecedentes de atrofia neuroretiniana do olho direito e cataratas. Encontra-se referido mau prognóstico visual.
Tem pedido holter por apresentar bradicardia. Também com bloqueio completo de ramo direito”.

Tratando-se de documento que relata factos anteriores a 25/05/2018, apesar dos apelantes alegarem que apenas o apresentam em sede de recurso, “uma vez que o mesmo só foi emitido na data nele aposta e não antes por motivo alheio ao recorrente”, os mesmos tinham de fazer prova do que assim alegam, posto que, conforme resulta do que se vem dizendo, aos apelantes não bastava alegar, mas teriam de provar.

Essa prova teria de ser feita mediante a junção aos autos do documento comprovativo em como solicitaram à Unidade de Saúde B. a emissão desse relatório em data anterior a 25/05/2018 ou, o mais tardar, nessa data, por forma a comprovarem a impossibilidade de o terem junto aos autos, juntamente com o requerimento de suspensão da diligência de entrega do imóvel de fls. 2 a 12, como aqueles não ignoram, até porque foi esse o procedimento por eles seguido em relação ao atestado de invalidez referente ao apelante C. F., em que juntaram aos autos, a fls. 7, esse comprovativo.
Aqui chegados, resulta do que se vem dizendo que os apelantes não provaram qualquer impossibilidade objetiva, sequer subjetiva, de juntarem aos autos o enunciado relatório médico juntamente com o requerimento de suspensão da diligência de entrega do imóvel de fls. 2 a 12.
Acresce precisar que a junção aos autos do identificado relatório médico, juntamente com as alegações de recurso, também não se tornou necessária em virtude da decisão recorrida, pela simples razão de que esse documento não se destina a fazer prova de quaisquer factos que tivessem sido por eles alegados no requerimento de suspensão da diligência de entrega do imóvel de fls. 2 a 12.

Com efeito, conforme decorre da leitura desse relatório, o mesmo reporta-se a factos que não se encontram alegados em sede daquele requerimento de fls. 2 a 12, onde os apelantes se limitaram a alegar, quanto ao apelante C. F., que este “padece de doenças graves que determinaram a sua invalidez” (item 8º de fls. 3 verso), concretizando que essas doenças graves que determinaram essa invalidez se traduzem em “doença ortopédica” (item 9º da mesma fl.).

Os apelantes não alegaram, nesse requerimento, que o apelante C. F. padecesse das concretas patologias que são enunciadas no relatório médico de fls. 35 verso, nomeadamente, patologias cardíacas, que agora alegam nas suas alegações de recurso a fls. 27 e 28.

Logo, o relatório médico de fls. 35 verso, não se destina a fazer prova dos fundamentos alegados pelos apelantes no requerimento de fls. 2 a 12 e em que os mesmos ancorarem a sua pretensão em verem suspensa a diligência de entrega do imóvel.

Consequentemente, nunca o referido relatório médico pode, em circunstância alguma, ser junto aos presentes autos, por claudicarem os fundamentos enunciados no n.º 1 do art. 423º do CPC para a admissibilidade legal dessa junção.

Aliás, incumbe precisar que conforme decorre das alegações de recurso apresentadas pelos apelantes, de fls. 27 a 28 dos autos, estes pretendem juntar esse relatório médico aos autos para fazer prova em como o apelante C. F. padece das concretas patologias de saúde que se encontram enunciadas nesse relatório, nomeadamente, de patologias cardíacas e que, consequentemente, o desalojamento daqueles do imóvel põe em risco de vida o apelante C. F..

Acontece que para além das patologias descritas nesse relatório médico não terem sido alegadas pelos apelantes no seu requerimento de fls. 2 a 12, verifica-se que os mesmos também não invocaram esse fundamento para aquela suspensão das diligências de entrega do imóvel, mas antes e, exclusivamente, as suas dificuldades em serem realojados.

Ao assim procederem, é indiscutível que os apelantes pretendem não só carrear para os autos factos novos, não alegados no requerimento de fls. 2 a 12, violando com isso os princípios estruturantes do processo civil da estabilidade da instância, do dispositivo e do contraditório, o que não é legalmente admissível por ser violador do disposto nos arts. 3º, 4º, 5º, 265º, n.º 1, 552, nº1, al. d), 607º, n.ºs 4 e 5 do CPC, como pretendem enxertar, nesta instância recursiva, a apreciação de questão nova - uma outra causa de pedir (o perigo de morte do apelante C. F. que a desocupação do imóvel é suscetível de gerar decorrente e das doenças, que agora alegam, o afetam, as quais, aliás, conforme decorre do que infra se dirá, têm caráter crónico) – que não tinham alegado no seu requerimento de fls. 2 a 12, para sustentarem o seu pedido, o que igualmente não é consentido por lei.

Com efeito, como se sabe, no sistema processual nacional os recursos são os meios de impugnação de decisões judiciais, através dos quais se visa a eliminação ou correção de decisões inválidas, erradas ou injustas, pela devolução do seu julgamento a um órgão jurisdicional hierarquicamente superior (no caso de recursos ordinários), tratando-se, por isso, de meios que visam modificar as decisões recorridas e não criar decisões sobre matéria nova, não podendo assim neles ser versadas questões que não tenham sido suscitadas perante o tribunal recorrido, salvo as questões de natureza adjetivo-processual e substantivo-material que sejam do conhecimento oficioso (8).

Ora, não tendo os apelantes ancorado o seu pedido de suspensão de entrega do imóvel com fundamento na circunstância da desocupação coerciva desse imóvel pôr em risco de vida o apelante C. F., e não se tratando de fundamento de que o tribunal possa conhecer oficiosamente, é indiscutível que esta da Relação não pode apreciar o seu pedido com base neste novo fundamento – esta nova causa de pedir -, por eles apenas invocada em sede de recurso para ancorar a sua pretensão, sequer pode apreciar o fundamento que aduzem (dificuldades sérias no realojamento) a fls. 2 a 12, para ancorar essa sua pretensão de verem suspensa a diligência de entrega do imóvel com base nos factos novos que alegam nas suas alegações de recurso a fls. 27 a 28, para cuja prova juntam aos autos o relatório médico de fls. 35 verso.

Resulta do que se vem dizendo que não existe fundamento legal que permita aos apelantes juntar aos autos o relatório médico de fls. 35, nesta fase recursiva, sequer juntamento com o requerimento de fls. 2 a 12, por, reafirma-se, tratar-se de documento que não se destina a fazer prova dos fundamentos por eles aduzidos nesse requerimento.

Nesta conformidade, atentos os fundamentos que se vem enunciando, impõe-se a não admissão da junção aos autos do documento de fls. 35 verso, impondo-se o respetivo desentranhamento dos autos e a sua devolução aos apresentantes.

B.2- Do mérito.
B.2.1- Alcance do art. 861º, n.º 6 do CPC.

Os apelantes vieram requerer a suspensão das diligências de entrega do imóvel vendido no âmbito da execução para pagamento de quantia certa que lhes foi instaurada pelo Banco A, S.A., alegando que esse imóvel constitui a sua casa de morada de família há mais de trinta anos, encontrarem-se reformados, dispondo de rendimentos que rondam os 350,00 euros mensais, cada, não dispondo de rendimentos que lhes permitam encontrar alojamento alternativo, pelo que, caso a diligência para a entrega do imóvel não seja suspensa, os mesmos serão colocados na rua, a viver à chuva e ao vento.

Mais sustentam que o apelante C. F. padece de doença ortopédica, que determinou a sua invalidez, enquanto o executado José encontra-se praticamente cego.

Sustentam ainda, que no art. 861º, n.º 6 do CPC se prevêem duas situações distintas, a saber: a) a suspensão da execução motivada por a diligência de entrega do imóvel pôr em risco de vida a pessoa ou pessoas a desalojar; e b) sérias dificuldades no realojamento dessas pessoas, dizendo o legislador que essas dificuldades dão lugar à comunicação antecipada do facto à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes, para, concluem os apelantes, estas proverem ao realojamento da pessoa ou pessoas a desalojar, operando que até lá as diligências para entrega do imóvel fiquem suspensas.

Concluem os apelantes que, por via das enunciadas sérias dificuldades de realojamento com que se debatem e os problemas de saúde que afetam o apelante C. F. e o executado José, se comunique esses factos à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes e que até que estas providenciem o seu realojamento se suspenda as diligências de entrega do imóvel (é isto e só isto que se extrai do requerimento apresentado pelos apelantes de fls. 2 a 12).

Deste modo, como acima já ficou referido, não obstante os apelantes reconhecerem, no requerimento de fls. 2 a 12, que a situação em que se encontram não se subsume à primeira parte do art. 861º, n.º 6 ex vi art. 863º, n.ºs 3 a 5 do CPC, isto é, que o seu desalojamento do imóvel coloque em perigo a vida dos mesmos ou dos restantes ocupantes desse imóvel, não sendo, por isso, segundo eles, causa de “suspensão da execução”, mas que antes se trata de uma situação de sérias dificuldades no respetivo realojamento, entendem que essas dificuldades são causa de “suspensão das diligências de entrega do imóvel”, até que a câmara municipal e/ou as entidades assistenciais competentes providenciem pelo seu realojamento.

Entendeu-se na decisão recorrida que a suspensão das diligências de entrega do imóvel tem como pressuposto legal que os apelantes apresentem atestado médico; que esse atestado indique fundadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução; que o mesmo indique fundadamente que a imediata desocupação põe em risco a pessoa que se encontra no local; e que esse risco de vida seja decorrente de doença aguda (e não crónica, como parece ser o caso dos autos), requisitos esses que não se encontrariam preenchidos, porquanto os apelantes não apresentaram qualquer documento médico que ateste que sofram de doença aguda, que a imediata desocupação do imóvel ponha em risco a sua vida, qual o período em que se deve manter a suspensão da desocupação, a que acresce resultar da própria alegação dos apelantes que as mazelas que invocam não põem em risco a sua vida e, indeferiu-se a suspensão requerida, determinando a notificação da decisão ao agente de execução para efeitos de, sendo necessário, antecipadamente comunicar o facto à câmara municipal e às entidades competentes.

Pretendem os apelantes que, nessa decisão, o tribunal a quo não teve em consideração as duas situações distintas previstas no art. 861º, n.º 6 do CPC e, bem assim, a distinção que se impõe operar para efeitos dessas duas situações entre “suspensão da execução “ e “suspensão das diligências de entrega do imóvel”, mas antecipe-se, desde já, sem manifesta razão.

Na verdade, a distinção operada pelos apelantes entre “suspensão da execução” e “suspensão das diligências de entrega do imóvel” não tem qualquer fundamento possível à luz do quadro legal vigente e é apenas explicável pela circunstância dos mesmos terem sido induzidos em equívoco pela epígrafe do art. 863º do CPC, não atentando que essa epígrafe se explica pela circunstância de se tratar de preceito legal referente à execução para entrega de coisa certa, cuja finalidade é a prestação duma coisa (art. 10º, n.º 6 do CPC), pelo que nela o exequente exerce “a faculdade de execução específica, mediante a apreensão dessa coisa que o executado lhe está obrigado a prestar” (9), do que decorre que a suspensão das diligências para a entrega dessa coisa paralisa naturalmente a execução para entrega de coisa certa.

Acontece que nada disto acontece nas execuções para pagamento de quantia certa, como é o caso da presente execução.

Com efeito, a execução para pagamento de quantia certa visa o pagamento coercivo ao exequente de quantia certa em dinheiro, mediante a penhora do património do executado e posterior venda deste (excluindo-se naturalmente dessa venda o dinheiro), para com o dinheiro penhorado e o produto da venda desse património se dar satisfação ao crédito do exequente.

Como resulta do que se acaba de dizer, a execução para pagamento de quantia certa pode passar, e passa, em regra, pela venda de bens do executado.

Quando tal aconteça, o art. 828º do CPC concede ao adquirente desses bens o direito de requerer a sua entrega na própria execução. É assim enxertada, na ação executiva para pagamento de quantia certa, um pedido de execução para entrega de coisa certa, dirigido a quem detenha os bens vendidos, processando-se a entrega desses bens, nos termos prescritos no art. 861º do CPC, devidamente adaptado (art. 828º).

Embora este art. 861º do CPC se trate de um dispositivo referente à execução para entrega de coisa certa, o enxerto para entrega dos bens adquiridos no âmbito da execução para pagamento de quantia certa a que alude o citado art. 828º, não consubstancia uma ação executiva para entrega de coisa certa, sequer significa a conversão da execução para pagamento de quantia certa em execução para entrega de coisa certa (10), tratando antes, a nosso ver, de um incidente da própria execução para pagamento de quantia certa, ao qual são aplicáveis as regras do art. 861º, respeitantes à entrega da coisa, devidamente adaptadas.

Este incidente não contende naturalmente com o prosseguimento da ação executiva para pagamento de quantia certa, que prosseguirá os seus termos normais, com eventual penhora e/ou venda de outros bens, quando o produto dos anteriormente vendidos não seja suficiente para satisfazer o pagamento da quantia exequenda e das custas prováveis da execução.

Deste modo, é que salvo o devido respeito, a distinção operada pelos apelantes entre “suspensão da execução” e “suspensão das diligências para entrega do imóvel vendido”, não tem qualquer sentido, posto que a suspensão das diligências para entrega do imóvel vendido provocará sempre a paralisação do incidente enxertado na execução para pagamento de quantia certa a que alude o art. 828º do CPC, mas este incidente não contende com a prossecução da ação executiva para pagamento de quantia certa.

Posto isto, conforme bem dizem os apelantes, da leitura conjugada dos arts. 861º, n.º 6 e 863º, n.º 3 do CPC, resulta que neles se prevêem duas situações distintas, referindo-se ambas as situações a casos em que o bem a entregar constitui a casa principal do executado: a) a enunciada nos n.ºs 3 a 5 do art. 863º, em que mediante atestado médico se mostre que a diligência de entrega do imóvel põe em risco de vida a pessoa ou pessoas que se encontrem nessa habitação, por razões de doença aguda; e b) a prevista na segunda parte do nº 6 do art. 861º, em que se suscitem sérias dificuldades no realojamento dessas pessoas.

No primeiro caso (risco de vida), conforme decorre do n.º 3 do art. 863º, prevê-se a suspensão das diligências executórias para a entrega do imóvel, estando, no entanto, essa suspensão condicionada à verificação dos seguintes requisitos legais cumulativos: 1) tratar-se da casa de habitação principal do executado; 2) apresentar-se atestado médico que indique fundamentadamente o prazo durante o qual se deve suspender a execução; 3) que esse atestado indique fundamentadamente que a diligência de desocupação põe em risco de vida a pessoa ou pessoas que aí se encontrem, por razões de doença aguda (11).

Verificados que sejam estes pressupostos legais cumulativos, deve o agente de execução suspender, de imediato, as diligências executórias tendentes à entrega do imóvel (n.º 3 do art. 863º), lavrar certidão das ocorrências, juntar aos autos os documentos exibidos e advertir o detentor do imóvel, ou a pessoa que se encontrar neste, de que a execução prosseguirá, salvo se, no prazo de dez dias, solicitar ao juiz a confirmação da suspensão, dando do facto imediato conhecimento ao exequente ou ao seu representante (n.º 4 do art. 863º).

Caso o detentor do imóvel solicite ao juiz a confirmação da suspensão dentro daquele prazo de dez dias, cabe ao último, uma vez ouvido o exequente, decidir se mantém as diligências executórias suspensas pelo prazo previsto no atestado médico ou se ordena o levantamento dessa suspensão, ordenando a imediata prossecução das diligências executórias tendentes à entrega do imóvel (n.º 5 do art. 865º do CPC).

Neste caso, são razões humanitárias que justificam que o perigo de vida decorrente de doença crónica em que é colocada a pessoa ou pessoas a desalojar sobreleve sobre o direito de propriedade do adquirente do imóvel a entregar, devendo as diligências executórias serem imediatamente suspensas, nos termos atrás enunciados, independentemente de existirem ou não dificuldades no realojamento da pessoa ou pessoas que se encontrem no local e a desalojar.

Note-se que para estes efeitos, releva tanto a doença do executado, como do respetivo cônjuge, como ainda dos familiares com ele conviventes em comunhão de mesa e habitação e, bem assim, de outras pessoas que, igualmente, residam consigo, em economia comum (12).

Por outro lado, a expressão “doença aguda” do art. 863º, n.º 3 está empregue com o significado comum de doença súbita e inesperada, por contraposição a doença crónica.

Conforme se pondera no aresto da RC. de 12/07/2017 (13), “as doenças agudas são aquelas que têm um curso acelerado, terminando com a convalescença ou morte em menos de três meses. As doenças agudas distinguem-se dos episódios das doenças crónicas, que são exacerbação de sintomas normalmente menos intensos nessas condições. Uma doença crónica é uma doença que não é resolvida num tempo curto, definido usualmente em três meses. As doenças crónicas são doenças que não põem em risco a vida da pessoa num prazo curto, logo não são emergências médicas”.

Compreende-se do que se vem dizendo, que a lei condicione a suspensão das diligências tendentes à entrega da habitação apenas às situações em que a diligência de desalojamento ponha em risco de vida da pessoa ou pessoas que se encontrem no local a desalojar, por razões de doença aguda, porquanto, nestes casos, está-se perante episódios de emergência médica, relativamente curtos, que levam que no plano constitucional e dentro do princípio da concordância prática vigente nesse plano, o direito de propriedade do adquirente do imóvel seja sacrificado, temporariamente e por um curto espaço de tempo, ao valor maior daquele que está em perigo de vida, fruto da situação de emergência médica em que se encontra, decorrente da doença súbita e inesperada de que foi acometido, não obstante nenhum direito lhe assista de ocupar esse imóvel.

Também se compreende que tratando-se de doença aguda, que se caracteriza, reafirma-se, por ter uma duração relativamente curta no tempo e com vista à cabal salvaguarda do direito de propriedade do adquirente do imóvel, que, como referido, vê esse seu direito sacrificado a favor de quem nenhum direito tem sobre esse imóvel, a lei exija que o atestado diga a duração provável da crise.

Finalmente, tratando-se de doença crónica, compreende-se que mesmo que a diligência coloque em risco a vida do ocupante ou ocupantes do imóvel, fruto, nomeadamente, de uma ansiedade agudizante, essa doença não é justificativa da sustação da entrega do imóvel (14), posto que de contrário, sacrificar-se-ia ad eternum o direito de propriedade do adquirente a favor de quem nenhum direito tem sobre esse imóvel, redundando essa situação numa espécie de expropriação gratuita do proprietário a favor dos ocupantes da sua propriedade, não consentida pelo art. 62º da CRP, motivada por razões humanitárias e sociais, que cabe ao Estado salvaguardar dentro “do possível”.

Como se pondera na decisão recorrida, no caso, não se verificam nenhum dos requisitos legais da suspensão das diligências executórias tendentes à entrega do imóvel, sequer, como já referido, foi com base neste fundamento – risco de vida – que os apelantes formularam o seu pedido de suspensão dessas diligências.

O outro fundamento que se encontra previsto no n.º 6 do art. 861º do CPC., e que é o concreto fundamento que os apelantes invocam no seu requerimento de fls. 2 a 12 e que, aliás, a factualidade aí aduzida, é suscetível de ancorar, são “as sérias dificuldades no realojamento das pessoas a desalojar.

Neste caso, prevê o enunciado art. 861º, n.º 6 do CPC, que caso se suscitem sérias dificuldades no realojamento, o agente de execução comunica antecipadamente o facto à câmara municipal e às entidades assistênciais competentes.

Essa comunicação antecipada reporta-se à data designada para a diligência de execução da entrega do imóvel (15) e destina-se a permitir que essas entidades tenham a possibilidade de analisar a situação das pessoas a desalojar e, eventualmente, se essas dificuldades de realojamento e as razões que as motivam se mostrarem verdadeiras e caso essas entidades disponham de possibilidades efetivas para realojar essas pessoas, na data designada para a realização do desalojamento, providenciem solução para o problema.

Todavia, contrariamente ao pretendido pelos apelantes, diversamente do que prevê quando “a diligência põe em risco de vida a pessoa que se encontra no local por razões de doença aguda”, no caso de “sérias dificuldades no realojamento” das pessoas a desalojar, a lei não determina a suspensão das diligências executórias de entrega do imóvel, mas tão só a comunicação antecipada pelo agente de execução à câmara municipal e às entidades assistenciais competentes, o que se compreende, posto que, nestes casos, não existe fundamente constitucionalmente válido que justifique que o legislador, possa sacrificar o direito fundamental à propriedade do adquirente do imóvel (art. 62º da CRP) a favor dos terceiros que o ocupam, sem que nenhum direito lhes assista a essa ocupação, motivados pelas dificuldades destes em serem realojados, quando não cumpre ao proprietário solucionar os problemas habitacionais dessas pessoas, mas antes ao Estado, dentro da “reserva do possível”.

É que embora o direito à habitação (art. 65º do CRP), tal como o direito à saúde (art. 64º), ao ambiente e qualidade de vida (art. 66º), ao ensino (art. 74º), etc., sejam direitos fundamentais sociais, os mesmos apesentam-se como “direitos a prestações”, exigindo uma atividade mediadora a ser levada pelos poderes públicos, destinada a dar concretização prática a esses direitos, sem o que os mesmos não conferem direitos subjetivos aos cidadãos (16).

A concretização prática desses direitos prestacionais encontra-se submetida à “reserva do possível”, no sentido de que, embora impenda sobre o legislador a imposição de dar-lhes concretização prática nos termos fixados na Constituição, essa concretização prática depende da existência de condições materiais efetivas, nomeadamente, económicas, que permitam ao Estado, em cada momento histórico, concretizar esses direitos prestacionais e, bem assim das opções feitas pelo legislador, perante a escassez de meios, no sentido de estabelecer prioridades na concretização desses direitos prestacionais (17).

Neste sentido pronuncia-se o TC., no seu acórdão n.º 151/92 (18), em que pondera: “O direito à habitação – ou seja, o direito a ter uma morada condigna – é, assim, um direito a prestações. Pois bem: quer esse direito deva conceber-se como um verdadeiro direito subjetivo, quer, antes, como um direito a uma “prestação vinculada” que, ao cabo e ao resto, se deva reconduzir a uma mera pretensão jurídica (…) uma coisa é certa. E é esta: o seu grau de realização depende das opções que o Estado fizer em matéria de política de habitação. E estas são, desde logo, condicionadas pelos recursos materiais (financeiros e outros) de que o Estado, em cada momento, possa dispor. O direito em causa é, assim, um direito “sob reserva do possível” – um direito que corresponde a um fim político de realização gradual. A concretização do direito à habitação – o facultar a cada pessoa uma morada condigna – é, pois, uma tarefa cuja realização – gradual, como se disse – a Constituição comete ao Estado”.

Destarte, embora o direito à habitação se filie na dignidade da pessoa humana, ou seja, naquilo que a pessoa realmente é – um ser livre com direito a viver dignamente -, aos apelantes não assiste um direito subjetivo de reclamar do Estado, maxime, à câmara municipal e/ou às entidades assistenciais que lhes providencie alojamento face às dificuldades de realojamento com que se debatam – estas cumprem dentro daquilo que lhes é possível e das necessidades de alojamento dos demais cidadãos, o que implica, necessariamente, ponderações e escolhas a fazer por parte dessas entidades na distribuição dos recursos escassos de que dispõem.

Neste contexto, nunca o legislador, em relação ao qual se impõe presumir ter consagrado as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 9º, n.º 3 do CC), podia prever que perante as dificuldades sérias no realojamento das pessoas a desalojar se impusesse a suspensão das diligências tendentes à entrega do imóvel ao seu adquirente, porquanto: a) não existe fundamento constitucional para violar o direito fundamental da propriedade do adquirente do imóvel a favor de terceiros que o ocupam e que nenhum direito têm a essa ocupação; b) não é ao proprietário do imóvel que cabe solucionar os problemas de habitação das pessoas a serem desalojadas, mas sim ao Estado; c) essas pessoas a serem desalojadas não têm qualquer direito subjetivo a que o Estado lhes proporcione realojamento, dado que o direito fundamental social à habitação tem natureza prestacional, impendendo sobre o Estado satisfazer esse direito dentro da “reserva do possível”, o que em termos práticos, poderá significar, meses, anos ou, quiçá, nunca.

Dentro das limitações constitucionais impostas ao legislador, que em sede de direitos fundamentais, como é o caso do direito à propriedade privada, apenas pode impor restrições a esses direitos fundamentais com vista à salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18º, n.º 3 da CRP), estando-se, por isso, no âmbito dessas restrições, sujeito aos princípios da necessidade e da proporcionalidade, compreende-se que aquele, perante as sérias dificuldades no realojamento das pessoas a desalojar, se limite a impor ao agente de execução que comunique essas dificuldades antecipadamente, isto é, antes da data designada para a efetivação do desalojamento, à câmara municipal e às entidades competentes para que estas avaliem a situação e para que, podendo (“reserva do possível”), tenham o problema habitacional das pessoas a desalojar solucionado no dia designado para a execução desse desalojamento, sem que determine a suspensão das diligências executórias tendentes à entrega do imóvel.

É que a suspensão das diligências executórias tendentes à entrega do imóvel, nessa situação, colidiria frontalmente com o direito fundamental à propriedade do adquirente desse imóvel, sem que nenhum outro direito fundamental das pessoas a desalojar justificasse semelhante restrição e, por conseguinte, consubstanciaria uma restrição materialmente inconstitucional do direito fundamental à propriedade do adquirente do imóvel.

Resulta do que se vem dizendo, que bem andou o tribunal a quo ao indeferir a pretensão dos apelantes em determinar a suspensão das diligências de entrega do imóvel.

B.2- Das inconstitucionalidades

Sustentam os apelantes que o entendimento que se acaba de explanar colide com os arts. 1º, 20º, 25º e 34º da CRP, mas mais uma vez, sem manifesta razão.

B.2.1- Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Ao estabelecer-se no art. 1º da CPR, que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana”, significa que o princípio da dignidade da pessoa humana é a referência axial de todo o sistema dos direitos fundamentais e que todos os direitos, liberdades e garantias pessoais e os direitos económicos, sociais e culturais têm a sua fonte ética na dignidade da pessoa humana, pelo que na concretização desses direitos, não se pode perder de vista que todos têm direito a serem respeitados e protegidos pelo Estado e, bem assim, por todos os membros da sociedade nesse sua dignidade, ou seja, naquilo que a pessoa realmente é – um ser livre com direito a viver dignamente (19).

Sendo o direito à habitação um direito fundamental social, o mesmo enquanto direito fundamental, funda-se na dignidade da pessoa humana.
Acontece que, como já anteriormente se deixou dito, o direito à habitação tem natureza prestacional e como tal, a sua concretização incumbe em primeira linha ao Estado, dentro da “reserva do possível”.
Exigindo a dignidade da pessoa humana que sejam assegurados a todos condições económicas e de vida capazes de assegurar liberdade e bem estar, é ao Estado que, em primeira linha, incumbe assegurar essas condições, devendo, na concretização dessa tarefa, estabelecer e atualizar o salário mínimo nacional (art. 59º, n.º 2, al. a) da CRP), criar garantias especiais em relação ao salário (art. 59º, n.º 3), garantir assistência material aos trabalhadores, quando, involuntariamente, se encontrem em situação de desemprego (art. 59º, n.º 3, al. e)), assim como tem de promover a organização do trabalho em condições socialmente dignificantes, de forma a facultar a realização pessoal e a permitir a conciliação de atividade profissional e da vida familiar (art. 59º, n.º 1, al. b) e 68º, n.º 1) e assegurar o direito à habitação que preserve a intimidade pessoal familiar (art. 65º, n.º 1) (20)

Naturalmente que sendo a dignidade da pessoa humana um valor que também se impõe a todos os membros da sociedade, a concretização do direito à habitação também vincula os particulares, os quais são chamados, enquanto membros da sociedade no seu conjunto (solidariedade vertical) e na sua relação individual com os demais membros da sociedade (solidariedade horizontal) a dar realização aos direitos económicos, culturais, sociais e culturais (art. 9º, al. d)), e a dar forma a mecanismos de auto-organização da sociedade, promovendo, nomeadamente, iniciativas tendentes a resolver os problemas habitacionais e fomentando a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução (art. 65º, n.º 1, al. d)) e, vinculando, designadamente, a propriedade privada, que tem uma função social a cumprir (21).

É a esta luz que se há-de avaliar normas como as que subtraem o contrato de arrendamento para habitação à regra da liberdade contratual e sacrificam o direito de propriedade do senhorio a favor do direito do arrendatário a dispor de uma casa para habitação e, bem assim o comando do art. 861º, n.º 6 do CPC.

Como também já enunciado, em sede de direitos fundamentais, o art. 18º, n.º 3 da CPR, impõe que quaisquer restrições a esses direitos só possam ser operadas pelo legislador pela necessidade de salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (princípio da necessidade), devendo essas restrições limitar-se ao necessário para a salvaguarda desses direitos ou interesses (princípio da proporcionalidade), operando a concordância prática de todos os direitos fundamentais em conflito.

Compreende-se, assim, que numa situação de perigo de vida para a pessoa a ser desalojada, como o descrito nos art. 861º, n.º 6 ex vi art.863º, n.ºs 3 a 5 do CPC, a lei sacrifique temporariamente e por um curto espaço de tempo o direito de propriedade do adquirente do imóvel a entregar, a favor da pessoa que o ocupa, e que nenhum direito tem a ocupá-lo, a favor do direito fundamental à saúde e, inclusivamente, à vida desse ocupante, posto que essa restrição, além de ser necessária à preservação da saúde e, até, da vida desse ocupante, mostra-se proporcional em face do conflito daqueles direitos, não comportando um sacrifício incomportável ao direito de propriedade, tanto mais que essa restrição, além de temporária e por um curto espaço de tempo, é acompanhada das cautelas enunciadas nos n.ºs 3 a 5 daquele art. 863º do CPC.

Conforme se conclui no acórdão do TC n.º 151/92, já atrás citado, também se afirma “inteiramente razoável que o legislador, colocado perante um conflito de direitos: de um lado, o direito à habitação do senhorio, fundado num direito real próprio (um direito de propriedade, de compropriedade ou de usufruto); e , por outro lado, o direito à habitação do inquilino (ou um seu direito similar), fundado num contrato de arrendamento, cujo objeto é, justamente, o imóvel que pertence ao senhorio; e não podendo dar satisfação a ambos os direitos; inteiramente razoável é – dizia-se – que sacrifique o direito do inquilino ao direito à habitação do senhorio. É inteiramente razoável, porque o senhorio até pretende exercer o seu direito à habitação num imóvel de que ele próprio é proprietário, comproprietário ou usufrutuário. Tem, assim, “melhor direito” do que o inquilino, que pretende continuar a satisfazer as suas necessidades de habitação nesse imóvel do senhorio. O sacrifício que o legislador impõe ao direito do locatário deixa, é certo, inteiramente por satisfazer as necessidades deste em matéria de habitação. Tal sacrifício é, no entanto, em absoluto, necessário para que o direito do senhorio a ter uma habitação própria encontre satisfação. Com efeito, o direito à habitação do senhorio e o do inquilino, pretendendo concretizar-se no imóvel, acabam por excluir-se um ao outro: cada um deles só pode satisfazer-se em detrimento do outro”, concluindo no sentido de que os arts. 1096º, n.º 1, al. a) e 1098º, n.º1, als. a), b) e c) e n.º 2 do CC, na redação vigente à data da prolação desse aresto, não violam o art. 65º da CRP, apesar de o direito de denúncia poder ser exercido sem que o Estado ou as autarquias ponham à disposição do inquilino uma casa equivalente.

No entanto, perante os enunciados princípios da necessidade e proporcionalidade vigentes em sede de direitos fundamentais, solução legal diversa da que se encontra consagrada no art. 861º, n.º 6 do CPC. para o caso de “sérias dificuldades no realojamento da pessoa a ser desalojada” ou a interpretação dessa norma que vem propugnada pelos apelantes, que pretendem que se suste as diligências tendentes à entrega do imóvel ao seu proprietário, em benefício do direito à habitação daqueles, devido a essas suas dificuldades em serem realojadas, entraria em confronto direto com o enunciado princípio da necessidade, dado que enquanto ao proprietário assiste esse seu direito fundamental à propriedade sobre aquele concreto imóvel, nenhum direito de habitação assiste aos apelantes para nele habitarem, nomeadamente, até à câmara municipal e/ou as entidades assistenciais competentes os realojarem, em relação às quais, os mesmos, inclusivamente, não têm nenhum direito subjetivo a que estas lhe proporcionem realojamento (“reserva do possível”).
Resulta do que se vem dizendo, que, no caso, não ocorre qualquer violação ao princípio da dignidade humana previsto no art. 1º da CRP.

B.2.2- Acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva.

Invocam os apelantes que a solução jurídica acima enunciado viola o art. 20º da CRP, embora não concretizem em que consiste essa concreta violação.

No entanto, sempre se dirá não se vislumbrar em que resulte postergado o direito fundamental previsto no art. 20º, nas suas diversas dimensões com a previsão legal do art. 861º, n.º 6 do CPC e da interpretação que dele se faz.

Na verdade, o direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva tem uma dimensão material, assumindo ainda, uma inequívoca dimensão organizacional, procedimental e processual.

Nestas diversas dimensões, a constitucionalização desse direito implica que seja assegurado a todos o acesso ao direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídica, pelo que a ninguém pode ser denegada justiça por insuficiência económica e todos têm o direito a fazer-se acompanhar por advogado perante qualquer autoridade.

Na sua dimensão de direito à tutela jurisdicional tem de ser assegurados a todos o direito de acesso aos tribunais, no sentido de direito subjetivo de levar determinada pretensão ao conhecimento de um órgão jurisdicional, independente e imparcial e de nele verem apreciadas essa sua pretensão num processo equitativo, isto é funcionalmente adequado à apreciação dessa pretensão, em que as normas processuais proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos e paridade entre as partes na dialética que protagonizam no processo, permitindo a obtenção de uma decisão em prazo razoável e em que seja dada prevalência à justiça material sobre a justiça formal (22)

Ora, não se vislumbra em que medida é que o direito fundamental dos apelantes ao acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, nas enunciadas várias dimensões, possa ter sido postergado, quando aos apelantes foi assegurado o direito a recorrerem aos presentes autos para nele fazerem valer a sua pretensão, estando neles devidamente representados por advogado, assim como lhes foi assegurado o direito ao contraditório e, inclusivamente, ao recurso perante a sua irresignação face à decisão proferida pela 1ª Instância.

Note-se que a salvaguarda daquele direito não significa, sequer pode significar, que a pretensão dos apelantes tenha de lhes ser reconhecida.
Termos em que improcede a pretensa violação do art. 20º da CRP.

B.2.3- Direito à integridade pessoal

Pretendem os apelantes que o entendimento sufragado pelo tribunal a quo, e que aqui confirmamos, viola o direito à sua integridade pessoal, tutelado pelo art. 25º da CRP, mas, mais uma vez, sem que especifiquem essa sua alegação.

A este propósito incumbe referir que o reconhecimento e a tutela da integridade pessoal surgem indissociavelmente ligados ao reconhecimento constitucional absoluto da dignidade da pessoa humana (art. 1º), embora não seja imune a quaisquer limitações.

Trata-se de um direito que, naturalmente, não vale apenas contra o Estado, mas que se impõe a todas as pessoas.
Na sua dimensão mais simples, a protecção da integridade física e moral consiste no direito à não agressão ou ofensa ao corpo por quaisquer meios, físicos ou não, seja por entidades públicas, seja por particulares, enquanto pessoas singulares ou coletivas.

No entanto, nas suas implicações constitucionais, o direito à integridade pessoal deve ser articulado com outras dimensões da proteção de direitos pessoais, designadamente com o art. 26º, onde estão expressamente consagrados como direitos fundamentais os direitos ao desenvolvimento da personalidade, ao bom nome e reputação, à imagem, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação (23).

No que respeita ao Estado e aos poderes públicos são vários os planos em que esse direito se impõe: a) no plano da legislação, não podendo a lei penal determinar qualquer pena cruel, degradante ou desumana; b) no plano da investigação criminal, não sendo lícitas a tortura, sequer práticas atentatórias da integridade moral (vg., administração de «soro da verdade») ou física (agressões, etc.), com nulidade das provas eventualmente obtidas por esses meios; c) no plano das instituições prisionais, hospitalares e equiparadas, sendo vedados os tratamentos degradantes ou desumanos; d) no plano das medidas de polícia, devendo estas evitar riscos desnecessários ou desproporcionados para a integridade física dos cidadãos. Expressões da garantia daquele direito, no campo das relações privadas, encontram-se, no plano civil, os direitos de personalidade e, no criminal, nos crimes de ofensas corporais e nos crimes contra a honra (24).

Com relevância para o caso em análise, note-se que o Tribunal Constitucional, no seu aresto n.º 128/92, considerou que não violava o direito à integridade pessoal, a al. c), do n.º 1 do art. 1093º do CC. então vigente, nos termos do qual se previa como constituindo causa de resolução do contrato de arrendamento, a aplicação do prédio, pelo arrendatário, de modo reiterado e habitual, a práticas ilícitas, imorais ou desonestas, por entender que não é proibido que a lei «puna» condutas imorais ou desonestas do próprio titular do direito, quando essas condutas constituam violação de deveres que o próprio assumiu ao celebrar o contrato. Também considerou que o art. 25º da CRP não proíbe a atividade indagatória (judicial ou policial), em si mesma, quer com o objetivo de averiguar crimes e os seus autores, quer seja o apuramento de condutas que violam deveres contratuais e lesivas de direitos alheios, isto porque, sendo o Estado de Direito um Estado de justiça, o processo, tanto criminal, como o civil, há-de reger-se sempre por regras que, respeitando a pessoa em si mesma, na sua dignidade ontológica, sejam adequadas ao apuramento da verdade, pois só desse modo se podem fazer triunfar os direitos e os interesses para cuja garantia o processo é necessário (25).

Destarte, ponderando no que se vem dizendo, na consideração judicial utilizada, não se almeja qualquer violação do direito constitucional dos apelantes à tutela da sua integridade pessoal.

B.4- Inviolabilidade do domicílio

Os apelantes sustentam que a decisão que indeferiu a sua pretensão viola o art. 34º da CRP, em que se consagra como direito fundamental a inviolabilidade do domicílio e da correspondência.

O direito em causa exprime a garantia do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, previsto no art. 26º da CRP, densificando dois direitos subjetivos públicos de conteúdo negativo – a inviolabilidade do domicílio e o sigilo das comunicações. Estruturalmente, traduzem direitos de defesa perante os poderes públicos, que se caracterizam: a) por constituir uma posição jurídica constitucionalmente garantida; b) por impor uma proibição aos poderes públicos e; c) por concederem ao seu titular uma pretensão de omissão de violação do mesmo (26).

No entanto, conforme ponderam Jorge Miranda e Rui Medeiros, a inviolabilidade é um referencial jurídico, não naturalístico, cujos contornos são definidos pela própria Constituição, que consagra nos n.ºs 2, 3 e 4, do art. 34º um catálogo de violações admissíveis (27), onde se destaca, no que ao caso presente interessa, o n.º 2, onde se estatui que a entrada no domicilio dos cidadãos contra a sua vontade só pode ser ordenada pela autoridade judicial competente (reserva de juiz), nos casos e segundo as formas previstas na lei (reserva de lei).

Por conseguinte, é a própria CRP que declara que o direito fundamental em análise não tem natureza absoluta, comportando restrições, fixadas pela própria Constituição, que, além do mais, admite restrições desde que judicialmente determinadas e nos termos fixados na lei.

Daqui decorre naturalmente, que estando a entrega efetiva do imóvel prevista no CPC, a restrição imposta ao direito fundamental invocado pelos apelantes decorre da lei.

Por outro lado, sendo essa diligência determinada em processo judicial, mais concretamente, no âmbito de uma execução para pagamento de quantia certa, encontra-se salvaguarda a reserva judicial que a restrição exige.

Deste modo, é permitida a entrada no domicílio dos apelantes, pelo agente de execução (28).

Deste modo, no caso, atenta a específica forma como se processa a entrega coerciva do imóvel, não ocorre qualquer violação do enunciado art. 34º da CRP.

Aqui chegados, não ocorre qualquer violação dos arts. 1º, 20º, 25º e 34º da CRP (29), de onde se segue improcederem todos os fundamentos de recurso aduzidos pelos apelantes, impondo-se confirmar a sentença recorrida.
**
Decisão:

Nesta conformidade, os juízes desta Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, acordam em:

I- não admitir a junção aos autos do documento de fls. 35 verso, ordenando o seu desentranhamento e a respetiva devolução aos apresentantes;
II- julgar a presente apelação totalmente improcedente e, em consequência:
- confirmam a decisão recorrida.
*
Custas pelos apelantes (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Notifique.
*
Guimarães, 29 de novembro de 2018.


1. Paula Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, vol. I, 2013, Almedina, págs. 340 e 341. No mesmo sentido de que o encerramento da discussão em 1ª Instância é o limite máximo até ao qual o art. 423º, n.º 3 do CPC, consente a junção aos autos de documentos, verificados que estejam os requisitos legais que enuncia, vide Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2014, Almedina, pág. 352, nota 829. Ainda Pais de Amaral, “Direito Processual Civil”, 2106, 12ª ed., pág. 320.
2. Acs. STJ. de 13/02/2007, Proc. 06A4496 e RC. de 20/01/2015, Proc. 2996/12.0TBFIG-G1, in base de dados da DGSI.
3. Abílio Neto, “Novo Código de Processo Civil Anotado”, 2ª ed., janeiro de 2014, Ediforum, pág. 515.
4. Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, ob. cit., pág. 341.
5. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, pág. 229.
6. Acs. STJ., de 18/01/2005, Rec. N.º 3689/04-4ª, Sumários, Jan./2005; 18/04/2006, Proc. 06A844
7. Neste sentido vide Ac. RG.de 19/06/2014, Proc. 36/12.9TBEPS-A.G1, in base de dados da DGSI, onde se lê: “A junção de documentos apenas tornada necessária em virtude do julgamento proferido no tribunal da primeira instância, só é possível se a necessidade do documento era imprevisível antes de proferida a decisão na 1ª instância, por esta se ter baseado em meio probatório não oferecido pelas partes ou em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes justificadamente não contavam”. Ainda Ac. STJ. de 26/09/2012, Proc. 174/08.TTVFX.L1.S1: “A possibilidade de junção de documentos com a alegação de recurso de apelação, não se tratando de documento ou facto superveniente, só existe para aqueles casos em que a necessidade de tal junção foi criada, pela primeira vez, pela sentença da primeira instância. A decisão de 1ª instância pode criar, pela primeira vez, tal necessidade quando se tenha baseado em meios probatórios não oferecidos pelas partes, ou quando se tenha fundado em regra de direito com cuja aplicação ou interpretação os litigantes, justificadamente, não contavam”. Fazendo uma síntese do regime, Ac. RC. de 18/11/2014, Proc. 628/13.9TBGRD.C1, na mesma base de dados, onde se refere: “I- Da articulação lógica entre o art. 651º, n.º 1 do CPC e os arts. 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documento na fase de recurso, sendo admitida a título excecional, depende da alegação e prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na ação um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional. II. Quanto ao primeiro elemento, a impossibilidade refere-se à superveniência do documento, referida ao momento do julgamento em primeira instância, e pode ser caracterizada como superveniência objetiva ou superveniência subjetiva. III. Objetivamente, só é superveniente o que historicamente ocorreu depois do momento considerado, não abrangendo incidências situadas, relativamente a esse momento, no passado. Subjetivamente, é superveniente o que só foi conhecido posteriormente ao mesmo momento considerado. IV. Neste caso (superveniência subjetiva) é necessário, como requisito de admissão do documento, a justificação de que o conhecimento da situação documentada, ou do documento em si, não obstante o caráter pretérito da situação quanto ao momento considerado, só ocorreu posteriormente a este e por razões que se prefigurem como atendíveis. V. Só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento. VI. Quanto ao segundo elemento referido em I deste sumário, o caso indicado no trecho final do art. 651º, n.º 1 do CPC (a junção do documento ter-se tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância), pressupõe a novidade da questão decisória justificativa da junção do documento com o recurso, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão recorrida, o que exclui que essa decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum”.
8. Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 5ª ed., Almedina, págs. 395 e 396.
9. José Lebre de Freitas, “A Ação Executiva À Luz do Código de Processo Civil”, 6ª ed., Coimbra Editora, pág. 432.
10. José Lebre de Freitas, ob. cit., pág. 420.
11. Acs. R.P. de 22/10/1985, BMJ, 357º, pág. 478; RE. de 21/02/2013, Proc. 2055/06.5TBFAR.E1, este in base de dados da DGSI. No mesmo sentido, Marco Carvalho Gonçalves, “Lições de Processo Civil Executivo”, 2016, Almedina, pág. 428.
12. Ac. RL de 22/10/1985, BMJ, 357º, pág. 478.
13. Ac. RC. de 12/07/2017, Proc. 422/13.7TBLMG-C.C1, in base de dados da DGSI.
14. Ac. RC. de 12/07/2017, já anteriormente identificado.
15. Ac. RL. de 22/01/2015, Proc. 161/06.5TCSNT.L1-6
16. Cristina Queiroz “Direitos Fundamentais Sociais”, Coimbra Editora, 2006, pág. 29.
17. Cristina Queiroz, ob. cit., págs. 37 a 38 e 81.
18. Ac n.º 151/92, de 08/04/1992, in acórdãos do TC, base de dados da DGSI
19. Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, tomo !, 2ª ed., Coimbra Editora, pág. 82. Ac. TC. n.º 151/91, já anteriormente referido.
20. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., págs. 88 e 89.
21. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., págs. 90 e 91.
22. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., págs. 415 a 456.
23. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., págs. 551 a 556.
24. Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, vol. V, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 455.
25. Ac. TC. n.º 128/92, de 01/04/1992, in acórdãos do TC, base de dados da DGSI.
26. Ac. TC. n.º 507/94, de 14/07/1994, in acórdãos do TC, base de dados da DGSI.
27. Ob. cit. pág. 757.
28. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., págs. 769 e 770.
29. Em igual sentido Ac. RC. de 20/06/2939/14.7T8CBR-F.C1, in base de dados da DGSI.