Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
27/12.0TBPVL.G1
Relator: ANA CRISTINA DUARTE
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
INQUÉRITO JUDICIAL
INSOLVÊNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1 - A declaração de insolvência de uma sociedade comercial não implica a inutilidade superveniente da lide em Inquérito Judicial contra si intentado.
2 - A realização do inquérito judicial visa garantir e tornar efectivo o direito dos sócios à informação. Tal direito é um direito extrapatrimonial do sócio, instrumental para o exercício de outros direitos, patrimoniais ou extrapatrimoniais.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I.RELATÓRIO

Nos autos de Inquérito Judicial à sociedade “X – Comércio de Têxteis, Lda”, em que é requerente Maria, tendo transitado em julgado sentença que decretou a insolvência da requerida, foi proferida decisão que julgou extinta a instância, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e) do CPC, quanto à ré X – Comércio de Têxteis, Lda.

Discordando dessa decisão, dela interpôs recurso a requerente Maria, tendo finalizado a sua alegação com as seguintes

Conclusões:

1. Na Douta sentença em crise, é entendimento da Meritíssima Julgadora “a quo” que, o facto de a sociedade sobre que incidem os autos, ter sido declarada insolvente por sentença transitada em julgado, leva à sua ilegitimidade superveniente no presente processo de inquérito judicial, daí ter decido julgar a presente instância extinta, ao abrigo do disposto no artigo 277º alínea e) do Código de Processo Civil.
2. Discorda a apelante de tal Douta sentença em crise, por entender que, salvo o devido respeito que nos merece o Meritíssimo Julgador “a quo”, atenta aprova já produzida nos autos, bem como, por uma correcta interpretação e aplicação do Direito à concreta situação sub judice, nunca tal Douta sentença poderia ser proferida.
3. Com efeito, ao contrário do que foi decidido e de acordo com o que se encontra previsto no nº3 do artigo 1051º do CPC, num processo de inquérito judicial à sociedade, caso seja requerida a dissolução da sociedade, tal pretensão é susceptível de ser cumulada com o inquérito, pelo que, excedendo-se o âmbito da jurisdição voluntária, tal o processo de inquérito, passará a regular-se pelos termos do processo comum declarativo.
4. Daí que, o argumento da invocada ilegitimidade superveniente da Ré - X, no presente processo de inquérito, por ter sido declarada insolvente, seja destituído de qualquer fundamento legal.
5. E mesmo que assim se não entenda, cumpre dizer que, segundo o estipulado no artigo 85º nº 1 e 5 do CIRE, com a declaração de insolvência, compete ao administrador da insolvência a representação da sociedade, daí que, neste processo de inquérito, sempre a Ré - X passará a estar representada pelo administrador da insolvência, sendo que, também por este motivo, inexiste ilegitimidade superveniente da Ré - X, nos presentes autos de inquérito.
6. Além disso, mais se refere e como motivo de discordância em relação ao sentido da Douta Sentença que, a apelante requereu o presente inquérito judicial contra a sociedade comercial “ X - Comércio de Têxteis, Lda” e contra a sua sócia gerente Teresa (referência 260014 do Citius neste processo), para que se apurasse a “ gestão que é praticada pela referida sócia - gerente e apurar quais os prejuízos patrimoniais verificados na esfera jurídica da requerente”, como é invocado pela recorrente na sua p.i.
7. Ora, no processo de inquérito judicial, segundo o prescrito n nº2 do artigo 1048º do CPC, “são citados para contestar a sociedade e os titulares de órgão sociais a quem sejam imputas irregularidades no exercício das suas funções sociais”.
8. Desta forma, a sócia - gerente Maria, também é Ré nos presentes autos, sendo parte legítima neste processo de inquérito, pelo que, mesmo que se entendesse existir a ilegitimidade superveniente da Ré - X nos presentes autos, sempre a instância teria de prosseguir, contra a Ré - Sócia gerente, para o apuramento das irregularidades e ilegalidades por esta praticadas no exercício das suas funções de gerência em tal sociedade.
9. Além disso, como se encontra determinado no artigo 82º do CIRE, o Administrador da Insolvência, durante a pendência do processo de insolvência, tem legitimidade exclusiva para accionar e fazer seguir: “as acções de responsabilidade que legalmente couberem em favor do próprio devedor, contra fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros”; “as acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência”; as acções contra os responsáveis legais pelas dívidas da insolvente”.
10. Ora, na perícia realizada no presente processo de inquérito, cujos resultados constam do Relatório Pericial (referências 344236, 1051458, 1051459, 1051051462, 1051463 do Citius neste processo - 3/09/2013) e seus Esclarecimentos (referência 353270 do Citius neste processo - 31/10/2013), que se dão aqui por integralmente reproduzidos, concluiu o Perito judicial, quanto à gestão praticada pela referida sócia - gerente da “X” que : “Não se percebe como reduziram as vendas e aumentaram as dívidas aos fornecedores. Compra-se mais quando se vende mais, não se compra mais para vender menos”( ponto 21- página 6 dos esclarecimentos) ; “estamos perante uma prática intencional de causar prejuízos à empresa e por consequência aos sócios” (ponto 21 - página 6 dos esclarecimentos); “Não existe folha de caixa, não existem reconciliações bancárias, nem indicação da forma de liquidação das facturas a clientes. Esses documentos são fundamentais para se perceber que destino foi dado ao dinheiro” (ponto 25 - página 8 dos esclarecimentos; “as vendas mensais da empresa não são coincidentes com os depósitos efectuados na conta bancária” (ponto26 - página 9 dos esclarecimentos) ; “… existirá um processo de subfacturação ao logo dos anos. Logo quem beneficiou dessa subfacturação foi a gerência da empresa…” (ponto 35 - página 10 dos esclarecimentos).
11. Desta maneira, já existem factos apurados, que bem revelam que a sócia gerente da “X”, no exercício das suas funções tem vindo a prejudicar patrimonialmente, de forma culposa e danosa, a sociedade em causa, a aqui recorrente, e os credores da sociedade.
12. Além disso, como se pode constatar pela análise dos autos, a sociedade comercial em causa está a ser alvo de inspecção fiscal por parte da Autoridade Tributária, tendo o Tribunal, para um mais completo apuramento da verdade material oficiado à Autoridade Tributária o envio dos resultados de tal inspecção fiscal, já tendo sido remetidos por tal entidade, os resultados, referentes a 2011, (referência 146814262 Citius deste processo - 4/05/2016), e que demonstram não terem sido omitidos proveitos auferidos pela sociedade.
13. Desta forma, não entende, porque ao existindo, um processo de inquérito judicial à sociedade comercial “X” que já dura há cerca de 5 anos, e em vias de chegar ao seu termo, e que fornecerá os elementos essenciais para o Administrador da Insolvência prosseguir as actuações previstas no artigo 82º do CIRE e até se melhor se pronunciar no incidente da qualificação da insolvência, porque a Douta sentença em crise determinou a extinção da presente instância, quanto mais não seja, inviabilizando a economia e celeridade processual relativamente às acções judiciais a serem propostas pelo Administrador da Insolvência, e supra referidas, bem como, inviabilizou a prossecução do apuramento da verdade quanto à gestão que é realizada pela sua sócia gerente Teresa em tal sociedade, que é objecto deste inquérito judicial.
14. Mais se acrescenta que, a recorrente instaurou acção judicial por responsabilidade civil extracontratual, contra a sócia gerente da sociedade comercial “X” e sobre que incidem os presentes autos de inquérito, exigindo-lhe o pagamento de indemnizações por prejuízos e danos patrimoniais e não patrimoniais provocados na sua esfera jurídica, a liquidar em execução de sentença, por ainda não ser possível quantificar-se os valores de tais danos, os quais, são resultantes da gestão danosa e culposa por esta praticada no exercício das suas funções de gerência da sociedade comercial “X” a qual corre seus termos na 3ª Secção do Juízo Central Cível de Guimarães, com o nº 3668/16.2T8BRG de processo, sendo que, por Douta Decisão de 4/01/2017, foi decretada a suspensão da instância até ser junta sentença devidamente transitada em julgado e proferida nestes autos de inquérito ((Doc. 1 - referência 151045743 do Citus em tal processo - 4/01/2017).
15. Desta forma, a Douta Decisão em crise, ao extinguir o processo de inquérito judicial em curso, os factos já apurados e a prova que nele foi produzida, não poderão ser aproveitados neste processo de responsabilidade civil extracontratual proposto pela recorrente contra a sócia gerente da X pela sua gestão culposa e danosa, ficando irremediavelmente prejudicada a economia e a celeridade processual em tais autos.
16. Por tudo o que foi exposto, deverá a Douta Decisão em crise ser revogada, proferindo-se Douto Acordão que determine o prosseguimento dos presentes autos de inquérito judicial, por,
17. Ao decidir como decidiu, ter a Meritíssima Julgadora "a quo" violado, além do mais, o disposto nos artigos 6º, 277º alínea e), 1051º nº3 e 1048º nº2 do Código de Processo Civil, artigos 81º nºs 1 e 5 e 82 alíneas a) b) e c) do CIRE, bem como, não tendo prosseguido o apuramento da verdade material nos presentes autos.

NESTES TERMOS, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a Douta sentença ora recorrida, por o Meritíssimo Julgador “a quo” ter erradamente interpretado e aplicado o Direito, proferindo-se Douto Acórdão que revogue a Douta decisão proferida em 20/03/2017 e mais determine o prosseguimentos dos autos no presente processo de inquérito judicial, por tal ser de JUSTIÇA.

As rés – a sociedade e a sócia Teresa - contra alegaram, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.

O recurso foi admitido como de apelação, com efeito devolutivo e subida imediata.
Foram colhidos os vistos legais.

Face ao falecimento da ré Teresa, foram julgados habilitados como seus herdeiros, o viúvo, António e o filho, Raúl, para com eles prosseguir a ação.

A questão a resolver traduz-se em saber se a declaração de insolvência da requerida conduz à impossibilidade/inutilidade superveniente da lide.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Os factos com interesse para a decisão resultam do relatório supra.

A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, enquanto causas determinantes da extinção da instância – alínea e) do artigo 277.º do CPC – resultarão de circunstâncias acidentais/anormais que, na sua pendência, precipitam o desinteresse na solução do litígio, induzindo a que a pretensão do autor não possa ou não deva manter-se: seja, naqueles casos, pelo desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, seja, nestes, pela sua alcançada satisfação fora do esquema da providência pretendida – Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, pág. 512.

Conforme se pode ler no AUJ n.º 1/2014, in DR, 1.ª Série, n.º 39, de 25/02/2014 “a inutilidade do prosseguimento da lide verificar-se-á quando seja patente, objectivamente, a insubsistência de qualquer interesse, benefício ou vantagem, juridicamente consistentes, dos incluídos na tutela que se visou atingir ou assegurar com a ação judicial intentada” e, mais adiante, sustentando-se na doutrina de Alberto dos Reis, Lebre de Freitas e Fernandes Cadilha, “a inutilidade superveniente da lide verifica-se quando, em virtude de novos factos ocorridos na pendência do processo, a decisão a proferir já não possa ter qualquer efeito útil, ou porque não é possível dar satisfação à pretensão que o demandante quer fazer valer no processo ou porque o escopo visado com a ação foi atingido por outro meio”.

Ora, considerando os contributos doutrinais e jurisprudenciais supra referidos e que balizam a ideia de inutilidade/impossibilidade superveniente da lide, conjugadamente com as disposições do CIRE relativas aos efeitos da declaração de insolvência, designadamente os seus artigos 81.º, 82.º, 83.º e 85.º, não vemos como a declaração de insolvência da requerida pode obstar à prossecução de inquérito judicial à mesma que, como resulta da petição inicial, se destina a obter informação que foi alegadamente sonegada à requerente/sócia e deveria incidir sobre “os relatórios de gestão, IES, balanço e demonstração de resultados e anexos, balancete analítico de 2011, declaração fiscal de rendimentos, inventários, livro de actas e os extractos das movimentações operadas nas contas bancárias da dita sociedade, e, tal, para que se possa elucidar sobre a gestão que é praticada pela referida sócia - gerente e apurar quais os prejuízos patrimoniais verificados na esfera jurídica da requerente”.

Como é óbvio, tal desiderato não perdeu interesse com a declaração de insolvência, nem esta retirou efeito útil à decisão que aqui venha a ser proferida.

Verifica-se, também, que não deixou de ser possível dar satisfação à pretensão da autora, uma vez que a insolvente não deixa de estar representada pelo administrador da insolvência a quem caberá dar continuidade ao processo.

Por outro lado, ao contrário do que se afirma na decisão recorrida, não se vê que uma ação de inquérito judicial verse diretamente sobre direitos patrimoniais, nem que a mesma seja adequada à realização de um direito de crédito. Tais direitos patrimoniais e/ou direitos de créditos não seriam nunca obtidos diretamente, pois, apenas após a decisão a proferir nos autos de inquérito judicial, é possível extrair as consequências que se julgarem adequadas, propondo as ações respectivas – cfr. artigos 1051.º e 1052.º do CPC.

A realização do inquérito judicial visa garantir e tornar efectivo o direito dos sócios à informação que está consagrado no art. 214º do CSC. Como refere Raul Ventura, Sociedades por Quotas, Vol. I, 2ª ed., pag. 282, “o direito à informação é geralmente qualificado como um direito extra-patrimonial do sócio, instrumental para o exercício de outros direitos, patrimoniais ou extra-patrimoniais”. Tal direito é, inquestionavelmente, um direito do sócio perante a sociedade e, como tal, pressupõe a existência da sociedade e a qualidade de sócio.

Só ocorreria a inutilidade superveniente da lide no caso de extinção da sociedade. O direito à informação mantém-se após a dissolução da sociedade e durante a respectiva liquidação (cf. Raul Ventura, ob. cit., pág. 288) – neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa de 25/06/2015, e da Relação do Porto, de 09/11/1999, in www.dgsi.pt.

Daí que a apelação terá que proceder, sendo de revogar a sentença recorrida e ordenando-se o prosseguimento dos autos.

III. DECISÃO

Em face do exposto, decide-se julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida e ordenando-se o prosseguimento dos autos.
Custas pelas apeladas.
***
Guimarães, 10 de julho de 2018


Ana Cristina Duarte
João Diogo Rodrigues
Anabela Tenreiro