Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
153/19.4T8CBT.G1
Relator: SANDRA MELO
Descritores: REGULAMENTO (CE) Nº 864/2007
SUB-ROGAÇÃO
LEI APLICÁVEL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/09/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A questão de saber se uma seguradora com sede em França, que celebrou contrato também em França e com segurado francês, tem o direito de exigir, por via da sub-rogação, a indemnização que pagou no âmbito desse contrato, para ressarcir os danos ocorridos em virtude de um acidente de viação ocorrido em Portugal, cuja responsabilidade recaia sobre a condutora de veículo automóvel cujos danos que provocasse causados a terceiro estavam garantidos por seguradora sediada em Portugal, subdivide-se em dois segmentos: se a demandada tem ou não a obrigação de ressarcir os danos em causa e se a demandante tem o direito de exigir tal pagamento, por via da sub-rogação, não sendo obrigatoriamente a mesma a lei que se deve aplicar para resolver cada um deles.
2- Para apurar a responsabilidade civil da seguradora contra a qual é exercido tal direito recorre-se à lei do país onde ocorreu o dano, por força do artigo 4º do Regulamento (CE) nº 864/2007 do Parlamento Europeu, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II, sendo aplicável, neste caso, a lei portuguesa.
3- Já quanto à verificação da transmissão desse crédito para a Autora, por via da sub-rogação, há que atender às relações entre esta e o seu segurado nos termos do artigo 19º do mesmo Regulamento, sendo aplicável, neste caso, a lei francesa.
Decisão Texto Integral:
Autora e Apelante: X, companhia de seguros de direito francês, com sede em …, França, com o …
Ré e Apelada: Y – COMPANHIA DE SEGUROS, S. A., com sede na Rua … Porto
Apelação em ação declarativa de condenação com forma comum

Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães

I- Relatório

A Autora pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 6.554,73 €, acrescida de juros de mora, acrescida dos juros de mora à taxa legal, contados desde a citação e até integral embolso, alegando, em síntese, que no dia 02/08/2017 ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes dois veículos automóveis e que a culpa do embate se deveu ao condutor do veículo seguro pela Ré. Do mesmo resultaram danos para o veículo seguro pela Autora, que esta pagou à sua segurada.
A Ré contestou, impugnando a dinâmica do acidente, imputando a culpa do mesmo ao condutor do veículo seguro na Autora e bem assim pondo em causa os danos e pagamentos.
Sentença
Após julgamento, veio a ser proferida sentença, que julgou a aço improcedente por não provada, absolvendo a Ré.

É desta decisão que a Recorrente apela, formulando, para tanto, as seguintes
conclusões:

.I- O presente recurso tem por objeto a sentença supra melhor identificada, que julgou a ação interposta pela aqui Recorrente totalmente improcedente.
Não se conformando com ele, pretende a Recorrente a alteração da matéria de facto dada como provada e a revogação da douta sentença.
.II- Quanto ao pedido de alteração da matéria de facto
.1- A concreta matéria de facto considerada provada pela sentença ora posta em crise, e que, no seu modesto entender, foi incorretamente julgada, é a seguinte:
«5) O veículo ZZ circulava a mais de 2,90 m do muro existente na berma da estrada, estando assim a circular, em parte, na metade esquerda da faixa de rodagem;
11) A largura da via no local do embate era de 4,50 metros e permitia o cruzamento de ambos os veículos;
13) Após o embate, o veículo ZZ imobilizou-se com a roda traseira direita à distância de 2,90 metros do muro existente na berma do seu lado direito;»
2-A matéria de facto considerada não provada que, face à prova produzida nos autos, deveria no seu entender, tê-lo sido é a seguinte:
«A) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na matéria de facto provada, o condutor do veículo ZZ circulava com atenção à condução que imprimia ao veículo e aos demais utentes da via;
B) Não circulava a mais que 50 km/h;
C) Quando o referido veículo já estava em pleno cruzamento entre as artérias mencionadas no ponto 7), surgiu do lado esquerdo, a mais de 40 km/h, o veiculo UD;
D) O qual, sem parar, nem sequer abrandar a marcha, ingressou na Rua da ..., provocando o embate com o veículo ZZ;
I) Os valores referidos nos pontos 17) e 20), pagos pela Autora à proprietária do veículo ZZ, estavam abrangidos pelas condições do acordo referido no ponto 1), que abrangia Assistência em viagem e danos próprios emergentes de colisão.»
.4- a) Quanto ao Ponto 5 da matéria de facto dada como provada, na opinião da Recorrente, a sua redação deveria ser: o veículo ZZ circulava dentro da sua faixa de rodagem.
b) Na realidade resulta do croqui elaborado pela autoridade policial que a medida de 2,90m é oblíqua e consequentemente não é lícito concluir-se que o veículo seguro pela Recorrente circulava a uma distância de 2,90m da berma da sua faixa de rodagem;
c) O erro em que incorreu o Tribunal é ainda evidenciado quer pelo depoimento da testemunha R. G., a pessoa que efetuou a medição, quer pela fotografia constante do documento 3 da PI, quer ainda pelo somatório desta medida com a que resulta da medida f) (2,40m) constante do mencionado croqui e da largura do veículo seguro pela Recorrente, quando confrontadas com a largura da via.
d) A testemunha R. G., quando inquirida sobre estas medições, referiu: “Uma vai para cima … (impercetível) e a outra vai para trás portanto nunca pode juntar as duas”
e) Já a testemunha M. C., cuidou de afirmar que “A estrada é estreita e nós íamos à nossa mão”, não resultando dos autos qualquer prova que infirme a sua declaração.
f) Quanto ao ponto 11 da matéria de facto provada, a sua redação deverá ser alterada para: a largura da via no local do embate situava-se entre os 4,40m e os 4,60m e permitia o cruzamento de ambos os veículos.
g) Na realidade o Tribunal a quo, olvidou na apreciação deste facto, as declarações prestadas pelo guarda da GNR que procedeu às medições constante do auto de ocorrência, tendo o depoimento deste sido claro ao afirmar que a via era irregular, nomeadamente quanto á sua largura, afirmando nomeadamente que no local do embate a via teria mais 10, menos 10 cm que os 4,50m que constituem a medida d) (largura da faixa de rodagem). Aliás a irregularidade da via é logo afirmada em tal documento na descrição desta alínea.
h) O ponto 13 da matéria de facto dada como provada deve, até por força do que vai acima mencionado ser alterado, devendo a sua redação ser a seguinte: após o embate, o veículo ZZ imobilizou-se com a roda traseira à distância de 2,90m do muro existente na berma do seu lado direito, distancia essa medida de forma obliqua.
i) O ponto A) e B) da matéria considerada não provada, deverá ser elevado ao elenco da matéria de facto provada já que a testemunha M. C. cuidou de afirmar que “…nós vínhamos muito devagar porque essa estrada é muito perigosa… é uma estrada muito estreita e perigosa…A estrada é estreita e nós íamos à nossa mão, só que um carro apareceu, o carro apareceu no cruzamento sem virar, sem travar, sem nada, apareceu a direito e bateu-nos a direito.”, Concretizando a instâncias da Meritíssima Juiz a quo que o veículo seguro pela Recorrente não prosseguia a marcha a mais de 30 km/h.
j) Quanto ao Ponto C) da matéria de facto não provada, deverá ser levado à matéria de facto provada que o sinistro ocorreu em pleno cruzamento.
k) Tal facto resulta do auto de ocorrência, da fotografia que constitui o documento 3 da PI, bem como do depoimento das testemunhas, nomeadamente das testemunhas M. C. e P. C..
l) Bastará visualizar aqueles documentos para se chegar a tal conclusão mas os depoimentos das testemunhas também o confirmam.
m) A testemunha M. C. referiu: “A estrada é estreita e nós íamos à nossa mão, só que um carro apareceu, o carro apareceu no cruzamento sem virar, sem travar, sem nada, apareceu a direito e bateu-nos a direito.”
n) A testemunha P. C. referiu: “Eu encontrava-me na Rua ... e pretendia seguir pela direita…Enquanto estava a virar com as devidas precauções, devagar, naquele sítio eu para ter perceção se vem algum carro de cima eu tenho que ir avançando devagar e foi precisamente o que eu fiz, fui avançando devagar e só sei que de repente vejo um carro que vem de cima com excesso de velocidade… no meio da estrada que quando me viu não conseguiu parar e bateu-me… tem um muro alto e eu para me aperceber se vem algum carro tenho que ir avançando… veio aquele carro lançado e quando eu vi parei e ele bateu-me…
o) Por sua vez a alínea D) da matéria não provada deverá ser elevada à matéria de facto provada nomeadamente porque resultou do depoimento da condutora do veiculo seguro pela Recorrida que não dispunha de qualquer visibilidade para a Rua onde pretendia ingressar (a Rua da ...) pois a tanto obstava a existência de um muro existente no lado direito da via pela qual prosseguia, que tinha de entrar na Rua da ... para conseguir ver o transito que nesta se processava,
p) Resultando ainda tal prova do facto de o veículo conduzido pela referida P. C. ter embatido frontalmente no veículo seguro pela Recorrente
q) Alias como resulta da fotografia que constitui o documento 3 da PI e do depoimento da testemunha M. C. que afirmou: “O outro carro bateu-nos em frente completamente em frente…”
r) Bem como do depoimento da testemunha S. A. que nomeadamente afirmou: “ela bateu pronto, ela bateu em cheio na minha roda da frente, na parte lado do condutor… até partiu o pneu.”
s) Já quanto à alínea I) da matéria de facto não provada que deverá passar a matéria de facto provada, tal resulta da prova produzida nos autos, mormente dos pontos 1, 16 e 20 dos factos provados, bem como dos depoimentos das testemunhas M. C. e I. B.
t) Não se podendo aceitar a conclusão a que chegou o tribunal a quo para considerar este pronto não provado
u) Com efeito, alicerçado no facto de a Recorrente não ter junto aos autos a apólice, considerou que a menção efetuada pelas testemunhas quanto às coberturas não era suficiente
v) O que fez sem alicerçar em qualquer norma jurídica tal entendimento.
w) Ora, não só desconhecemos qualquer norma que estipule a insuficiência da prova testemunhal para a prova das coberturas do seguro, como
x) O Decreto-Lei n.º 72/2008 de 16 de Abril refere expressamente que o contrato de seguro não está sujeito a forma especial,
y) Referindo no seu preambulo que “i) Quanto à validade do contrato, ela não depende da observância de qualquer forma especial. Esta solução decorre dos princípios gerais da lei civil, adequa-se ao disposto na legislação sobre contratação à distância, resolve problemas relativos aos casos híbridos entre a contratação à distância e a contratação entre presentes e, dadas as restantes regras agora introduzidas, é um instrumento geral de protecção do tomador do seguro;
z) ii) Quanto à prova do contrato, eliminam-se todas as regras especiais. Esta solução é a mais consentânea com o rigor técnico do que aqui se dispõe e com a necessidade de evitar a possibilidade de contornar a lei substantiva através de meios processuais;»,
aa) Na realidade tendo resultado provado pelo depoimento daquelas testemunhas que a Recorrente cobria danos próprios e que ao abrigo do contrato celebrado pagou os valores em 16 e 20 da matéria de facto dada como provada,
bb) Impunha-se reconhecer tal facto,
cc) Sendo certo que o instituto da sub-rogação do segurador não faz depender da prova das coberturas o acesso a esse direito mas apenas do pagamento (artigo 136º, n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro e artigo L121-12 do Código de Seguros francês.

Sem prescindir, mas por mera cautela:

dd) Ainda que o veículo seguro pela Recorrente se apresentasse a circular parcialmente fora da sua faixa de rodagem, o que se admite por mero exercício de raciocínio, tal facto, de per si, não era suficiente para determinar o decaimento da Recorrente na ação.
ee) Com efeito, seria necessário aferir se, e em que medida, tal conduta estradal teria sido idónea à eclosão do sinistro e inerentes consequências.
ff) Não só a sentença recorrida não emite qualquer juízo sobre tal circunstância, como olvidou totalmente o facto de que aquele veículo gozava de prioridade e que o veículo matricula UD ingressou na Rua da ... sem que dispusesse de qualquer visibilidade para a mesma já que o muro existente no lado direito da Rua …, via pela qual prosseguia antes de ingressar naquela, lhe cortava completamente a visibilidade para o trânsito que na Rua da ... se processava.
gg) Ou seja, o Tribunal a quo desconsiderou a norma constante do artigo 30º, n.º 1 do Código da Estrada
hh) E não fez uso do disposto no artigo 506º, n.º 2 do código civil, fixando as culpas de cada um dos condutores em pelo menos 50%, com os inerentes reflexos na condenação.

Termos em que, e nos melhores de direito que V. Exas. suprirão, deverá ser julgado procedente o presente recurso e:

a) deve ser alterada a matéria de facto dada como provada nos pontos 5), 11) e 13) e a matéria dada como não provada nos pontos a), b), c), d) e i) na sentença recorrida, atentos os fundamentos invocados no presente recurso e no sentido no mesmo indicado.
b) na procedência da impugnação da matéria de facto, deve a sentença recorrida ser revogada, substituindo-a por aresto que determine a condenação no pedido da recorrida.

sem prescindir:
c) subsidiariamente e na eventualidade de decaimento no pedido principal, deve ser fixada equitativamente as culpas de ambos os condutores na produção do sinistro, e consequentemente ser revogada a sentença recorrida, substituindo-a por aresto que condene a recorrente em metade do pedido formulado nos autos.

Também a Autora e apelada alegou, em resposta, com as seguintes
conclusões:

1. Da revisão da prova gravada e da sua concatenação com os demais elementos disponíveis no processo, não resulta a imposição de diferente decisão sobre a matéria de facto dada como provada nos pontos 5), 11) e 13) e da matéria de facto dada como não provada e constante dos pontos A), B), C) e D) da douta sentença, a qual se deve manter.
2. Quanto à matéria constante do ponto I) da matéria de facto não provada, ela deverá igualmente manter-se enquanto tal, uma vez que não foi feita prova concreta das condições do contrato de seguro ao abrigo do qual terão sido feitos os pagamentos pela recorrente.
3. Fundando-se o direito ao reembolso invocado pela recorrente na sua sub-rogação nos direitos do lesado, seu segurado, contra o alegado causador do acidente, incumbia-lhe a prova das condições e coberturas do contrato de seguro ao abrigo do qual efectuou os pagamentos que veio alegar.
4. Essa prova, nos termos conjugados dos artigos 32º do Regime do Contrato de Seguro e do nº 1 do artigo 393º do Código Civil, não pode ser feita por testemunhas, mas antes pela apólice e demais condições do contrato de seguro, não podendo confundir-se com a prova da sua existência e validade.

II- Objeto do recurso

O objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, mas esta limitação não abarca as questões de conhecimento oficioso, nem a qualificação jurídica dos factos (artigos 635º nº 4, 639º nº 1, 5º nº 3 do Código de Processo Civil).
Este tribunal também não pode decidir questões novas, exceto se estas forem de conhecimento oficioso ou se tornaram relevantes em função da solução jurídica encontrada no recurso e os autos contenham os elementos necessários para o efeito. - artigo 665º nº 2 do mesmo diploma.

Assim, são as seguintes as questões a apreciar:

.1- se deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada;
.2- se a Ré responde civilmente pelos danos decorrentes do acidente
.3- se a Autora se pode sub-rogar no direito à indemnização que cabe ao lesado

III- Fundamentação de Facto

Segue-se o elenco dos factos provados e não provados constantes da sentença, e, para facilitar a futura consulta dos autos, desde já se sublinham os factos impugnados e se anota a decisão que se proferirá sobre tal impugnação, de forma a ficar num só capítulo toda a fundamentação de facto.

Factos provados:

1) No exercício da sua atividade de seguradora, a Autora celebrou com M. C. contrato de seguro para cobertura da responsabilidade civil automóvel referente ao veículo com a matrícula ZZ, titulado pela apólice n.º 13532513;
2) No exercício da sua atividade de seguradora, a Ré celebrou com A. T. contrato de seguro para cobertura da responsabilidade civil automóvel referente ao veículo com a matrícula UD, titulado pela apólice n.º 0045.11.700982;
3) No dia 02/08/2017, pelas 06h50, na Rua da ..., freguesia de …, concelho de …, distrito de Braga, ocorreu um embate entre o veículo ligeiro de matrícula UD, conduzido por P. C. e da propriedade de A. T. e o veículo ligeiro com a matrícula ZZ da propriedade de M. C., conduzido por S. A.;
4). Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, o veículo ZZ circulava pela Rua da ... em direção ao Lugar de …;
5) O veículo ZZ circulava a mais de 2,90 m do muro existente na berma da estrada, estando assim a circular, em parte, na metade esquerda da faixa de rodagem Este facto infra será eliminado da matéria de facto provada.
6) Por sua vez, o veículo UD circulava pela Rua ..., pretendendo virar à direita para a Rua da ...;
7) O embate ocorreu na confluência entre as Ruas da ..., a Rua ... e a Rua da …;
8) O embate ocorreu entre a lateral esquerda do veículo ZZ e a frente do veículo UD;
9) A Rua da ..., no local do embate, configura-se em reta com perfil em patamar, sendo de dois sentidos;
10) A referida rua, no sentido descendente, tem uma acentuada inclinação;
11) A largura da via no local do embate era de 4,50 metros e permitia o cruzamento de ambos os veículos; Este facto será infra substituído pelo seguinte: “A largura da via no local do embate situava-se entre os 4,40m e os 4,60m e permitia o cruzamento de ambos os veículos”
12) Estava bom tempo e era já dia;
13) Após o embate, o veículo ZZ imobilizou-se com a roda traseira direita à distância de 2,90 metros do muro existente na berma do seu lado direito; Este facto será infra substituído pelo seguinte: “Após o embate, o veículo ZZ imobilizou-se com a roda traseira direita à distância de 2,90 metros do muro existente na berma do seu lado direito, distância essa medida de forma oblíqua”
14) Em virtude do embate ocorrido:
a. Os airbags do veículo ZZ foram acionados;
b. O braço de suspensão, o pára-choques, a óptica esquerda da frente, o capô, amortecedor e a chaparia do veículo ZZ ficaram danificados
15) A reparação do veículo ZZ foi orçamentada no valor de 10.000,00 €;
16) O seu valor comercial é de 5.000,00 €;
17) A Autora pagou tal valor à proprietária do veículo ZZ;
18) A proprietária do veículo ZZ encontrava-se em Portugal em gozo de férias com a sua família, constituída pelo seu marido e pelos dois filhos;
19) Deslocou-se para Portugal utilizando o referido veículo que, após o embate, ficou impossibilitado de circular;
20) Em virtude de tal facto a Autora pagou à proprietária do veículo ZZ o total de 1.554,73 €, o que inclui as seguintes despesas:
a. 42,54 € para rebocar o veículo ZZ;
b. 20,30 em transporte via táxi entre Celorico de Basto e “…” em Amarante;
c. 75,84 € em transporte via táxi entre Amarante e o Aeroporto do Porto;
d. 1.416,05 € em transporte via avião entre Portugal e França.

Factos não provados:

A) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na matéria de facto provada, o condutor do veículo ZZ circulava com atenção à condução que imprimia ao veiculo e aos demais utentes da via; Infra decidir-se-á pela manutenção deste ponto na matéria de facto não provada.
B) Não circulava a mais que 50 km/h; Infra decidir-se-á pela manutenção deste ponto na matéria de facto não provada.
C) Quando o referido veículo já estava em pleno cruzamento entre as artérias mencionadas no ponto 7), surgiu do lado esquerdo, a mais de 40 km/h, o veículo UD; Infra decidir-se-á pela manutenção deste ponto na matéria de facto não provada.
D) O qual, sem parar, nem sequer abrandar a marcha, ingressou na Rua da ..., provocando o embate com o veículo ZZ; Infra decidir-se-á pela manutenção deste ponto na matéria de facto não provada.
E) Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na matéria de facto provada, o veículo UD circulava a velocidade não superior a 30 kms/h e inteiramente dentro da metade direita da faixa de rodagem;
F) Ao chegar ao cruzamento entre a Rua ... com a Rua da ..., o veículo UD abrandou a sua marcha e parou, accionou o sinal luminoso de mudança de direcção à direita (“pisca”);
G) Certificou-se de que não circulava qualquer veículo no espaço necessário à manobra que pretendia efectuar (mudança de direcção à direita), e entrou no cruzamento, sempre dentro da metade direita da faixa de rodagem;
H) O veículo ZZ circulava a uma velocidade de pelo menos 50 kms/hora;
I) Os valores referidos nos pontos 17) e 20), pagos pela Autora à proprietária do veículo ZZ, estavam abrangidos pelas condições do acordo referido no ponto 1), que abrangia assistência em viagem e danos próprios emergentes de colisão. Infra decidir-se-á pela manutenção deste ponto na matéria de facto não provada.

IV- Fundamentação da decisão sobre a impugnação da matéria de facto e aplicação do direito

1.1 - Da impugnação da matéria de facto

O Recorrente observou os ónus necessários para o conhecimento da impugnação da matéria de facto, pelo que se pode, de imediato, proceder à sua análise.
Ponto 5) da matéria de facto provada: “O veículo ZZ circulava a mais de 2,90 m do muro existente na berma da estrada, estando assim a circular, em parte, na metade esquerda da faixa de rodagem”
O Recorrente pretende que se se dê como provado que “O veículo ZZ circulava dentro da sua faixa de rodagem”.
A sentença fundamentou este facto no croqui de fls. 8, explicando ainda que o veículo não se aproximou, depois do embate, do ponto onde este se deu.
A Recorrente pôs em causa a forma como foi interpretado o croquis, entendendo que a linha com 2,90 ali representada é obliqua à faixa de rodagem, mas a parte contrária negou que se possa chegar a tal conclusão.
Ora, resulta inequívoco, ouvida a testemunha que elaborou o croquis, como, aliás, já resultava da sua simples visualização, que não foi medida a distância do veículo ao muro, na perpendicular, mas da esquina do mesmo à roda do veículo, numa linha diagonal. Com efeito, tal é visível no croquis, bastando olhar para a representação e inclinação do vetor ali desenhado, e foi referido expressamente pela própria testemunha, que afirmou, ao referir-se às linhas k) e f) do croquis, que “uma vai para cima e a outra para trás”, pelo que não se podem somar para obter a largura da faixa de rodagem no local. (Esta testemunha também declarou que não sabia se esse veículo ocupou a faixa contrária e não sabia se já teria ou não iniciado a marcha quando se deu o embate.)
Assim, sendo a distância medida de forma oblíqua não é possível descortinar que a roda distava do muro 2,90m, porque esta é sempre superior à que ocorreria se a mesma fosse medida num grau de 90º a contar do limite da faixa de rodagem. Mostra-se impossível concluir no sentido apontado na sentença.
O raciocínio expresso pela testemunha é inexpugnável: o croquis aponta como distância (medida obliquamente) entre a roda esquerda do veículo de matrícula ZZ e o muro do seu lado esquerdo como sendo 2,40m e a distância entre a roda direita do mesma veículo e o muro do seu lado direito (também obliquamente medida) como sendo 2,90m e escreve que a faixa tinha em média uma largura de cerca de 4,50m. Bastam estas medidas para se perceber que as distâncias entre as rodas do veículo e os muros não podem ter sido medidas na perpendicular, sob pena da faixa ter uma largura superior ao afirmado no próprio croquis (na perpendicular, pois só assim se obtém a largura da faixa de rodagem), que corresponderia à soma da largura do próprio veículo e das restantes medidas de, respetivamente, 2,90m e 2,40m.
Não obstante, também não é possível retirar do documento de fls. 3 a conclusão pretendida pela Recorrente: não se vislumbra ali com um mínimo de segurança que o veículo branco estacionado esteja alinhado com o veículo acidentado. Aliás, a própria testemunha R. G. não conseguiu assegurar se o veículo ocupava ou não apenas a hemi-faixa de rodagem que lhe era destinada.
Desta forma, é imperativo dar-se como não provado o ponto quinto da matéria de facto provada, mas já não é possível concluir no sentido pretendido pelo Recorrente, de que o veículo matricula ZZ prosseguia a marcha dentro da sua faixa de rodagem.

Ponto 11) da matéria de facto provada: A largura da via no local do embate era de 4,50 metros e permitia o cruzamento de ambos os veículos.

O Recorrente pretende que se se dê como provado que a largura da via no local do embate se situava entre os 4,40m e os 4,60m e permitia o cruzamento de ambos os veículos.
Funda-se no depoimento a testemunha que elaborou o auto e que procedeu às medições constante do auto de ocorrência, porquanto afirmou que a via era irregular, nomeadamente quanto á sua largura, e que no local do embate a via teria mais 10, menos 10 cm, que os 4,50 m que constituem a medida d) (largura da faixa de rodagem). A irregularidade da via foi também foi logo assegurada em tal documento aquando da descrição desta alínea. A parte contrária defendeu que aquela largura corresponde à existente no local do embate.
No entanto, não resulta do croquis tal coincidência (nem o seu oposto), pelo que há que considerar a margem apontada pelo agente que o elaborou, cuja isenção, convicção e confiabilidade não foi posta em causa, nem se vê que o deva ser.
Termos em que procede nesta parte a impugnação, pelo que desde já se procede supra à correspondente correção.

Ponto 13) da matéria de facto provada: Após o embate, o veículo ZZ imobilizou-se com a roda traseira direita à distância de 2,90 metros do muro existente na berma do seu lado direito;

A Recorrente pretende que lhe seja dada esta redação: “após o embate, o veículo ZZ imobilizou-se com a roda traseira à distância de 2,90m do muro existente na berma do seu lado direito, distância essa medida de forma obliqua.”
A Recorrida nega esta consideração, porquanto entende que não há qualquer elemento nos autos, nem qualquer depoimento, que permitam concluir que a medição da alínea k) do auto tenha sido obtida de forma oblíqua. No entanto, como supra se viu, a testemunha que elaborou tal auto, cujo depoimento não foi contraditado e se mostra, como se viu, credível, confirmou que tais medidas foram tiradas de forma obliqua, pelo que tem que proceder a impugnação.

Alínea A) da matéria de facto não provada: “Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na matéria de facto provada, o condutor do veículo ZZ circulava com atenção à condução que imprimia ao veiculo e aos demais utentes da via;
Alínea B) da matéria de facto não provada: “Não circulava a mais que 50 km/h”

Estes factos, porque intrinsecamente ligados, serão tratados conjuntamente, pelo menos na parte em que a sua discussão passa pelos mesmos raciocínios.
Pretende a Recorrente que o primeiro facto seja conduzido ao elenco da matéria de facto provada com base no que afirma a testemunha M. C., o que não é aceite pelo recorrido. A sentença não confere credibilidade a tal testemunho, por entender que a mesma contrariou o croquis, nos termos em que foi por esta interpretado. Já se viu que não conseguimos sufragar a interpretação do croquis efetuada pelo tribunal a quo, que não teve em conta que a linha que vai do muro à roda do veículo seguro na Autora não se apresenta perpendicular ao eixo da via, pelo que não indica a (mais curta) distância entre a roda e a berma ou o centro da via.
Ouvida a prova gravada, é patente que existem declarações em sentido divergente no toca às alíneas A) e B) da matéria de facto não provada, depondo P. C., num sentido diferente do aqui vertido.
É certo que ambas as versões do acidente são verosímeis e possíveis.
A análise dos danos deixados nos veículos, patentes nas fotografias juntas, são elementos de cariz objetivo. Esta análise e as contradições em que incorreu a testemunha P. C. poem em causa a versão da Ré e permitem descortinar em parte a dinâmica do acidente, mas não em todos os seus aspetos.
O embate ter-se-á dado, como resulta da fotografia tirada aos veículos no local, essencialmente entre a frente esquerda do veículo seguro na Ré e a lateral esquerda do veículo seguro na Autora, parecendo ser mais forte o embate sobre a roda dianteira deste, como se deduz pelos locais onde os componentes dos automóveis ficaram mais danificados e logo onde o outro veículo exerceu maior força e onde se iniciou o contacto entre ambos. Nesse sentido foi claro, também, o depoimento de S. A..
Das fotografias apresentadas não resulta que o veículo seguro na Autora se encontrava dentro da sua faixa de rodagem, antes parecendo que tal também não ocorreria, numa análise pouco segura, atenta a dificuldade que a análise de fotografias, visto que é possível modificar a perceção com a alteração do ângulo em que é captada.
A condutora do veículo seguro na Ré afirmou que o embate se deu entre a lateral direita do seu veículo com a lateral esquerda do veículo seguro pela Recorrente, o que parece infirmado, ainda que indiciariamente, pela localização dos danos dos veículos. A ter ocorrido a dinâmica do acidente expressa por esta - encontrava-se parada e o outro veículo circulava tão depressa que lhe embateu –, a uma primeira vista, o choque no veículo seguro da Autora ter-se-ia iniciado, não na sua lateral, mas na sua frente. A mesma, com pouca coerência, afirmou que “fui avançando devagar e só sei que de repente vejo um carro que vem de cima com excesso de velocidade”, mas também que parou antes do embate.
Assim, nessa parte não lhe é possível dar credibilidade.
A localização dos danos nos veículos aponta para que o veículo seguro na Autora já estava em pleno cruzamento quando se deu o embate, mas daqui não resulta que não estivesse fora da sua hemi-faixa de rodagem, como pareceria inculcar a fotografia junta com a petição inicial como documento nº 3, embora, como se viu, desta não se possa com certeza retirar tal facto (serve apenas de contra-prova, não de demonstração do seu contrário, atenta a falibilidade que é inerente às fotografias para demonstrar tais elementos, por depender dos ângulos em que são captadas).
Havendo depoimentos divergentes entre si e sendo ambas as teses parcialmente contraditadas, ainda que indiciariamente, por elementos objetivos, não é possível dar credibilidade aos depoimentos, quer de M. C. e S. A., quer de P. C., na parte em que extravasam o que resulta seguro dos indícios físicos registados no local.
Assim, o grau de atenção prestada pela condutora do veículo seguro na Autora não resulta com a necessária certeza dos elementos probatórios.
Quanto à velocidade a que seguia tal veículo, não obstante a mesma ter sido afirmada por M. C., também foi negada por P. C.. É patente a violência do embate, face aos danos ocorridos, o que aponta para o facto dos veículos (um ou ambos) seguirem a velocidade já relevante.
É certo que a estrada é estreita, o que justificaria a redução da velocidade, mas parece patente que um ou ambos os veículos o não respeitaram e não há elementos que permitam imputar algum excesso ao veículo seguro na Ré ou apenas a este.
Assim também não é possível dar como provada a alínea B) da matéria de facto não provada.
Alínea C) da matéria de facto não provada: Quando o referido veículo já estava em pleno cruzamento entre as artérias mencionadas no ponto 7), surgiu do lado esquerdo, a mais de 40 km/h, o veiculo UD;

A Recorrente pretende que seja levado à matéria de facto provada que o sinistro ocorreu em pleno cruzamento, mas tal já está assente, no ponto 7), onde se refere este ocorreu na confluência de artérias. No mais, não é possível ter a certeza sobre qual a ordem de chegada dos veículos ao local, a sua velocidade e trajetória: os elementos objetivos são muito curtos para se poder encontrar uma resposta segura e os testemunhos são contraditórios, sem que existam elementos que permitam uma escolha segura. O que é indiciado (mas só apontado) pelo local dos danos permite ainda entender possível que o veículo seguro na Autora tivesse cortado o sentido de marcha do seguro na Ré, não com a sua parte frontal, mas lateral, caso não estivesse totalmente perpendicular ao mesmo, mas enviusado; a fotografia tirada aos veículos após o embate não é clara quanto à distância que estes se encontravam dos muros para poder descortinar se ocupavam ou não a hemi-faixa destinada aos veículos que seguiam no sentido contrário.
Assim, mostra-se impossível, com segurança, escolher a versão que uma ou outra fação das testemunhas defende (tanto mais quando é possível que ambos os veículos e condutores seguissem a velocidade elevada, ou fora das hemi-faixas de rodagem, etc).
Alínea D) da matéria de facto não provada: O qual, sem parar, nem sequer abrandar a marcha, ingressou na Rua da ..., provocando o embate com o veículo ZZ;
Pretende a Recorrente que este facto seja levado à matéria de facto provada, considerando, em súmula, que resulta do depoimento da condutora do veículo seguro na Recorrida que esta não dispunha de qualquer visibilidade para a rua onde pretendia ingressar e que o embate se dá essencialmente com a frente do veículo em que seguia. Ora, da falta de visibilidade não resulta que a condutora não tenha abrandado a marcha, como descreveu. Por outro lado, não se sabendo a trajetória e velocidade o veículo, não é possível chegar à conclusão pretendida pela Recorrente, mais a mais porque a prova testemunhal não se mostra segura.
Alínea I) da matéria de facto não provada: Os valores referidos nos pontos 17) e 20), pagos pela Autora à proprietária do veículo ZZ, estavam abrangidos pelas condições do acordo referido no ponto 1), que abrangia assistência em viagem e danos próprios emergentes de colisão.
A Recorrente pretende que esta matéria passe a constar da matéria de facto provada, defendendo que tal resulta dos pontos 1, 16 e 20 dos factos provados, bem como dos depoimentos das testemunhas M. C. e I. B..
No entanto esta alínea não contém factos, mas conclusões jurídicas.
Para saber se determinados factos estão ou não dentro dos riscos assumidos por uma seguradora no âmbito do contrato de seguro há que fazer uma análise do contrato de seguro, para ver o seu âmbito, as obrigações assumidas pelo segurador, verificar se os eventos em causa fazem parte dos riscos seguros e, por fim, se os danos apurados foram causados por tais eventos cobertos.
O local para enunciar todos estes raciocínios e as conclusões que deles se obtiveram não é a matéria de facto provada ou não provada, mas sim a análise jurídica da causa.
O que deve ficar a constar da matéria de facto provada e não provada são os factos necessários para chegar a tais conclusões, que permitam fazer tais estes raciocínios, no caso, a indicação do evento danoso, dos danos sofridos e do acordo contratual celebrado.
Assim, nunca esta alínea poderia ser acrescentada à matéria de facto provada, por não conter factos, mas conclusões.
Por outro lado, quanto à prova do que abrangia o contrato, há que ter em atenção que as cláusulas de que agora tratamos já não se inserem no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
O objeto do seguro referido nesta alínea entrará já no âmbito do “seguro adicional facultativo”, “seguro de danos próprios” ou “seguro contra todos os riscos”, que cobriria diversos riscos, conforme seja acordado, como os danos corporais do condutor e os danos materiais no seu veículo, bem como outros, como a assistência em viagem. Na União Europeia não existem regras comuns sobre este seguro automóvel facultativo.
Em Portugal, mesmo com a introdução do novo Regime Jurídico do Contrato de Seguro, embora o contrato de seguro automóvel seja um contrato consensual, como é, deixando de exigir a forma escrita para a sua validação, nos termos do artigo 32º, nº 1 desse diploma, é ainda necessária a formulação de um documento escrito pelo segurador, a “apólice de seguro”, tendo esta de ser entregue, datada e assinada ao tomador de seguro, nos termos dos artigos 32º, nº 2 e nº 3 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro.
No entanto, é claro que a lei que regula a forma do contrato de seguro celebrado entre franceses, em França, é a francesa (cf artigo 7º nº 2 do Regulamento (CE) nº 593/2008 do Parlamento Europeu, em consonância com o artigo 11º nº 1 do mesmo diploma e como explanado no seu considerando 33).
O regime francês do contrato de seguro automóvel, quanto à forma, tem muitas semelhanças com o português, sendo os contratos de seguro compostos por dois elementos distintos, as quais abrangem as “condições gerais” que devem ser obrigatoriamente fornecidas na assinatura do contrato e que aparecem na forma de um guia explicando cada garantia em detalhes, em particular as exclusões e a operação do contrato.
O artigo L112-3 do “Code des assurances” obriga a que “O contrato de seguro e as informações enviadas pela seguradora ao tomador do seguro mencionados neste código estão escritas em francês, no tipo visível”, pelo que também não dispensa a forma escrita na demonstração das suas cláusulas.
Bem se andou, pois, na sentença a dar este “facto” como não provado.
Fixada a matéria de facto provada e não provada, apliquemos-lhe o Direito.

2 Aplicação do direito aos factos apurados
2.1 Da responsabilidade civil.
2.2- Da lei aplicável

Estando em causa duas companhias seguradoras, uma francesa e outra portuguesa e dois contratos de seguros celebrados, ao que se percebe, nos respetivos países, ambos da União Europeia, quanto a um acidente ocorrido em Portugal, onde se deram os seus danos, há que verificar qual a lei que se deve aplicar às relações jurídicas em causa no âmbito deste embate.
Discute-se a obrigação de pagamento da indemnização por parte da seguradora portuguesa à seguradora francesa, a qual levanta duas questões: se a Ré tem ou não a obrigação de ressarcir os danos em causa e a Autora tem o direito de exigir à Ré tal pagamento, por via da sub-rogação.
Dúvidas não há que para apurar a responsabilidade civil da seguradora contra a qual é exercido tal direito é aplicável o Regulamento (CE) nº 864/2007 do Parlamento Europeu, relativo à lei aplicável às obrigações extracontratuais (Roma II), o qual determina no seu artigo 4º que “Salvo disposição em contrário do presente regulamento, a lei aplicável às obrigações extracontratuais decorrentes da responsabilidade fundada em ato lícito, ilícito ou no risco é a lei do país onde ocorre o dano, independentemente do país onde tenha ocorrido o facto que deu origem ao dano e independentemente do país ou países onde ocorram as consequências indiretas desse facto.”, por estarmos no âmbito desse tipo de responsabilidade, não contratual. Assim, para apurar da obrigação de indemnizar há que recorrer à lei portuguesa, do país onde ocorreu o dano.
Já quanto à verificação da transmissão desse crédito para a Autora, por via da sub-rogação, há que atender às relações entre esta e o seu segurado: caso não existisse disposição expressa, já por força do artigo 7º do Regulamento (CE) n.o 593/2008 do Parlamento Europeu (Roma I), a lei aplicável para determinar a existência ou não da possibilidade de sub-rogação da seguradora, que indemnizou as vítimas de um acidente em que interveio o veículo que segurava, nos direitos dos lesados contra a seguradora do outro veículo interveniente no acidente é que rege o contrato em que se funda a parte ativa que pretende exercer a sub-rogação. Também o artigo 14º deste diploma remete, no nº 1, para a lei que, por força do regulamento for aplicável ao contrato que os liga. No entanto, existe norma especial que conduz à mesma solução: o artigo 19º do o Regulamento (CE) 864/2007 do Parlamento Europeu (Roma II).Este artigo determina que, se, por força de uma obrigação extracontratual, uma pessoa («o credor»), tiver direitos relativamente a outra pessoa («o devedor»), e um terceiro tiver a obrigação de satisfazer o direito do credor, ou tiver efetivamente satisfeito o credor em cumprimento dessa obrigação, a lei que rege esta obrigação do terceiro determina se e em que medida este pode exercer os direitos do credor contra o devedor, segundo a lei que rege as suas relações.” (sublinhado nosso)
Assim, nessa parte, é aplicável o direito francês - cf, no mesmo sentido, o Acórdão Supremo Tribunal de Justiça 06/14/2018 2909/10.4TBVCD.P1.S1, (sendo este e todos os demais acórdãos citados sem menção de fonte, consultados in dgsi.pt com a data na forma ali indicada: mês/dia/ano) e quanto a ambas as vertentes, o Acórdão do Tribunal de Justiça da UE (Quarta Secção) de 21 de janeiro de 2016, nos Processos C- 359/14 e C- 475/14 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX:62014CJ0359_SUM&from=FR).
A questão que importa solucionar em primeiro lugar é a da existência ou não de responsabilidade da Ré pelos danos que advieram em consequência do embate relatado nestes autos, seja esta fundada na culpa ou no risco. Para verificar da responsabilidade da Ré pelos danos há que recorrer à lei portuguesa, onde estes ocorreram.
*
2.3 Da responsabilidade aquiliana.

Determina o artigo 483º nº 1 do Código Civil que "aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".

a .o ato ilícito
O elemento básico da responsabilidade é o facto voluntário do agente, um facto dominável pela vontade, um comportamento ou uma forma de conduta humana. A ilicitude, por seu turno traduz-se na violação de um direito de outrem, ou por violação da lei que protege interesses alheios, ou por meio da infração das leis que mesmo que só reflexamente atendam aos interesses particulares subjacentes, por visarem a proteção de interesses coletivos (normas, vg, que se debrucem sobre o simples perigo de dano, em abstrato, contravenção ou de uma transgressão de carácter administrativo, sempre que a norma violada vise proteger interesses dos particulares sem lhes conferir um verdadeiro direito subjetivo).
Para que o lesado, em casos do segundo tipo de ilicitude, ou seja, na violação de lei que protege interesses alheios, tenha direito à indemnização, três requisitos se mostram indispensáveis: em primeiro lugar, que á lesão dos interesses do particular corresponda a violação de uma norma legal; em segundo lugar, que a tutela dos interesses particulares figure, de facto, entre os fins da norma violada: é preciso que a tutela dos interesses privados não seja um mero reflexo da proteção dos interesses coletivos que, como tais, a lei visa salvaguardar; em terceiro lugar, que o dano se tenha registado no círculo de interesses privados que a lei manda tutelar.

b. a culpa
Para que o facto possa ser imputado ao lesante é necessário ainda que haja um certo nexo psicológico entre o facto e a vontade do lesante: o dolo e a negligência.
Fundando-se a responsabilidade no dolo, sendo mais forte o laço que prende o facto à vontade do agente, o montante da indemnização terá de corresponder sempre ao valor dos danos. No dolo cabem os casos em que o agente quis diretamente realizar o facto ilícito, os casos em que, não querendo diretamente o facto ilícito, o quis como consequência necessária desse ato e ainda quando age sabendo que é possível que a sua ação cause aquele efeito e se conforma com esta. A negligência, em termos muito simples, consiste na omissão da diligência exigível do agente, porquanto implica sempre que este se não conforme com o resultado.
Quando a responsabilidade se funda na mera culpa (na negligência), impõe o artigo 494º do Código Civil que a indemnização pode ser equitativamente fixada em montante inferior ao valor dos danos causados, desde que assim o justifiquem o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.

c. o dano
É também essencial para se apurar a obrigação de indemnizar que o facto ilícito culposo tenha causado um prejuízo a alguém. O dano é a perda in natura que o lesado sofreu, em consequência de um certo facto, nos interesses materiais, espirituais ou morais que o direito violado ou a norma jurídica infringida visam tutelar.

Por fim, haverá que averiguar da existência de
d. um nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano.
A conceção clássica entre nós, seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, que o artigo 563.º do Código Civil consagra a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, segundo a qual uma condição do dano deixará de ser considerada causa dele sempre que seja de todo indiferente para a produção do dano e só se tenha tornado condição dele, em virtude de outras circunstâncias extraordinárias.

Isto posto, entremos na
análise do caso concreto
Alterada a matéria de facto provada e não provada quanto à dinâmica do acidente, visto que é muito parca, pouco de concreto se tendo conseguido apurar, não se encontra qualquer facto voluntário dos condutores dos veículos seguros, quer na Autora, quer na Ré, que permita imputar-lhes a culpa do embate.
A sentença fundou-se no facto do veículo da Autora seguir em ocupação da hemi-faixa destinada ao sentido contrário, mas baseou-se numa leitura do croquis que se não sufraga e com desconsideração do depoimento da testemunha que o elaborou.
Assim, mais nada nos resta em que nos possamos segurar, tanto mais que não se sabe a velocidade dos veículos, por onde seguiram, se pararam ou não, enfim, os factos provados não revelam a violação de qualquer norma estradal ou dever de cuidado por qualquer um dos condutores dos veículos, por não se terem apurado comportamentos ou mesmo indícios sérios concretos que possam fundar tal juízo de valor.
Tal afasta quer a absolvição da Ré, quer a sua condenação com fundamento na responsabilidade fundada na culpa.

3,1- Da responsabilidade fundada no risco
Afastada a responsabilidade com base na culpa (efetiva ou presumida), não ocorrendo nenhum facto que afaste a responsabilidade objetiva daquele que tem a direção do veículo, cai-se no regime da responsabilidade pelo risco (artigos 503º e 506º do Código Civil).
É consabido que ao lado da culpa (ou subsidiariamente a esta), vigora hodiernamente a teoria do risco, segundo o qual, quem cria ou mantém um risco em proveito próprio, deve suportar as consequências prejudiciais do seu emprego, já que deles colhe o principal benefício. O Código Civil, embora estabeleça a responsabilidade baseada na culpa como regime geral, admite também a responsabilidade objetiva, fundada no risco, em determinados casos como os previstos no artigo 503º do Código Civil, o qual estabelece no nº 1: “Aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação”.
Tem a direção efetiva do veículo a pessoa que, de facto, goza ou usufrui as vantagens dele, e a quem, por essa razão, especialmente cabe controlar o seu funcionamento. A responsabilidade pelo risco abrange os danos provocados pela circulação do veículo, como os atropelamentos (assim como outros casos, como os danos causados pelo próprio veículo se estacionado).
Por outro lado, como tão bem se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 01/18/2007, no processo 9698/2006-8, (sendo este, e todos os demais acórdãos citados sem indicação de fonte, consultados no portal dgsi.pt): “ O ónus da prova da exclusão de responsabilidade pelo risco daquele que tiver a direção efetiva por se considerar que o acidente é imputável ao lesado, tal ónus cabe a quem tem a direção efetiva, não ao lesado.”
Com efeito, a culpa do lesado pode ser considerada uma exceção perentória ao direito invocado pelo lesado, pelo que nos termos do artigo 342º nº 2 do Código Civil competiria a sua prova à Ré.
Assim, dúvidas se não têm que compete à Ré, seguradora, o dever de indemnizar metade dos danos ocorridos tais danos, porquanto assumiu a obrigação de indemnizar terceiros emergente da responsabilidade civil extracontratual relativa à circulação rodoviária do veículo, mediante contrato validamente celebrado e em vigor, considerando igual a participação de ambos os veículos, nos termos do artigo 506, nºs 1 e 2 º do Código Civil.
Com efeito, a alteração da matéria de facto provada obtida pela Autora nesta sede, afastando a culpa da condutora do veículo que segurava, faz com que opere a responsabilidade pelo risco, a qual havia sido afastada na sentença nos termos do artigo 505º do Código Civil.
Cumpre, pois, entrar na análise

4.da titularidade do direito à indemnização por via da sub-rogação
Discutem-se aqui as relações entre a Autora e o seu segurado: se aquela, mercê do pagamento que afirma ter efetuado ao abrigo do contrato de seguro ficou sub-rogada nos direitos daquele.
Vimos já que a lei aplicável será a lei francesa.
No Direito francês, esta matéria é regida pelo artigo L121-12 do Code des Assurances, relativo aos seguros de danos não marítimos, o qual nos diz que o segurador que haja pago a indemnização do seguro é sub-rogado, até ao limite dessa indemnização, nos direitos e ações do segurado contra os terceiros que, por facto seu, hajam causado o dano que deu lugar à responsabilidade do segurador. (sublinhado nosso).
Decorre desta norma que não pode haver sub-rogação legal, a menos que a seguradora tenha pago sob uma obrigação de garantia, no âmbito da sua responsabilidade como segurador. Neste sentido, em particular, foi decidido pelo Tribunal de Cassação, Civ. 2, 5 de julho de 2006, n ° 05-11729, disponível in https://www.legifrance.gouv.fr/affichJuriJudi.do?oldAction=rechJuriJudi&idTexte=JURITEXT000007510825&fastReqId=966827274&fastPos=1, que o pagamento feito comercialmente, e não em aplicação do contrato de seguro, não dará origem ao benefício da sub-rogação prevista no artigo L 121-12 do Código de Seguros.)
A solução é, pois, em tudo semelhante à que se encontraria caso se aplicasse a lei portuguesa, tal como estipula o artigo 592º nº 1 do Código Civil: fora dos casos de sub-rogação voluntária e de sub-rogação legal prevista especialmente na lei, o terceiro que cumpre a obrigação só fica sub-rogado nos direitos do credor quando tiver garantido o cumprimento, ou quando estiver por qualquer outra causa diretamente interessado na satisfação do crédito. Na mesma senda, o artigo 136º do D.L. 72/2008 (Regime Jurídico do Contrato de Seguro) que dispõe que “O segurador que tiver pago a indemnização fica sub-rogado, na medida do montante pago, nos direitos do segurado contra o terceiro responsável pelo sinistro”. Daqui se conclui que é pressuposto desta sub-rogação, que a indemnização tenha sido paga pela seguradora, mas só se esta se reportar à indemnização devida nos termos do contrato de seguro que justificou tal pagamento. (neste sentido cf acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, de 04/23/2013, no processo 5902/09.6TBALM.L1.S1).
Enfim, quer a lei francesa, quer a portuguesa, exigem que a seguradora que procura o benefício da sub-rogação legal justifique o pagamento efetuado com base numa obrigação assumida ou um interesse relevante, devendo, pois, entre o mais, quando se funda no co de seguro, apresentá-lo (ou pelo menos a respetiva apólice), porque tem que justificar que a compensação era devida contratualmente.
Com efeito, embora o objetivo da sub-rogação em geral seja compensar o terceiro que pagou obrigação alheia e estimular o cumprimento de dívidas alheias, quando se funda diretamente na lei (não é apenas convencional) a concessão do favor subrogationis, em detrimento do devedor, exige que o terceiro tenha interesse direto na satisfação do crédito, que tenha um interesse tutelado no cumprimento da prestação doutro e só assim, ao realizá-la, fica sub-rogado legalmente nos direitos que o credor tinha contra o devedor, porquanto, apesar de ter demonstrado que pagou indemnizações ao seu segurado, alegando coberturas facultativas do contrato de seguro entre ambos celebrado, não demonstrou tais cláusulas, não se podendo aferir da sua existência. Não se podendo descortinar se o pagamento tinha um interesse jurídico que o justificasse (e não foi feito por erro, caso em que, no direito português, se descortinaria o funcionamento da repetição do indevido, nos termos do artigo 476º do Código Civil), não permite o citado artigo L 121.12 do Code des Assurances que se possa considerar que se deu a transmissão da obrigação nos termos pretendidos pelo Recorrente.
Enfim, a pretensão da Autora não pode proceder, embora por motivos diferentes dos assumidos na sentença.

V- Decisão

Por todo o exposto, apesar de se alterar a matéria de facto provada, julga-se a presente apelação improcedente e mantém-se a decisão recorrida.
Custas pelo apelante (artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil)
Guimarães, 9 de julho de 2020

Sandra Melo
Conceição Sampaio
Fernanda Proença Fernandes