Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4010/21.6T8VNF-F.G1
Relator: ALEXANDRA VIANA LOPES
Descritores: INCIDENTE DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RECURSO INADMISSÍVEL
VALOR DA CAUSA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: DESATENDIDA
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. O erro de direito do despacho que fixar o valor da causa e de um recurso de um incidente de exoneração do passivo restante, pelo valor do ativo, em contrariedade com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral decidida no acórdão do Tribunal Constitucional nº70/2021, de 19 de abril, e com o disposto no artigo 248º-A do CIRE, em referência ao art.245º do CIRE, aditado pela Lei nº9/2022, de 11 de janeiro: pode fundamentar o recurso desse despacho, nos termos do art.639º/2 do C. P. Civil, ex vi do art.17º do CIRE; não pode ser conhecido quando esse despacho que fixou o valor tenha transitado em julgado.
2. A fixação do valor da causa do incidente de exoneração do passivo restante e do valor do recurso de apelação no valor de € 2 090, 62, por despacho transitado em julgado, não permite admitir o recurso de decisão proferida nesse incidente: por a causa ser inferior ao valor da alçada do Tribunal da 1ª instância (€ 5 000, 00) e a sucumbência ser inferior a metade do valor da causa (€ 2 500, 00), nos termos do art.629º/1 do CPC, ex vi do art.17º/1 do CIRE; por não estar verificada qualquer uma das previsões que confiram recorribilidade excecional à decisão independentemente do valor da ação ou da sucumbência, previstos no art.629º/2-a) a c) e 3-a) a c) do CPC, ex vi do art.17º/1 do CIRE.
Decisão Texto Integral:
As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte

ACÓRDÃO

I. Relatório:

No incidente de exoneração de passivo restante de AA e BB:
1. A 31.03.2022 foi proferido despacho de exoneração do passivo restante (no qual se fixou o rendimento a ceder ao fiduciário pelos insolventes).
2. A 19.04.2022 foi interposto recurso de apelação do despacho de I-1 supra.
3. A 25.05.2022 foi proferido o seguinte despacho em relação ao recurso de I-2 supra:
«Req de 19-4-2022: Notifique os insolventes para indicarem o valor do recurso interposto uma vez que o artigo 12º, nº2 do Regulamento das Custas Processuais dispõe que “nos recursos o valor é o sucumbência quando esta for determinável, devendo o recorrente indicar o respectivo valor no requerimento de interposição do recurso; nos restantes casos, prevalece o valor da acção”».
4. A 09.06.2022 os insolventes declararam:
«notificados do despacho através da ref. ...17, para esse pronunciar sobre o valor do recurso apresentado em 19.04.2022, vem informar que deverá ser aplicado o disposto no art. 15º do CIRE – “Para efeitos processuais, o valor da causa é determinado sobre o valor do activo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real.”.
No caso em apreço ainda não houve correção do valor, o que deverá acontecer e se requer, devendo o administrador ser notificado para indicar o valor do ativo dos devedores.».
5. Depois do despacho a pedir ao administrador a indicação do valor do ativo e do administrador o indicar, a 22.09.2022 foi proferido o seguinte despacho:
«Fixo o valor à causa e ao recurso em € 2.090,62, atenta a informação do AI que antecede.».
6. O despacho referido em I-5 foi notificado aos interessados, nomeadamente aos insolventes, por ato de 23.09.2022, e não sofreu qualquer impugnação.
7. Admitido o recurso no Tribunal de 1ª instância, este subiu a esta Relação.
8. Neste Tribunal da Relação, por despacho de 22.12.2022, foram convidadas as partes a cumprirem o contraditório sobre a rejeição do recurso, uma vez que o valor fixado à ação e ao recurso, por decisão transitada em julgado, é inferior quer ao valor da alçada do Tribunal da 1ª instância (€ 5 000, 00), quer ao valor da sucumbência de que depende a recorribilidade da decisão recorrida (€ 2 500, 00).
9. Os insolventes exerceram o contraditório, defendendo a recorribilidade do despacho, nos seguintes termos:
«1.
No âmbito dos presentes autos, foi apresentado recurso da decisão relativa à exoneração do passivo restante, no que respeita ao valor do rendimento disponível.
2.
Sucede que, a primeira instância veio admitir o recurso, considerando-o apresentado em tempo, e por quem tem legitimidade para o efeito.
3.
Levanta-se agora a questão do valor do recurso apresentado, por referência ao valor da ação e ao disposto nos arts. 15º do CIRE e 629º, nº 1 do CPC.
4.
Ora, de acordo com o estipulado no art. 15º do CIRE “Para efeitos processuais, o valor da causa é determinado sobre o valor do activo do devedor indicado na petição, que é corrigido logo que se verifique ser diferente o valor real.”.
5.
Ou seja, o valor do recurso não poderá ser outro que não o valor da causa, que por sua vez corresponde ao valor do ativo dos Insolventes.
6.
Tal critério é transversal e utilizado para todo e qualquer recurso apresentado no âmbito do processo de insolvência, o que pode gerar uma manifesta inadequação do critério utilizado para o efeito, como sucede in casu.
7.
No caso vertente, o recurso apresentado refere-se a uma questão do processo de insolvência, ao qual não poderá ser atribuído um valor de ação diferente do valor atribuído ao processo principal, motivo pelo qual a análise da recorribilidade das decisões proferidas terá de ir mais além da literalidade da norma, e aplicando princípios gerais, sob pena de violação de inúmeros princípios.
8.
Por exemplo, terá de se analisar a adequação da aplicação da regra geral ao caso concreto.
9.
Aliás, no que respeita à matéria da exoneração do passivo restante já foi proferido acórdão pelo Tribunal Constitucional sobre a recorribilidade das decisões, onde se decidiu que “(…) o fator para determinação do valor do incidente de exoneração do passivo restante, na sua relação com a alçada do Tribunal de 1.ª instância e a consequente recorribilidade das decisões nele proferidas, não pode deixar de considerar-se critério arbitrário ou ostensivamente inadmissível, por tratar desigualmente sujeitos em posição idêntica naquilo que pode justificar o acesso ao Tribunal superior. Embora do artigo 20.º da CRP não decorra o direito a um 2.º grau de jurisdição em processo civil e não seja constitucionalmente proibida a adoção do valor da causa como critério de determinação da admissibilidade do recurso, é contrário à proibição de arbítrio um critério de determinação do valor para efeitos de relação da causa com a alçada do Tribunal que conduza a que sujeitos afetados com a mesma intensidade por decisões judiciais sejam colocados em posição diversa quanto à admissibilidade de impugnação da respetiva decisão desfavorável. É certo que, no âmbito de cada processo de insolvência, os sujeitos são todos tratados por igual e a todos eles é vedado ou permitido em igualdade de condições interpor recurso em função da alçada. Mas a violação da igualdade que está em causa não atinge a dimensão de igualdade que integra o princípio do «processo equitativo» (a igualdade «interna» de poderes dos concretos sujeitos processuais), mas o tratamento desigual de pessoas em identidade substancial quanto à mesma pretensão de tutela jurisdicional. Tratamento desigual esse que resulta da consideração decisiva de um fator (o valor em função do ativo) sem relação material com a pretensão discutida e, por isso, imprestável para suportar a distinção entre devedores insolventes no acesso ao 2.º grau de jurisdição de decisões desfavoráveis quanto à exoneração do passivo restante. Consequentemente, procede a imputação de violação do princípio da igualdade à solução normativa que constitui objeto do recurso, ficando prejudicado o confronto com os demais parâmetros invocados, designadamente com os instrumentos de direito internacional” (negritos nossos).
10.
Ora, consubstanciaria uma violação do direito de defesa e de igualdade dos insolventes não poderem apresentar recursos sobre a matéria decidida no âmbito desta matéria, tendo por referência o art. 15º do CIRE.
11.
Tal decisão assenta no facto de existir uma manifesta inadequação, por violação do direito ao recurso de decisões judiciais que afetam direitos, liberdades e garantias, decorrente do princípio de acesso aos Tribunais, consagrado no art. 20º, nº 1 da CRP (Constituição da República Portuguesa) e do princípio da igualdade, previsto no art. 13º da CRP.
12.
Ou seja, não se poderá promover a aplicação do art. 15º do CIRE, conjugado com o art. 629º, nº 1 do CPC no sentido de se considerarem irrecorríveis as decisões promovidas no âmbito da concessão de exoneração de passivo restante e fixação de rendimento disponível, por violação dos princípios previstos nos arts. 13º e 20º da CRP.
13.
Repare-se que, o critério fixado no art. 15º do CIRE é manifestamente arbitrário, que pode restringir o direito de recurso de forma excessiva.
14.
Existem inúmeras outras situações em que o aludido critério se mostra manifestamente desadequado e que impõem, caso a caso, e sempre por reporte à utilidade económica/prática da pretensão em apreciação, o recurso a juízos de inconstitucionalidade ou fixação de valores de incidentes inominados com apelo às regras gerais do CPC, de forma que não se restrinja injustificadamente a possibilidade de reexame por parte dos Tribunais superiores das decisões de primeira instância.
15.
No que respeita aos processos de insolvência, em virtude da regra imposta pelo art. 15º do CIRE, já foram colocadas à apreciação do Tribunal Constitucional várias matérias no que respeita à recorribilidade de diversas decisões, por se considerar que a previsão legal coarta o direito de acesso à justiça e aos tribunais de forma considerável e viola descaradamente o princípio da igualdade, porquanto o cumprimento do art. 15º do CIRE levaria a que o acesso à 2ª instância e ao recurso estivesse diretamente dependente do valor do ativo de cada insolvente.
16.
Por exemplo, as decisões relativas à qualificação de insolvência, também já foram objeto de análise pelo Tribunal Constitucional, que decidiu precisamente no sentido da inconstitucionalidade do art. 15º do CIRE conjugado com o art. 629º, nº 1 do CPC, por violação do direito de defesa – vide Acórdão nº 280/2015, no âmbito do processo 1025/2014, que decidiu “julgar inconstitucional, por violação do direito ao recurso de decisões judiciais que diretamente afetam direitos, liberdades e garantias, decorrente do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição, a norma extraída das disposições conjugadas do artigo 15.º do CIRE, e artigos 304.º, primeira parte, e 629.º,n.º 1, do CPC, interpretadas no sentido de que não cabe recurso de decisões proferidas no incidente de qualificação da insolvência cujo valor, determinado pelo ativo do devedor, seja inferior ao da alçada do tribunal de primeira instância;”.
17.
Em face do exposto, os Insolventes consideram que o recurso apresentado deverá ser admitido e apreciado, sob pena de violação dos arts. 13º e 20º da CRP, corolários dos princípios da igualdade e do acesso ao direito, violação essa e consequente inconstitucionalidade que desde já se invoca, para os devidos e legais efeitos.».
10. A 02.03.2023 foi proferido despacho a rejeitar a interposição de recurso, por falta dos requisitos do art.629º/1 do C. P. Civil.
11. Os recorrentes apresentaram reclamação do despacho de I-10 supra para a conferência, apresentando as seguintes conclusões:
«A.
Após decisão de exoneração de passivo restante e de fixação do rendimento indisponível, os Insolventes apresentaram alegações de recurso, uma vez que não concordaram com a decisão que foi proferida pelo Tribunal a quo.
B.
Na sequência de apresentação de recurso, foi proferido despacho de admissibilidade do mesmo, no qual foram analisados os pressupostos de recurso, tendo sido considerado admissível.
C.
Sucede que, após subida de recurso foi proferida decisão de inadmissibilidade de recurso, através de decisão singular, com o qual não se concorda, designadamente porque o fundamento invocado para a rejeição foi o valor da ação.
D.
Foi proferido um Acórdão pelo Tribunal Constitucional com o nº 70/2021, que veio esclarecer o tema em apreço no que tange à recorribilidade de decisões sobre a exoneração de passivo restante, no qual considerou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante no art. 15º do CIRE e do nº 1 do art. 629º do CPC, interpretados no sentido de ser não ser possível apresentar recurso em relativas à exoneração de passivo restante, tendo em consideração o valor da causa, por violação do principio da igualdade, previsto no nº 1 do art. 13º da CRP.
E.
Ora, considerando a decisão que foi tomada, não se consegue compreender a decisão singular proferida pelo Tribunal que contraria in totum o acórdão suprarreferido, ignorando a sua força vinculativa.
F.
Assim, não se afigura possível considerar que o recurso apresentado não é admissível, por inexistir alçada de recurso, bem como valor de sucumbência, quando tal já foi considerado violador do princípio da igualdade, previsto no nº 1 do art. 13º da CRP.
G.
Tal afigura-se violador do mencionado princípio básico constitucional, porque representa que os cidadãos com menor ativo patrimonial terão um menor acesso à justiça, pelo que não se poderá aceitar a decisão proferida.».
12. Não foi apresentada resposta.
13. Foi admitida a reclamação e realizou-se a conferência.

II. Fundamentação:

Impõe-se apreciar se o recurso de 19.04.2022 do despacho de exoneração do passivo restante de 31.03.2022 (no qual se fixou o rendimento a ceder ao fiduciário pelos insolventes) se encontra em condições de ser recebido ou se existe alguma circunstância que obsta ao seu conhecimento (art.652º/1-b) do. C. P. Civil), tendo em conta que o despacho de admissão da 1ª instância não vincula este Tribunal da Relação (art.641º/5 do C. P. Civil).

1. Matéria de facto provada relevante para a apreciação do incidente:
Encontram-se provados os factos relatados em I supra, com base na força probatória plena dos atos processuais em que se baseiam (art.371º do CC).

2. Apreciação jurídica:
2.1. Enquadramento jurídico:
2.1.1. Recorribilidade de decisões:

O primeiro requisito a apreciar por este Tribunal da Relação é se a decisão recorrida é recorrível. A recorribilidade da decisão é aferida:
a) Como regra, pelo valor da ação face ao valor da alçada do Tribunal recorrido e pelo valor da sucumbência, nos termos do art.629º/1 do CPC, ex vi do art.17º/1 do CIRE: «O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa.»);
b) Como exceção, pela verificação de alguma das situações em que o recurso é sempre admissível independentemente do valor da causa e da sucumbência, nos termos do art.629º/2-a) a c) e 3-a) a c) do CPC, ex vi do art.17º/1 do CIRE, que define:
«2. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:
a) Com fundamento na violação das regras de competência internacional, das regras de competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa de caso julgado;
b) Das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;
c) Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça;»
«3. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação:
a) Nas ações em que se aprecie a validade, a subsistência ou a cessação de contratos de arrendamento, com exceção dos arrendamentos para habitação não permanente ou para fins especiais transitórios;
b) Das decisões respeitantes ao valor da causa nos procedimentos cautelares, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;
c) Das decisões de indeferimento liminar da petição de ação ou do requerimento inicial de procedimento cautelar.».

2.1.2. Valor de decisões transitadas em julgado:
Nos termos do art.205º da Constituição da República Portuguesa, sob a epígrafe «Decisões dos tribunais», prescreve-se:
«1. (…) 2. As decisões dos tribunais são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as de quaisquer outras autoridades. 3. A lei regula os termos da execução das decisões dos tribunais relativamente a qualquer autoridade e determina as sanções a aplicar aos responsáveis pela sua inexecução.».
Por sua vez, a lei ordinária, nesta decorrência, define: que a sentença que decida a relação material controvertida, que não seja passível de recurso ordinário ou de reclamação e tenha transitada em julgado (art.628º do C. P. Civil), fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580º e 581º do C. P. Civil para o caso julgado e a litispendência, ressalvado recurso extraordinário de revisão dos arts.696º do C. P. Civil (art.619º do C. P. Civil) e sem prejuízo da oposição à execução baseada em sentença transitada em julgado (art.729º do C. P. Civil); que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo (art.620º/1 do CPC).
Segundo o critério da eficácia, a decisão terá força obrigatória (arts. 619º/1 e 620º/1 do CPC): dentro do processo e fora dele, se for sentença ou despacho saneador que decida do mérito da causa (caso julgado material); ou apenas dentro do processo, se for sentença ou despacho que tiver recaído unicamente sobre a relação processual (caso julgado formal).
Esta imutabilidade e indiscutibilidade da decisão transitada em julgado, como «garantia processual de fonte constitucional enquanto expressão do princípio da segurança jurídica, própria do Estado de Direito (cf. artigo 2.º da Constituição)»[i], manifesta-se, de acordo com a construção doutrinária e jurisprudencial do caso julgado:
a) Num efeito negativo e formal, que opera como exceção dilatória e que evita que o Tribunal julgue a ação repetida (entre os mesmos sujeitos e sobre o mesmo objeto processual) e reproduza ou contradiga a decisão anterior, nos termos dos arts.577º/i), 578º, 580º e 581º do C. P. Civil: «Entre as mesmas partes e com o mesmo objeto (isto é, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir), não é admissível nova discussão: o caso julgado opera negativamente, constituindo uma exceção dilatória que evita a repetição da causa (efeito negativo do caso julgado)»[ii].
Neste caso, a decisão anterior impede o conhecimento do objeto posterior[iii].
b) Num efeito positivo e material, que opera no conhecimento de mérito da causa, através da autoridade do caso julgado, quando, apesar de existir identidade de sujeitos ou via equiparada a esta, se está perante objetos processuais distintos: «Entre as mesmas partes mas com objetos diferenciados, entre si e ligados por uma relação de prejudicialidade, a decisão impõe-se enquanto pressuposto material da nova decisão: o caso julgado opera positivamente, já não no plano da admissibilidade da ação mas no do mérito da causa, com ele ficando assente um elemento da causa de pedir (efeito positivo do caso julgado).[iv]»
Este efeito «admite a produção de decisões de mérito sobre objetos materiais materialmente conexos, na condição da prevalência do sentido decisório da primeira decisão»[v].
Neste caso, a decisão anterior vincula a decisão de mérito do distinto objeto posterior[vi].

2.2. Apreciação da situação em análise:
Os recorrentes, no seu contraditório prévio à rejeição do recurso por decisão sumária agora reclamada, apesar de entenderem erradamente que o valor deste não poderia ser diferente do valor da causa e do ativo, defenderam que o recurso de apelação da decisão proferida no incidente de exoneração do passivo restante deveria ser admitido por a sua recorribilidade não se poder aferir pelo valor processual referido no art.15º do CIRE, por isso implicar a violação do princípio da igualdade e da defesa/recurso, nos termos dos arts.13º e 20º/1 da Constituição da Republica Portuguesa, conforme decorre de posições assumidas por jurisprudência do Tribunal Constitucional.
Os recorrentes, na reclamação para a conferência da decisão sumária, acrescentaram que não se compreende a rejeição do recurso face à força obrigatória do Acórdão do Tribunal Constitucional nº70/2021.
Impõe-se apreciar.
Por um lado, os fundamentos do contraditório e da reclamação poderiam ter fundamentado a interposição de recurso de apelação do despacho que fixou o valor da causa e do recurso em € 2090, 62, por defesa de um erro de direito da decisão, nos termos do art.639º/1 e 2 do C. P. Civil.
De facto, a fixação de valor no incidente de exoneração do passivo restante é contrário: não só à declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral decidida no acórdão do Tribunal Constitucional nº70/2021, de 19 de abril (que declarou, com força obrigatória geral, que «3 - Em face do exposto, decide-se declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma resultante das disposições conjugadas do artigo 15.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de março, e do n.º 1 do artigo 678.º do Código de Processo Civil, na numeração anterior à vigência da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho - ou, em alternativa, do n.º 1 do artigo 629.º do Código de Processo Civil, na numeração resultante da Lei n.º 41/2013, de 26 de junho - interpretados no sentido de que, no recurso de decisões proferidas no incidente de exoneração do passivo restante em processo de insolvência, o valor da causa para efeitos de relação com a alçada do tribunal de que se recorre é determinado pelo ativo do devedor, por violação do princípio da igualdade consagrado no n.º 1 do artigo 13.º da Constituição.»), mas, sobretudo, é contrária ao que dispõe atualmente o artigo 248º-A do CIRE, em referência ao art.245º do CIRE, aditado pela Lei nº9/2022, de 11 de janeiro.
Todavia, os insolventes, para além de terem defendido um critério errado de fixação do valor do recurso no incidente de exoneração do passivo restante, não impugnaram por recurso o despacho que fixou o valor da causa e do recurso no valor de € 2 090, 62.
De facto, examinando os atos processuais provados, verifica-se: que, por despacho de 22.09.2022, o Tribunal da 1ª instância fixou o valor da causa e o valor do recurso de apelação no valor de € 2 090, 62; que o despacho foi notificado aos interessados, nomeadamente aos insolventes, por ato eletrónico de 23.09.2022, e não foi impugnado por estes.
Assim, este despacho transitou em julgado e é definitivo neste processo e no recurso, ainda que padeça de erro de direito do Tribunal a quo, que deixou de poder ser apreciado e corrigido.
E, sendo o valor fixado à causa, por decisão transitada em julgado, inferior ao valor da alçada do Tribunal da 1ª instância (€ 5 000, 00), não está verificado o primeiro requisito de que depende a admissibilidade do recurso, previsto no art.629º/1 do CPC, ex vi do art.17º/1 do CIRE.
Por outro lado, os referidos fundamentos do contraditório da rejeição do recurso não se pronunciaram sobre a aferição do prejuízo/sucumbência da decisão.
No entanto, ainda que se entendesse que o valor fixado à causa poderia não se destinar ao incidente de exoneração do passivo restante mas ao processo de insolvência e que aquele deveria ser fixado por ter valor distinto deste processo (art.304º/1 do CPC, ex vi do art.17º/1 do CIRE; arts.248º-A e 245º do CIRE), verificar-se-ia que o valor fixado ao recurso da decisão do incidente, por decisão transitada em julgado, levaria a que soçobrasse a admissibilidade do recurso.
De facto, correspondendo o valor do recurso ao valor da sucumbência/ prejuízo para os recorrentes da decisão recorrida (como também identifica, para efeitos tributários de pagamento da taxa de justiça o art.12º/2 do RCP), a fixação definitiva do valor do recurso em € 2 090, 62 corresponde à fixação de um valor de sucumbência inferior a metade do valor da alçada da 1ª instância (€ 2 500, 00), o que faz com que não esteja verificado o segundo requisito de que depende a recorribilidade da decisão, previsto no nº1 do art.629º do CPC, ex vi do art.17º/1 do CIRE.            
O recurso, por sua vez, não respeita a ação ou a decisões, nem se fundamenta em matérias que confiram recorribilidade excecional à decisão independentemente do valor da ação ou da sucumbência, previstos no art.629º/2-a) a c) e 3-a) a c) do CPC, ex vi do art.17º/1 do CIRE.    
Desta forma, deve ser desatendida a reclamação da decisão sumária e deve ser rejeitado o recurso por irrecorribilidade da decisão, nos termos do art.629º/1 do C. P. Civil, ex vi do art.17º/1 do CIRE.     

III. Decisão:

Pelo exposto, as Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, desatendendo-se à reclamação, rejeitam o recurso de apelação de 19.04.2022. 
*
Custas pelos recorrentes (art.527º/1 do CPC).
*
Guimarães, 11.05.2023
Elaborado, revisto e assinado eletronicamente pelas Juízes Relatora, 1ª Adjunta e 2ª Adjunta

Alexandra M. Viana Parente Lopes
Rosália Cunha
Lígia Venade
           
 
[i] Rui Pinto, in Código de Processo Civil anotado, Almedina, vol. II, Almedina, 2018, nota 2-I ao art.619, pág.185.
[ii] Lebre de Freitas, in «Um polvo chamado Autoridade do Caso Julgado», pág.693, in www.portal.oa.pt
[iii] Ac. RG de 07.08.2014, relatado por Jorge Teixeira no processo nº600/14.TBFLG.G1.
[iv] Lebre de Freitas, in artigo citado in ii, pág.693
[v] Rui Pinto, in obra citada in i, nota 2- II ao art.619, pág.186.
[vi] Ac. RG de 07.08.2014, referido supra.