Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
349/16.0GAVVD.G1
Relator: MARIA JOSÉ MATOS
Descritores: PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
OMISSÃO POSTERIOR DE DILIGÊNCIAS
ARTºS 120º
Nº 3
ALÍNEA C) E 340º DO CÓDIGO DO PROCESSO PENAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/11/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NULA A SENTENÇA
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. Um dos princípios estruturantes do nosso arquétipo adjectivo penal é o princípio da investigação, perspectivando-o, no que à aquisição e valoração da prova implica, que a condução e esclarecimento da matéria factual não pertence apenas aos sujeitos processuais – que não “partes” – mas ainda, e em primeiro lugar e como última instância, ao julgador.

II. Outro dos princípios, mas ainda desiderato do processo penal português, é o da descoberta da verdade material, razão por que a leitura de qualquer dos demais princípios e normas sê-lo-á tendo, como matriz e finalidade, este de que agora damos nota.

Enunciado no artigo 340, nº 1 do Código do Processo Penal, que disciplina a prova em sede de audiência de julgamento, este principio impõe-se, no entanto, em todas as fases do processo penal, sendo resultado de uma “concepção” personalista do direito e democrática do Estado , provindo de uma leitura própria do principio do acusatório entremeada pelo da investigação, tudo expressão da procura de uma verdade que não seja meramente formal, mas antes daquela que resulta da identidade dos factos que da vida foram levados ao processo.

III. O Tribunal “a quo”, para além do mais, omitiu diversas diligências que, pela sua natureza, se apresentam como diligências essenciais à descoberta da verdade material e boa decisão da causa.
A jurisprudência do TEDH, a este propósito, firma que “a «omissão posterior de diligências» (a que dá nota o artigo 120º, nº 3, alínea c) do Código do Processo Penal) que sejam essenciais refere-se às fases de julgamento e recurso: «posterior» ao inquérito e instrução; diligências essenciais significa, no contexto, que são absolutamente indispensáveis, no sentido de susceptíveis de condicionar a finalidade do processo e a decisão.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes, em Conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

. RELATÓRIO

Nos presentes autos de Processo Comum Singular que seguem termos sob o nº 349/16.0GAVVD no Tribunal Judicial da Comarca de Braga/Juízo Local Criminal de Vila Verde, o Ministério Publico requereu o julgamento do arguido

J. C., divorciado, empresário, filho de … e de …, natural de …, Braga, nascido a .. de .. de .., residente na Rua …, Vila Verde,

Imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal.

A ofendida A. S. constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado, peticionando a sua condenação no pagamento da quantia global de €2.000,00, para compensação dos danos não patrimoniais, que alega ter sofrido em consequência da conduta do arguido.

O ofendido J. C. constituiu-se assistente e deduziu acusação particular, que veio a ser acompanhada pelo Ministério Público, contra os arguidos

A. F., solteiro, filho de J. C. e A. S., nascido a ../../.., residente no …, São João da Madeira, e

A. S., filha de … e …, nascida a ../../.., residente no Lugar …, Vila de Prado,

Imputando-lhes a prática de factos que consubstanciam a prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal.

Este assistente deduziu, ainda, pedido de indemnização civil contra os arguidos/demandados, peticionando a sua condenação, no pagamento da quantia global de €750,00, para compensação dos danos não patrimoniais, que alega ter sofrido em consequência das condutas dos arguidos, bem como juros de mora desde a notificação do pedido de indemnização até integral pagamento.

Os arguidos apresentaram contestação escrita e requerimento probatório.

Foi levado a efeito o julgamento, findo o qual veio a ser proferida sentença, na qual foi decidido:

. Absolver o arguido J. C. da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nº 1, alínea a) e nº 2 do Código Penal;
. Absolver o arguido A. F., da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal;
. Absolver a arguida A. S., da prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º do Código Penal;
. Julgar totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil formulado pela ofendida A. S., absolvendo o arguido/demandado civil;
. Julgar totalmente improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil formulado pelo ofendido J. C., absolvendo os arguidos/demandados civis;
. Sem custas criminais (artigos 513º, nº 1 do Código de Processo Penal, 527º do Código de Processo Civil e 4º, nº 1, alínea n) do Regulamento das Custas Processuais - D.L. nº 34/2008 de 26 de Fevereiro);
. Sem custas civis (atenta a isenção prevista no artigo 4º, nº1, alínea m), do Regulamento das Custas Processuais - D.L. nº 34/2008, de 26 de Fevereiro).

Inconformada com tal decisão absolutória, a assistente A. S. da mesma interpôs o presente recurso, de cuja motivação importa extrair as seguintes conclusões (em resumo):

I. Antes de tudo, cumpre, desde logo, mencionar que a aqui Recorrente interpõe o presente recurso por ser manifesto que a sentença recorrida, que absolveu o Arguido, J. C., do crime de violência doméstica, p. e. p. pelo artigo 152.º, n.º1, a) e 2.º do Código Penal, deve ser totalmente revogada quanto a este;
II. Já que, na verdade, se encontra provado à saciedade que aquele cometeu tal crime na pessoa da Assistente, aqui Recorrente;
III. E diz-se que se encontra provado à saciedade que aquele cometeu tal crime na pessoa da Assistente, aqui Recorrente, na medida em que tal decorre das declarações por esta prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento, bem como das declarações do filho de ambos e das testemunhas por si arroladas;
IV. O que, a esse propósito, se torna de extrema essencialidade destacar que, contrariamente ao decidido na sentença recorrida, nada justifica que o Julgador da 1.º Instância afirme, na sua decisão, que o Tribunal chegou a uma dúvida insanável acerca da conduta criminosa pela qual o Arguido foi acusado;
V. Ou que, porventura, não há razão válida para a afirmação de que, por virtude disso, o Tribunal tenha de fazer funcionar o princípio da presunção da inocência, ou seja, o princípio in dubio pro reo;
VI. Pois, como muito bem se decidiu no Acórdão do STJ, de 28/06/2007, Processo 1409/07 da 5.º secção;
VII. Na aplicação da regra processual da livre apreciação da prova (artigo 127.º do C.P.P.), não haverá que lançar mão;
VIII. Limitando-a do princípio da in dubio pro reo exigido pela constitucional presunção de inocência;
IX. Se a prova produzida (ainda que indirecta) não conduzir, depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, à subsistência no espirito do Tribunal, de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto;
X. Pedir uma certeza absoluta para orientar a decisão actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais;
XI. A dúvida que há-de levar o Tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do Tribunal;
XII. E todas essas considerações no sentido decisório e condenatório, postas em destaque neste Douto Acórdão do nosso mais Alto Tribunal, têm especial cabimento quando, como no caso sub judice, está em causa e apreciação um crime de violência doméstica;
XIII. Dado que a violência típica deste crime tem lugar no seio familiar, quase sempre silenciada e é um dos grandes flagelos da nossa sociedade;
XIV. E só uma cultura interiorizada de respeito pela dignidade humana poderá criar as condições de harmonia tão desejadas, como se salienta no Acórdão da Relação de Lisboa de 31/01/2013, SG I, Pág. 126;
XV. Tendo, para se alcançar tal desiderato papel fundamental a Justiça, o Tribunal, o qual não pode ser, de modo algum, tolerante a ponto de se decidir por uma injusta absolvição de quem comete tal abominável crime;
XVI. O silêncio da vítima leva, inelutavelmente, em casos como o presente, à sua quebra, em dado momento, para que, enfim, a Justiça, norteada pela retribuição, pela prevenção especial e pela prevenção geral proclame, bem alto, com uma condenação que se impõe pôr termo a tal crime;
XVII. Tudo isto mais claro se torna, ainda, se levarmos na devida consideração o que foi declarado, em termos de quebra do seu silêncio, pela Assistente em sede de Audiência de Discussão e Julgamento;
XVIII. Porquanto, foram, notoriamente, visíveis as marcas de vítima da aqui Recorrente durante o longo período de cerca de 25 anos que ela foi sofrendo por parte do Recorrido;
XIX. E que ela foi suportando, silenciosamente, por causa de, além do mais, começar por ter, então, um filho menor de quem tinha de cuidar e em relação ao qual não queria que sofresse as vicissitudes da quebra da união de vivência das suas figuras paternais;
XX. Acabando, também, por mais tarde ter mais uma filha, facto esse que, de igual modo, a fez permanecer naquele penoso ambiente familiar, sem exteriorizar as suas mais do que fundadas queixas e sofrimentos infligidos pelo Arguido, aqui Recorrido;
XXI. Fundadas queixas e sofrimentos esses provocados por intimidações e intitulações, que este lhe fazia, em tom depreciativo e de modo a causar medo, ansiedade, humilhação e rebaixamento, ofensivos da dignidade dela como pessoa;
XXII. Tudo isso em tal tom que não lhe era permitido retorquir e que a levava a fechar-se num sofrido silêncio;
XXIII. Perturbando-a, assim e sempre, no seu bem-estar psicológico, na sua tranquilidade, na sua imagem de si própria enquanto mulher e, ainda, na imagem que os outros tinham de si e do modo como a viam;
XXIV. Factores esses essenciais para o seu amor-próprio e de autoconfiança, e que o Arguido, aqui Recorrido sempre, dolosamente, quis atingir;
XXV. Pelo que todo este circunstancialismo de facto foi narrado pela aqui Recorrente à Julgadora da 1.º Instância, que, apesar disso, não valorou, devidamente, como se lhe impunha,
XXVI. E que impulsionou a necessidade da mesma interpor o presente recurso, para que V/Exas., Venerandos Desembargadores, fazendo, como sempre, inteira Justiça, revoguem a sentença recorrida, condenando o Arguido como autor de um crime de violência doméstica, p. e. p. Artigo n.º 152 n.º1, a) e 2.º do Código Penal,
XXVII. Necessidade essa que mais se impôs, na medida em que, para além das declarações dela, Recorrente, prestou, também, declarações o seu filho mais velho, A. F., já de maior idade, no sentido de corroborar tudo o afirmado, em Audiência de Julgamento pela aqui Recorrente;
XXVIII. E, bem mais do que isso, também de igual modo, as Testemunhas arroladas pela aqui Recorrente confirmaram tudo o que por estes foi dito, no que diz respeito ao comportamento doloso sempre manifestado e levado a cabo pelo Arguido contra a aqui Recorrente e os seus dois filhos;
XXIX. Os quais, também, sofreram com as atitudes continuadas de maus tratos a toda a família, sem que, para tal, existisse qualquer motivo;
XXX. Razão pela qual, é de extrema essencialidade que sejam dados como provados os factos que na sentença recorrida foram dados como não provados, no que respeita às condutas ilícitas e culposas do Arguido;
XXXI. Nessa conformidade, estranhando-se, pois, o que nesta sede foi decidido pela Julgadora da 1.ª Instância;
XXXII. A qual olvidou, além do mais, que os factos que preenchem o tipo legal de crime de violência doméstica, são, como regra e sempre, do conhecimento apenas de um reduzido núcleo de pessoas, normalmente, do conjunto de familiares e de amigos próximos;
XXXIII. Eles, também, constrangidos e limitados pela ideia de que: entre marido e mulher não se mete a colher!
XXXIV. E, portanto, só revelando o que dessa situação conhecem quando confrontados com a sua indicção para deporem em Tribunal, como Declarantes ou como Testemunhas, que foi o que, manifestamente, sucedeu no caso presente;
XXXV. O que, natural e evidentemente, não impede que essas pessoas venham a revelar, sobre a específica conflitualidade existente, a verdade, como realmente o fizeram os Declarantes e Testemunhas supra identificados;
XXXVI. Assim e tendo em consideração toda a circunstancialidade supra descrita, deve a presente decisão recorrida ser revogada na parte que respeita estes factos;
XXXVII. Principalmente dado que, em suma, é inelutável, a constatação unânime de que o Arguido sempre teve e tem uma personalidade e comportamento conflituoso e violento, o qual, infelizmente, já se estende à sua actual mulher;
XXXVIII. Sendo, para além disso e nesta sede, imperioso dizer que não merece igual relevância e credibilidade o deposto pelas testemunhas arroladas pelo Arguido;
XXXIX. Bastando dizer, para tanto, que elas faltaram à verdade, de tal modo que o Ministério Público solicitou se extraíssem certidões, por virtude disso;
XL. Para além disso, importa acentuar que a Sentença recorrida, no que concerne à sua fundamentação de Direito, começa por transcrever o artigo 152.º do Código Penal, ipsis verbis, acrescentando as palavras de Taipa de Carvalho no sentido de que a racio de tal disposição legal está, hoje, na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana;
XLI. E é, diremos nós, essa a pedra angular do bem jurídico nela protegido;
XLII. E suportamos nós essa tese, pois protege uma pessoa das frequentes, subtis e perniciosas formas de violência praticadas no âmbito da família por quem com ela convive e é, em inúmeros casos, pai de filhos comuns;
XLIII. E diz-se pai porquanto, em regra, a violência entre cônjuges ter origem no cônjuge masculino;
XLIV. Havendo, assim, como se sucedeu e ficou provado no caso sub judice, uma gritante assimetria que, além do mais, vitimizou e silenciou a aqui Recorrente, como já supra se alegou em sede de matéria de facto;
XLV. E desta clara, breve e sintética alegação da aqui Recorrente, resulta, de forma evidente, que se têm de dar como provados os factos, efectivamente, praticados pelo Arguido de forma violenta e reiterada na pessoa da aqui Recorrente, tipificadores do crime de violência doméstica e pelos quais deve o mesmo ser Condenado;
XLVI. Nessa conformidade, importa salientar que o Direito Penal estrutura-se num eixo vertical da compreensão dos bens jurídicos vistos a partir do indivíduo;
XLVII. Sendo, com base nesse eixo, que o caso em apreço deve ser considerado, quer no respeitante aos factos dolosos, que foram cometidos pelo Arguido;
XLVIII. Factos esses que integram o elemento intelectual e o elemento volitivo, naquela forma de culpa e que devem ser considerados provados por V/Exas.;
XLIX. Quer no respeitante ao seu enquadramento jurídico;
L. Motivo pelo qual V/Exas. deverão, na conformidade de tudo o assim exposto, revogar a sentença recorrida e condenar o Arguido como autor material do crime de violência doméstica, na pessoa da aqui Recorrente, fazendo com isso, como sempre, inteira Justiça;
LI. Estando de igual modo a Recorrente, perfeitamente, convicta de que V/Exas. tomarão em consideração o que ela supra alegou, nos ns.º 5 a 10, citando o Acórdão do STJ, de 28/06/2007, Processo 1409/07 da 5ª secção;
LII. Pois, na aplicação da regra processual da livre apreciação da prova (artigo 127.º do C.P.P.), não haverá que lançar mão, limitando-a do princípio da in dubio pro reo exigido pela constitucional presunção de inocência;
LIII. Já que pedir uma certeza absoluta para orientar a decisão actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais;
LIV. A dúvida que há-de levar o Tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do Tribunal;
LV. E todas essas considerações no sentido decisório e condenatório, postas em destaque neste Douto Acórdão do nosso mais Alto Tribunal, têm especial cabimento quando, como no caso sub judice, está em causa e apreciação um crime de violência doméstica;
LVI. Tudo isto revelando que, ao contrário da convicção e da decisão da Julgadora da 1.ª Instância, a Vida e o Direito não são, assim, tão lineares como esta entendeu, melhor dizendo, não são a preto e branco;
LVII. E o mesmo sucede no que concerne ao ónus da prova, já que, como é bem sabido, em processo penal, não existe, propriamente, um ónus da prova a cargo da acusação ou da defesa;
LVIII. Mas sim um poder - dever do Julgador esclarecer e fixar a factualidade criminosa submetida a Julgamento, como se faz referência no Acórdão do STJ, de 24/06/1993, BMJ, 428, Pág. 495,
LIX. E, sem conceder, sempre se dirá que a aqui Recorrente fez prova segura dos factos integradores do crime de violência doméstica de que foi vitima;
LX. Não podendo haver, por isso, reitere-se, qualquer dúvida razoável e insanável sobre tais factos descritos na acusação, contrariamente ao que afirma a Julgadora da 1.ª Instância, na motivação da sua Sentença;
LXI. Sendo de destacar, por último, a este propósito, que também estão provadas à saciedade e, documentalmente, no processo, as lesões corporais sofridas pela Recorrente, pelas quais foi assistida no Hospital de Braga;
LXII. Assim e sem necessidade de mais amplas considerações, deve a presente decisão recorrida ser revogada na parte que respeita a absolvição do Arguido e, consequentemente, ser este condenado pela prática do crime de violência doméstica, p. e. p. no artigo 152.º, n.º1, a) e 2.º do Código Penal;
LXIII. E, em consequência, ser o mesmo condenado no pagamento do pedido de indemnização cível contra si deduzido pela Assistente/ Recorrente;

Termos em que deverá ser proferida decisão que nessa conformidade:

A) Revogue a sentença proferida pelo Tribunal a quo na parte em que absolveu o Arguido, J. C., condenando-se o mesmo pela prática de um crime de violência doméstica p. e. p. no artigo 152.º, n.º1, a) e 2.º do Código Penal
B) E no pagamento do pedido de indemnização cível formulado pela Assistente contra o Arguido.

Notificado o Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 411º do Código do Processo, veio o mesmo pronunciar-se, no uso da faculdade a que alude o artigo 413º do mesmo diploma legal, no sentido da improcedência do recurso interposto apresentando as seguintes conclusões (resumo):

a) Analisada a matéria de facto dada como provada pelo tribunal a quo e as suas motivações, não podemos deixar de discordar do entendimento da recorrente, porquanto, não só a valoração efectuada correspondeu apenas a um fiel retracto da prova produzida em sede de audiência de julgamento, mas também, porque o tribunal se limitou a fazer uma ponderação conjugada e consentânea com as regras de experiência comum, da prova produzida à luz do princípio da liberdade de apreciação da prova, consignado no artigo 127º do Código de Processo Penal;
b) Não assiste qualquer razão à recorrente, porquanto, o tribunal a quo estribou-se, a nosso ver, de forma lógica, coerente e consistente, não só no depoimento prestado pelas referidas testemunhas inquiridas, mas também, na conjugação do mesmo com o teor dos demais sobreditos elementos documentais constantes dos autos;
c) A valoração de tais depoimentos, em teros da sua credibilidade, fundou-se, exclusivamente, na análise do seu teor, à luz do princípio da livre apreciação da prova e das regras se experiencia comum;
d) Tal como bem salientado e justificado na douta sentença recorrida da concatenação das declarações e depoimentos prestados pelos arguidos J. C., A. F., pela assistente e ora recorrente A. S. e, dos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, resultaram declarações e depoimentos completamente díspares, sendo que, pese embora tivesse resultado claro que o arguido J. C. e a assistente A. S. têm personalidades fortes e que havia discussões entre o casal, tal não é suficiente para se darem por assentes os factos constantes das acusações, transparecendo de tais elementos probatórios que era o modo normal de se relacionarem, com berros e discussão, o que é avançado por todos quanto privavam com o casal;
e) Da confrontação de tais elementos de prova produzidos em sede de audiência de julgamento e, na ausência de outros elementos probatórios corroborantes, permanecem dívidas sobre se a assistente A. S. foi ou não agredida e insultada do modo constante da acusação, bem como, se estava tão subjugada como fez crer;
f) Cumprindo realçar, à semelhança do Tribunal a quo na sentença recorrida que, nenhuma das testemunhas, assistente ou arguidos apresentou maior credibilidade do que os outros. Nenhuma delas sobressaiu, todas se tendo afigurado credíveis, razão pela qual permanecem dúvidas sobre como os factos tiveram lugar, já que não se consegue descortinar qual das versões é a verdadeira ou teve efectivamente lugar;
g) Perante tais dúvidas, correctamente, o Tribunal a quo recorrido ao princípio in dubio pro reu;
h) No que se reporta ao aludido princípio da livre apreciação da prova, cumpre atender a que, o artigo 127.º do C.P.P elege como ideia rectora que o julgador não se encontra sujeito às regras rígidas da prova tarifada, o que não poderá significar que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, mas antes vinculada à busca da verdade e limitada pelas regras da experiência comum e por restrições legais. Tal princípio concede ao julgador uma margem de discricionariedade na formação do seu juízo de valoração, que terá e deverá, no entanto, ser possível e capaz de encontrar fundamento no, adrede, razoar lógico e racional;
i) O que, pelos motivos supra aduzidos, manifestamente se veio a suceder no caso em apreço, porquanto, tal como já mencionado anteriormente, o Tribunal a quo se estribou, a nosso ver, de forma lógica, coerente e consistente, na prova produzida em sede de julgamento, tendo sopesado a mesma de forma objectiva e coerente;
j) No que respeita ao princípio in dubio pro reo, desde já se salienta que o mesmo não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos. Este princípio é uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. A violação deste princípio, pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador, só podendo ser afirmada, quando, do texto da decisão recorrida, decorrer, por forma evidente, que o tribunal, na dúvida, optou por decidir contra o arguido;
k) O que, diga-se, no caso vertente e, de forma que reputamos correcta, se veio a suceder;
i) Não se verificou qualquer erro de julgamento, decorrente do alegado erro notório na apreciação da prova, porquanto o entendimento a que o tribunal a quo chegou resultou, tão só, como já mencionamos, da análise e interpretação correcta e conjugada dos vários elementos probatórios disponíveis aos quais, fazendo uso do princípio da livre apreciação da prova e às regras de experiência comum, conferiu credibilidade e relevância;

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso interposto pela assistente e, em consequência, manter a sentença recorrida.

Igualmente notificado para os termos da lide recursal interposta pela assistente veio o arguido apresentar a sua resposta que fez nos seguintes termos (conclusões):

A impugnação da sentença proferida nos autos carece de qualquer fundamento face à conjugação dos elementos de prova existentes nos autos e muito bem referidos pela Mma. Juiz a quo na motivação da matéria de facto;
Nenhuma das testemunhas inquiridas corroborou de forma peremptória e convincente a versão do Assistente/Recorrente trazida para os autos de que, esta tinha sido agredida pelo Arguido/Recorrido;
Ademais, resulta claro dos depoimentos das várias testemunhas arroladas que ninguém consegue imputar a prática de tais actos ao Arguido;
De harmonia com o princípio da prova livre consagrado no nº 5, do artigo 607º do C.P.C, o tribunal aprecia livremente as provas e responde aos factos em sintonia com a convicção que tenha formado acerca de cada um deles;
Como mostra a acta da audiência de julgamento encontram-se gravados os depoimentos das testemunhas aí inquiridas, o Mmo. Juiz fundamentou as suas respostas à matéria de facto apresentando uma motivação de matéria de facto à qual, no nosso modesto entender nenhum reparo há a fazer, indicando todos os elementos, concretos e decisivos, que formaram a sua convicção, segundo os princípios de livre apreciação de prova, de oralidade e de imediação;
Não podendo o Tribunal a quo ter proferido sentença diferente daquela que ditou.

Termos em que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.

O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Guimarães emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2 do Código do Processo Penal.

Procedeu-se a exame preliminar.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir do recurso apresentado.

Na sentença recorrida, com relevância para a decisão da matéria recursal, foi feito constar o seguinte:

II - Fundamentação de Facto

a) Factos Provados

Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

1) O arguido e A. S. viveram em condições análogas ás dos cônjuges durante 24 anos, atá ao dia 4 de Novembro de 2016, sendo que, dessa união nasceram dois filhos: A. F. (a ../../..) e A. R. (a ../../..).
2) O arguido J. C. é empresário de eventos e aufere o salário de € 700,00.
3) Vive sozinho em casa arrendada e suporta de renda o valor mensal de € 325,00.
4) De pensão de alimentos da filha menor suporta o valor de € 100,00.
5) Tem 4 filhos de 33, 26, 24 e 12 anos de idade.
6) A arguida A. S. está desempregada e não tem rendimentos a não ser o abano da filha menor no valor de € 36,00 e a pensão de alimentos referida.
7) Vive de ajuda dos familiares.
8) Vive com a filha.
9) De renda de casa suporta o valor de € 250,00 mensais.
10) O arguido A. F. trabalha numa fábrica e recebe o salário mínimo.
11) Vive com a sogra e a namorada.
12) De renda da casa no valor de € 200,00, suporta metade.
13) Do certificado de registo criminal dos arguidos nada consta.

b) Factos não provados

Não se provaram quaisquer outros factos, com relevo para a decisão da causa, nomeadamente:

Desde o início da sua vida em comum, o arguido passou a agredir a A. S. com bofetadas e pontapés em várias partes do corpo e a apodá-la de puta e vaca.
Também lhe dizia: Vou á loja buscar uma arma e dou-te um tiro, querendo referir-se á loja de acessórios para automóveis que ambos exploravam e querendo fazer crer a A. S. de que aí guardava uma pistola.
Tais factos aconteciam, com uma frequência semanal, no interior da residência de ambos, e na presença dos filhos comuns do casal, sendo que a A. S. nunca participou criminalmente por vergonha e por medo das atitudes que o arguido pudesse tomar em relação a si e aos seus filhos.

Assim:

- Desde o ano de 2014, com uma regularidade quase diária no interior da residência de ambos, sita na Rua …, Vila de Prado, o arguido desferiu murros e pontapés em diversas partes do corpo da A. S., ao mesmo tempo que lhe gritava: Eu mato-te!
- No dia 29 de Outubro de 2016, a hora que não foi possível apurar, no interior da residência de ambo, o arguido abeirou-se da A. S., desferiu-lhe um murro no braço direito e arrancou-lhe das mãos o telemóvel que aquela estava a utilizar naquele momento. Depois atirou-o contra a parede, destruindo-o, ao mesmo tempo que lhe dizia: És uma puta. És uma vaca. Não vales merda nenhuma.
- No dia 4 de Novembro de 2016, no interior da residência de ambos, o arguido dirigiu-se á A. S., apertou-lhe o pescoço com ambas as mãos e apodou-a de puta e vaca.
- No dia 1 de Dezembro de 2016, pela 19:00h, no Lugar … Vila Verde, no interior do estabelecimento denominado A. F. Eventos-Unipessoal, Lda, pertencente ao filho de ambos, o arguido dirigiu-se á ofendida A. S. dizendo: Desaparece daqui sua filha da puta. Ordinária. Porca.
- No dia 29 de Dezembro de 2016, a hora que não foi possível apurar, o arguido dirigiu-se àquele pavilhão, onde sabia encontrar-se a A. S. e os filhos de ambos, desferiu vários pontapés na porta da entrada, destruindo a fechadura e o vidro e, desse modo, logrando entrar no referido pavilhão.
Uma vez aí, dirigiu-se à A. S., agarrou-a no pescoço com ambas as mãos e apodou-a de puta e vaca. Depois, desferiu-lhe vários murros no peito.
Todos estes factos foram praticados pelo arguido com o propósito concretizado de deixar a A. S. num clima de constrangimento e terror permanentes, impedindo-a de reger livremente a sua vida.
E assim, ainda como consequência directa e necessária das suas condutas, deu causa o arguido a que A. S. se sentisse num permanente estado de terror, receando pelas atitudes que o arguido pudesse tomar, nomeadamente em relação a si.
Viveu também a A. S. humilhada pelos nomes com que o arguido a apodava e com as condutas que tinha em relação a si.
Como consequência directa e necessária dos factos acima relatados sofreu a ofendida A. S. dores físicas e mal-estar.
Agiu o arguido sempre de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de vexar, amedrontar, controlar e manter num permanente estado de constrangimento e terror a A. S., de ofendê-la na sua integridade física e honra, indiferente à relação que com esta mantinha e aos deveres que dessa relação para si nasciam quanto à mesma, nomeadamente de respeito, relação e deveres de que estava bem ciente, tanto mais que tinham filhos em comum.
Sabia proibidas as suas condutas.
No dia 29/12/2016, entre as 14:00 e as 14:30 horas, nas instalações do estabelecimento comercial denominado J. C. Eventos, Unipessoal, Lda., sito no Lugar …, Vila Verde, os arguidos A. F. e A. S. dirigiram-se ao assistente proferindo em voz alta o seguinte: Gatuno, ladrão, filho da puta, cabrão, chulo.
Os arguidos agiram com o propósito concretizado de ofender a honra e consideração do assistente.
Agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punível por lei penal.
Em consequência das condutas dos arguidos, os ofendidos sofreram tristeza, humilhação, dores, incómodos, medo.

c) Motivação

No que toca à data, ao local e ao objecto do processo, o Tribunal fundou a sua convicção com base no depoimento das testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, conjugado com o teor dos documentos juntos aos autos, tudo concatenado de acordo com as regras de experiência comum.
O facto referido em 1), resultou da análise das certidões constantes de fls. 366 a 369 dos autos.
Desde logo, não obstante algumas pequenas discrepâncias, cada um dos assistentes relata os factos do modo constante da acusação, quer pública, quer particular, acrescentando outros pormenores e situações que extravasam o objecto dos presentes autos.
As suas versões foram confirmadas, em parte, pelas testemunhas, quer das acusações, quer da defesa.
No caso da versão da ofendida A. S., depôs o arguido A. F., a sua companheira S. C., que confirma a versão dos arguidos. A mesma morou com o ex-casal, tendo referido existirem muitas discussões, o que de resto resultou claro a este tribunal, mas nunca assistiu a agressões. Avançou que o arguido insultava a ofendida e os filhos, no entanto não concretizou cabalmente os insultos, sendo certo que a ofendida também respondia em defesa de si e dos filhos.
As testemunhas B. A. e J. O., descreveram os factos alegadamente ocorridos em 29/12/2016, na loja, tendo confirmado a versão dos arguidos. De referir que as testemunhas são amigos do arguido A. F..
Por sua vez, a testemunha D. S., afirmou que na mesma situação, não ouviu quaisquer insultos, no entanto chegou já depois da GNR se encontrar no local.
P. S., irmã da ofendida A. S., confirma parcialmente a sua versão, afirmando que viu marcas de agressão mas que nunca viu agressões. Afirma que presenciou insultos e ameaças mas nunca enquanto casados, apenas, já depois da separação. A irmã contou-lhe os episódios de que alegadamente foi vítima.
O cunhado da vítima, J. M. (agente da PSP) apenas trouxe o episódio em que a nova mulher do arguido alegadamente terá pedido apoio a uma casa de abrigo, por também ter sido vítima de maus tratos. Relativamente ao casal, confirma a existência de discussões e insultos mas nunca presenciou agressões. Confirma que o arguido tinha uma personalidade difícil.

Por sua vez, as testemunhas da defesa, apresentam uma versão diferente dos factos. S. A., conviveu com o casal e tomava conta da filha mais nova, esclareceu que o entendimento entre o casal foi sempre bom, que a ofendida (ao contrário do que transpareceu pelas suas declarações) sempre teve autonomia para sair de casa, quer para o café, quer para o shopping e que acompanhava o marido nas concentrações, juntamente com a filha. Acrescentou que sempre se vestiu bem e teve dinheiro consigo, contrariamente ao pela ofendida dito. Ainda refere que foi com a ofendida à Cruz Vermelha pedir apoio económico, o que acaba por ser confirmado pelo teor do documento de fls. 636.

A empregada de limpeza do casal (há cerca de 7 anos), Maria, afirmou que quem controlava o dinheiro era a ofendida, designadamente nas concentrações, sendo que esta tinha uma personalidade complicada, que discutia com o marido à frente de clientes e funcionários. Afirmou que havia discussões entre o casal mas nunca presenciou agressões. O relacionamento do pai com os filhos era bom. Fazia limpezas quer na loja, quer em casa e nas concentrações, estando em contacto com o casal quase todos os dias. Na fase final do relacionamento diz ter presenciado insultos de parte a parte, que não concretizou.

A testemunha L. F., trabalhou nos eventos/concentrações desde 2005 a 2012, pelo menos uma vez por mês, e que nunca se apercebeu de quaisquer discussões entre o casal, a não ser as resultantes do stress normal dos eventos, o que se-lhe afigurava perfeitamente normal. O arguido tem tom de voz elevado mas ambos se apresentavam como pessoas normais, parecendo-lhe a relação de ambos também normal. Quem pagava nos eventos era a ofendida, bem como era a mesma que controlava o dinheiro e emitia as facturas no evento. Do que conhece da ofendida não a julga capaz de sofrer agressões e calar. Confirma que viu a testemunha Maria na loja e que a testemunha S. A. é amiga do casal e não funcionária.

H. F., amigo do casal desde 1999, trabalhava nas concentrações, confirmou que quem geria o dinheiro era a ofendida, sendo o arguido, o relações públicas. Nunca presenciou o arguido levantar a voz à ofendida, mas afirmou que o contrário já viu e nunca lhe pareceu que a ofendida tivesse medo do arguido. Por vezes falavam alto mas era normal nos eventos, sem que tenha assistido a qualquer discussão entre o casal, insultos ou agressões.

Os filhos do arguido J. C., H. S. e R. S. confirmam que o relacionamento do casal era normal, sem agressividade. A testemunha H. S. trabalhou com o pai algumas vezes e nada se-lhe ofereceu de anormal, sendo que ninguém gostava da ofendida. Confirma que a Maria é empregada do pai. A testemunha H. S. ia a casa do pai de quinze em quinze dias, sendo que a testemunha R. S. só de dois em dois meses mas nada de anormal assistiram. A última afirma que ouviu dizer que a ofendida e irmão A. F. é que bateram no pai.

Estamos, pois, perante declarações e depoimentos completamente díspares. Se resulta claro que arguido e ofendida têm personalidades fortes, e que havia discussões entre o casal, tal não é suficiente para se darem por assentes os factos constantes das acusações. É que parece que era o modo normal de se relacionarem, com berros e discussão, o que é avançado por todos quantos privavam com o casal. Este tribunal permanece na dúvida sobre se a ofendida foi ou não agredida e insultada do modo constante da acusação, bem como se estava tão subjugada como fez crer. O mesmo se diga quanto aos factos de que os arguidos A. S. e A. F. vêm acusados, mercê dos depoimentos das testemunhas S. C., B. A. e J. O., contraditórios com o do ofendido J. C..

Nenhuma das testemunhas ou assistentes e arguidos apresentou maior credibilidade do que os outros. Nenhuma delas sobressaiu, todas se tendo afigurado credíveis. Assim, sempre o tribunal permanece na dúvida sobre como os factos tiveram lugar, já que não consegue descortinar qual das versões é a verdadeira, ou teve efectivamente lugar.

Existindo dúvida insanável acerca do facto pelo qual o arguido vem acusado, o Tribunal terá de fazer funcionar o princípio da presunção de inocência, o princípio do in dúbio pro reo.

A materialização de tal princípio, enquanto dirigido à apreciação dos factos objecto de um processo penal, desdobra-se em dois vectores essenciais: O primeiro é o de que o ónus probatório da imputação de factos ou condutas que integram um ilícito criminal cabe a quem acusa O segundo, consiste que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos descritos na acusação, o Tribunal deve decidir a favor do arguido. Neste sentido, o Acórdão do STJ, de 04.11.98, in BMJ 481/265, dispõe que Se por força da presunção de inocência, só podem dar-se por provados quaisquer factos ou circunstâncias desfavoráveis ao arguido quando eles se tenham, efectivamente, provado, para além de qualquer dúvida, então é inquestionável que, em caso de dúvida na apreciação da prova, a decisão nunca pode deixar de lhe ser favorável, por isso no caso de dúvida insanável sobre se se verificaram ou não determinados factos que implicam, por exemplo, a invalidade das provas obtidas contra o arguido e a consequente impossibilidade de contra ele serem utilizadas, a dúvida deve ser resolvida a favor deste, dando como provada a verificação de tais factos, ainda e sempre por obediência ao princípio in dúbio pro reo.

Deste modo, não foi pois produzida prova suficiente que permita ao Tribunal formar uma convicção segura relativamente à verificação dos factos descritos na acusação.

Avance-se que a conclusão é a mesma, não obstante o teor dos documentos de fls. 131 e 132, já que dos mesmos apenas resulta que a ofendida se dirigiu à urgência e apresentava eritema na face lateral esquerda do pescoço, sem que possamos concluir que foi causada pelo arguido.

Assim, face a tudo quanto se expôs, decidiu-se dar os mencionados factos como não provados, quer quanto ao elemento objectivo, quer quanto ao elemento subjectivo dos crimes em questão.

Em sede de condições de vida, designadamente no que concerne à situação económica, social e familiar do arguido o Tribunal fez fé nas declarações pelos mesmos proferidas, uma vez que as mesmas foram credíveis no que concerne a tais aspectos.

Relativamente aos antecedentes criminais dos arguidos, valeram os seus certificados de registo criminal constantes dos autos.

Todos os elementos probatórios constantes dos autos foram analisados de uma forma crítica e com recurso a juízos de experiência comum, tendo sido todos articulados e concatenados entre si.

III - Fundamentação de Direito

Cumpre proceder ao enquadramento jurídico dos factos provados.

Do crime de Violência Doméstica

O arguido J. C. vem acusado da prática de um crime de violência doméstica.

Dispõe o art. 152.º, n.º1, do Código Penal, quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau
d)A pessoa particularmente indefesa, em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou de pendência económica, que com ele coabite
(.) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

Por seu turno, acrescenta o n.º 2 da referida norma, que, no caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

Nas palavras de TAIPA DE CARVALHO a ratio do art.º 152.º do Código Penal está na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana 1, indo muito mais além dos maus tratos físicos, compreendendo também os maus tratos psíquicos.

1 Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 332.
2 Cfr. TAIPA DE CARVALHO, ob. cit., pp. 332 e 333. No mesmo sentido, na doutrina, veja-se AUGUSTO SILVA DIAS, Materiais para o estudo da Parte Especial do Direito Penal, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, AAFDL, 2007, p. 110, MARIA MANUELA VALADÃO E SILVEIRA, Sobre o crime de maus tratos conjugais, Revista de Direito Penal, Vol. I, n.º2, ano 2002, ed. da UAL, pp. 32 a 33 e 42. Vd. também, na jurisprudência, Acórdãos do STJ de 30/10/2003, in CJ do STJ, tomo III, pp. 208 e ss. ,da Relação do Porto de 31/01/2001, proc. n.º 0041056 e da Relação de Coimbra de 19/11/2008, proc. 182/06.8TAACN, estes dois últimos disponíveis em www.dgsi.pt.

Portanto, o bem jurídico protegido por esta norma é a saúde - bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos que (.) afectem a dignidade pessoal do cônjuge2, designadamente maus tratos físicos (isto é, actos que se traduzem em qualquer forma de violência física, ou seja, ofensas corporais) e maus tratos psíquicos (humilhações, injúrias, provocações, molestações, ameaças e, em suma, todos os actos que ofendem a integridade moral ou o sentimento de dignidade da vítima).
O ilícito em referência pressupõe a existência de uma determinada relação entre o agente e o sujeito passivo.
Estamos perante Um crime específico que será impróprio ou próprio, consoante as condutas em si mesmas consideradas já constituam crime (caso dos maus tratos físicos, pois que o mau trato físico é sinónimo, aqui, de ofensa à integridade física simples mas também de algumas espécies de maus tratos psíquicos, como, p.ex., quando estes se traduzam em ameaças puníveis em si mesmas ou em injúrias ou difamações), ou consoante as condutas não configurem em si mesmas qualquer crime (.) (Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, página 332).

Tal normativo penaliza a violência doméstica e/ou familiar, a qual consiste, segundo a definição apresentada pelo Conselho da Europa, no acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade.
Entre as possíveis vítimas encontra-se a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação. Com efeito, a lei prevê as hipóteses em que o agente infractor e a vítima vivam, ou tenham vivido, em união de facto, salientando que a relação pode existir ou ter existido no momento da prática do facto, sem necessidade de se manter ulteriormente.

Entre as múltiplas agravantes, surge a hipótese de o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, ou contra pessoa particularmente indefesa, em razão da idade que com ele coabite que faz o mínimo da moldura penal subir de um para dois anos, mantendo-se o máximo nos cinco anos.

No que respeita ao elemento subjectivo, trata-se de um crime doloso, exigindo-se que o agente actue com conhecimento dos elementos objectivos típicos e com vontade de agir, por forma a preenchê-los, podendo o dolo revestir qualquer das modalidades previstas no art.º 14.º, do Código Penal.

Taipa de Carvalho (Comentário Conimbricense ao Código Penal, I, 334) entende que, segundo o ratio da autonomização deste crime, é aqui exigida uma reiteração das respectivas condutas.

No mesmo sentido se pronunciam Simas Santos e Leal Henriques (Código Penal Anotado, 2.º Vol. 301) e Maia Gonçalves (Código Penal Português, 551).
Também na Jurisprudência este entendimento tem tido acolhimento, como se pode ver, nomeadamente, dos Acórdãos do STJ de 30.10.2003 (CJ STJ XI, 3, 208) e de 4.2.2004 (proc. 2857/03).
A expressão maus tratos, curiosamente, assumiu na nossa língua uma conceptualização própria, sendo extremamente rara a sua utilização no singular.
E, se é empregue no plural significa, efectivamente, que corresponde a acções reiteradas.
Mas o texto legal inclui a expressão tratar cruelmente que comporta, perfeitamente, acções isoladas.

Por outro lado, a autonomização relativamente a outros crimes (nomeadamente de ofensas à integridade física) que pode ser usada como argumento a favor da reiteração, não pode, a nosso ver, e ressalvada sempre a devida consideração, ser tida em conta no caso de maus tratos apenas psíquicos.

Estes podem ocorrer de modo muito intenso numa simples acção (que pode ser muito duradoura) e ter lugar de modo muito mais relevante, sob o ponto de vista da sua saúde ou mesmo dignidade, do que em alguns casos de reiteração.

Um só acto pode, efectivamente, implicar para a pessoa visada (e pensamos em especial nos menores, pessoas indefesas) violação intensa e perene da sua integridade psíquica. Todos sabemos, p. ex., de gaguezes que ficam após um único acto atingidor da pessoa.

Decerto que a reiteração há-de constituir sempre um elemento muito importante para se aferir da gravidade dos maus tratos ou do tratamento cruel. Mas não cremos, face ao que se acaba de referir, que não possa ter lugar - ainda que excepcionalmente - tal crime na ausência dela.

Estamos, assim, com o Acórdão do STJ de 14.11.1997 (CJ STJ , V, 3, 235) ao colocar o ponto de referência relativamente à verificação deste crime, não na reiteração, mas na gravidade traduzida por crueldade, insensibilidade ou até vingança.

Do crime de Injúria

Os arguidos A. S. e A. F. vêm acusados da prática de um crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181.º, do Código Penal, que prescreve, no seu nº 1, Quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 120 dias.

O bem jurídico protegido por este normativo legal é a honra.

Como refere o Prof. José de Faria Costa, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 602 e segs., a concepção de honra que se coaduna com a legislação portuguesa, mais precisamente com o aludido art.º 181º do Código Penal, consiste numa concepção dual, em que a concepção normativa de honra (cujo ponto de partida é um momento da personalidade do indivíduo (.), um bem que respeita a todo o homem por força da sua qualidade de pessoa - cfr. obra supra citada, pág. 605, que cita Musco) é temperada com uma dimensão fáctica (que será uma alteração empiricamente comprovável de certos elementos de factos, de ordem psicológica ou social).

Assim, a honra será vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior (cfr. obra supra citada, pág. 607).

Se considerarmos que, como entendem Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas Santos, no Código Penal Anotado, 2º vol., 3ª edição, Edit. Rei dos Livros, a pág. 469, honra é a dignidade subjectiva, ou seja, o elenco de valores éticos que cada pessoa humana possui e que consideração será o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão, verificamos que no artigo 181º do Código Penal protege-se ambos os valores e que, em conjunto, serão entendidos como honra em sentido amplo, pois a honra objectivamente, é a opinião dos outros sobre o nosso mérito subjectivamente. o nosso receio diante dessa opinião (citação de Shoppenhauer feita por Nelson Hungria, in Comentário ao Código Penal Brasileiro, VI, p. 39/40, e referido por Leal-Henriques e Simas Santos, na obra supra citada, pág. 469).

Ora, para estarmos perante uma conduta punível pelo art.º 181º nº 1 do Código Penal é necessário a verificação de vários pressupostos, quais sejam:

a) Que o agente impute factos a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita ou dirija palavras a outra pessoa
b) Que a imputação de tais factos ou as palavras dirigidas ofendam a honra ou consideração da outra pessoa
c) Que tal conduta seja praticada a título doloso.

Assim, e no que se refere ao elemento objectivo deste ilícito, o agente terá de imputar factos a outra pessoa, ainda que sob a forma de suspeita, que ofendam a honra ou consideração desta.

No entanto, o crime de injúrias pode também ser enquadrado mediante a direcção a outra pessoa, por parte do agente, de palavras palavras essas que têm, necessariamente, de ser ofensivas da honra e consideração daquela.

Sendo certo que o significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional, e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas, no momento em que apreciamos o significado (cfr. José de Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, pág. 630).

Saliente-se que, ao contrário do que sucede no crime de difamação, previsto e punido pelo art.º 180º do Código Penal, para haver lugar à punição do agente pelo crime de injúrias, é ainda necessário que a imputação de factos ou as palavras proferidas sejam feita de forma directa, no sentido da conduta ser endereçada ao próprio ofendido e na presença dele.
Por último, será ainda necessário que os factos imputados, ou as palavras dirigidas ao ofendido, ofendam a sua honra e consideração (na noção supra explicitada), no sentido de constituir uma injúria.

Entendendo-se injúria como a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje ou vilipêndio contra alguém (cfr. Nélson Hungria, in Comentário ao Código Penal Brasileiro, VI, 90/91, citado por Leal-Henriques e Simas Santos, no Código Penal Anotado, 2º vol., pág. 494).

Pois neste crime, não se protege, pois, a susceptibilidade pessoal de quem quer que seja, mas tão só a dignidade individual do cidadão, expressa no respeito pela honra e consideração que lhe são devidas (cfr. obra citada, pág. 494).

Assim, não basta a pronúncia de palavras ou expressões que constituam falta de educação, ou indelicadeza para estarmos perante um crime de injúrias é necessário mais do que isso: que tais palavras ou expressões ofendam a honra e consideração do seu destinatário.

Convém ainda referir que a injúria tem um carácter relativo, no sentido de só poder ser apreciada caso a caso, pois como foi já mencionado, o carácter injurioso de uma palavra, varia consoante as condições de tempo, lugar ou circunstâncias de cada caso concreto.

No que se refere ao seu elemento subjectivo, o crime de injúrias é um crime essencialmente doloso, bastando, para uma plena imputação subjectiva, o mero dolo eventual, como resulta da conjugação do art.º 13º do Código Penal com o art.º 181º nº 1 do mesmo diploma legal.

Sendo que, dolo eventual verifica-se quando o agente prevê, como consequência possível da sua conduta, o preenchimento de um tipo legal de crime, punível, e se conforma com essa possibilidade, embora não querendo directamente o resultado dessa acção (cfr. art.º 14º do Código Penal).

Saliente-se ainda que, como vem sendo entendido pela jurisprudência, este crime basta-se, para a sua consumação, com a verificação de dolo genérico (traduzido na consciência de que as expressões utilizadas são susceptíveis de produzir ofensa da honra e consideração do destinatário), não sendo necessário a existência de dolo específico (no sentido de haver uma especial intenção de injuriar).

Neste sentido, veja-se, entre outros, o Acórdão do STJ de 01/07/1987, in BMJ 369-593 Acórdão da RL de 18/05/1988, in CJ XIII, 3, 180 Acórdão da RP de 30/11/1988, in CJ XIII, 5, 221.

Ora no caso dos presentes autos, sem necessidade de delongas, atenta a ausência de prova de quaisquer factos contantes da acusação, temos por não preenchido quer o elemento objectivo, quer o elemento subjectivo do tipo de crimes em questão, devendo os arguidos ser absolvidos da prática dos crimes pelos quais vêm acusados.

IV - Do Pedido de Indemnização Civil

A ofendida A. S. constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, nos termos de fls. 378 e seguintes, peticionando a sua condenação, no pagamento da quantia global de € 2.000,00, para ressarcimento dos danos não patrimoniais, que alega ter sofrido em consequência das condutas dos arguidos.

O ofendido J. C., constituiu-se assistente e deduziu pedido de indemnização civil contra os arguidos A. F. e A. S., nos termos de fls. 401 e seguintes, peticionando a sua condenação, no pagamento da quantia global de € 750,00, para ressarcimento dos danos não patrimoniais, que alega ter sofrido em consequência das condutas dos arguidos, bem como juros de mora desde a notificação do pedido de indemnização até integral pagamento.

A perpetração de um ilícito criminal poderá justificar a formulação em tribunal de dois pedidos distintos: um de natureza criminal, peticionando-se a censura e condenação numa pena do autor dos factos outro, de natureza civil, peticionando-se o ressarcimento e indemnização dos prejudicados por essa conduta.

Desse modo, há que ter em conta que no art. 71.º do Código de Processo Penal se consagrou, como regra, o regime de adesão obrigatória, o qual é confirmado nos arts. 82.º e 377.º, ambos do citado código e este último sobre a decisão a proferir na sentença, quanto ao pedido de indemnização civil, como refere Maia Gonçalves, in Código de Processo Penal Anotado, 10.ª Edição, pág. 214.

A dedução do pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime em separado, perante o tribunal civil, só poderá ser feita nos casos taxativamente tipificados no art. 72.º do Código de Processo Penal.

Não obstante o pedido de indemnização civil ser formulado em processo penal e processualmente regulado por este, a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil quantitativamente e nos seus pressupostos, conforme decorre do disposto no art. 129.º do Código Penal.

Assim, na fixação da indemnização devida pela prática de uma infracção criminal atende-se aos critérios estabelecidos nos arts. 483.º e segs. do Código Civil.

Sempre que a norma tuteladora da ordem jurídica impõe a quem transgride as suas obrigações, por adopção de comportamento diverso do que lhe era prescrito, e por tal forma causa prejuízo ao titular do correspondente interesse protegido, o dever de colocar, à sua custa, o ofendido no estado em que ele se encontraria se não fosse a lesão sofrida, estamos no campo da responsabilidade civil - cfr. Artigo 562º do Código Civil (ver Baptista Marques, Da Responsabilidade Civil Extracontratual, pág. 15).

Dispõe o art. 377.º n.º 1 do Código de Processo Penal, que A sentença ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no art. 82.º, n.º 3.

O art.º 82.º n.º 3 do Código de Processo Penal, refere-se às situações em que, não tendo o pedido de indemnização civil sido formulado no processo penal ou em separado, na sentença de condenação seja arbitrada uma quantia a título de reparação, tal quantia deva ser tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido de indemnização civil.

Por outro lado, no Assento do STJ n.º 7/99, de 17/06, foi determinado que nos casos de absolvição do arguido do crime de que vem acusado, a apreciação do pedido de indemnização civil formulado em sede de processo penal, limita-se aos casos em que seja fundado na mesma causa de pedir, ou seja, nos mesmos factos que foram pressuposto da responsabilidade penal.

Ora, dispõe o art. 70.º n.º 1 do Código Civil que A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral, integrando a personalidade moral, entre outros, os valores da liberdade, igualdade, honra e reserva de vida (cfr. Acórdão do STJ de 27/06/1995, BMJ 448º, 378).

De acordo com o disposto no art. 483.º do Código Civil, Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação.

Da análise do transcrito preceito decorre que o dever de reparação resultante de responsabilidade civil depende da existência, cumulativa, de vários pressupostos: a) um facto voluntário do agente, b) da ilicitude desse facto, c) da existência de um nexo de imputação desse facto ao lesante, d) que da prática desse facto resulte um dano, e) e da constatação de um nexo de causalidade entre o facto praticado e o dano.

É também pacífico que a imputação a alguém dos prejuízos sofridos por outrem, em resultado da actuação do primeiro, se baseia na existência de culpa (cfr. Prof. Pessoa Jorge, in Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, pág. 54), como aliás resulta do artigo 483.º n.º 2 do Código Civil.

Ora, a ausência de prova dos factos essenciais, nos quais os requisitos da responsabilidade civil se consubstanciam, determina a improcedência dos pedidos de indemnização civil formulados.
*

. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

O âmbito de conhecimento do recurso pode ser limitado a uma parte da decisão recorrida, desde que cindível, isto por forma a tornar possível a sua apreciação e a tomada de decisão autónoma, tal como o determina o nº 1 do artigo 403º do Código do Processo Penal, isto é apresenta-se como um “corolário da disponibilidade do direito a recorrer, parte sempre de um pressuposto básico: a possibilidade de autonomização da parte recorrida relativamente à sobrante decisão, por forma a que seja possível uma apreciação e uma decisão também autónomas relativamente ao restante decidido.”(1)
Daqui se conclui, pois, que é das conclusões da motivação que se concretiza o objecto do recurso e, assim posto, o respectivo alcance, razão da superior importância da objectividade, clareza e concisão desse excerto final da motivação.

Claro está, sem o óbvio prejuízo do disposto no nº 3 do mesmo dispositivo legal, que impõe ao Tribunal que “A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele (o recurso) as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida.”

Descendo ao caso dos autos, analisadas que sejam as conclusões apresentadas pela recorrente, as questões que se apresentam a decidir são, pois, as seguintes:

. Impugnação da sentença, por erro de julgamento da matéria de facto dada como não provada, por violação por disposto no artigo 410º, nº 2, alínea c) do Código do Processo Penal;
. Impugnação da sentença, por erro de direito, face à inaplicabilidade do princípio do “in dubio pro reo”.
*

. DECISÃO

Considerando o que é disposto no artigo 428º do Código de Processo Penal aos Tribunais da Relação estão conferidos poderes de cognição de facto e de direito.

Apreciando a peça recursiva apresentada pela recorrente A. S. constatamos que veio a mesma impugnar a sentença absolutória, por entender que, e aludindo à existência de erro de julgamento da matéria de facto dada como não provada, o Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 410º, nº 2, alínea c) do Código do Processo Penal.

Alude a que o Tribunal “a quo” não foi valorou devidamente a prova produzida, porquanto a par das declarações da ora recorrente, que foram corroboradas pelo seu filho mais velho, A. F., igualmente as testemunhas J. O., S. C. e J. M. confirmaram tudo o que por aqueles foi dito, no que diz respeito ao comportamento doloso sempre manifestado e levado a cabo pelo arguido contra a ora recorrente e seus dois filhos.

Mais adiante que o mencionado Tribunal olvidou que a conduta operada pelo arguido o foi, como é em regra, do conhecimento apenas de um reduzido núcleo de pessoas, normalmente, do conjunto de familiares e amigos próximos como é timbre dos actos relativos que se assimilam ao crime de violência doméstica.

Outrossim faz a menção que não podia ter sido dada igual relevância e credibilidade ao deposto pelas testemunhas arroladas pela defesa do arguido, bastando, para tanto, dizer que o Ministério Publico solicitou que fossem extraídas certidões por elas faltarem à verdade.

Estabelece o artigo 410º do Código de Processo Penal, sob a epigrafe de “Fundamentos do recurso”, que:

1. Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vicio resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiencia comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3. O recurso pode ter ainda como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.

Quis o legislador que o Tribunal proceda a um processo de indagação lógica junto das circunstâncias concretas da decisão em recurso – isto é junto da matéria de facto dada como provada e como não provada, na sua fundamentação como na decisão final – e, estribado que seja nas regras da experiência comum, se necessário for, descortinar da existência de qualquer um dos enumerados vícios.

Estaremos perante o vício da “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” sempre que “a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão (…), se apresente como insuficiente para a decisão a proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.” (2).

Havendo de salientar-se que a fórmula legal não refere ou especifica um qualquer tipo de decisão, razão por que “ser insuficiente para a decisão” se tem de entender aplicável a uma decisão condenatória ou absolutória.

António Pereira Madeira (3) é de absoluta clareza ao explicitar que “a afirmação do vício ora em causa, importa, sim, sempre, uma adequada perspectiva do objecto do processo, cujos confins ou limites são fixados pela acusação e (ou) pronúncia quando exista, complementadas pela pertinente defesa. A partir daí, impõe-se o confronto de tal objecto processual com os factos que o tribunal de julgamento em concreto indagou, independentemente de o resultado da indagação ter tido ou não êxito, isto é, independentemente de os factos indagados terem sido dados como provados ou não provados. Importa, sim, sobretudo, que todos esses factos pertinentes ao objecto do processo tenham sido averiguados em julgamento e obtida a necessária resposta, seja positiva ou negativa. Se se constatar que o tribunal averiguou exaustivamente toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente – afinal o objecto do processo – ainda que toda ela tenha porventura obtido a resposta de “não provado”, então – e só então – o vício da insuficiência está afastado (…)”.

Há já vicio de contradição insanável na fundamentação sempre que há contradição entre a matéria de facto dada como provada, entre si, ou como entre estes e a matéria de facto não provada, mas ainda entre a fundamentação probatória – quer seja a fundamentação de facto como a fundamentação de direito – e a decisão. (4)

Pode constituir este vício – delimitação positiva – a afirmação como provados, de um facto objectivo e outro contrário; a afirmação como não provados, de um facto objectivo e outro contrário; a afirmação como provados, de um facto subjectivo e outro contrário; a afirmação como não provados, de um facto subjectivo e outro contrário; a contradição entre o facto objectivo provado e outro não provado; a contradição entre o facto subjectivo provado e outro não provado; a contradição entre os meios de prova invocados na fundamentação como alicerce dos factos provados e a contradição entre a fundamentação e a decisão. (5)

Ou como o salientou o Tribunal da Relação de Lisboa (6) esta contradição opera sempre que “(…) de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão, ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável, entre os factos provados, entre os factos provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e análise dos meios de prova, fundamentos da convicção do Tribunal (…).

Já quanto a erro notório na apreciação da prova, o terceiro dos vícios elencados na lei, há-de ter-se como “o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta.” (7)

Afirma o Supremo Tribunal de Justiça (8) que (...) “o erro-vício previsto na al. c) do nº 2 do art. 410º do CPP não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; este, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro vicio se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação. (…)”

Mas António Pereira Madeira (9) vai mais longe na interpretação desta alínea c) ao considerar que “esta interpretação do preceito pecaria por demasiado restritiva do seu alcance e deixaria a descoberto muitas situações de matéria de facto viciada por erro notório de apreciação da prova”, continuando por pugnar que “seria inconcebível que, não obstante ser inacessível ao homem médio, mas evidente para qualquer jurista, ou mesmo para o tribunal, ainda assim, o vicio não devesse ser sanado pela previsão do preceito em causa” para, terminando, concluir que “assim, estão aqui também previstas todas as situações de erro clamoroso, e que numa visão consequente e rigorosa da decisão no seu todo, seja possível, ainda que só ao jurista, e naturalmente ao tribunal de recurso, assegurar, sem margem para duvida, comprovar que, nelas, a prova foi erroneamente apreciada”.

Há, ainda, que ter em conta as nulidades da sentença, nos termos aludidos no artigo 379º, nº 1 e 2 do Código do Processo Penal bem como as nulidades que não devam ser consideradas sanadas, face ao disposto nas disposições conjugadas nos artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, ambas do citado diploma legal (10)

Simas Santos e Leal Henriques (11) ao debruçarem-se acerca do falado vicio bem o caracterizam dando conta que “verifica-se erro notório quando se retira de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiencia comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida. (…)”

Fazendo apelo ao que deixámos atrás enunciado quanto aos vícios a que alude o artigo 410º do Código do Processo Penal e debruçando-nos sobre a decisão em recurso importa, desde já, concluir que o Tribunal “a quo” nela vez constar todos os factos coligidos no despacho acusatório, pela acusação particular, pela demandante cível tanto quanto os trazidos pela defesa, bem como os que foram o resultado da discussão em audiência de julgamento, assim contemplando todos os factos que compõem a “constelação” do objecto do processo e que importaram à decisão que proferiu.

Passando à análise da segmento decisório relativo à fundamentação da sentença recorrida importa, ainda, concluir que o Tribunal “a quo”, para além de especificar cada meio de prova em que se estribou para formar a sua convicção, fez ainda a alusão circunstanciada da matéria factual para que o mesmo foi essencial.

No que respeita à prova por declarações e testemunhal aquele Tribunal especificou o modo como cada um dos intervenientes explicitou o respectivo conhecimento dos factos, deixando lavrado tudo quanto cada um desses intervenientes transmitiu ao Tribunal.

Não olvida, ainda, a apreciação do manancial probatório adquirido para os autos, como seja a prova documental relativo ao episódio de urgência e o documento que se acha a fls. 636, que confirma que a ora recorrente pediu apoio económico à Cruz Vermelha.

Todavia, e não obstante tais menções, aquele Tribunal não respeitou escrupulosamente o disposto no artigo 374º, nº 2 do Código do Processo Penal, apenas a sua formalidade.

Isto é, o Tribunal “a quo” tratou de plasmar naquela decisão um relato explícito e claro dos elementos de prova em que fundou a sua convicção, que condiz, na sua essência, com o que lhe foi por eles transmitido em audiência de julgamento (posto que este Tribunal “ad quem” levou a efeito a audição do conteúdo de todos os meios de prova), mas não curou já de explicitar o seu raciocínio logico-dedutivo, nem levou a efeito o exame critico dessa prova que achou crível, razão por que tal decisão se acha eivada de incompreensibilidade.

Em primeiro lugar, o Tribunal “a quo” começou por afirmar uma igual valia de todos os meios de prova coligidos para a formação da sua convicção, independentemente da extensão do conhecimento directo e pessoal de cada um dos declarantes e/ou testemunhas.

Em segundo lugar, o mesmo Tribunal olvidou os sentimentos de amizade e até dependência económica que ficaram patenteados em alguns dos depoimentos, nomeadamente nos depoimentos das testemunhas S. A., Maria, L. F., H. F., H. S. e R. S. relativamente ao arguido J. C. (alguns deles que, ainda, patentearam azedume e destempero para como a ora recorrente).

Em terceiro lugar as mencionadas testemunhas, em diversos aspectos, apresentaram versões díspares acerca dos mesmos factos, ao passo que manifestaram quase um total desconhecimento do que era o relacionamento do casal formado pela ora recorrente e o referido arguido, no contexto da sua vida em família, excepção feita à testemunha Maria que se deslocava, em regra, uma vez por mês à casa morada de família para engomar roupa e aos filhos do arguido, o H. S., que àquela casa se deslocava de 15 em 15 dias e o R. S., que com a periodicidade de 2 meses ali se dirigia, dizendo ambos que nunca assistiram a nada de anormal entre o referido casal.

E, em jeito de pergunta, sempre importará questionarmo-nos se, com esta esta habitualidade de deslocações, poderíamos afirmá-los potenciais conhecedores do que ali se passava!

Em quarto lugar, o Tribunal “a quo” permitiu que o conhecimento indirecto fosse coligido, como resulta da apreciação do afirmado pela testemunha R. S., ao arrepio e fora das condições a que se alude no artigo 129º do Código do Processo Penal.

Face a tais circunstâncias aquele Tribunal não cumpriu escrupulosamente, nesta sede, os ditames constitucionais e legais que se lhe impõem, por força do disposto no artigo 205º da Constituição da Republica Portuguesa e no 374º, nº 2 do Código do Processo Penal.

Como salienta Germano Marques da Silva (12) “as decisões judiciais, com efeito, não podem impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz” não sem que antes deixe de firmar que “a fundamentação da sentença consiste, pois, na exposição dos motivos de facto (motivação sobre as provas e sobre a decisão em matéria de facto) e de direito (enunciação das normas legais que foram consideradas e aplicadas) que determinaram o sentido («fundamentaram») a decisão.”

Esta garantia (a da fundamentação) decorre do princípio da legalidade, princípio estruturante do processo penal, uma vez que apenas o seu respeito concorre para a garantia da imparcialidade da decisão posto que apenas um juiz independente e imparcial só o é se a decisão fluir de um apuramento objectivo dos factos e da interpretação válida da norma jurídica.

Este mesmo é o pensamento firmado por Michele Taruffo (13)

O mais Alto Tribunal vai no mesmo sentido ao firmar que “O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção” (14).

Sem que deixe, ainda, de sublinhar que “O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte”. (15)

Importa deixar claro que o dever de fundamentação é, não só um direito dos utentes da Justiça, mas talqualmente um direito de todos os cidadãos, e que escora e legitima o poder jurisdicional, nos termos consignados no artigo 205º da Constituição da Republica Portuguesa – pois como bem salientam J.J.Gomes Canotilho e Vital Moreira (16) “o dever de fundamentação das decisões dos tribunais obedece a várias razões extraídas do princípio do Estado de Direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais. Sob o ponto de vista da juridicidade estatal (principio do Estado de Direito), o dever de fundamentação explica-se pela necessidade de justificação do exercício do poder estadual, da rejeição do segredo nos actos do Estado, da necessidade de avaliação dos actos estaduais, aqui se incluindo a controlabilidade, a previsibilidade, a fiabilidade e a confiança nos actos do Estado. Sob o ponto de vista do princípio democrático, para além de algumas das razões explicitadas a propósito do princípio da juridicidade, podem acrescentar-se as exigências de abertura e transparência da actividade judicial, de clarificação da responsabilidade jurídica (e politica) pelos resultados da aplicação das leis, a indispensabilidade de aceitação das sentenças judiciais e dos seus fundamentos por parte dos cidadãos. Finalmente, sob o prisma da teleologia dos princípios processuais, a fundamentação das sentenças serve para a clarificação e interpretação do conteúdo decisório, favorece o autocontrolo do juiz responsável pela sentença, dá melhor operacionalidade ao heterocontrolo efectuado por instâncias judiciais superiores e, em último termo, contribui para a própria justiça material praticada pelos tribunais.”
Vale, pois, tudo por dizer que esta é uma imposição ditada pelo próprio sistema de valores que estabeleceram o regime constitucional, quer quanto ao funcionamento das instituições (no caso, os tribunais), quer quanto às garantias dos cidadãos (em especial, as dos arguidos).
A “ratio legis” de qualquer dos aludidos normativos é, concomitantemente, com a salvaguarda da transparência da decisão judicial, o conhecimento dos fundamentos, de facto e de direito, que determinaram uma concreta decisão, sempre de molde a possibilitar a respectiva sindicância, fundamentos e finalidades de um Estado de Direito Democrático.

Importa, pois, que concluamos que o Tribunal “a quo” incorreu no vício a que alude a alínea c) do nº 2 do Código do Processo Penal, posto que formulou um juízo que conduziu à fixação do sedimento probatório – provado e não provado – que resultou de um processo valorativo erroneamente elaborado da prova produzida.

Para além disso, atento o seu comportamento omissivo, o Tribunal “a quo” colocou em crise princípios fundamentais que regem o processo penal português.

Um dos princípios estruturantes do nosso arquétipo adjectivo penal é o princípio da investigação, perspectivando-o, no que à aquisição e valoração da prova implica, que a condução e esclarecimento da matéria factual não pertence apenas aos sujeitos processuais – que não “partes” – mas ainda, e em primeiro lugar e como última instância, ao julgador. Isto é, a actividade jurisdicional não se limita ao controlo da legalidade dos actos, como ainda sobre o magistrado impende, como salienta Jorge Figueiredo Dias (17) “o dever de investigação judicial autónoma da verdade», pois só assim “se compreende que não impenda nunca sobre as partes, em processo penal, qualquer ónus de afirmar, contradizer e impugnar; como, igualmente, que se não atribua qualquer eficácia à não-apresentação de certos factos ou ao «acordo», expresso ou tácito, que se formaria sobre os factos não contraditados.”

É pois uma arquitectura adjectiva que visa a verdade material, que implica, na síntese assertiva do Professor Castanheira Neves (18) “a decisiva consequência de não poder fundar-se o juízo probatório senão na prova efectiva dos factos.”

A decisão que promana da verdade material, a que lei processual penal denomina de “boa decisão da causa”, é assim relevante, mesmo essencial, para que a eficácia do sistema de justiça se possa concretizar, visto que o restabelecimento da paz jurídica na comunidade que se viu atingida pelo ilícito criminal, apenas se consolida quando se atinge uma correspondência da realidade objectiva da verdade histórica com a realidade probatória e, consequentemente, é declarada a culpa de quem levou praticou a conduta delituosa e absolvido quem não atingiu os bens primordiais tutelado pela lei penal.

Paulo Dá Mesquita (19) considera mesmo que “princípio da investigação não é um produto da epistemologia mas expressão de um modelo jurídico, político e cultural através do qual os operadores do sistema compreendem o processo criminal e a sua função no mesmo, uma estrutura de interpretação e significado.”

Outro dos princípios, mas ainda desiderato do processo penal português, é o da descoberta da verdade material, razão por que a leitura de qualquer dos demais princípios e normas sê-lo-á tendo, como matriz e finalidade, este de que agora damos nota.

Versando sobre o aludido conceito de “verdade material” façamos uso, para a sua compreensão, das palavras do Professor Castanheira Neves (20) quando este afirma que “quanto à «verdade» que aqui se visa, devemos ter em conta que ela tem a ver com a realidade da vida, com a acção humana e as circunstâncias do mundo humano, pois a verdade que importa ao direito (e, assim, ao processo) não poderá ser outra senão a que traduza uma determinação humanamente objectiva de uma realidade humana. É ela, pois, uma verdade histórico-prática. A sua modalidade não é a de um juízo teorético, mas a daquela vivência de certeza em que na existência, na vida, se afirma a realidade das situações, com tudo o que nestas de material e de espiritual participa. Quer dizer, será errado identificarmos a ideia de objectividade científica (sistemático-conceitual e abstracto-generalizante) – pois isso seria esquecer, por um lado, que a intenção teorético-cientifica é o resultado de uma modificação específica, e metodologicamente deliberada, na intenção e modos originários da experiência fundamental em que se nos dá a realidade, e por outro lado, ignorar que o «facto» da ciência (os factos para a ciência), longe de ser o facto absoluto ou o «dado» correlativo das específicas intenções científicas, e que, portanto, haverá sempre de distinguir-se, pelo menos, dos factos da experiência humano-natural e histórica. Do que se trata aqui é antes daquela particular objectividade da vida, a exprimir sempre uma «indissolúvel unidade do conhecer e do agir», um prático experimentar-compreender teoreticamente irredutível. O que não é, todavia, contraditório, com a pretensão da racionalização. Só que não deve esquecer-se que se trata de uma racionalização de índole prático-histórica, a implicar menos o racional puro do que o razoável, proposta não à dedução apodíctica, mas à fundamentação convincente para uma análoga experiência humana, e que se manifesta não em termos de intelecção, mas de convicção (integrada sem dúvida por um momento pessoal) – já por isso a racionalização toma no nosso caso muito justamente o nome de motivação e não o de demonstração.” (sublinhados do autor).

Enunciado no artigo 340, nº 1 do Código do Processo Penal, que disciplina a prova em sede de audiência de julgamento, este principio impõe-se, no entanto, em todas as fases do processo penal, sendo resultado de uma “concepção” personalista do direito e democrática do Estado (21), provindo de uma leitura própria do principio do acusatório entremeada pelo da investigação, tudo expressão da procura de uma verdade que não seja meramente formal, mas antes daquela que resulta da identidade dos factos que da vida foram levados ao processo.

Fruto da contribuição de todos os sujeitos processuais somos também de dizer, assim como o fez o Professor Germano Marques da Silva (22) que este é o produto e fruto “de uma melhor prossecução da verdade e para uma decisão (mais) justa”; todavia é o julgador o único que está investido do poder-dever de investigar, oficiosamente, os factos trazidos a julgamento, visto que a ele lhe incumbe o poder-dever da busca da verdade material e da boa decisão da causa.

Com efeito, e fazendo presente a prova produzida nos presentes autos, incumbia ao Tribunal “a quo” ter levado a efeito um conjunto de diligências tendentes à busca da verdade material, e consequentemente à boa decisão da causa, e que não realizou, razão por que não logrou alcançar tal desiderato.

Em primeiro lugar reportando-se os autos alegadamente a um episódio factual ocorrido a 29 de Dezembro de 2016, pelas 19 horas, incumbia-lhe, na sequência da prova coligida e face ao respectivo teor, levar a cabo a audição dos elementos da autoridade policial que se terão deslocado, naquela data e hora, ao Lugar …, por ser previsível que os mesmos tenham conhecimento de factos que relevam para a boa decisão da causa.

Em segundo lugar, e tendo em conta o conteúdo das declarações da ora recorrente e do seu filho A. F., das quais resulta que todos eles viveram em comunhão, durante vários anos, com o arguido J. C. e com a filha menor do mesmo e da ora recorrente, sendo certo que num período alargado o foi na habitação pertencente aos pais da ora recorrente, impunha-se àquele Tribunal “a quo” levar a efeito, também, a respectiva audição, pois é, dado tal circunstancialismo, susceptível que os mesmos tenham conhecimento de factos com interesse para a decisão da causa.

Em terceiro lugar, e fazendo presentes varias declarações da ora recorrente em face de outras de cariz absolutamente contraditório trazido por algumas das identificadas testemunhas, desde logo as testemunhas S. A., Maria e L. F., impunha-se ao mencionado Tribunal ter lançado mão da prova por acareação, a que alude o artigo 146º do Código do Processo Penal, sempre tendo por finalidade a descoberta da verdade material.

Em quarto lugar, face ao declarado pela ora recorrente de que a sua filha menor estava proibida de contactar com o pai, o aqui arguido J. C., por força da intervenção da CPCJ, era mister que o falado Tribunal fizesse juntar aos autos uma certidão do processado de onde constasse tal decisão e quais os fundamentos que a ditaram, por se apresentar como meio idóneo à busca da verdade material.

As versadas omissões reportam-se a diligências essenciais à descoberta da verdade material e boa decisão da causa.

Veja-se, neste sentido, a jurisprudência do TEDH (23) que, a seu propósito, firma que “a «omissão posterior de diligências» (a que dá nota o artigo 120º, nº 3, alínea c) do Código do Processo Penal) que sejam essenciais refere-se às fases de julgamento e recurso: «posterior» ao inquérito e instrução; diligências essenciais significa, no contexto, que são absolutamente indispensáveis, no sentido de susceptíveis de condicionar a finalidade do processo e a decisão. (…)

Os apontados vícios, atenta a respectiva natureza, não são sanáveis por este Tribunal “ad quem”, razão por que se determina o reenvio dos autos para novo julgamento, quanto à totalidade do objecto do processo, a levar a efeito por diverso Tribunal, nos termos dos artigos 426º e 426º-A do Código do Processo Penal.
*
. DISPOSITIVO

Por todo o exposto, e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação Criminal de Guimarães em:

- Julgar nula a sentença proferida nestes autos;
- Ordenar o reenvio dos presentes autos para novo julgamento, quanto à totalidade do objecto do processo, a levar a efeito por diverso Tribunal.

Sem custas.

O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela sua relatora, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal.
Guimarães, 11 de Fevereiro de 2019

Maria José dos Santos de Matos
Armando da Rocha Azevedo


1. Código de Processo Penal Comentado, António da Silva Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2016, 1239.
2. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, Tomo III, 325.
3. Código do Processo Penal Comentado, António da Silva Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2016, 1274.
4. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Verbo, Tomo III, 325 e Código de Processo Penal Comentado, António da Silva Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2016, 1274 e 1275.
5. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 1074.
6. No Acórdão proferido no Processo nº 662/09.3TALRS.L1-5, disponível em dgsi.pt.
7. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Tomo III, Verbo, 326.
8. Acórdão proferido no processo nº 87/14.9YFLSB/3ª Secção de 20/11/2004, disponível na dgsi.pt.
9. Código de Processo Penal Comentado, António da Silva Henriques Gaspar e outros, Almedina, 2016, 1275.
10. Veja-se a este propósito o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19/19/1995, publicado no D.R., I-A Série de 28/12/1995.
11. Código do Processo Penal Anotado, Volume II, página 140.
12. Curso de Processo Penal, Tomo III, Verbo Editora, 289
13. Note sulla garanzia costituzionale della motivazione”, in BFDUC, ano 1979, Vol. LV, págs. 31-32
14. Acordão do STJ, de 30 de Dezembro de 2002, proferido no Processo 3063/01, publicado no sítio daquele tribunal.
15. Acórdãos do STJ de 17 de Março de 2004, proferido no Processo nº 4026/03; de 7 de Fevereiro de 2002, proferido no Processo nº 3998/00 e de 12 de Abril de 2000, proferido no Processo nº 141/00, todos publicados no sítio daquele tribunal.
16. Constituição da Republica Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, volume II, 4ª edição, 526 e 527.
17. Direito Processual Penal I, 193
18. Sumários de Processo Criminal, 43 e 44 e 51 e segs.
19. A prova do crime e o que se disse antes do julgamento – estudo sobre a prova no processo penal Português à luz do sistema Norte-Americano, Coimbra, Coimbra Editora, 2011
20. Sumários de processo criminal, 1967 – 1968 edição policopiada, 1968.
21. Rodrigues Maximiano, “A Constituição e o Processo Penal: competência e estatuto do Ministério Público, dos Juiz de Instrução Criminal e do Juiz Julgador – a decisão sobre o destino dos altos e os artigos 346 e 351 do CPP”, revista do Ministério Público ano 2, volumes 5 e 6, 1981.
22. Curso de Processo Penal volume 2, 5ºEdição, Lisboa, Editorial Verbo, Babel, 2011.
23. Acórdão datado de 5 de Julho de 2011, proferido no caso MOREIRA FERREIRA contra PORTUGAL.