Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
413/14.0IDBRG-BC.G1
Relator: CÂNDIDA MARTINHO
Descritores: APREENSÃO
FINALIDADES PROCESSUAIS
PRINCÍPIO DA PRECARIEDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/25/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I) O tempo decorrido desde a efectivação da apreensão não pode constituir fundamento para se concluir pela desnecessidade da sua manutenção.
Embora sujeito ao princípio da precaridade (cessa logo que for desnecessário manter a apreensão para efeitos de prova ou de confisco - art.186º,nº1, do C.P.P.), o mecanismo processual da apreensão não está – entre nós – sujeito a nenhum prazo máximo: não existe um limite temporal (equivalente, por exemplo, aos prazos máximos de duração do inquérito ou da prisão preventiva) findo o qual tenham de ser restituídos os objectos apreendidos (a não ser, claro, os prazos de prescrição do procedimento criminal).
II) O Tribunal Constitucional, no âmbito do acórdão nº294/2008, de 29 de maio, salientou este aspecto, ao referir que «A apreensão de bens ou valores que constituam o produto do crime não está relacionada (…) com quaisquer vicissitudes processuais, mas unicamente com os próprios fins do processo penal, e é justificada à luz do interesse da realização da justiça, nas suas componentes de interesse na descoberta da verdade e de interesse na execução das consequências legais do ilícito penal».
Por outro lado, se o que está em causa é a questão de prova - enquanto pressuposto do jus puniendi do Estado - também dificilmente se compreenderia a existência de quaisquer limites temporais.
III) Inexistindo tais limites temporais, encontrando-se a investigação criminal em curso, envolvendo a mesma crimes complexos, alguns deles de catálogo, mencionados no artigo 1º da Lei5/2002, de 11/1, a demandar diligências que à luz das regras da normalidade da vida se admitem morosas, não vemos pois como concluir, como fez a decisão recorrida, que a manutenção da apreensão, em face do mencionado decurso do prazo, seja desproporcionada e desadequada, antes se apresentando como a única susceptível de permitir ainda alcançar a realização da justiça.
Decisão Texto Integral:
Desembargadora Relatora: Cândida Marinho
Desembargador Adjunto: António Teixeira

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I. Relatório

1.
No incidente a correr por apenso aos autos de inquérito (Actos Jurisdicionais) nº413/14.0IDBRG que corre termos na Procuradoria da República da Comarca de Braga – Departamento de Investigação e Acção Penal – 1ª Secção de Braga, foi proferido em 29/11/2019, despacho judicial que na sequência do requerimento apresentado pela interveniente X,SA, determinou o levantamento da apreensão dos veículos, marca Mercedes, matricula QG e BMW, matrícula PC e a sua consequente entrega à mencionada interveniente.
2.
Não se conformando com o decidido pelo Mmo Juiz de Instrução, veio o Ministério Público recorrer, extraindo as conclusões que a seguir se transcrevem:

«1.Veio a sociedade “X, S.A”, com o NIPC ……, arrogando-se proprietária dos veículos marca Mercedes, matrícula QG e BMW, matrícula PC, requerer o levantamento da apreensão que sobre estes recai e, consequentemente, a sua restituição.
2.Por decisão proferida no apenso acima identificado, em 29.11.2019, pelo M.mo Juiz de Instrução, foi deferida a pretensão da requerente, sustentando-se a douta decisão recorrida, no facto de os veículos se encontrarem apreendidos na sequência de mandados de busca e apreensão, que se destinaram à recolha de meios de prova, que os veículos se encontram registados em nome da requerente, que esta é terceira em relação aos factos indiciados e que já decorreram mais de dois anos desde que os veículos foram apreendidos.
3. Os veículos marca Mercedes, matrícula QG e BMW, matrícula PC, foram apreendidos em 28 de Novembro de 2016, data em que se encontravam na posse do arguido N. M..
4.Este arguido encontra-se indiciado nos autos pela prática, em co-autoria material, dos crimes de Associação criminosa, Fraude Fiscal e de burla tributária contra a segurança social, p. p., respectivamente, pelos arts. 299.º, n.º1, do Código Penal, 104.º, n.ºs 1 e 2, als. a) e b) e 87.º do RGIT.
5.Em 2 de Outubro de 2017, por decisão proferida no Apenso AB destes autos, transitada em julgado, foi indeferida idêntica pretensão à agora novamente formulada pela sociedade “X, SA”, no sentido de levantamento da apreensão e restituição destes veículos, considerando-se que, apesar do registo destes veículos a seu favor, estes estavam no domínio do arguido, seu habitual utilizador.
6.Ora, conforme bem se fez constar da douta decisão recorrida, decorridos mais de dois anos “tudo se manteve igual”.
7.Assim, não tendo, entretanto, ocorrido nenhuma situação que tenha alterado o estado de coisas subjacente à prolação da decisão proferida em 2 de Outubro de 2017, não se vislumbra razão para que agora seja proferida decisão divergente.
8.Dispõe o art. 186.º, n.º1, do C.P.P. que, logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeitos de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito.
9.Sucede que, no caso, a manutenção da apreensão continua a ser necessária, não sendo suficiente para concluir em sentido contrário, o mero decurso do prazo desde a data em que esta teve lugar.
10.Efectivamente, a complexidade da presente investigação, demanda essa demora, sendo que, além do mais, importam realizar diligências com vista a aferir se os veículos apreendidos foram utilizados para a prática dos factos em investigação, ou se constituem vantagem, ainda que indirecta, destes.
11.Dispõe o n.º1, do art. 109.º do Código Penal que, são declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou oferecerem sério risco de serem utlizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico, todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para sua prática.
12.Exige-se assim, nesse normativo, para efeitos de perda, que o objecto tivesse servido para a prática do crime, tendo vindo a entender a jurisprudência, de maneira praticamente unânime, que essa utilização terá que ser ponderada numa graduação de essencialidade, ou seja, que sem a utilização desse objecto o crime dificilmente seria cometido nos moldes em que o foi.
13.Resulta dessa exigência que não basta a existência de um nexo de causalidade entre o objecto e a prática do acto ilícito, mas que este assuma, relativamente ao mesmo, um carácter significativo, ou seja, que sem a sua utilização o crime sempre seria cometido, mas de um modo totalmente diverso.
14.Não obstante, a ser assim, como se compagina então a exigência desta relação de essencialidade com o segmento do normativo em análise que consagra a perda do objecto que estando destinado a servir a prática de uma infracção ali prevista, não chegou a ser utilizado?
15.Sobre a natureza do instituto da perda de bens escrevem Leal Henriques e Simas Santos que “... a perda dos objectos não tem uma natureza jurídica unitária. Tem um carácter quase-penal, quando se dirige contra o autor ou comparticipante no delito, a quem no momento da sentença pertencem os objectos, mesmo que sirva então, ao mesmo tempo, os fins de prevenção geral e a ideia de que essa perda ao incidir sobre o réu o pode afectar de forma mais severa do que a própria pena [...]. Mas apresenta-se como medida de segurança, quando é imposta sem ter em conta a questão da propriedade ou da má procedência; quando é imposta para proteger a comunidade, porque esta é posta em perigo pelos mesmos objectos ou quando existe o perigo de que possam servir para a comissão de outros factos antijurídicos. Conexionando os objectos com o perigo típico que acarretam para a prática de crimes, a medida deve essencialmente ser vista como medida preventiva e não como reacção contra o crime – o que explica que ela não esteja na dependência da efectiva condenação do arguido (n.º 2) [do art.º 109.ºdo Cód. Penal], podendo compreender-se perfeitamente que a perda deve ainda ser levada a cabo quando o arguido é absolutamente inimputável.” (Manuel Leal Henriques e Manuel Simas Santos – Código Penal Anotado, 1.º Volume, 2.ª Ed., Rei dos Livros, Lisboa, 1997, p. 745.).
16.Ora, o objectivo último do regime de perda de objectos como reacção à prática do crime é, na senda do interesse geral da comunidade, assegurar e garantir o combate ao crime, privando o agente dos bens que serviram para a sua prática e dos que foram seu produto, como medida dissuasora.
17.Assim, fazendo apelo ao princípio da proporcionalidade como princípio geral do direito, na sua tripla dimensão: adequação, necessidade, proporcionalidade em sentido estrito, tal significaria que o bem seria apenas declarado perdido quando tal medida fosse adequada e necessária à prossecução desse fim, mas também proporcional à medida resultante da ponderação do interesse geral da comunidade com direitos individuais, como por exemplo, o do direito de propriedade (que adveio por meios lícitos de aquisição).
18.Ora, no caso em apreço, cumpre apurar, em sede da investigação em curso, se os veículos apreendidos, à data, utilizados pelo arguido N. M., foram ou não usados para o desenvolvimento da actividade delituosa denunciada e se existe, relativamente aos mesmos, o risco de serem utlizados para prática de crimes idênticos, sendo que, em caso afirmativo, a eventual perda dos mesmos a favor do Estado, caso venha a ter lugar, é necessariamente proporcional à medida resultante da ponderação do interesse geral da comunidade com os direitos individuais, como por exemplo, o do direito de propriedade (que advém por meios lícitos de aquisição), tendo em conta, desde logo, o valor total da liquidação provisória já apurado, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 1.º, n.º1, als. i) e e) e 7.º, da Lei 5.º/2002, de 11.01: €5. 546.713,80.
19.Não obstante, ainda que assim não se conclua (que os veículos reúnem as condições para serem declarados perdidos a favor do Estado, ao abrigo do disposto no art. 109.º do Código Penal), há ainda que averiguar, em sede de investigação, se estes constituem ou não, vantagem, directa ou indirecta, da prática dos crimes indiciados.
20.Efectivamente, resulta dos pontos 20 e 21, da factualidade indiciada, do auto de interrogatório judicial, que o arguido N. M. foi angariado para o cometimento dos factos indiciados, a troco de compensações monetárias e materiais.
21.Assim, apenas a investigação em curso, poderá vir a esclarecer se o uso dos veículos apreendidos constituiu para este uma dessas compensações, ou se foram adquiridos com dinheiro proveniente da prática dos crimes indiciados.
22.De harmonia com o disposto no n.º1, do art. 178.º do C.P.P., são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens, relacionados com a prática de um facto ilícito típico.
23.Dispõe o art.110.º, n.º1, al.b), do Código Penal que, são declarados perdidos a favor do Estado, as vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal, todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, directa ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
24. “(…) Colocar alguém na situação em que estaria se o crime não tivesse sido cometido corresponde a uma reconstituição natural, que não implica qualquer sanção ou sequer qualquer prejuízo para o visado. Salvo para quem defenda que o crime é titulo aquisitivo de propriedade”.
(Hélio Rigor Rodrigues, in “ O confisco das vantagens do crime: entre os direitos dos homens e os deveres dos Estados, A Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em matéria de confisco”, O Novo Regime de Recuperação de activos à luz da directiva 2014/42/EU e da Lei que a transpôs.
Efectivamente, o confisco de vantagens visa colocar o agente na situação em que estaria se o crime não tivesse sido cometido.
25.Assim, a restituição imediata dos veículos apreendidos, caso se venha a apurar que estes constituem vantagem directa ou indirecta da prática dos crimes indiciados, corresponderia assim a um enriquecimento injustificado da parte do arguido, passando assim, a integrar na economia legal, vantagens obtidas com a prática de factos ilícitos típico.
26.Com efeito, pese embora os veículos se encontrem registados a favor da sociedade requerente “X, S.A” (o veículo QG desde 06.01.2026 e o veículo PC desde 24.03.2015- período abrangido pela investigação em curso), sociedade que, segundo a certidão de matrícula respectiva, entre 20.02.2014 e 09.10.2019, era administrada por um familiar do arguido N. M. (A. P.), tal constitui mera presunção relativamente à propriedade, que poderá, ou não, vir a ser ilidida na sequência das diligências de investigação ainda em curso.
27.Efectivamente, cumpre aferir, além do mais, através das diligências de investigação em curso, como foram efectuados e quem foi o responsável pelos pagamentos relativos à aquisição destes veículos.
28.Assim, em suma, pelos motivos supra aduzidos, afigura-se-nos prematura o levantamento da apreensão determinada e a restituição dos veículos marca Mercedes, matrícula QG e BMW, matrícula PC à requerente.
29. Pelos motivos acima exarados, a douta decisão recorrida violou o disposto nos arts. 178.º e 186.º, n.º1, do C.P.P. e 109.º e 110.º, do Código Penal.

Em conformidade, deverá ser procedente o presente recurso, e consequentemente, revogada a decisão que recorrida e substituída por outra que mantenha a apreensão dos veículos marca Mercedes, matrícula QG e BMW, matrícula PC,
Fazendo-se assim a costumada, JUSTIÇA.»

3.
A recorrida/interveniente respondeu ao recurso do Ministério Público e concluindo pela sua improcedência, apresentou as seguintes conclusões:

1. A Requerente é a legítima proprietária dos veículos automóveis da marca Mercedes Benz com a matrícula QG e da marca BMW com a matrícula PC.
2. Os veículos automóveis estão apreendidos à ordem dos presentes autos.
3. A sociedade comercial é completamente alheia aos fatos averiguados no âmbito dos mesmos.
4. Está privada e impossibilitada de os utilizar desde a data da sua apreensão.
5. Desde a sua apreensão, teve e tem obrigatoriamente recorrido a outras viaturas, inclusivamente ao seu aluguer.
6. Esta situação está a causar um prejuízo crescente e perfeitamente evitável na Requerente;
7. Desde a sua apreensão que os veículos automóveis estão em total deterioração e perda do seu valor.
8. A Requerente não é Arguida nos presentes autos e é completamente alheia aos mesmos;
9. As viaturas estão apreendidas desde 28.11.2016.
10. Por despacho proferido em 02.10.2017, no âmbito do Apenso AB, foi a pretensão da Requerente indeferida.
11. Sobre este despacho já passaram mais de 2 (dois) anos.
12. Não se entende nem se justifica qualquer fundamento para as viaturas continuarem apreendidas no âmbito e à ordem dos presentes autos.
13. Não se compreende, de todo, quais os fundamentos para tal apreensão.
14. Não se conclui o que quer que seja da posição do Ministério Público quanto à manutenção da apreensão e o porquê da mesma.
15. Estão em causa e sob investigação pelo Ministério Público a existência e a prática de crimes de fraude fiscal, associação criminal, burla contra a segurança social, burla qualificada, corrupção ativa e branqueamento de capitais.
16. A Requerente não é nem nunca foi Arguida nos presentes autos.
17. Não se vislumbra qual o fundamento para que as duas viaturas de que a Requerente é proprietária sejam ou tenham sido vantagens relacionadas diretamente com a prática dos crimes sob investigação.
18. Nunca e em momento algum o Ministério Público proferiu quais argumentos ou fundamentos para tal.
19. Nunca foi proferida decisão para a conversão da apreensão em arresto.
20. As viaturas continuam apreendidas à ordem dos presentes autos.
21. O Ministério Público violou e continua a violar de forma clara, manifesta e inequívoca o direito de propriedade da Requerente.
22. Direito protegido por e ao abrigo do artigo 62, n.º 1, 17 e 18, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
23. A Requerente foi e continua a ser privada de usar e fruir das duas viaturas de que é a única, exclusiva e legítima proprietária;
24. A apreensão ocorreu e foi realizada há mais de 2 (dois) anos.
25. Desde o início que a Requerente reivindica a sua devolução e a violação do seu direito de propriedade privada sobre as mesmas;
26. A sua pretensão nunca foi atendida;
27. É sistemática e continuamente indeferida com a decisão de a apreensão se manter “por ora”.
28. Não se justifica nem tem qualquer fundamento a decisão do Ministério Público de manter apreendidas as 2 (duas) viaturas de que a Requerente é proprietária proferida pelo Ministério Público.
29. A decisão proferida pelo Exmo. Sr. Juiz de Instrução a ordenar o levantamento da apreensão de ambas as viaturas, bem como à sua inerente entregue à Requerente enquanto sua legítima proprietária, deve ser mantida inalterada.

Nestes termos, requer que seja dado provimento na íntegra à presente resposta e, em consequência, serem os veículos automóveis da marca Mercedes Benz com a matrícula QG e da marca BMW com a matrícula PC, apreendidos à ordem dos presentes autos, devolvidos à Requerente X, S. A., sua legítima proprietária, com o que será feita JUSTIÇA»


4.
Neste tribunal da Relação, o Exmo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que “o recurso merece provimento, explicitamente porque o despacho recorrido viola caso julgado formal, ou seja, por haver procedido a uma reapreciação de um concreto assunto jurídico já coberto por caso julgado nos presentes autos – levantamento da apreensão de dois veículos – por, afinal, haver revogado tal despacho, sob pretexto da incompreensão dos seus fundamentos e de um óbvio decurso do tempo, apesar de um nil novi sub sole”.

5.
Cumprido o disposto no art. 417º,nº2, do C.P.P., a recorrida respondeu a esse parecer, concluindo pela manutenção do despacho recorrido.

6.
Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser ai julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º,nº3,al.b), do diploma citado.

II. Fundamentação

A) Delimitação do Objeto do Recurso

Dispõe o art. 412º,nº1, do Código de Processo Penal (diploma a que pertencem os preceitos doravante citados sem qualquer referência) que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
O objecto do processo define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, onde deverá sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir as razões do pedido - arts. 402º,403º e 412º- naturalmente sem prejuízo das matérias do conhecimento oficioso (Cf.Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, VolIII, 1994,pág.340, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3ª edição,2009,pág.1027 a 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7ªEd, 2008, pág.103).
O âmbito do recurso é dado, assim, pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, delimitando para o tribunal superior ad quem, as questões a decidir e as razões que devem ser decididas em determinado sentido, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso que eventualmente existam.

No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente, no caso o Ministério Público, a questão a decidir é a seguinte:

- Saber se há fundamento para ordenar o levantamento da apreensão das duas mencionadas viatura automóveis.

B) Do Despacho Recorrido

«Vem X, S.A. requerer a devolução dos veículos de marca Mercedes, matrícula QG, e de marca BMW, matrícula PC, dizendo que os mesmos são sua propriedade, dizendo-se alheia aos factos sob investigação.
O MP (fls. 4) pugna pelo indeferimento, reiterando a posição que já expressara aquando de idêntica pretensão, nos termos constantes do apenso AB.
Decidindo.

As duas viaturas referidas, cujo levantamento de apreensão a requerente pretende, mostram-se apreendidas desde 28/11/2016.
Por despacho proferido 02/10/2017 (apenso AB) foi ao tempo idêntica pretensão da requerente indeferida dizendo-se, entre o mais, “Neste quadro, apesar do registo de propriedade a favor da requerente, o certo é que era o arguido o utilizador habitual dos mesmos, ou seja era o arguido quem retirava as utilidades do seu uso e sobre eles detinha o domínio à data da constituição como arguido, apesar do referido registo.
Termos em que, por ora, indefiro o requerido.”

Sobre este despacho já decorreram mais de 2 anos.
Conforme resulta do artigo 178.º/8 do CPP o requerimento a que se refere o número anterior – ou seja o requerimento do titular dos bens – é autuado por apenso, notificando-se o MP para, em 10 dias, deduzir oposição.
No caso o requerimento apresentado pela X, S.A. foi autuado por apenso – nos termos que constam de fls. 4.
E assim, visto o presente apenso (e mesmo o apenso AB, bem como o traslado referente ao “auto de busca 13”), não se colhe, tanto mais necessário face ao tempo decorrido desde o anterior indeferimento, qual o fundamento para no presente continuar a apreensão das duas referidas viaturas; tanto mais que – num primeiro momento – não se apreendem claramente os fundamentos da apreensão, ou seja, se a apreensão tem relação com a prova dos factos em investigação, se a apreensão se destina a assegurar uma eventual perda futura a favor do Estado.
E não cabe ao juiz perscrutar nos autos principais – cfr. resulta da conclusão de fls. 4, os autos de inquérito são compostos por 23 volumes e, por conhecimento funcional ainda por um número significativos de apensos – quaisquer elementos de prova adjuvantes da posição do MP.
Na verdade, são os elementos de prova apresentados pelo requerente e os elementos de prova indicados pelo MP na sua oposição que devem fazer parte do apenso, não cabendo ao juiz a tarefa de o instruir e, posteriormente, decidir.
E ademais, como se disse, também não se colhe da posição do MP, seja manifestamente agora, seja por referência à posição que tomou em 27/09/2017 (apenso AB anexo), qual o fundamento da apreensão.
Do que se mostra possível perceber as duas viaturas em causa foram apreendidas na sequência de mandados de busca não domiciliária emitidos pelo MP (fls. 38, 40, 41, 42, 43, 45, 47, 48 e 50 do auto de busca 13). Ora dos referidos mandados de busca e apreensão emitidos pelo MP consta que se destinou “à recolha de elementos de prova”.

Ora, dispõe o artigo 178.º/1 do CPP que “são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros susceptíveis de servir a prova”.
No caso, a propriedade dos veículos referidos encontra-se registada a favor da requerente (doc. de fls. 4 e 5 do apenso AB anexo).
Investigam-se factos, nos dizeres do MP, que configuram a prática dos crimes de fraude fiscal, associação criminosa, burla contra a segurança social burla qualificada, corrupção activa e branqueamento de capitais.
Neste quadro, sendo a requerente terceiro, não se vislumbra presentemente qual o fundamento para manter a apreensão para efeitos de prova, nem o MP o diz, bem como não se vislumbra fundamento para afirmar que as duas viaturas em causa sejam vantagens directamente relacionadas com a prática dos crimes investigados (artigo 178.º/1 do CPP), o que o MP também não diz.
Por outro lado, o MP também não requereu a conversão da apreensão em arresto, aduzindo os respetivos fundamentos.
Do que se conclui que não podem as duas viaturas em causa continuar apreendidas para efeitos de prova, sob pena de manifesta violação do direito de propriedade privada (artigo 62.º/1 da Constituição de República Portuguesa), desde logo na dimensão da liberdade de usar e fruir dos bens de que se é proprietário.
E, lembre-se que o Tribunal, quando há mais dois anos indeferiu a entrega, não deixou de o dizer “por ora”, consciente de que sendo a investigação dinâmica, o então tempo de apreensão ainda justificava a manutenção da apreensão de forma a que o MP pudesse ter futuramente uma ideia mais precisa dos termos em que as viaturas se encontravam na posse do arguido e como tal devessem continuar apreendidas.
Mas decorridos mais de dois anos tudo se manteve igual, ou seja, a apreensão das duas viaturas, em face dos elementos que se colhem, assenta exclusivamente na ideia de servirem como meio de prova (artigo 178.º/1, parte final, do CPP), certamente por isso o MP nem sequer desenvolveu até ao presente – em face dos elementos de prova disponíveis no presente apenso – o registo da apreensão (cfr. artigo 178.º/11 do CPP).
E assim sendo, em face do tipo de criminalidade investigada, não se afigura que a apreensão das duas viaturas deva manter-se, sob pena de ataque desproporcionado ao direito de propriedade da requerente (artigos 62.º/1, 17.º e 18.º/2 da CRP).

Termos em que defiro o requerido e ordeno o levantamento da apreensão das duas viaturas marca Mercedes, matrícula QG, e de marca BMW, matrícula PC, bem como a sua entrega à requerente.
Notifique.»

C) Apreciando

Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam do conhecimento oficioso.
Ora, no âmbito dos presentes autos de inquérito estão a ser investigados, para além do mais, factos consubstanciadores de crimes de associação criminosa, fraude fiscal, burla tributária contra a Segurança Social, tráfico de influências, burla qualificada.
É arguido nos mesmos, para além de outros, N. M., o qual está indiciado da prática, em co-autoria, dos crimes de associação criminosa, p. e p. pelo art. 299,nº1 e 2 do C.Penal, fraude fiscal, p. e p. pelo art. 104º,nº1 e 2, als.a) e b) do RGIT, e burla tributária contra a Segurança Social, p. e p. pelo art. 87º, do RGIT, conforme despacho judicial proferido na sequência do primeiro interrogatório judicial a que foi sujeito em 30/11/2016.
Na sequência de promoção do Ministério Público foi autorizada, por despacho judicial, a realização de buscas, para além do mais, à residência do mencionado arguido, no âmbito da qual, em 28/11/2016, foi feita a apreensão do veículo automóvel da marca Mercedes, matrícula QG e do veículo BMW, matrícula PC, viaturas estas que se encontravam na posse do arguido, ambas registadas em nome de X,SA.
Esta última, invocando a sua qualidade de proprietária das viaturas e a circunstância dos mencionados veículos se encontrarem na posse do arguido por ser seu funcionário, veio por meio de requerimento dirigido à Mma Juiz de Instrução, o qual deu origem ao apenso AB, requerer o levantamento da apreensão, pretensão que após promoção do Ministério Público no sentido do seu indeferimento, veio também a ser indeferida por despacho judicial proferido em 2/10/2017, no mencionado apenso.
Fez-se constar em tal despacho, para além do mais, “Neste quadro, apesar do registo de propriedade a favor da requerente, o certo é que era o arguido o utilizador habitual dos mesmos, ou seja, era o arguido quem retirava as utilidades do seu uso e sobre eles detinha o domínio à data da constituição como arguido, apesar do referido registo.
Termos em que, por ora, indeferido o requerido”.

Através de novo incidente que deu origem ao presente apenso, veio novamente a interveniente X, SA, requerer o levantamento da apreensão das mencionadas viaturas, reafirmando o já invocado no anterior requerimento e ainda o facto de ser alheia à presente investigação, na sequência do qual veio a ser proferida a decisão recorrida.
Insurge-se o Ministério Público, ora recorrente, com o facto desta decisão ter sido contrária à proferida em 2 de outubro de 2017, quando é certo que entre elas não ocorreu qualquer situação que tenha alterado o estado de coisas que esteve subjacente aquando da primeira decisão, não podendo o invocado decurso temporal ocorrido desde a data em que a apreensão teve lugar constituir fundamento suficiente para se afirmar que a manutenção da apreensão para efeitos de prova se tornou desnecessária.
Para o recorrente, a manutenção da apreensão continua a ser necessária, pois só a investigação ainda em curso, cuja complexidade demanda demora, impondo a realização de algumas diligências, permite aferir se os veículos em apreço, à data na posse do mencionado arguido, foram ou não utilizados por este para o desenvolvimento da actividade delituosa denunciada e se existe risco de serem utilizados para a prática de crimes idênticos ou até se constituem ou não vantagem, direta ou indirecta, da prática dos crimes indiciados, pois, como resulta da factualidade indiciada, o ora arguido foi angariado para o cometimento dos factos indiciados a troco de compensações monetárias e materiais.
Vejamos então se assiste razão ao recorrente.
Nos termos do art. 178.º, n.º 1, do CPP são apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os objectos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova.
Já de acordo com o disposto no art. 109.ºnº1, do Código Penal, são declarados perdidos a favor do Estado os instrumentos de facto ilícito típico, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou oferecerem sério risco de serem utlizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, considerando-se instrumentos de facto ilícito típico, todos os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para sua prática.

Também de acordo com o artigo 110º, nº1, als. a) e b), do mesmo diploma, “São declarados perdidos a favor do Estado:

a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objectos que tiverem sido produzidos pela sua prática e
b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indirectamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.
(…)”.
Por outro lado, decorre do artigo 186º,nº1, do C.P.P., que “Logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os objectos apreendidos são restituídos a quem de direito”.
Ainda que seja ao Ministério Público que incumbe a decisão sobre a necessidade ou desnecessidade de manter a apreensão para efeitos de prova e, consequentemente decidir sobre a entrega dos objectos e bens apreendidos, quem se sentir lesado no seu direito de propriedade pela apreensão ordenada, pode requerer ao juiz de instrução a modificação ou revogação da medida, conforme estipula a norma protectora constante do n.º 7 do citado artigo 178º, de acordo com o qual, os titulares de instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objectos apreendidos podem requerer ao juiz a modificação ou a revogação da medida.
Mas será que, no caso vertente, há fundamento para se concluir, como fez a decisão recorrida, pela desnecessidade da manutenção da apreensão das viaturas?
Compulsada a decisão recorrida, resulta da mesma que o Mmo Juiz assentou a desnecessidade da manutenção da apreensão na circunstância de, volvidos mais de dois anos desde a decisão proferida em 2 de outubro de 2017, continuar a não se apreender quais os fundamentos da apreensão em causa, ou seja, se a mesma tem relação com a prova dos factos em investigação ou se destina a assegurar a perda futura a favor do Estado, sendo que quando há mais de dois anos foi indeferida a entrega das viaturas apreendidas, tal foi feito com a consciência de que sendo a investigação dinâmica, o então tempo de apreensão ainda justificava a manutenção da apreensão das viaturas, de forma a que o Ministério Público pudesse ter futuramente uma ideia mais precisa dos termos em que aquelas se encontravam na posse do arguido e como tal devessem continuar apreendidas.
Se bem percebemos, em 2/10/2017, aquando da prolação da respectiva decisão, o Mmo Juiz não havia apreendido ainda os fundamentos da apreensão, mas manteve-a.
Aquando da prolação da decisão recorrida, continuou a não apreender tais fundamentos, contudo, em face do tempo decorrido – mais de dois anos desde o anterior despacho e já mais de três desde a apreensão – porque o Ministério Público continuou a não esclarecer a ligação dos veículos apreendidos com os factos objecto da investigação, a manutenção da apreensão deixou de se justificar, sob pena de ataque desproporcionado ao direito de propriedade da requerente.
O decurso do tempo foi pois o que fez alterar o sentido da decisão do Mmo Juiz relativamente à decisão proferida em 2/10/2017.
Salvo o devido respeito não podemos concordar com o decidido.
A apreensão no nosso sistema jurídico processual, ao contrário do que acontece noutros sistemas jurídicos, como por exemplo o alemão, onde é apenas um simples meio de obtenção da prova, tem uma dupla natureza: é um meio destinado a obter e conservar a prova (finalidade processual probatória) mas também uma garantia processual penal da perda (finalidade processual substantiva).

Como salientou o Acórdão do Tribunal Constitucional nº294/2008, de 29 de maio, a apreensão «é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objectos apreendidos à ordem do processo até à decisão final».
Tal resulta, aliás, do artigo 178.º, n.º 9 do Código de Processo Penal quando refere que «se os instrumentos, produtos ou vantagens ou outros objetos apreendidos forem suscetíveis de ser declarados perdidos a favor do Estado e não pertencerem ao arguido», a autoridade judiciária ordena a presença do interessado e ouve-o, assegurando-se, assim, ao terceiro, o exercício do contraditório com vista à defesa do seu direito de propriedade.
A propósito desta dupla função da apreensão, escreveu João Conde Correia, in “Apreensão ou Arresto Preventivo dos Proventos do Crime” que «O mecanismo processual penal da apreensão de bens tem, portanto, uma função de segurança processual (impedir dificuldades ou até a completa perda da prova) e também uma função de garantia patrimonial (acautelar a sua perda posterior). Ela procura prevenir a demonstração futura do facto e, ao mesmo tempo, quando chegar o momento oportuno, a cabal execução da decisão final. Mesmo, assim, embora unificadas na mesma norma, estas duas finalidades processuais são independentes: uma pode existir sem a outra procurando prevenir a demonstração futura do facto e, ao mesmo tempo, quando chegar o momento oportuno, permitir a execução da decisão final, sendo estas duas finalidades processuais independentes, pois uma pode existir sem a outra, ou seja, a apreensão pode ser indispensável para a prova do facto e irrelevante para efeitos de confisco e vice-versa imprescindível para este e inútil para aquela».
Ora, os presentes autos encontram-se ainda em fase de investigação.
E, atento o número de crimes a ser objecto de investigação, a natureza dos mesmos, o número de arguidos, é pois de admitir que tal investigação criminal seja complexa e bastante morosa, não sendo certamente por acaso que os autos de inquérito, como se referiu na decisão recorrida, são já compostos por 23 volumes e por um número significativo de apensos.

No caso vertente, o que determinou a apreensão das duas viaturas registadas em nome da interveniente foi a circunstância das mesmas encontrarem-se na posse do mencionado arguido e serem por este usufruídas, o que levou à suspeita de poderem estar relacionadas com os factos, atento tipo de criminalidade envolvida.
De entre os factos indiciados, consta também, para além do mais, que tal arguido, entre outros, foi angariado para o cometimento de tais factos a troco de compensações monetárias e materiais.
Tal indiciação demanda, como bem se percebe, a necessidade de averiguar se o uso dos veículos automóveis apreendidos por parte do mencionado arguido constituiu para este uma dessas compensações.
O recorrente fez menção no seu recurso que se encontram em curso diligências para aferir como foram efectuados e quem foi o responsável pelos pagamentos relativos à aquisição dos mencionados veículos.
Para o Mmo Juiz a quo, o prazo decorrido desde a data da efectivação da apreensão era suficiente para que o Ministério Público tivesse logrado esclarecer a relação dos veículos apreendidos com os factos indiciados.
E assim sendo, nada tendo sido esclarecido pelo Ministério Público nesse período, tal permitiu-lhe concluir que a apreensão assentou na ideia de servir como meio de prova, razão pela qual, em face do tipo de criminalidade investigada, a mencionada apreensão, com tal finalidade, não deveria manter-se, sob pena de ataque desproporcional ao direito de propriedade da requerente.
É certo que, como reconhece o recorrente, a mencionada ligação ainda não se mostra esclarecida.
Porém, a investigação prossegue.
E não nos parece aceitável que o tempo decorrido desde a efectivação da apreensão possa constituir fundamento para se concluir pela desnecessidade da manutenção da apreensão, a qual, como salientamos, tem também uma função de garantia patrimonial.
Com efeito, embora sujeito ao princípio da precaridade (cessa logo que for desnecessário manter a apreensão para efeitos de prova ou de confisco - art.186º,nº1, do C.P.P.), o mecanismo processual da apreensão não está – entre nós – sujeito a nenhum prazo máximo: não existe um limite temporal (equivalente, por exemplo, aos prazos máximos de duração do inquérito ou da prisão preventiva) findo o qual tenham de ser restituídos os objectos apreendidos (a não ser, claro, os prazos de prescrição do procedimento criminal).
Aliás, o Tribunal Constitucional, no âmbito do acórdão já citado, salientou este aspecto, ao referir que «A apreensão de bens ou valores que constituam o produto do crime não está relacionada (…) com quaisquer vicissitudes processuais, mas unicamente com os próprios fins do processo penal, e é justificada à luz do interesse da realização da justiça, nas suas componentes de interesse na descoberta da verdade e de interesse na execução das consequências legais do ilícito penal».
Por outro lado, se o que está em causa é a questão de prova - enquanto pressuposto do jus puniendi do Estado - também dificilmente se compreenderia a existência de quaisquer limites temporais.
Ora, aqui chegados, inexistindo tais limites temporais, encontrando-se a investigação criminal em curso, envolvendo a mesma crimes complexos, alguns deles de catálogo, mencionados no artigo 1º da Lei5/2002, de 11/1, a demandar diligências que à luz das regras da normalidade da vida se admitem morosas, não vemos pois como concluir, como fez a decisão recorrida, que a manutenção da apreensão, em face do mencionado decurso do prazo, seja desproporcionada e desadequada, antes se apresentando como a única susceptível de permitir ainda alcançar a realização da justiça.
É certo que a apreensão representa uma restrição ao direito de propriedade privada da interveniente/recorrente (art.62 da CRP).
Porém, essa restrição mostra-se proporcional e justificada, no caso em apreço, pela necessidade de satisfação do mencionado interesse superior – a realização da justiça.
Como bem referiu o recorrente, a admitir-se já a restituição dos veículos e vindo a investigação a concluir que os mesmos constituem uma vantagem directa ou indirecta dos crimes de que está indiciado, tal redundaria num enriquecimento injustificado da parte do arguido, porquanto passaria a integrar no seu património uma vantagem obtida com a prática de factos ilícitos típicos.
Por tudo o exposto, sem necessidade de mais considerações, impõem-se revogar a decisão recorrida, mantendo-se a apreensão das viaturas automóveis em apreço.

III. Dispositivo

Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes da secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o presente recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, mantendo-se a apreensão dos veículos marca Mercedes, matrícula QG e BMW, matrícula PC.

Sem Tributação.
Guimarães, 25 de maio de 2020