Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
155/18.8GACBT-A.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: INSTRUMENTO DO CRIME
CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
VEÍCULO CONDUZIDO PELO ARGUIDO
ARTº 109º DO CP
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1 Instrumentos de um crime são “ os materiais, as coisas, cujo uso não importe destruição imediata da sua substância, que não podem ser substituídos por outros da mesma espécie e de que se serve o agente na prática de um crime”.

2. Não deve ser considerado como instrumento do crime para efeitos do art. 109 do CP, o veículo que um arguido conduz sem habilitação legal.

3. A perigosidade do objeto a declarar perdido nos termos do art. 109º do CP, há-de ser aferida pelo próprio objeto e não sob o ponto de vista da perigosidade do agente.

4. A declaração de perda de um veículo não pode servir para sancionar adicionalmente a prática, mesmo que reiterada, do crime de condução sem habilitação legal, sob pena de se erigir uma nova modalidade punitiva, não prevista pelo legislador.
Decisão Texto Integral:
I.
Acordam, em conferência, os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

O Ministério Público interpôs recurso da sentença proferida no processo 155/18.8GALBT que condenou o arguido Manuel pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p.p. artigo 3º , nº 2 do DL 2/98 de 3.1, na pena de 1 ano e 5 meses de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação nos termos do artigo 43º, nº 1 do Código Penal, com fiscalização de meios técnicos e indeferiu a promoção do MP de apreensão e declaração de perda do veículo, cingindo o recurso à decisão de não declaração do veículo.
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São as seguintes as conclusões do recurso:

A. Por sentença proferida neste processo, o arguido Manuel, foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º/1 e 2 do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03.01, na pena de 1 (um) ano e 5 (cinco) meses de prisão efetiva, a cumprir em regime de permanência na habitação, nos termos do art. 43.º/1 do Código Penal, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
B.A mesma sentença indeferiu a promoção do Ministério Público de apreensão e declaração de perda de veículo, decisão essa da qual se recorre, sendo o recurso de direito.
C. A promoção de perda incidiu sobre o veículo que o arguido conduzia no momento da prática dos factos pelos quais foi condenado e que lhe pertence desde 24.05.2018: veículo ligeiro de passageiros, de marca e modelo BMW 318 IS, de matrícula ...., com o n.º de quadro .....
D.O arguido tem inúmeros antecedentes criminais registados pela prática do crime de condução em sem habilitação legal, crimes conexos e de outra natureza:

a. pela prática do crime de furto em 29.10.1995, foi condenado no processo 14/96, pelo Tribunal de Penafiel, na pena de multa de 120 dias de multa, à taxa diária de 300$00;
b. pela prática do crime de furto qualificado em 23.04.1996, foi condenado no processo 15/96, pelo Tribunal de Penafiel, na pena de dois anos e meio de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de 3 (três) anos;
c. pela prática do crime de furto qualificado, na forma tentada, em 09.11.2002, foi condenado no processo 487/02.7GBFLG, do Tribunal Judicial de Felgueiras na pena de 8 meses de prisão efetiva;
d. pela prática dos crimes de condução em estado de embriaguez e condução sem habilitação legal, em 10.02.2007, foi condenado pelo Tribunal Judicial de Felgueiras no processo 127/07.8GBAMT, na pena única de 140 dias de multa, à taxa diária de € 4, no valor global de € 560;
e. pela prática de condução de condução sem habilitação legal em 14.02.2009, no processo 32/09.3GACBT, foi condenado, pelo Tribunal Judicial de Cabeceiras de Basto, na pena de 200 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, no valor global de €1.000;
f. pela prática do crime de condução sem habilitação legal em 28.12.2009, no processo 1606/09.8GBAMT, foi condenado, pelo Tribunal Judicial de Amarante, na pena de 6 meses de prisão efetiva;
g. pela prática do crime de tráfico de estupefacientes em 09.10.2006, foi condenado no processo 1100/06.9GBAMT, pelo Tribunal Judicial de Amarante, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa pelo mesmo período, sujeita à condição de entregar à “Terra ...”, em Amarante, a quantia de €300, no prazo de 150 dias;
h. pela prática do crime de tráfico de estupefacientes em 01.01.2008, foi condenado no processo 12/08.6GAAMT, pelo Tribunal Judicial de Amarante, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa pelo mesmo período;
i. pela prática do crime de condução sem habilitação legal, em 13.05.2017, no processo 269/17.1GBAMT, pelo Juízo Local Criminal de Amarante, foi condenado na pena de 8 meses de prisão, suspensa pelo período de 1 ano sob a condição de entregar aos Bombeiros Voluntários de Amarante, a quantia de € 1.000.
E. Esta última condenação transitou em julgado em 02.10.2017, pelo que o período de suspensão da pena de prisão ainda não terminou e o arguido incumpriu dolosamente o dever de não praticar crimes da mesma natureza no seu decurso (art. 56.º/1-b do Código Penal).
F. O risco de utilização do veículo sem habilitação legal não advém naturalmente das características do próprio veículo, que objetivamente consiste num meio de transporte, que qualquer indivíduo com carta de condução emitida pelo IMTT,IP para a respetiva classe ou que seja detentor de um título reconhecido pela República Portuguesa, pode conduzir.
G. O perigo decorre da dificuldade que o arguido releva em interiorizar que sem carta não pode conduzir; e essa resistência resulta demonstrada da reiteração das condutas, e na circunstância de já ter experimentado todo o leque de penas principais, substitutivas e acessórias que o sistema penal português prevê, tendo cumprido uma pena efetiva de prisão.
H. Contrariamente ao entendimento do Tribunal a quo e do excerto do acórdão em que se louvou (que não é isolado, como sabemos, vd. v.g. ac. TRG de 17.05.2010, rel. Fernando Monterroso; ac. TRE de 29.10.2013, Rel. João Gomes de Sousa; ac. TRP de 25-03-2015, rel. Artur Oliveira), a perda de instrumentos não se circunscreve a bens objetivamente perigosos.
I. Abrange bens que não sendo perigosos, “face às circunstâncias do caso” se prefigura que possam vir a sê-lo, sob pena de esvaziar esse segmento da norma de conteúdo útil (neste sentido, veja-se ac. TRG de 10.07.2014, Rel. Filipe Melo, proc. 149/11.4EAPRT.G1; ac. TRC de 18.03.2015, rel. José Eduardo Martins, proc. 28/14.3GBSRT-A.C1; ac. TRE de 07.04.2015, Rel. António Latas, proc. 8/14.9GDPTG.E1).
J. De outra banda, parece-nos, com o devido respeito, que não é ajustado afastar a perda de um objeto com fundamento na fácil acessibilidade de bens de idêntica natureza por parte do arguido, pois tal pressuposto não está previsto no artigo 109.º e é estranho ao instituto. Ninguém se lembraria de negar a perda de uma arma, porque um determinado arguido teria facilmente acesso a outras e a perda de nada serviria.
K. O veículo automóvel utilizado pelo arguido foi essencial para a prática do ato criminoso, pois sem ele o arguido não exerceria a condução (ac. STJ de 27.09.2006, rel. Henriques Gaspar, no mesmo sentido, vd. ac. STJ de 17.10.96; no mesmo sentido, vd. v.g. ac. TRL de 14.10.2004) e a condução foi uma consequência necessária, direta e adequada da utilização da viatura (vd. ac. TRP de13.03.2013, rel. Artur Oliveira proc. 44/11.7PEMTS.P1, assim também ac. do STJ de 13.12.2006, ac. STJ 13.12.2006, Rel. Oliveira Mendes, proc. 06P3664).
L. O veículo serviu a prática dos factos e não foi um mero acessório facilitador ou diferenciador da forma de execução.
M. Na ponderação da proporcionalidade da perda por referência à gravidade da ilicitude, da culpa e da medida da pena (ac. do TRL 01.02.2011, Rel. Margarida Blasco, proc. 1071/09.0JDLSB.L1-5, ac. do STJ de 27.01.1998, Rel. José Girão, proc. 97P575), a ilicitude foi elevada e colocou em perigo todos os utentes da via pública: condutores, passageiros e peões.
N. As necessidades gerais de prevenção dos crimes rodoviários continuam a ser elevadas: a criminalidade rodoviária é a responsável pela maior fatia de constituição de arguidos e condenações (vd. http://www.siej.dgpj.mj.pt/); o número de vítimas mortais, graves ou ligeiros vem diminuindo desde 2010 muito paulatinamente; no primeiro semestre deste ano registaram-se em todo o país 228 vítimas mortais em acidentes de viação e 900 feridos graves, sem decréscimo assinalável no período homólogo do ano anterior (http://www.ansr.pt).
O. O arguido denota uma grave resistência em interiorizar a reprovação da sua conduta e representa um perigo para o próprio e todos os utentes da via pública, não sendo a perda do seu veículo excessiva face aos custos já despendidos pelo sistema judiciário na execução e fiscalização das penas aplicadas a este arguido, seja de multa, de prestação de trabalho comunitário, de proibição de conduzir veículos a motor, da frequência de programas de prevenção rodoviária, de cumprimento de pena efetiva em reclusão e agora em regime de permanência na habitação.
P. Sopesando todos os pressupostos, a perda de veículo de marca e modelo BMW 318 IS, de matrícula ...., com o n.º de quadro ...., impõe-se nos termos do art. 109.º/1 do Código Penal, que o Tribunal recorrido, com o devido respeito, não aplicou devidamente, porquanto se trata de um instrumento do crime, que foi essencial e causal para o exercício da condução, existindo sério e elevado risco de o arguido voltar utilizá-lo para a prática de ilícitos, sendo a perda proporcional à gravidade dos factos e à pena em que o arguido foi condenado.

Termos em que, com o suprimento de V. Exas, deve ser dado provimento ao presente recurso, sendo consequentemente declarada a perda do veículo de marca e modelo BMW 318 IS, de matrícula ...., com o n.º de quadro .....
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Respondeu ao recurso o arguido defendendo que o mesmo deve improceder.
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O Ministério Público junto desta instância apenas apôs o seu visto.
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Cumpre decidir, colhidos que foram os vistos e realizada conferência.
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II.

Tendo em conta que os poderes de cognição do Tribunal da Relação estão delimitados pelas conclusões do recorrente (artigo 412º do CPP), temos que a única questão a decidir é a de saber se deverá ou não ser declarada a perda do veículo com que foi praticado o crime por que foi condenado o arguido.

A decisão alvo do recurso, na parte que agora interessa é do seguinte teor:

A fls. 48 verso e seguintes veio o Ministério Público promover que o veículo de matrícula ...., cuja propriedade se encontra registada a favor do arguido, seja declarado perdido a favor do estado, nos termos do artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal e, consequentemente, seja apreendido nos termos do preceituado no artigo 178.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

Cumpre decidir.

Nos termos do disposto no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, são “declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática do facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando pela sua natureza ou circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.

Salvo melhor entendimento, a disposição legal em apreço não permite a declaração de perda do veículo automóvel que o arguido conduzia em estado de embriaguez – referência que se terá ficado a dever a lapso - (a título de exemplo, veja-se os Acórdãos do TRL 31-03-2004, do TRP de 9-11-2016 e do TRC de 5-04- 2017, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt, proferidos no âmbito da prática de crimes de condução sem habilitação legal).

Assim, citando o que se deixou escrito no Douto Ac. do TRL 31-03-2004, o artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal não permite a declaração de perda a favor do estado do veículo conduzido pelo arguido “em primeiro lugar, porque o automóvel que o arguido conduzia sem habilitação legal não é instrumento do crime; em segundo lugar, porque a perigosidade que se pretende combater com essa declaração é a do agente e não a do objecto, finalidade que não é tutelada pela citada disposição legal. De facto, como refere Jescheck tendo por base o Código Penal alemão que, nesta matéria, é semelhante ao nosso, «os objectos utilizados para a execução do facto distinguem-se daqueles que apenas se referem à própria execução; o § 74 só abrange os objectos que o autor emprega como instrumento para favorecer o seu comportamento e não aqueles cuja utilização ou presença já é pressuposta pelo tipo penal correspondente».

Exemplificando, este autor menciona que não pode ser declarado perdido, nomeadamente, o veículo que o agente conduz sem licença adequada ou em situação de incapacidade (1). Mas, mesmo que assim se não entendesse, sempre haveria que considerar, com Figueiredo Dias (2), que esta disposição apenas permite a declaração de perda de objectos perigosos, sendo determinante para o preenchimento desse conceito o ponto de vista objectivo e não o subjectivo uma vez que o instituto visa responder à perigosidade da própria coisa e não à perigosidade do agente, para a qual existem outros meios apropriados de reacção.” – vide Ac. TRL 31-03-2004, acessível em www.dgsi.pt.

Ora, quando, se promove a perda de um veículo que foi conduzido sem habilitação legal por o arguido já ter sido por outras 4 vezes condenado por esse crime, está-se a pretender prevenir a perigosidade do agente e não a do objeto, o que é finalidade estranha ao instituto invocado, sendo certo que essa perigosidade nunca seria assegurada porquanto o arguido pode ter acesso a outros veículos.

Pelo que, em face do exposto, por entender que não se verificam os pressupostos legais para tanto, não declaro perdido a favor do estado o veículo do arguido de matrícula .... e, consequentemente, indefiro a sua requerida apreensão.

Apreciando.

Conforme decidido pelo Tribunal a quo e é incontroverso é ao artigo 109º do Código Penal que vamos buscar a solução para a questão em apreço. Recordemo-lo:

“1 - São declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico todos os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a sua prática.
2 - O disposto no número anterior tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz.
3 - Se os instrumentos referidos no n.º 1 não puderem ser apropriados em espécie, a perda pode ser substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A.
4 - Se a lei não fixar destino especial aos instrumentos perdidos nos termos dos números anteriores, pode o juiz ordenar que sejam total ou parcialmente destruídos ou postos fora do comércio”.

A redação desta norma introduzida pela lei 30/2017 de 30.05 resultou da transposição da Diretiva 2014/42/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 03/04/2014, sobre o congelamento e a perda de instrumentos e produtos do crime na União Europeia.

Alvo de críticas, por subordinar a perda de instrumentos do crime, à existência do perigo para a segurança das pessoas, à moral ou à ordem públicas ou à existência de sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos (exigência já dispensada em alguma legislação especial, v.g. artigo 35º, nº 2 do DL 15/93 de 22.01), tem sido entendido (cfr. Parecer da Procuradoria Geral Distrital do Porto relativo ao projeto da Proposta de Lei 201/2016 e referente à Transposição da Diretiva 2014/42/EU) que a redação da norma em apreço viola o disposto na letra e no espírito da Diretiva, - além de violar outras disposições internacionais v.g. o artigo 12º da Convenção das Nações Unidas Contra a Criminalidade Organizada Transnacional, o artigo 2º da Convenção do Conselho da Europa relativa ao branqueamento, deteção, apreensão e perda de produtos do crime de 08/11/1999 (Convenção de Estrasburgo) ou o artigo 3º, nº 1 da Convenção do Conselho da Europa, relativa ao branqueamento, deteção, apreensão e perda dos produtos do crime e ao financiamento do terrorismo, adotada em Varsóvia em 16/05/2005 (Convenção de Varsóvia) -, pelo entendimento de que a perda dos instrumentos do crime deverá ser direta, não estar subordinada à existência de qualquer requisito adicional a não ser o princípio da proporcionalidade.

Independentemente das considerações a que a redação do artigo 109º se tem prestado, o certo é que para que seja proferida declaração de perda, é necessário que se possa fazer a afirmação de que o objeto a declarar perdido seja instrumento do crime.

Encontramos a definição de instrumento de um crime, por exemplo, em Roberto Lyre in Comentário ao Código Penal, II, folhas 553. Aí são definidos instrumentos do crime como os materiais, as coisas, cujo uso não importa destruição imediata da própria substância, que não podem ser substituídos por outros da mesma espécie e de que se serviu o agente na prática do crime.

Como é dito na sentença recorrida, tendo por base os ensinamentos de Yescheck, citado no Ac. RL de 31/03/2004 in www.dgsi.pt e também referido na decisão recorrida: “os objetos utilizados para a execução do facto distinguem-se daqueles que se referem à própria execução; o § 74 (preceito correspondente ao nosso artigo 109º do CP) só abrange os objetos que o autor emprega como instrumento para favorecer o seu comportamento e não aqueles cuja utilização ou presença já é pressuposto pelo tipo penal correspondente”.

E o exemplo que o citado e autorizado autor dá é, precisamente, a impossibilidade de ser declarado perdido o veículo que é conduzido sem licença.

Portanto, de acordo com este entendimento, que também se perfilha, quer se veja nos objetivos visados com a perda dos instrumentos do crime uma ideia de retribuição, quer de prevenção geral - “o crime não compensa” - quer de prevenção especial, para que não se repita a ação criminosa resultante dos instrumentos serem perigosos em si mesmos ou estarem na mão de pessoas com propensão para o crime, o certo é que a perda pressupõe que o objeto a declarar perdido seja um instrumento do crime e, nessa medida, exterior ao próprio crime. Ora tal não ocorre com o veículo no crime de condução ilegal, já que a utilização do veículo integra a descrição típica do crime de condução ilegal, p.p. artigo 3º, nº 2 do DL 2/98 de 3.1.

Por outro lado, também não é em si mesmo um objeto perigoso se olharmos à sua natureza intrínseca, à sua vocação específica, sendo certo que, como diz F. Dias in Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do crime, fls 617, a perigosidade do objeto há-se ser aferida pelo próprio objeto e não sob o ponto de vista subjetivo, já que o instituto em análise não está pensado para atalhar em perigosidade do agente, mas do objeto em si mesmo.

São estas as duas ideias chaves em que se baseia o Tribunal a quo para não declarar a perda do veículo, à semelhança, aliás, de grande parte da jurisprudência quando está, como é o caso, apenas em causa o crime de condução ilegal. Parece-nos correto este entendimento.

De facto, repise-se, por um lado, um automóvel usado na prática, tão só, de um crime de condução ilegal não deve ser considerado um instrumento do crime; por outro lado, também não é objetivamente perigoso para a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, nem oferece por si mesmo sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos ilícitos típicos.

Assim, sendo a finalidade da lei essencialmente preventiva, só devem ser declarados perdidos aqueles instrumentos ou produtos que, atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua específica e conatural utilidade social se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e devam, por isso, considerar-se, nesta aceção, objetos perigosos. (Cfr. F. Dias ob cit, 622, 623).

É certo que, por exemplo, o Professor Germano Marques da Silva (cfr Crimes Rodoviários, Pena acessória e Medida de Segurança, UCE, página 39 e 40 citado no Ac. Relação de Coimbra de 05/04/2017 in www.dgsi.pt), refere que, apesar de dificilmente o veículo representar por si mesmo um perigo para a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, circunstâncias há em que é de admitir que possa oferecer risco de ser utilizado para o cometimento de novos crimes.

É também este o entendimento do recorrente que entende que, designadamente, pelos antecedentes criminais que o arguido já ostenta, existe o sério perigo que o venha a utilizar no cometimento de idênticos crimes.

No entanto, não consta dos autos e nada se sabe sobre se as anteriores condenações ocorreram pela condução deste mesmo veículo. Mas este mesmo veículo, não é, seguramente, mais apto que qualquer outro a potenciar o risco de ser utilizado para o cometimento de novos ilícitos típicos.

Acresce que se os dados estatísticos invocados no recurso são inegáveis, certo é que são as penas previstas pelo legislador para o crime, que têm de refletir as necessidades prementes de repressão das infrações estradais e do número de vítimas que provocam.

Pretender com a declaração da perda dos veículos sancionar, por outra via, a conduta ilícita é erigir uma nova modalidade punitiva que a lei ainda não contempla.

Tanto basta para que o recurso seja improcedente.
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III.
DECISÃO

Em face do exposto decidem os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e confirmar a sentença recorrida.
Sem custas, por delas estar isenta o recorrente (artigo do 522º do CPP).
Notifique.
Guimarães, 11 de fevereiro de 2019

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho