Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
416/18.6T8BGC-A.G1
Relator: EVA ALMEIDA
Descritores: EMBARGOS DE EXECUTADO
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA EM RAZÃO DA MATÉRIA DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS
CONTRATO DE CONCESSÃO DE INCENTIVOS
NATUREZA ADMINISTRATIVA
CERTIDÃO DE DÍVIDA EMITIDA PELO TURISMO DE PORTUGAL I.P
FORÇA EXECUTIVA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO DE CONCESSÃO DE INCENTIVOS FINANCEIROS À INOVAÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE ORGÂNICA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (elaborado pela relatora):

I - Os contratos celebrados ao abrigo do Decreto-Lei nº 287/2007, de 17/8 e da Portaria nº 1464/2007, de 15/11, entre o Turismo ... I.P. e os beneficiários dos “incentivos financeiros à inovação”, porque visam a prossecução do interesse público e exigem que o particular preencha as condições definidas pela administração pública, têm natureza administrativa.

II - O acto unilateral de resolução do contrato de concessão de incentivos, por parte do referido Instituto Público, exigindo a devolução dos montantes indevidamente recebidos, enquanto estatuição autoritária aplicadora do direito ao caso, tem natureza administrativa.

III – O art.º 179º do CPA estabelece, nos seus nºs 1 e 2, que, quando, por força de um acto administrativo, devam ser pagas prestações pecuniárias a uma pessoa colectiva pública, ou por ordem desta, segue-se, na falta de pagamento voluntário no prazo fixado, o processo de execução fiscal, tal como regulado na legislação do processo tributário. Regime igualmente previsto no art.º 148º,nº2, al. a) do CPPT.

IV – Da remissão do art.º 16º da Lei Orgânica do Turismo ... I.P [Decreto-Lei n.º 129/2012 de 22/6, que manteve a redacção do art.º 22º da anterior] para a al. d) do n.º 1 do artigo 703.º do CPC, apenas resulta que tais certidões têm força executiva.

V – Tal norma não pode se interpretada como atributiva de competência aos Tribunais Judiciais para as execuções fundadas em tais certidões e, se o fosse, não poderia ser aplicada, por padecer de inconstitucionalidade orgânica, pois, neste caso concreto, não existe qualquer autorização para o Governo legislar sobre a organização e competência dos tribunais.

VI – Assim, os Tribunais Judiciais são materialmente incompetentes para a execução fundada em certidão de dívida emitida pelo Turismo ... I.P, em resultado da resolução do contrato de concessão de incentivos financeiros à inovação.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I – RELATÓRIO

Por apenso à execução que lhe move Turismo ... I.P. veio a executada, “X - Serviços Hípicos e Turísticos, Lda.”, deduzir embargos, excepcionando a incompetência absoluta (em razão da matéria) dos Tribunais Judiciais para a execução, que entende competir aos TAF.

Para tanto alega, que o exequente é uma pessoa colectiva de direito público e a execução funda-se em título cuja emissão corporiza uma decisão unilateral do exequente, que corresponde a um acto administrativo por exprimir o exercício de um poder de autoridade.

Mais alega que a dívida exequenda é, nos próprios termos do requerimento executivo, proveniente de um acto administrativo: o acto de resolução do contrato de concessão de incentivos financeiros celebrado entre o exequente e a executada [qualificação jurídico-administrativa que sempre resultaria, de todo o modo, do disposto no art.º 307.º/2-d) do Código dos Contratos Públicos].

Nos termos do art. 4.º/1-n) do ETAF (Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais), “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto (…) a execução da satisfação de obrigações ou respeito por limitações decorrentes de actos administrativos que não possam ser impostos coercivamente pela Administração”.

A questão da atribuição da competência (e a concomitante demarcação dos âmbitos das jurisdições administrativa e fiscal, por um lado, e judicial, por outro lado) não se confunde com a questão da determinação do direito processual aplicável, nada impedindo, em abstracto, a convivência da competência da jurisdição administrativa com a aplicação das regras do processo civil. O que é confirmado pelo n.º 5 do art.º 157.º do CPTA, segundo o qual: “as execuções contra particulares das sentenças proferidas pelos tribunais administrativos, assim como dos demais títulos executivos produzidos no âmbito de relações jurídico-administrativas que careçam de execução jurisdicional, correm termos nos tribunais administrativos, mas, na ausência de legislação especial, regem-se pelo disposto na lei processual civil".

Por força do disposto no art. 4.º/1-o) do ETAF compete à mesma ordem jurisdicional, residualmente, o julgamento de todas as questões relativas a relações jurídicas administrativas e fiscais e “os tribunais judiciais [só] têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional” (art.º 40.º/1 da LOSJ)

Por outro lado, a norma do art.º 16.º/1 do Decreto-Lei 129/2012, de 22 de Junho não é uma norma de atribuição de competência, mas apenas de determinação dos requisitos de executividade das certidões de dívida emitidas pelo exequente. E se o fosse sempre seria inconstitucional, por violação do disposto na alínea p) do número 1 do art. 165.º da Constituição da República Portuguesa, que inclui na reserva relativa da competência legislativa da Assembleia da República a matéria da “organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos respetivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de composição de conflitos” (ver, a respeito de situação juridicamente similar, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 218/2007, de 23/03/2007).
*
A exequente/embargada respondeu à invocada excepção, alegando:

“O regime legal previsto no artigo 22.º do Decreto-lei n.º 141/2007, de 27 de Abril atribui a possibilidade ao Turismo ..., I.P. de, com a verificação do não pagamento de uma dívida, criar um título executivo. Porém, não é um título executivo qualquer sendo que não é certamente uma certidão de dívida para titular uma execução fiscal. Muito pelo contrário, este é um título executivo para os efeitos da lei processual civil.

O raciocínio da embargante só faria sentido se a lei remetesse, por exemplo, para o artigo 88.º do Código de Procedimento e Processo Tributário (CPPT), o qual tem como epígrafe “Extracção das certidões de dívida”, Ou, mais precisamente, para o n.º 5 do artigo mencionado que dispõe o seguinte “(...) As certidões de dívida servirão de base à instrução do processo de execução fiscal a promover pelos órgãos periféricos locais, nos termos do Título IV.”

A argumentação aduzida neste ponto da oposição à execução desconsidera totalmente as disposições legais que regem o caso concreto. Pelo que é manifestamente improcedente a invocação da excepção de incompetência absoluta do tribunal. Neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo 160/08.2TBFCR-C.C1, de 10.01.2010 que, aliás, aborda igualmente a questão seguinte, em cujo sumário se pode ler o seguinte:

I - O Instituto de Financiamento e Apoio ao Turismo (hoje designado por Instituto de Turismo ...) é um instituto público dotado de personalidade jurídica, autonomia administrativa e financeira e património próprio, que tem por objecto o apoio ao fortalecimento, modernização e desenvolvimento das estruturas empresariais, a promoção do desenvolvimento de infra-estruturas e investimento no sector do turismo, bem como a promoção interna e externa de Portugal como destino turístico – D. L. nº 308/99, de 10/08, e D.L. nº 141/2007, de 27/04. II – O Instituto de Turismo ... pode certificar as dívidas de que é credor, constituindo essa certidão um verdadeiro título executivo (administrativo), nos termos do artº 46º, al. d), do CPC.
III – Tal tipo de título executivo pode ser submetido à jurisdição comum”.
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Foi proferida a seguinte Decisão:

Pelo exposto e nos termos dos artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1, 99.º, n.º1, e 577.º, alínea a), do C. P. Civil, julgo procedente a excepção de incompetência em razão da matéria, declaro o Juízo Central Cível e Criminal do Tribunal Judicial de Bragança incompetente para a tramitação da execução apensa – por, para tanto, serem competentes os tribunais administrativos e fiscais – e absolvo a Embargante/Executada da instância executiva.
Fixo aos presentes embargos o valor da execução (artigos 304.º, n.º 1, e 306.º, números 1 e 2, do C. P. Civil).
Custas da execução e da oposição a cargo da Exequente/Embargada (artigo 527.º, números 1 e 2, do C. P. Civil).
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Inconformado, o exequente/embargado TURISMO ..., I.P interpôs o presente recurso, que instruiu com as pertinentes alegações, em que formula as seguintes conclusões:

«A) Pela douta decisão sob recurso foi declarada a incompetência do tribunal em razão da matéria e, consequentemente, foi ordenada a extinção da instância executiva;
B) Por diversas vezes se pronunciaram os tribunais superiores sobre a competência material dos tribunais comuns para tramitar as execuções intentadas pelo aqui embargante;
C) O título dado à execução é uma certidão emitida nos termos do disposto no artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 141/2007, de 27 de Abril, diploma entretanto revogado pelo Decreto-Lei n.º 129/2012 de 22 de junho, que no seu artigo 16.º, manteve a anterior redacção;
D) Dispõe o artigo 22.º da Lei Orgânica do aqui recorrente que “As certidões negativas de pagamento emitidas pelo Turismo ..., I. P., constituem título executivo bastante, nos termos previstos na alínea d) do nº 1 do artigo 46º do Código de Processo Civil.”;
E) Considerando que o artigo 22.º da Lei Orgânica do aqui recorrente faz expressa menção ao artigo 46.º [actual artigo 703.º] “do Código do Processo Civil e não ao CPA ou ao Código do Processo Tributário, deverá ser interpretado no sentido de que, neste particular, o legislador, que conhecia ou tinha obrigação de conhecer o disposto no art.º 155º do CPA, quis que tais títulos executivos seguissem o regime processual regulado no CPC e não no processo Tributário”;
F) Prevendo a alínea d) do artigo 703.º do CPC que podem servir de base à execução os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva e encontrando-se o ora recorrente legalmente habilitado a emitir certidões de dívida que constituem título executivo, o tribunal recorrido é materialmente competente para tramitar a execução;
G) O Código de Procedimento Administrativo constitui uma lei geral cuja aplicação não prejudica as situações especiais previstas noutros diplomas, nomeadamente no Decreto-Lei n.º 129/2012, de 22 de Junho, pelo que na ausência de uma inequívoca manifestação nesse sentido, não assiste legitimidade ao intérprete para concluir que o Decreto-Lei n.º 4/2015, pretendeu afastar ou revogar o regime previsto naquele diploma legal;
H) A sentença recorrida violou o artigo 16.º da Lei Orgânica do ora recorrente, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 129/2012 de 22 de junho, e a alínea d) do n.º 1 artigo 703.º do CPC; Termos em que, e nos mais de Direito que serão doutamente supridos, deverá, procedendo o presente recurso, revogar-se a douta decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos ulteriores termos da presente instância e da instância executiva, tudo nos termos acima preconizados, assim se fazendo JUSTIÇA!.»
*
Dos autos não constam contra-alegações.
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O processo foi remetido a este Tribunal da Relação, onde o recurso foi admitido nos termos em que o fora na 1ª instância.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR.

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos artºs 635º nº4 e 639º do CPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do CPC).
As questões a resolver são as que constam das conclusões da apelação, acima reproduzidas.

III - FUNDAMENTOS DE FACTO

Têm interesse para a decisão deste recurso os seguintes factos alegados pela ora recorrente no requerimento executivo:

A) O Instituto de Turismo ..., abreviadamente designado por Turismo ..., I. P. (de acordo com o disposto no nº 1 do artº 1º do Decreto-Lei nº 129/2012, de 22 de Junho) que, nos termos do nº 1 do artº 2º do Decreto-Lei nº 77/2004, de 31 de Março, passou a ser a nova designação do Instituto de Financiamento e Apoio ao Turismo, concede, no exercício da sua actividade, subsídios na área do turismo e fiscaliza a respectiva aplicação, de modo a assegurar o cumprimento das obrigações assumidas pelos beneficiários dos mesmos.
B) No dia 20 de Março de 2013, o aqui exequente celebrou com a sociedade X - Serviços Hípicos e Turísticos, Lda., na qualidade de promotor, um contrato de concessão de incentivos financeiros, no âmbito do Sistema de Incentivos à Inovação, aprovado pelo Decreto-Lei nº 287/2007, de 17 de Agosto, alterado e republicado pelo Decreto-lei nº 65/2009, de 20 de Março e regulamento pela Portaria nº 1464/2007, de 15 Novembro, alterada e republicada pela Portaria nº 353-C/2009 e pela Portaria n.º 1103/2010 de 25 de Outubro, operação à qual foi atribuído, internamente, o n.º 26488.
C) O referido contrato teve por objecto a concessão de um incentivo financeiro de natureza reembolsável até ao montante máximo de € 4.909.201,49 (quatro milhões novecentos e nove mil duzentos e um euros e quarenta e nove cêntimos), para aplicação na criação de um conjunto turístico de 4 estrelas, no concelho de …, composto por um hotel de 4 estrelas, um aldeamento turístico de 4 estrelas um centro hípico e um Biocampus.
D) A comparticipação financeira mencionada na alínea anterior desdobrou-se da seguinte forma:
- uma comparticipação financeira reembolsável até ao montante de € 4.909.201,49 (quatro milhões novecentos e nove mil duzentos e um euros e quarenta e nove cêntimos);
- eventual prémio de realização no valor máximo de € 3.626.290,51 (três milhões seiscentos e vinte e seis mil duzentos e noventa euros e cinquenta e um cêntimos), determinado nos termos e condições previstas na cláusula quinta do contrato.
E) Ficou consignado no contrato que o prazo para a execução do investimento deveria realizar-se entre 14 de Janeiro de 2013 e 31 de Dezembro de 2013.
F) Tendo-se detectado que o valor das despesas elegíveis relativa à componente de estudos não se encontrava correctamente indicada o valor do incentivo reembolsável foi reduzido para € 4.908.126,43 e o valor do eventual prémio de realização foi igualmente reduzido para € 3.623.484,21.
G) Em Fevereiro de 2014, o exequente procedeu à libertação do primeiro adiantamento do incentivo financeiro atribuído, no valor de € 1.070.181,11 (um milhão setenta mil cento e oitenta e um euros e onze cêntimos), em duas transferências de € 910.000,00 e de € 160.181,11).
H) Por ofício de 23.02.2015, o exequente informou a executada do seguinte:

“Na sequência de uma auditoria efetuada pela Inspeção-Geral de Finanças (IGF), no âmbito da verificação do bom funcionamento dos sistemas de gestão e controlo dos programas operacionais, efetuada ao abrigo do art.º 62.º do Regulamento (CE) n.º 1083/2006, do Conselho, de 11 de Julho, e do art.º 21.º do DL n.º 312/2007, de 17 de setembro, alterado pelos DL n.º 74/2008, de 22 de Abril, e DL n.º 99/2009, de 28 de Abril, foram identificadas, por aquela entidade, as situações indicadas no excerto do relatório que se anexa, no que a essa empresa diz respeito. Atendendo às conclusões referidas nessa mesma auditoria, e face ao elenco das despesas indicadas como irregulares, procedeu este Instituto ao apuramento do devido impacto no processo supra identificado e às devidas correções a concretizar. Nessa medida apurou-se que: i. Nos termos do relatório anexo, o contrato de empreitada celebrado com a A. C., SA apresenta irregularidades procedimentais no que diz respeito ao cumprimento das regras de contratação pública, de que resulta uma correcção financeira aplicada ao mesmo contrato de 100%, no montante de 5.990.000,00€. ii. Situação semelhante foi detetada no âmbito dos contratos de prestação de serviços relacionados com a empreitada, designadamente relativos a projetos de arquitetura, resultando urna correção financeira aplicada ao mesmo contrato de 100%, no montante de 204.000,00€. iii. Efetuadas as devidas correções, tendo também em conta o montante de incentivo já efetivamente liberto e a despesa certificada apresentada, verifica-se que o novo investimento elegível ascende a 1.356.669,25€, ao qual corresponde um incentivo reembolsável de 610.501,16€. Dado que até à data foi já pago o valor de 1.070.181,11€ de incentivo reembolsável, sobretudo com base na despesa que ora foi considerada irregular, importa desde já assegurar a recuperação do valor de incentivo correspondente, no montante de 1.033.731,11€. Atento o exposto, solicita-se a essa sociedade que, nos termos e para os efeitos do artigo 100.º e seguintes do Código de Procedimento Administrativo, transmita por escrito e no prazo de 10 dias, o que tiver por conveniente. Mais se informa que o processo pode ser consultado nas instalações deste Instituto, no horário de expediente, desde já nos disponibilizando para a realização de urna reunião que permita apurar do atual estado de execução do projeto. Com os melhores cumprimentos
I) A executada não respondeu.
J) Por novo ofício de 06.10.2015, o exequente informou a executada do seguinte:

“Na sequência da auditoria efetuada pela Inspeção-Geral de Finanças (IGF), no âmbito da verificação do bom funcionamento dos sistemas de gestão e controlo dos programas operacionais, efetuada ao abrigo do art.º 62.º do Regulamento (CE) nº 1083/2006, do Conselho, de 11 de Julho, e do art.º 21.º do DL nº 312/2007, de 17 de setembro, alterado pelos DL n.º 74/2008, de 22 de Abril, e DL n.º 99/2009, de 28 de Abril, foram identificadas, por aquela entidade, algumas situações de irregularidade no que a essa empresa diz respeito, conforme constou da nossa anterior notificação SAI/2015/2865, à qual não obtivemos qualquer resposta. Atendendo às conclusões referidas nessa mesma auditoria, e face ao elenco das despesas indicadas como irregulares, procedeu este Instituto ao apuramento do devido impacto no processo supra identificado e às devidas correções a concretizar. Nessa medida apurou-se que: i. Nos termos do relatório anexo, o contrato de empreitada celebrado com a A. C., SA apresenta irregularidades procedimentais no que diz respeito ao cumprimento das regras de contratação pública, de que resulta uma correcção financeira aplicada ao mesmo contrato de 100%, no montante de 5.990.000,00€. ii. Situação semelhante foi detetada no âmbito dos contratos de prestação de serviços relacionados com a empreitada, designadamente relativos a projetos de arquitetura, resultando uma correção financeira aplicada ao mesmo contrato de 100%, no montante de 204,000,00€. Efetuadas as devidas correções, tendo também em conta o montante de incentivo já efectivamente liberto e a despesa certificada apresentada, verifica-se que o novo investimento elegível ascenderá a 1.356.669,25€, ao qual corresponderá um incentivo reembolsável de 610.501,16€. Não tendo sido cumpridas as regras de contratação pública, e tendo em conta que a maioria das despesas associadas à empreitada será considerada irregular, sendo de referir que isso implicará a inelegibilidade de todo o investimento associado essa mesma componente, vislumbra-se difícil a manutenção do apoio ao projeto em apreço. Nos termos das alíneas a) e i) da cláusula oitava do contrato de concessão de incentivos, celebrado em 03.04.2013, V. Exas. obrigaram-se a executar o projeto nos termos e prazos aprovados e a cumprir os normativos em matéria de contratação pública no âmbito da execução do projeto. O não cumprimento das obrigações contratuais e/ou objetivos do projecto é suscetível de consubstanciar causa de resolução do contrato, de acordo com a al. a) do n.° 1 da cláusula décima terceira. Atento o exposto, solicita-se a essa sociedade que, nos termos e para os efeitos do artigo 121.º e seguintes do Código de Procedimento Administrativo, aprovado pelo DL n.º 4/2015, de 7 de Janeiro, transmita por escrito e no prazo de 10 dias, o que tiver por conveniente. Mais se informa que o processo pode ser consultado nas instalações deste Instituto, no horário de expediente, desde já nos disponibilizando para a realização de uma reunião que permita apurar do atual estado de execução do projeto. Com os melhores cumprimentos
K) A executada não respondeu.
L) Uma vez que a executada incumpriu as obrigações constantes das alíneas a) e i) da cláusula 8.ª e por aplicação do disposto na alínea a) do n.º 1 da cláusula 13.ª, por deliberação do Conselho Directivo do exequente de 13 de Novembro de 2015 foi resolvido o contrato, circunstância que foi comunicada à executada por ofício datado de 25 de Novembro de 2015, tendo-lhe sido igualmente comunicado que, em resultado dessa resolução contratual e no prazo de 30 dias, deveria proceder à devolução da quantia de € 1.070.181,11, acrescida do montante de € 102.266,82, a título de juros, totalizando, assim, o valor global de € 1.172.447,93 – cfr. doc. 6 que se junta e se dá por integralmente reproduzido.
M) A executada não pagou nem amortizou a quantia em dívida.
N) Por outro lado, a executada não impugnou o acto administrativo consubstanciado na resolução do contrato de concessão de incentivos, sendo que, conforme dispõe a alínea b) do n.º 2 do artigo 58.º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a impugnação de quaisquer actos administrativos que, eventualmente, sejam anuláveis deve ser feita no prazo de três meses.
O) A falta de impugnação deste acto administrativo no devido prazo teve como consequência que o acto administrativo de rescisão do contrato de concessão de incentivos financeiros se consolidou na ordem jurídica.
P) Deste modo, considerando o não cumprimento das obrigações contratuais por parte da executada, assiste legitimidade ao exequente para exigir judicialmente o respectivo pagamento.
Q) Como tal, o exequente é credor da executada de uma quantia que, reportada a 19 de fevereiro de 2018, ascende a € 1.278.943,54 (um milhão duzentos e setenta e oito mil novecentos e quarenta e três euros e cinquenta e quatro cêntimos), de acordo com a seguinte imputação:
- € 1.070.181,11 (um milhão setenta mil cento e oitenta e um euros e onze cêntimos), a título de capital;
- € 208.762,43 (duzentos e oito mil setecentos e sessenta e dois euros e quarenta e três cêntimos), a título de juros calculados nos termos do número 2 da cláusula 13.ª do contrato de concessão de incentivos financeiros desde a data de pagamento da parcela do incentivo até 19.02.2018.
R) Ao supra referido valor acrescem juros de mora calculados à taxa de 4,857%, desde 20.02.2018 até integral e efectivo pagamento, conforme se apura da certidão junta.
S) A mencionada certidão constitui título executivo por força do artigo 16.º dos Estatutos do ora exequente (cfr. Decreto-Lei n.º 129/2012, de 22 de Junho), em cotejo com o disposto no artigo 703.º n.º 1, alínea d) do Código do Processo Civil (cfr. Título Executivo).”

IV – FUNDAMENTOS DE DIREITO

A apelante defende a competência dos Tribunais Judiciais para a presente execução, invocando o disposto no art.º 16º da sua actual Lei Orgânica (Decreto-Lei n.º 129/2012 de 22 de Junho), que manteve a redacção do art.º 22º da anterior (Decreto-Lei n.º 141/2007, de 27 de Abril), com base na qual o título foi emitido.
Interpretando tal normativo, no acórdão do TRC, prolatado no processo 160/08.2TBFCR-C.C1, de 10.01.2010(1), que a apelante cita na sua contestação, decidiu-se que “O Instituto de Turismo ... pode certificar as dívidas de que é credor, constituindo essa certidão um verdadeiro título executivo (administrativo), nos termos do artº 46º, al. d), do CPC. E que tal tipo de título executivo pode ser submetido à jurisdição comum”.
É este também o entendimento da apelante, que não foi acolhido na sentença recorrida.

Apreciando.

No caso em apreço dúvidas não restam e é aceite pela recorrente, que o contrato de concessão de incentivos financeiros, que a embargante e a embargada celebraram entre si, ao abrigo de leis e regulamentos administrativos (designadamente, o Decreto-Lei nº 287/2007, de 17 de Agosto, alterado e republicado pelo Decreto-lei nº 65/2009, de 20 de Março, e a Portaria nº 1464/2007, de 15 Novembro, alterada e republicada pela Portaria nº 353-C/2009 e pela Portaria n.º 1103/2010 de 25 de Outubro), tem natureza administrativa.

Efectivamente, visando os referidos “incentivos financeiros à inovação” a prossecução de interesse público (ver o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 287/2007), em que para a sua concessão se exige que o particular preencha as condições exigidas pela Administração para a realização desse interesse público, e o Regulamento aprovado pela citada portaria, que define as regras aplicáveis ao Sistema de Incentivos à Inovação, é elementar concluir que o contrato celebrado tem a natureza de contrato administrativo.

Assume também natureza administrativa o acto unilateral de resolução do contrato de concessão de incentivos, exigindo a devolução da quantia de €1.070.181,11 (alíneas L e M dos fundamentos de facto supra elencados), como a própria recorrente admite no seu requerimento executivo (cfr. al. N: “a executada não impugnou o acto administrativo consubstanciado na resolução do contrato de concessão de incentivos”).

Pronunciando-se sobre um caso similar (incentivos concedidos pelo IFADAP), o STA, em acórdão de 26.8.2009 (proc. nº 0609/09) (2), decidiu que a competência para a execução é dos Tribunais Tributários, com fundamentação assim sumarizada:

I - Os contratos celebrados entre o IFADAP (ora IFAP) e os beneficiários das ajudas no âmbito da Portaria n.º 195/08, de 24 de Março (Programa de Apoio à Modernização Agrícola e Florestal (PAMAF), são contratos de natureza administrativa.
“II - O acto de natureza sancionatória de rescisão desse contrato e ordem de reposição dos montantes indevidamente recebidos, enquanto estatuição autoritária aplicadora do direito ao caso, define-se como acto administrativo.
III - Nos termos do artigo 148.º alínea a) do CPPT podem ser cobrados mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei, as dívidas ao Estado e outras pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo, sendo que a previsão constante do n.º 1 do artigo 155.º do CPA satisfaz a aludida exigência de lei expressa.”

Efectivamente o art.º 179º do CPA estabelece, nos seus nºs 1 e 2, que: “Quando, por força de um acto administrativo, devam ser pagas prestações pecuniárias a uma pessoa colectiva pública, ou por ordem desta, segue-se, na falta de pagamento voluntário no prazo fixado, o processo de execução fiscal, tal como regulado na legislação do processo tributário. Para efeitos do disposto no número anterior, o órgão competente emite, nos termos legais, uma certidão com valor de título executivo, que remete ao competente serviço da Administração tributária, juntamente com o processo administrativo.”

Por seu turno o nº 2 al. a) do art.º 148º do CPPT estabelece que “poderão ser igualmente cobradas mediante processo de execução fiscal, nos casos e termos expressamente previstos na lei, outras dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo”.

Ora, perante todas estas normas de sentido contrário, o único argumento em que se funda a apelante para defender a competência dos Tribunais Judiciais ou Comuns é a redacção do citado art.º 16º da respectiva Lei Orgânica, que reza assim:

– “As certidões negativas de pagamento emitidas pelo conselho diretivo do Turismo ..., I.P., constituem título executivo bastante, nos termos previstos na alínea d) do n.º 1 do artigo 703.º do Código do Processo Civil”.

Desta norma apenas resulta que tais certidões têm força executiva.

A remissão para o CPC é anódina, pois é consabido que as disposições deste código são subsidiariamente aplicáveis ao processo administrativo e fiscal (cfr. art.º 2º do CPPT).
Não estamos perante uma norma atributiva de competência aos Tribunais Judiciais, pois nada na sua letra autoriza tal interpretação.

Mesmo que tal norma fosse interpretada como atribuindo competência para a execução aos Tribunais Judiciais, sempre seria inconstitucional como se decidiu, no acórdão do TC de 218/2007 a propósito de artigo 53.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 81/91, de 19 de Fevereiro, que determina a competência dos tribunais civis (“o foro cível da comarca de Lisboa”) para as execuções instauradas pelo Instituto de Financiamento e Apoio ao Desenvolvimento da Agricultura e Pescas (IFADAP), organismo pagador das ajudas previstas nesse diploma, em virtude do não cumprimento pelos particulares dos respectivos contratos de atribuição.

Efectivamente, em tal hipótese, a citada norma da Lei Orgânica da recorrente também padeceria de inconstitucionalidade orgânica, por violação do actualmente estabelecido no artigo 165.º, n.º 1, alínea p), da Constituição da República Portuguesa, pois estaria a dispor sobre a matéria de repartição de competências entre os tribunais judiciais e os tribunais administrativos e fiscais, ao determinar que o julgamento das acções executivas relativas aos contratos de incentivos celebrados pela recorrente com particulares e aos actos de execução dos mesmos contratos (designadamente dos actos-sanção por incumprimento do contrato), matéria que é da competência exclusiva da Assembleia da República, já que, também neste caso concreto, não existe qualquer autorização para o Governo legislar sobre a organização e competência dos tribunais (3).
Concluímos assim, tal como na decisão recorrida, que os Tribunais Judiciais são absolutamente incompetentes para tramitar a execução em apreço.
Neste mesmo sentido se decidiu no acórdão de 12.01.2017 (processo nº 641/09.0TBMNC-A.G2) desta Relação e Secção, publicado em dgsi.pt (4).
Pelo exposto não acolhemos as conclusões do apelante, impondo-se confirmar a sentença recorrida.

V – DELIBERAÇÃO

Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação pelo apelante.
Guimarães, 02-05-2019

Eva Almeida
Maria Amália Santos
Ana Cristina Duarte


1. http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/5107bfd440b11375802576c80033bc39?OpenDocument
2. http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/35fbbbf22e1bb1e680256f8e003ea931/9614ef466821c78a802576240036ddeb?OpenDocument
3. http://www.pgdlisboa.pt/jurel/cst_busca_palavras.php?buscajur=previsse&ficha=64&pagina=2&exacta=&nid=7482
4. http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/95ee945a0127de16802580c8005a4903?OpenDocument