Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
157/17.1T9VCT.G1
Relator: TERESA COIMBRA
Descritores: BURLA QUALIFICADA TENTADA
SEGURADORA
CONSTITUIÇÃO DE ASSISTENTE
REPRESENTAÇÃO SOCIEDADE EM JULGAMENTO
PENA DE ADMOESTAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. A circunstância de uma Companhia de Seguros não ter chegado a ser lesada, não é impeditiva da sua constituição como assistente num processo instaurado por crime de burla qualificada na forma tentada, de que foi alvo.

2. A falta de assinatura de um dos dois gerentes de uma sociedade, no termo da sua constituição como arguida e, bem assim, a ausência no julgamento, em representação da sociedade, por parte de um deles, não constituem as nulidades insanáveis previstas, respetivamente, nas alíneas d) e c) do art. 119º do Código de Processo Penal (CPP).

3. Durante um processo, o grau de exigência na avaliação das aquisições em matéria factual é diferente - para que se dê início a um inquérito basta a notícia de um crime (art. 262º do CPP); para que haja acusação são necessários indícios suficientes da verificação de um crime e de quem foi o seu agente (art. 283º do CPP); para que haja pronúncia com sujeição a julgamento é necessária a recolha de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (art. 308º nº 1 do CPP); para que alguém seja condenado é necessário que haja prova segura de que praticou um crime - pelo que um processo, que se pode iniciar num estado de dúvida, tem de terminar, no caso de condenação, com um juízo de certeza. Por isso, uma acusação não é equiparável a uma sentença, nem pode ser usado em inquérito o princípio in dubio pro reo, como o pode/deve ser após o julgamento.

4. O princípio in dubio pro reo é um corolário do princípio da presunção de inocência, isto é, uma consequência, um resultado, uma decorrência deste, mas, após o julgamento, o tribunal só pode/deve fazer uso daquele princípio se ficar com dúvidas sobre a realidade dos factos.

5. A introdução do art. 206º no Código Penal não alterou a natureza pública dos crimes a que é aplicável, nem acarretou a suscetibilidade de se prescindir do princípio da oficialidade, quanto a tais crimes.

6. Quando alguém presta um depoimento falso junto de autoridade policial com o objetivo de participar a ocorrência de um crime que não existiu, o crime de falsidade de testemunho aparece como crime meio, como crime instrumental, para o cometimento do crime fim, o crime de simulação de crime.

7. Perante uma relação de consunção em que o crime de simulação de crime absorve o de falsidade de testemunho, não pode o autor ser punido por concurso real de infrações.

8. A pena de admoestação (art. 90º-C do Código Penal) prevista para as pessoas coletivas, não é uma pena principal, mas de substituição, que está prevista, à semelhança do que ocorre com as pessoas físicas (artigo 60º do Código Penal), para os ilícitos de reduzida gravidade.

9. Não sendo a pessoa coletiva capaz de arrependimento, nem de reflexão porque “não sente, não compreende, nem quer”, a admoestação só deve ser aplicada quando possa ser transmitida a quem tenha influência na condução dos destinos da sociedade e compreenda a necessidade de inverter o rumo que levou à punição, o que não acontece quando a pessoa coletiva já deixou de ter atividade, passando os ativos para outra sociedade, depois da ocorrência dos factos ilícitos por que foi condenada.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães.

I.
No processo que, com o nº 157/17.1T9VCT, corre termos no juízo de competência genérica de Monção, foi decidido (transcrição):

a) Condenar o arguido A. F., pela prática de um crime de burla qualificada, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 217º, nº 1 e 218º, nºs 1 e 2, alínea), 22º, 23º, nºs 1 e 2 e 73º, todos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão, suspensa na sua execução por igual período;
b) Condenar o arguido A. F. pela prática de dois crimes de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nº 1 do CP, na pena de 100 (cem) dias de multa, cada um;
c) Condenar o arguido A. F. pela prática de um crime de falsidade de testemunho, p. e p. pelo art. 360º, nºs 1 e 3 do CP, na pena de 200 (duzentos) dias de multa;
d) Condenar o arguido A. F. pela prática de um crime de simulação de crime, p. e p. pelo art. 366º, nº 1 do CP, na pena de 60 (sessenta) dias de multa;
e) Em cúmulo jurídico das penas parcelares referidas em b) a d), condenar o arguido A. F. na pena única de 380 (trezentos e oitenta) dias de multa, à razão diária de € 7,50 (sete euros e cinquenta cêntimos), perfazendo um total de € 2.850,00 (dois mil oitocentos e cinquenta euros);
f) Condenar a arguida Peixe ..., Lda., pela prática de um de burla qualificada na forma tentada, punido pelos artigos 217º, nº 1 e 218º, nºs 1 e 2, alínea), 22º, 23º, nºs 1 e 2, 73º e 11º, nº 2, a), todos do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 110,00 (cento e dez euros), perfazendo um total de € 6.600,00 (seis mil e seiscentos euros);
g) Mais se condenam os arguidos nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC’s cada, atento o número de sessões de julgamento (arts. 513º e 514º, nº 1 do C.P.P. e artº. 8º, nº 5 do Regulamento das Custas Processuais).

Inconformados, recorreram os arguidos Peixe ... – Comércio de Produtos Alimentares, Lda e A. F. concluindo os seus recursos do seguinte modo (transcrição)

- Conclusões da arguida Peixe ..., Lda:

1. Sobre a matéria de facto, o cerne da impugnação que se faz da decisão condenatória do Tribunal a quo prende-se com o facto de se ter dado como provada a matéria de facto descrita nos itens 18) à 23) supra enunciados, quando devê-la-ia ter dado como “não provada”.
2. Ora, das declarações e depoimentos gravados e prestados em audiência de julgamento, não existe matéria de facto suficiente e não resultou provado que, nas circunstâncias de tempo e de lugar apuradas, a arguida tenha praticado o crime pelo qual vem condenada, ainda na forma tentada.
3. A arguida vê-se deveras surpreendido que tal não tenha sido a decisão do Tribunal a quo, que, quanto à factualidade descrita em 18) à 23) da sua fundamentação, refere ter firmado a sua convicção condenatória pelos depoimentos das testemunhas A. R. – sócio gerente da sociedade arguida, A. P. e V. P., trabalhadores da assistente.
4. Em nosso modestíssimo ver, não existiu qualquer crime cometido pela sociedade arguida, tendo sido a mesma vítima do assalto denunciado. As regras da experiência comum e do devir natural impunham que assim se decidisse.
5. A imputação do crime fundamentou-se em meras suposições e pareceres pessoais, sem quaisquer diligências encetadas para procurar os verdadeiros autores do crime de furto.
6. Atentas as conclusões precedentes, há, in casu, portanto, um erro notório na apreciação da prova, nos termos da al.c) do n.º do artigo 410.º do Código de Processo Penal, relativamente aos itens 18) à 23) da fundamentação da decisão em crise. Por conseguinte, as concretas especificações da prova trazidas à colação pelo ora recorrente têm virtualidade para impor decisão diversa da recorrida.
7. Ademais, a arguida não compreende que o Tribunal a quo, valorizando especialmente a credibilidade e a narrativa da testemunha A. R., não tendo levantado qualquer suspeição quanto à responsabilidade do mesmo nos factos.
8. Assim como, a arguida não compreende que o Tribunal a quo, perante os documentos dos autos, em conjugação com os depoimentos das testemunhas A. R. e J. G., não relevou a nulidade insanável referido no artigo 119º do C.P.P, assim como, a violação do artigo 11º, n.º 2 e 4 do C.P, e, do Despacho do PGR n.º1/2011 de 10-10-2011 (revogando a Circular n.º1/09 de 19-01-2009).
9. A decisão do Tribunal a quo surpreende-nos ainda mais por não ter tido em consideração, no momento da decisão, o princípio da presunção de inocência e da dúvida razoável (in dúbio pro reo).
10. Acrescentando que, em nosso modestíssimo entender, existe um erro na determinação da medida da pena, com a violação dos artigos 40º, n.ºs1 e 2 e, 71º ambos do C.P;
11. Sendo que, a pena aplicada a arguida, atento a situação económica da mesma, releva-se totalmente inadequada, desproporcionada e em contradição com às exigências preventivas que o caso requer.

Em conformidade com as conclusões expostas e o douto suprimento de V.as Ex.as, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a douta sentença recorrida, substituindo-a por uma outra que, alterando a matéria de facto dada como provada, absolva a arguida do crime de burla qualificada, na forma tentada.
Como é de inteira e sã JUSTIÇA.
*

- Conclusões de recurso do arguido A. F.:

A – Logo no início do inquérito, donde foi extraída certidão para o prosseguimento do segundo inquérito, existiam suspeitas, porém prosseguiram os autos, do prévio inquérito, durante dois anos sem a constituição de arguido de quem quer que fosse, violando os direitos de garantia de defesa consagrados no Art.º 32º, da C.R.P..
B – O inquérito é arquivado, mas por dúvidas e tendo em atenção eventuais crimes apontados pela seguradora (não sabemos onde), que na conclusão do relatório de peritagem apresentado, apenas refere:

“A elaboração, embora precipitada, do presente relatório de peritagem tem como objetivo permitir à seguradora disponibilizar informação ao Ministério Público do Tribunal Judicial de Monção, no sentido de possibilitar a realização de diligências por parte das autoridades, principalmente junto do fornecedor, do Segurado, “Y” (fls. 175).
Não refere quaisquer indícios de crimes praticados pelo recorrente e outros, nomeadamente de burla qualificada e simulação de crime.
C – Por dúvidas, o M.P. remete certidão do inquérito arquivado, para que se proceda a novo inquérito, que iniciou os presentes autos.
D – Com absoluta violação do princípio “in dúbio pro reo” ferindo de morte o princípio de presunção de inocência, devendo, tal ato ser considerado nulo, nos termos da al. c), do n.º 1, do Art.º 379º, do C.P.P., anulando-se, assim, todo o processado posterior.

Sem prescindir,

E – No inquérito dos presentes autos, de acordo com a certidão registral da sociedade arguida, a mesma, obriga-se com a intervenção de ambos os gerentes, verifica-se a falta de constituição da sociedade, como arguida, pois não foi constituída com a intervenção dos dois gerentes.
F- Tal facto foi alvo de reparo, assinalando-se tal falta, no início da audiência de julgamento, porém, o julgamento prossegue, sem tal requisito, ou seja, com a ausência da arguida, pois não estava devidamente representada, nem constituída, além de gerar a falta de inquérito, a ausência na audiência de julgamento, da arguida, constitui nulidade insanável, nos termos da al. c), do Art.º 119º, do C.P.P.
G- Analisada a acusação que foi levada a julgamento, da mesma, não constam factos objetivos e concretos mas só conclusivos e subjetivos, que indiciem a prática dos crimes nelaconstantes, pelo recorrente e sociedade arguida, de falsidade de testemunho, simulação de crime e burla qualificada, na forma tentada, e que, decorrida a audiência de julgamento, sem qualquer alteração ou inclusão de factos novos, o recorrente e a sociedade arguidos foram condenados, como consta da sentença recorrida.
H – Como prescreve a al. b), do n.º 3, do Art.º 283º, do C.P.P. e estrutura acusatória que é exigida, no referido Código, onde vigora o princípio da imediação e do contraditório, faltando os factos-base, ou indícios, periféricos dos factos a provar ou inter- relacionados com os factos que racionalmente se possam inferir para conduzir à prova da prática dos crimes de falso testemunho, simulação de crime e burla qualificada, na forma tentada.
I. Quanto à burla qualificada na forma tentada, não consta da acusação, factos concretos e objetivos, ou outros que tenham, tentado praticar, o recorrente e sociedade arguida, que revelassem astúcia para induzirem, em erro ou engano, outrem.
J – Relativamente à falsidade de testemunho, não constam, da acusação, factos relativamente à inexistência de furto ou roubo, ou que factos concretos e objetivos que inferissem a inexistência ou simulação do furto ou roubo, que provassem indiretamente que o recorrente, quando prestou os depoimentos sabia bem estar a faltar à verdade.
K – Atendendo ao princípio do acusatório que deve presidir ao nosso processo penal, tal omissão factual na acusação, viola os princípios da certeza e da suficiência e da confiança e lealdade em sede processual penal, consagrados nos artigos 283º, n.º 3, al. b) e 308º, ambos do C.P.P., com a consequente inviabilização do direito de defesa do arguido e do contraditório, violação, esta, cominada de nulidade processual.
L – Quando do despacho previsto no Art.º 311º, do C.P.C., o Juiz, no saneamento do processo e apreciando a acusação, com as nulidadees supra elencadas, teria de fazer um juízo sobre a suficiência ou insuficiência de indícios que sustentam a acusação proferida explicitando de modo claro e taxativo, os quatro motivos que podem levar à conclusão de se estar perante acusação manifestamente infundada ( Art. 311 nº 3, do C.P.P.).
M – Tal solução não tendo sido acolhida, os autos prosseguiram, indevidamente, para julgamento, gerando uma condena ação por factos não descritos na acusação, o que resulta na nulidade da sentença recorrida nos termos da al. b), do n.º 1, do Art.º 379º, do C.P.P..
N – Os factos dados como provados, na sentença recorrida, nos pontos 1. a 14., 16. e 17., correspondem à verdade, sendo expressão do puro exercício de um direito, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva, consagrado no Art.º 20º, da Constituição da República Portuguesa.
O – O que se dá como provado em 15. é um juízo subjetivo e conclusivo da companhia seguradora X (ou seus empregados) e não do Tribunal, pois não há factos concretos donde se poderá inferir a prova de tais factos. Sendo o Tribunal arrastado por tais conclusões, pelo que deve ser dado como não provado.
P – Há uma credibilidade nos depoimentos dos funcionários da seguradora X, por parte do Tribunal, de forma exagerada e, tal, provoca um afastamento de todas as outras testemunhas que querem e fizeram o seu depoimento de acordo com a verdade material.
Q – O depoimento da A. P., feito em 11/09/2018, com início às 16:32:52 e fim às 17:02:32 horas, gravado no sistema digital em uso no Tribunal recorrido, vai em sentido totalmente contrário ao relatório de peritagem que fez e que está junto aos autos de fls. 143 e segs..
R – Diz não lhe ter sido entregue inventário das existências pós-furto, que o furto foi simulado através de umas guias de transporte da Y, que vem repor aquilo que dizem roubado, porém no próprio relatório de peritagem, que já tinha elaborado e se encontra a fls. 143 e segs. dos autos, aqui refere que se verifica “a inventariação da mercadoria remanescente efetuada após a ocorrência participada.”. Acabando por admitir o furto, em tal relatório, onde se refere:

“A título meramente condicional, somos a considerar como potencial prejuízo o valor de 60.026,01 determinado com base nos documentos contabilísticos”.

S – Afinal houve furto ou roubo e prejuízo, apenas se põe em questão o montante, o que é de foro cível.
T – Sobre as guias de transporte da Y, sobre a regularização fiscal, por parte da emitente, é bom ter em conta o que consta dos autos, a fls. 209 e segs.. Sem outras considerações.
U– O Tribunal considerou claro, escorreito e de conhecimentos técnicos de contabilidade, os depoimentos da referida A. P., anteriormente, analisado o seu depoimento e o da testemunha, também funcionário da seguradora X, V. P., que prestou depoimento em 01/10/2018, com início às 10:19:38 e fim às 10:46:07 horas, gravado no sistema digital em uso no Tribunal recorrido, analisando o documento de fls. 401 e segs., entregue nos autos e admitida a sua função sem a fundamentação exigida por lei, Art.º 340º, n.º 1, do C.P.P., corroborou o depoimento da colega A. P., com um depoimento nada objetivo e fundamentado, falando em linguagem não corrente, mesmo em termos contabilísticos, como seja, em “limpeza de stock ou limpeza de escrita”, o que não se entende, mas que, o Tribunal recorrido, achou claro.
V– A contabilidade da sociedade arguida é organizada e com transparência fiscal, sendo de responsabilidade fiscal, quer a sociedade quer o TOC que elabora a escrituração contabilística fiscal e legal.
W – Analisando de forma singela o documento que a testemunha V. P. diz ter elaborado e que consta de fls. 401 e segs., podemos analisar a nível de quantidades o seguinte:

a) Somando as existências finais de 2013 (17.117,60 kg) com as quantidades adquiridas até 27/11/2014 (45.676,88 kg) dava a quantidade de 62.794,48 kg;
b) Na resposta ao quesito 7, quantidades realizadas em 2014, tomando para efeitos de cálculo de existências à data de 27/11/2014, dá a quantidade de 108.417,28 kg;
c) Resultando um acréscimo em relação ao indicado na alínea a), de 45.622,80 kg;
d) Como chegar a esta quantidade? Mais de 45 toneladas!…
e) Depois, na resposta ao quesito 8, afirmam que, em termos médios, existiriam, na mesma data, 24.954,73 kg;
f) Mas, a lógica e clareza continuam, e na resposta ao quesito 11, aparece um quadro, em que as existências em 27/11/2014, eram negativas (?!), menos 12.805,57 kg.
Em que ficamos?! O que é claro, lógico e razoável?

Evidencia o modo como o Tribunal recorrido analisou a prova.

W – Também afirma não existir inventário das existências pós-furto. Ora, tal é bem expresso no “Apanhado Geral dos Valores Apurados”, que é do conhecimento, da testemunha e da seguradora para quem trabalha e junto aos autos. Na penúltima coluna, de tal “Apanhado Geral”, onde constam as existências, pós-roubo, onde se pode ver a quantidade total de 4.872,08 kg e valor de €: 32.194,45.
Y – É esta a inverdade que paira em todo o processo e que é admitida pelo julgador como verdade absoluta.
Z - Os peritos em parte alguma concluíram pela inexistência de furto, como afirma, descaradamente, a testemunha V. P..
AA – Para um apuramento, mais acertado, do que o adquirido pelo Tribunal recorrido, devem comparar-se os depoimentos da testemunha V. P. (TOC), com o depoimento da testemunham não acreditada, pelo Tribunal recorrido, TOC, da sociedade arguida, Dr. N. M., que prestou o seu depoimento em 11/10/2018, com início às 14:24:02 e fim às 15:14:50, gravado no sistema digital em uso no Tribunal recorrido, para uma visão global sobre a verdade expressa nos documentos citados, em que se verifica, indubitavelmente, que houve subtração de mercadorias (furto ou roubo) no armazém da sociedade arguida, Peixe ..., Lda..
BB – Os GNR ligados ao núcleo de investigação criminal (NIC) de Valença, em vez de perseguir os autores do roubo apresentado, foi-lhe mais fácil optar pela teoria da simulação de furto.
CC – Além de confusas e hipotéticas causas do furto, optaram pelas mais fáceis, contribuindo para que o Tribunal recorrido ficasse convencido, mesmo sem indicação de factos concretos e objetivos que inferissem, no mínimo, factos praticados pelo recorrente que configurassem a inexistência ou simulação de furto ou roubo.
DD – Daí, o Tribunal ter incorrido em erro de apreciação da prova, além de desrespeitar a estrutura acusatória do processo, dando por provados os factos dos pontos 15. e 18.
EE – Tais factos deviam ser dados como não provados e, assim, absolvidos os arguidos.
FF – Não houve apuramento, no julgamento, de factos novos que resultassem, numa alteração dos constantes na acusação.
GG – Ao dar como provados os factos dos pontos 15. e 18. a 23., o Tribunal recorrido violou entre outros, o princípio da livre apreciação da prova consagrado, no Art.º 127º, do C.P.P..
HH – Violou, ainda, o disposto no Art.º 355º, n.º 1, do C.P.P..
II – Em suma, não foram atendidos os princípios da presunção de inocência e “in dúbio pro reo”, decorrente da dúvida que a produção de prova e documentos trazem ao julgamento.
KK – O crime de burla qualificada, na forma tentada, atendendo a uma interpretação mais favorável ao arguido, do Art.º 206º, n.º 1, do C.P.P., após a reforma de 2007, dever-se-ia ter como dependente de queixa e, assim, com tal interpretação, dar-se como extinto o procedimento criminal em relação a tal crime.
LL – A simulação do crime de furto, no caso concreto, consome o crime de falso testemunho, devendo a penalização, a existir, ficar pela aplicação de pena relativa à simulação de furto ou roubo, não existindo crimes autónomos ou continuados.
MM – Por último, caso não sejam absolvidos os arguidos, no que respeita à sociedade arguida, sendo o recorrente sócio gerente, pretende concluir pela errada condenação na aplicação, à sociedade, da pena de multa, quando o Tribunal recorrido, devia, atendendo à situação, aplicar o disposto no Art.º 90º - C, do Código Penal, ficando-se pela pena de admoestação da mesma.

Em conformidade com as conclusões e o supra alegado e o douto suprimento de Vossas Excelências, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, revogar-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra que, alterando a matéria de facto, como supra se alega e conclui, nessa parte, absolva o recorrente e a sociedade arguida,
Fazendo-se, assim, Justiça.
*
Já anteriormente, no decorrer do processo, durante a sessão da audiência de julgamento do dia 11/09/2018, havia sido proferida decisão de qual foi interposto um recurso intercalar. A decisão recorrida foi do seguinte teor:

As nulidades estão expressamente consagradas e previstas no Código de Processo Penal nos arts.º 118º e ss e, nessa medida, existem nulidades insanáveis e nulidades dependentes de arguição. Estas últimas têm prazos, prazos esses, que desde já se adianta, não foram respeitados neste requerimento junto aos autos pelo arguido.

Começando pela questão do despacho que admitiu a constituição de assistente da X Companhia de Seguros S.A., compulsados os autos, constata-se que assiste inteira razão ao arguido, uma vez que este despacho foi efetivamente prematuro. O arguido foi notificado para se pronunciar em 10 dias, os 10 dias terminavam no dia 12 de Julho, como bem o arguido indica, e o tribunal pronunciou-se, por lapso da signatária (lapso do qual desde já nos penitenciamos), no dia 6 de Julho.

Portanto não foi de facto respeitado tal prazo. Contudo, este despacho não está ferido de nulidade. Trata-se de uma irregularidade, irregularidade esta do art. 123º, nº 2 do C.P. Penal, que nos termos do n. 2 do mesmo preceito legal pode ser reparada. E nessa medida, o tribunal dá sem efeito o tal despacho, por ter sido prematuro e não ter tido em consideração a pronúncia do arguido.

Neste momento, já temos a pronúncia dos arguidos, já foram ambos notificados, existe a pronúncia do arguido A. F., que se encontra junta aos autos e relativamente à não admissão da X como assistente, resta dizer que os crimes em causa nos autos são todos eles de natureza pública, portanto não dependem de queixa.

Se atentarmos à acusação pública que se encontra junta aos autos, vemos que estão em causa crimes de burla qualificada, de falsidade de testemunho e de simulação de crime. Os crimes de falsidade de testemunho e de simulação de crime têm como bem jurídico protegido, a tutela da realização da justiça. São crimes de natureza pública. E o de burla qualificada também é um crime de natureza pública, pese embora seja na forma tentada. Portanto, há vasta jurisprudência sobre a matéria, nem sequer se trata de uma questão controvertida e, nessa medida, os crimes de natureza pública não dependem de queixa, motivo pelo qual, de acordo com o disposto no art.º 68º, n. 1 , al. a) do C.P. Penal, podem constituir-se assistentes no processo penal, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a criminação. E, neste caso, relativamente ao crime de burla qualificada, dúvidas não restam de que a X, olhando para o teor da acusação pública, trata-se de ofendida no processo e nessa medida este requerimento de constituição de assistente, tendo em consideração ainda o disposto no n.º 3 do mesmo preceito legal é um requerimento tempestivo, pelo que neste momento admite-se o requerimento de constituição de assistente da X Companhia de Seguros S.A., por legal e tempestivo.

(...)
No que toca à admissão do documento, ele foi junto aos autos numa fase prematura, e também por lapso da signatária, foram notificados todos os intervenientes processuais para se pronunciarem sobre honorários de peritos, quando não atentámos que tal relatório pericial não dizia respeito a estes autos, mas sim a uns autos de natureza cível, motivo pelo qual aquele despacho também foi desprovido de sentido.

Aquela junção de documento foi prematura portanto. Ordenamos o desentranhamento do documento, relegando para uma fase posterior, caso o ilustre mandatário aqui presente pretenda depois a junção do documento, logo será apreciado após a pronúncia de todos os presentes.

No que toca às restantes nulidades arguidas e que dizem respeito, no fundo, ao processo todo, de acordo com o requerimento que foi junto aos autos, conforme já tivemos oportunidade de dizer, as nulidades estão tipificadas na lei e têm prazos para serem arguidas, e nessa medida, embora não consigamos descortinar ao certo qual a nulidade que o arguido invoca, parece-nos que, ainda olhando para o art.º 120º, n,º 2, al. d) do CPP, se possa enquadrar de algum modo numa omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade, a falta de constituição de uma pessoa como arguido, embora também tenhamos alguma dificuldade em enquadrar nesta nulidade, se tivermos em consideração o teor dos arts. 119º e 120º, constata-se dos autos que o despacho que encerrou o inquérito e proferiu a acusação, foi notificado aos arguidos em Março de 2018. Portanto, tais nulidades têm de ser invocadas até 5 dias após a notificação do despacho que tiver encerrado o inquérito.

Resta dizer que ainda que assim não se entendesse, o tribunal não considera ter existido aqui qualquer nulidade do inquérito, uma vez que os factos tais como estão descritos na acusação, reportam-se ao Sr. A. F. e à Sociedade Peixe ... e não a qualquer outra pessoa. Portanto, o Mº. Pº. não está obrigado a acusar todos os sócios da sociedade em causa, motivo pelo qual se indefere o requerido.
Resta, ainda dizer, que o Mº.Pº. obviamente, tem legitimidade para este procedimento criminal, uma vez que estamos perante crimes de natureza pública.
Notifique.
(...)

Não se conformando também com o despacho que admitiu a constituição como assistente da Companhia de Seguros X veio o arguido, na sequência do recurso interposto a apresentar motivação e, posteriormente, após convite, as seguintes conclusões (transcrição) :

A - Na fase de julgamento é requerida a constituição, como assistente, nos autos, da X Companhia de Seguros, S.A., sobre que recaiu despacho de que se recorre, no sentido do deferimento de tal requerimento.
B - Nos termos do Art.° 68°, do C. P. Penal só podem constituir-se assistentes os ofendidos, ou seja, os titulares dos interesses que a lei quis proteger com a incriminação.
C - A Seguradora constituída assistente, jamais apresentou queixa sobre o que quer que seja em relação ao arguido, durante o inquérito, ou antes, e nunca o arguido solicitou, para si, qualquer pagamento.
D - Da acusação apenas é acusado, o arguido, de burla qualificada, na forma tentada, o que, mesmo assim, não se admite.
E - A Seguradora constituída assistente não foi, por isso, lesada por não se verificar prejuízo patrimonial, nem pelo arguido/recorrente, nem pela sociedade Peixe ..., Lda..
F - A Seguradora não poderá, por isso, ser considerada ofendida.
G - O despacho da constituição de assistente, violou, entre outros, o disposto na al. a), do n.° 1, do Art.º 68°, do C. P. Penal.

Termos em que,
Revogando-se o despacho recorrido e dando sem efeito, todos os atos praticados pela assistente X,
Farão, Vossas Excelências,
Justiça.

No que respeita ao recurso interposto na ata de audiência de julgamento de 11/09/2018 através do requerimento do seguinte teor: “recorrer ainda, do despacho sobre a falta de constituição de arguido do sócio gerente A. R., atendendo a que a acusação deveria acusando a sociedade, constituir todos os representantes da sociedade, de acordo até com a circular 1/2009 do Procurador-Geral da República Pinto Monteiro”, não mais o recorrente apresentou qualquer motivação ou conclusões, no recurso intercalar, embora tal questão venha a ser abordada nos recursos da decisão final.
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A assistente e o Ministério Público na Primeira Instância pronunciaram-se pela manutenção da sentença recorrida.
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Idêntico parecer veio a ser emitido pelo Ministério Público junto desta Relação.
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Foi cumprido o artigo 417º, nº 2 do CPP.
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Após os vistos, prosseguiram os autos para conferência.

II.
Cumpre apreciar e decidir tendo em conta que é pelas conclusões dos recursos que se define o âmbito destes, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Analisando, então, as sínteses conclusivas, temos que a este Tribunal é pedido que aprecie:

- No recurso interlocutório, a validade de admissão como assistente da X Companhia de Seguros, SA.

Nos recursos da sentença final, a arguida Peixe ..., Lda pretende a apreciação:

-Da matéria de facto provada constante dos pontos 18 a 23 que entende dever ser julgada não provada, por padecer de erro notório;
-Da nulidade insanável, nos termos do artigo 119º, alínea d) do Código de Processo Penal, decorrente da falta de inquérito em relação ao sócio A. R., em conjugação com a violação do artigo 11º, nºs 2 e 4 do Código Penal e do despacho do PGR nº 1/2011 de 10/10/2011;
- Da violação do princípio in dubio pro reo; e
- Do erro na determinação da medida da pena.
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De acordo com as conclusões que apresentou, o arguido A. F. traz à apreciação deste tribunal as seguintes questões:

- Violação do princípio in dubio pro reo na fase de inquérito e nulidade do processo desde o arquivamento de fls 240.
- Nulidade insanável (artigo 119º c) do CPP);
- Nulidade por violação da alínea b) do nº 3 do artigo 283º do CPP e 308º do CPP e, consequentemente, violação dos direitos de defesa e do contraditório por parte do arguido.
- Nulidade da sentença (artigo 379º, nº 1, alínea b) do CPP) por condenação por factos não descritos na acusação.
- Errada apreciação da prova quanto aos pontos 15 e 18 a 23 da matéria de facto por violação do princípio de livre apreciação da prova (artigo 127º do CPP) e do disposto no artigo 355º do CPP e ainda dos princípios de presunção de inocência e in dubio pro reo.
- Inexistência de queixa e natureza do crime de burla qualificada na forma tentada, em conjugação com o art. 206º do Código Penal.
- A errada autonomização do crime de falso testemunho relativamente ao de simulação do crime.
- Errada aplicação da pena relativamente à sociedade arguida (por dever ser punida apenas com admoestação).
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E a seguinte a matéria de facto fixada em primeira instância e respetiva motivação:

1. A sociedade “Peixe ..., Lda” foi constituída em .. de .. de 1991, tendo como objecto social “Comércio de compra e venda de peixe e produtos alimentares, sua importação e exportação”;
2. O arguido A. F. sempre foi gerente da mesma;
3. No dia 28 de Novembro de 2014, pelas 9h00, a solicitação do arguido A. F., a esposa deste, L. C., deu conhecimento a militares da GNR do posto de Monção que o armazém pertencente à arguida “Peixe ..., Lda.”, sito no lugar de ..., ..., Monção, tinha sido alvo de um assalto;
4. Na sequência de tal comunicação, uma patrulha da GNR, constituída pelos militares J. P., Cabo nº ... e J. M., Guarda Principal nº ..., deslocou-se na mesma data, durante a manhã, ao referido armazém, onde encontrou L. C., a qual informou os referidos militares que o armazém teria sido assaltado entre as 19h00 do dia 27/11/2014 e as 08h45m do dia 28/11/2014, hora a que se deslocou para a zona do armazém para pegar na sua viatura pessoal para se deslocar para o seu trabalho, tendo então verificado que o portão do armazém tinha sido arrombado e aberto, que no interior as portas das câmaras frigoríficas se encontravam abertas e que faltava uma viatura da arguida “Peixe ..., Lda.”, marca Ford, modelo Transit, ligeira de mercadorias, matrícula XX;
5. No mesmo dia 28, durante a tarde, os mencionados militares da GNR do posto de Monção contactaram telefonicamente o arguido A. F., o qual reiterou que o armazém da arguida “Peixe ..., Lda.” tinha sido assaltado, tendo os autores do assaltado retirado daquele armazém diversos artigos em quantidades e valores que ainda não podia indicar, comprometendo-se a apresentar mais tarde, após efectuar inventário, uma relação com tais artigos e respectivos valores;
6. O arguido A. F. mais informou na mesma ocasião que a arguida “Peixe ..., Lda.” tinha celebrado contrato de seguro com a companhia de seguros “X”, que cobria os riscos de furto, contrato titulado pela apólice nº ..., Multirriscos Negócios;
7. O militar da GNR J. P. elaborou a participação de fl. 4 e 5 destes autos, na qual descreveu tudo o que de relevante o que tinha sido transmitido e que tinha sido verificado pela patrulha que comandou nas circunstâncias referidas nos números anteriores;
8. Tal auto de notícia foi apresentado nos serviços do Ministério Público de Monção em 5 de Dezembro de 2014 e aí, por despacho de magistrada do Ministério Público, registado, distribuído e autuado, como inquérito, sob o nº 436/14.0GAMNC;
9. Em 31 de Dezembro de 2014, o arguido A. F., intitulando-se ofendido nos autos do referido inquérito, solicitou à Senhora Procuradora-Adjunta titular do processo se dignasse “mandar passar certidão do auto de notícia a fim de entregar na Companhia de Seguros;
10. Em 12 de Fevereiro de 2015, através de ilustre mandatário, o arguido A. F., na qualidade de sócio-gerente de “Peixe ..., Lda.”, manifestou “o propósito de no processo deduzir pedido de indemnização”;
11. Após 28 de Novembro de 2014 e antes de 5 de Janeiro de 2015, o arguido A. F., na qualidade de legal representante da arguida “Peixe ..., Lda.” fez juntar ao inquérito relação dos artigos supostamente subtraídos do armazém da referida sociedade durante a noite de 27/11/2014 para dia 28/11/2014, que totalizava, segundo o arguido, € 63.432,28;
12. Em 5 de Janeiro de 2015, pelas 9h30m, o arguido A. F. foi inquirido, então na qualidade de ofendido, no âmbito do inquérito 436/14.0GAMNC, por C. M., militar da GNR de Monção, órgão de polícia criminal que, por delegação do Ministério Público, procedia a investigação, tendo confirmado a ocorrência do alegado assalto ao armazém da arguida “Peixe ..., Lda.”, dizendo, designadamente, “Que o furto ocorreu na noite de 27/28 de Novembro de 2014, entre as 21H00 e as 07H30, tendo os autores estroncado uma chapa do portão de acesso ao armazém, local por onde se introduziram no interior, e furtaram 15 paletes de bacalhau, com quatrocentas (400) caixas de bacalhau, umas de 25 kilos, e outras de 10 e 15 kilos, perfazendo um total de cerca de 9 toneladas, e ainda uma palete de bacalhau ultracongelado (postas com lombo), com peso de cerca de 600/700 kilos, no valor de cerca de € 5.400,00”, “que o portão de acesso ao parque se encontrava fechado à chave, tendo os autores danificado o batente da fechadura. O trinque da fechadura não apresentava qualquer dano, encontrando-se intacta. Os danos causados no portão de acesso ao parque e no portão de acesso ao armazém ascendem a cerca de € 900,00”, “que os autores causaram danos numa célula do alarme e numa lâmpada exterior, sendo o valor dos danos de € 180,00”, que os valores constantes do apanhado geral que fez juntar àquele inquérito “foram elaborados pelo depoente e pelo seu contabilista, confirmando que o valor total dos artigos furtados são 9.845.05 kilos, ascendendo a € 63.432,28” e “Que deseja procedimento criminal contra os autores, caso sejam identificados”;
13. O arguido A. F., na qualidade de legal representante da arguida “Peixe ..., Lda.”, participou, por escrito, à companhia de seguros “X” a ocorrência de um furto nas instalações da segurada “Peixe ..., Lda.”, sitas no lugar de ..., ..., Monção, supostamente ocorrido entre o dia 27 e o dia 28 de Novembro de 2014, reclamando daquela companhia o pagamento de € 64.328,48, a título de ressarcimento dos prejuízos sofridos com o alegado furto - participação datada de 12/12/2014, apresentada na agência da Caixa ... de Monção e enviada àquela companhia em 5 de Janeiro de 2015;
14. Em 17 de agosto de 2015, através do seu contabilista, o arguido A. F. corrigiu o valor reclamado em nome de “Peixe ..., Lda.”, alterando para € 68.601,15;
15. A companhia de seguros “X”, todavia, acabou por não ressarcir os arguidos nos termos por estes pretendidos, em virtude de ter concluído que os alegados assalto, danos e subtracção de mercadorias participados pelo arguido A. F., em nome da arguida “Peixe ..., Lda.”, não tinham realmente acontecido ou tinham sido provocados pelo próprio, não passando tudo de uma mera encenação do arguido A. F.;
16. Em 29 de Outubro de 2015, o arguido A. F. compareceu nos serviços do Ministério Público de Monção, participando ali em diligência de acareação, presidida por magistrada do Ministério Público, no âmbito do processo 436/14.0GAMNC, tendo dito então que mantinha as declarações que tinha em dia 5 de Janeiro de 2015 prestado perante militar da GNR, referidas em 12), e, “perante a discrepância havida à avaria ou não do alarme, esclareceu que aquando das suas declarações “se expressou mal”, pois que antes dos factos o alarme estava em pleno funcionamento e a referida avaria ocorreu quando dos factos”;
17. Em 29 de Novembro de 2016, pelas 11 horas, nos serviços do Ministério Público de Monção, o arguido A. F., novamente no âmbito do inquérito 436/14.0GAMNC, foi inquirido por magistrada do Ministério Público e, depois ter prestado o juramento previsto no art. 91º, nº 1, do C.P.P. – ou seja, depois de ter jurado, por sua honra, dizer toda a verdade e só a verdade – e de advertido de que estava obrigado a dizer toda a verdade e só a verdade sob pena de não o fazendo incorrer em crime punido com pena de prisão até cinco anos ou multa até 600 dias, disse, designadamente: “Confirma todo o teor das declarações por si prestadas e constantes dos autos. Declara que ainda não foi indemnizado pela companhia de seguros. Perguntado disse que o portão do armazém identificado a fls. 21 refere que está sempre fechado à noite. Relativamente ao alarme, referiu que a célula e a lâmpada exterior do alarme estavam queimadas segundo informação do electricista, motivo pelo qual aquele não foi accionado. Pensa que tal avaria foi provocada pelos autores do furto”;
18. O arguido A. F. denunciou (determinou outrem a denunciar) à GNR de Monção um crime de furto que sabia não ter acontecido, bem sabendo que, por força de denúncia, apresentada a órgão competente para a receber, seria instaurado, como foi, um processo de natureza criminal para investigação dos factos denunciados;
19. O arguido A. F. sabia, aquando da prestação de declarações, em 5 de Janeiro de 2015, perante militar da GNR, em 29 de Outubro de 2015 e 29 de Novembro de 2016, perante magistrada do Ministério Público, que estava obrigado a dizer a verdade e que, faltando à verdade, estava a incorrer na prática de crime, sendo a sua conduta de 29/11/2016 punida de forma mais severa - com pena de prisão até cinco anos ou multa até 600 dias -, porque precedida de juramento legal, conforme advertência que na ocasião lhe foi feita;
20. Não obstante, nas três ocasiões referidas em 18., o arguido A. F. mentiu, faltou à verdade, afirmando factos que sabia não terem ocorrido;
21. O arguido A. F. sabia ainda que, ao denunciar factos que não ocorreram, qualificados por lei como crime, e ao prestar declarações não conformes à realidade no processo criminal a que a sua denúncia deu origem, estava a causar prejuízo, como causou, à administração da Justiça, o que quis;
22. O arguido A. F., ao actuar da forma descrita em 3. a 6., 9. a 13., 16. e 17., quis ainda obter para a sua representada e para si próprio uma quantia em dinheiro - € 64.328,48 - a que sabia não ter direito, causando um prejuízo económico de igual montante à companhia de seguros “X”, o que só não alcançou por esta companhia, após várias diligências de averiguação do que teria sucedido, ter concluído que tudo não passaria de uma invenção do arguido A. F.;
23. O arguido A. F. sabia que todas as suas condutas acima descritas, que empreendeu de forma livre e voluntária, com o propósito de obter para si e para a sua representada, a arguida “Peixe ..., Lda.”, a final, benefício económico ilegítimo, eram contrárias ao direito e que o faziam incorrer na prática de crimes;

Mais se provou que:

24. O arguido A. F. é comerciante e aufere um salário mensal no valor de € 580,00;
25. Actualmente é gerente da sociedade comercial G. M., Lda., que funciona nas mesmas instalações da sociedade Peixe ..., Lda., tem o mesmo objecto social e foi aberta no início do ano de 2015;
26. Vive com a esposa, que é auxiliar de acção educativa e aufere um salário mensal no valor de € 640,00, em casa própria;
27. Não tem prestações creditícias;
28. Não tem veículos, mas é proprietário de seis prédios rústicos e de um prédio urbano;
29. Tem o 6º ano de escolaridade;
30. O arguido A. F. é visto pelos seus conhecidos e amigos como uma pessoa séria, honesta, correcta, a quem nada têm a apontar;
31. Não regista antecedentes criminais;
32. A sociedade arguida encontra-se inactiva, apenas auferindo a renda mensal de € 180,00 que a sociedade G. M. lhe paga pelo gozo das instalações;
33. A sociedade arguida não tem trabalhadores ao seu serviço, não tem dívidas à Autoridade Tributária, nem à Segurança Social;
34. Não regista antecedentes criminais.

B - Factos não provados:

Com relevância para a decisão da causa, inexistem factos não provados.

C – Motivação da decisão de facto:

A convicção do Tribunal é sempre formada, para além dos dados objectivos obtidos através dos documentos ou outras provas produzidas de carácter técnico/científico, também por declarações e depoimentos em função das razões de ciência, das certezas e, ainda, das suas lacunas, contradições, imparcialidades, coincidências, coerências e quaisquer mais inverosimilhanças que transpareçam em audiência de julgamento. Dito de outra forma, o Tribunal estriba-se na análise de forma livre, crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, de acordo com o preceituado no art. 127º do Código de Processo Penal.

Contudo, livre apreciação da prova não significa uma apreciação arbitrária porquanto tem como pressupostos valorativos, o respeito pelos critérios de experiência comum e da lógica do homem médio.

De outra perspectiva, o Tribunal formou a sua convicção sobre o objecto dos presentes autos com base nos vários meios de prova produzidos e analisados em audiência de julgamento, designadamente:

a) nas declarações do arguido A. F., relativamente às suas condições económicas e pessoais;
b) nos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência de julgamento;
c) nos documentos juntos aos autos;
d) nos certificados dos registo criminal dos arguidos juntos aos autos a fls. 397 e 398.
Consistindo a motivação dos factos da sentença na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Tribunal – artigo ...º, nº 2 do CPP – mostra-se necessário, para além de enunciar os meios de prova, explicitar o processo de formação da convicção do julgador.

O arguido, num primeiro momento, remeteu-se ao silêncio.

Posteriormente, prestou declarações quanto às suas condições económicas e pessoais, e referiu, ainda, que o que consta da acusação pública é falso, pois não praticou tais factos. Adiantou que a sociedade arguida, à data dos factos, tinha um camião que lhe permitia transportar até nove mil toneladas (querendo dizer que o furto das mercadorias efectivamente ocorreu, pois era possível que um camião pesado fizesse as manobras naquele local e subisse a rampa lá existente, ao contrário do que foi aventado por algumas testemunhas em julgamento).
Em tribunal foi inquirida a testemunha A. R., que foi sócio da sociedade arguida.
A testemunha referiu ter um conhecimento pouco aprofundado dos factos porque se encontra ausente, à data. Ainda assim, referiu que o arguido A. F. lhe terá telefonado a dizer-lhe que foram assaltados e, nessa sequência, a testemunha dirigiu-se às instalações da sociedade arguida, tendo visto as portas abertas e tudo em desordem. A GNR telefonou à testemunha para saber de uma viatura da empresa que teria desaparecido e a testemunha, nessa sequência, perguntou ao arguido A. F. o que se passava, tendo o mesmo dito que a viatura foi levada para Espanha pelo Sr. S. C. (que trabalha para a sociedade arguida) para este fazer um serviço e este deixou-a lá porque teria ficado “atascada”.
Com relevo para a decisão da causa, referiu, ainda, que as chapas de ferro do portão do armazém, do lado esquerdo, encontravam-se descoladas; que existia um sistema de alarme com dois sensores de movimento ligados directamente à casa do arguido; que o arguido passou o stock da sociedade arguida no valor de € 50.000,00, para a empresa “G. M.”; que a carrinha que ficou em Espanha não tinha quaisquer problemas no fecho; e que no local – das instalações da sociedade arguida – é possível a subida de um camião de oito toneladas.
Ora, este depoimento foi relevante porque acabou por infirmar o depoimento da testemunha S. C., cunhado do arguido, e as próprias declarações finais do arguido, no sentido de que não terá praticado os factos dos quais vem acusado.

Vejamos.

A testemunha S. C. prestou um depoimento desonesto, desprovido de qualquer credibilidade, contrário às regras da experiência comum e claramente parcial.
Começou por dizer que nunca teve qualquer relação com a sociedade arguida, quando a testemunha anterior, cunhado do arguido A. F. e ex-sócio da sociedade arguida, referiu que a testemunha trabalha para a mesma sociedade.
Referiu, ainda, que adquiriu bacalhau à sociedade arguida como cliente e que à data dos factos, deslocou-se com o arguido A. F. para o Porto às 3h30m da madrugada, altura em que o filho do arguido lhe telefonou a contar-lhe da ocorrência do alegado furto à sociedade arguida.
Ora, desde logo se inicia a primeira incongruência que nos leva a concluir pela prática dos factos que constam da acusação, pois se consultarmos o auto de denúncia de fls. 4 e seguintes, constatamos que no dia 28.11.2014, a GNR foi às instalações da sociedade arguida devido ao alegado furto e os familiares do arguido transmitiram-lhe que se encontrava em falta uma viatura marca Ford, modelo Transit e que já teriam alertado o arguido de tal facto. Contudo, só quando foi contactado telefonicamente pelos referidos militares, é que o arguido veio dizer, que afinal a viatura não tinha sido furtada, mas levada para Espanha pela testemunha S. C..

Pois bem, se os seus familiares já o tinham alertado da falta da viatura, faz sentido que, sabendo o arguido que a mesma não tinha sido furtada, não esclarecesse logo a família de tal facto, ao invés de esperar que fosse denunciada à GNR a falta da viatura?

E faz algum sentido o depoimento da testemunha S. C., de que se terá enganado no caminho, em Espanha (sendo que se dirigia a um restaurante de um cliente seu, ao qual já tinha ido diversas vezes), e foi parar a viatura num descampado, sendo que por ter ficado atolada, abandonou-a de noite, com as chaves na ignição, tendo apanhado boleia de um senhor que não conhecia de parte alguma e que o trouxe a casa???
A resposta é claramente negativa, desde logo, porque, conforme referiu a testemunha A. R., a carrinha não tinha qualquer problema de fecho. Depois, porque a própria testemunha S. C. começou por dizer que não conhecia a pessoa que lhe deu boleia, mas mais à frente no seu depoimento, “deu o dito por não dito”, e referiu que afinal era um senhor de Melgaço que conhecia de vista, do qual não sabe o nome…

Por último, conforme daremos conta infra, as testemunhas militares da GNR que estiveram no local, referiram de forma clara e credível que a carrinha não estava atolada, nem teve que ser empurrada, tendo acrescentado que quando deram conta aos familiares do arguido que iriam visualizar as imagens de videovigilância da ponte internacional, que liga Portugal a Espanha, a versão dos factos foi imediatamente alterada, tendo a carrinha deixado de ser furtada e passado o Sr. S. C. a levá-la para Espanha (nas condições acima explanadas).

J. G., militar da GNR, prestou depoimento de forma clara, credível e desinteressada.
Explicou ter sido o próprio a deslocar-se ao local dos factos, em virtude da denúncia do crime de furto pelo telefone, e aí chegado, viu o armazém com o portão aberto. Encontravam-se no local o filho e a esposa do arguido A. F., e a testemunha A. R..
A esposa do arguido foi quem lhe transmitiu que a viatura tinha sido furtada.
Confrontado com o auto de notícia de fls. 4 e seguintes, deu explicações, tendo mencionado que só na parte da tarde do dia 28.11.2014, é que o arguido lhes transmitiu que a viatura não tinha sido furtada, mas sim levada para Espanha pela testemunha S. C..
J. S., militar da GNR, também prestou depoimento de forma clara e desinteressada, tendo confirmado o que visualizou no local e à data dos factos. Ao chegar ao armazém da sociedade arguida, viu as câmaras frigoríficas abertas e vazias e foi-lhes dito que teriam sido furtadas caixas de bacalhau e uma carrinha.
Para além disso, existia sistema de alarme e o mesmo não foi accionado.
Em tribunal foram inquiridas as testemunhas A. P. e V. P., que efectuaram uma peritagem à contabilidade da empresa arguida, a pedido da assistente, no âmbito de um processo de natureza cível, após a participação do alegado furto por parte dos arguidos.
Cabe referir que as testemunhas, pese embora trabalhem para a assistente, prestaram depoimentos muito claros, escorreitos, evidenciando os seus conhecimentos técnicos de contabilidade e explicando-os de forma cabal, tendo o Tribunal atribuído credibilidade aos mesmos.
A. P. foi confrontada com o documento de fls. 144 e seguintes, tendo confirmado o seu teor, uma vez que foi a própria quem o elaborou.
Explicou que tomou conhecimento da participação do sinistro em Janeiro de 2015 e nessa altura passou a efectuar uma análise à contabilidade da empresa arguida. Verificou que estavam contabilizados cerca de nove mil quilos a mais de compras que não existiam (havia três guias de transporte que não estavam validadas pela Autoridade Tributária e não tinham correspondência com as facturas - guias nº 14673, datada de 17.11.2014, 14707, datada de 02.12.2014 e 14709, datada de 03.12.2014).
Para além disso, a testemunha referiu que apenas quando se deslocou ao local, em Janeiro de 2015, tomou conhecimento que o stock que lá se encontrava, afinal já não pertencia à sociedade arguida, mas sim a uma empresa constituída em Junho de 2014, do filho do arguido A. F. e do qual também é sócio.
Confrontada com os documentos de fls. 36 e ss. (“apanhado” de compras), deu explicações acerca da inclusão por parte da sociedade arguida, das referidas guias de transporte não validadas pela Autoridade Tributária e sem correspondência com as facturas, no referido mapa, sendo que tal inclusão deu origem a quantidades negativas (o que despertou a atenção da testemunha, pois não podem existir stocks negativos, sendo certo que o valor das referidas três guias, corresponde aproximadamente ao valor que foi reportado à seguradora, como tendo sido material furtado).
A testemunha V. P. foi confrontada com o documento de fls. 401 e ss. e corroborou-o, por ter sido elaborado e assinado por si.
Em suma, corroborou o depoimento da testemunha anterior, acrescentando que, da sua análise à contabilidade da sociedade arguida, verificou que dos valores das vendas saíam valores de numerário que não correspondiam aos stocks. Sendo que, da sua experiência, isso corresponde a uma “limpeza de stock”, ou “limpeza de escrita”.

Referiu, ainda, que os três peritos que elaboraram o relatório pericial no âmbito do processo cível movido pela sociedade arguida à seguradora (aqui assistente), chegaram à conclusão de que não ocorre qualquer furto ao estabelecimento (incluindo o perito da sociedade arguida).
Por fim, referiu (à semelhança do que havia dito a testemunha anterior) que não houve na contabilidade da empresa arguida, um inventário pós-furto, o que muito estranharam, porquanto só se pode chegar à conclusão do material que foi alegadamente furtado, se se fizer tal inventário, para ver precisamente o que se encontra em falta.
Confrontado com as facturas de fls. 230 e seguintes do Anexo aos presentes autos, explicou que as mesmas contêm lotes de mercadoria sem qualquer valor atribuído, o que significa que se retirarmos o lote, chegamos a um stock negativo. Ou seja, tais facturas levam à conclusão de que efectivamente a empresa procedeu a uma “limpeza de stocks”, eventualmente para acertar margens de comercialização.
Muito relevantes para a decisão da causa foram os depoimentos dos militares da GNR do núcleo de investigação criminal de Valença, C. M. e D.P..
Estas testemunhas demonstraram ter conhecimento dos factos, em virtude de os terem investigado (ou seja, a denúncia do alegado furto), tendo chegado à mesma conclusão das testemunhas anteriores, ou seja, da inexistência de qualquer furto.
Vejamos.
C. M. referiu ter estado presente aquando das diligências tácticas oculares ao local, após a denúncia de furto. Nessa altura, viu o portão de acesso ao terreno aberto, assim como o de acesso ao armazém da sociedade arguida. As câmaras frigoríficas encontravam-se igualmente abertas, o escritório remexido, havia sistema de alarme, mas os sensores estavam intactos e havia a informação de que uma viatura tinha sido furtada e localizada em Espanha.
Referiu, ainda, que o alarme está ligado à residência do arguido, onde existe um interruptor para ligar e desligar. Verificou as linhas do alarme até à referida residência e constatou que as mesmas não haviam sido cortadas, sendo que a esposa do arguido lhe transmitiu que o alarme estaria ligado.
No que respeita à viatura alegadamente furtada, a testemunha referiu ter-se deslocado a Espanha e verificado que a carrinha se encontrava junto a uma zona habitacional, no interior de Salvaterra do Minho, num largo de terra batida, tinha a chave na ignição, não existiam quaisquer sinais de a mesma se encontrar “atolada”, nem marcas de rodados no local. Para além disso, chegados ao local, retiraram a carrinha, sem qualquer dificuldade.

D. P. prestou um depoimento espontâneo, claro, desinteressado e esclarecedor, tendo corroborado as declarações da testemunha acima mencionada, acrescentando que o portão do armazém da sociedade arguida é grande, metálico e corre do exterior para o interior. Apresentava, no exterior, indícios de ter sido forçada a chapa, mas não tinha sinais de estroncamento. Para além disso, a testemunha referiu que à data dos factos, o tempo estava chuvoso e o terreno perto do armazém da sociedade arguida trata-se de uma descida pavimentada e depois, terra batida, sendo que não existiam quaisquer marcas de veículos pesados no local.
Ora, tendo sido reportado um furto de mercadoria que ronda as nove toneladas, apenas um veículo pesado poderia ter transportado tal carga.
A testemunha adiantou, também, que as câmaras frigoríficas encontravam-se abertas, a electricidade não havia sido cortada, nem as linhas do alarme. Para além disso, os sensores do alarme tinham pó, o que significa que nem sequer tinham sido mexidos.
Relativamente ao alegado furto da carrinha, para além de ter reiterado o depoimento da testemunha anterior, mencionou que durante toda a manhã daquele dia, a carrinha constou como tendo sido furtada, só da parte da tarde, quando foi feita menção às imagens de videovigilância da ponte, é que o arguido referiu que afinal a carrinha não havia sido furtada.
Em tribunal prestaram, também, depoimento as testemunhas Manuel e José, serralheiros que alegadamente terão ido consertar o portão do armazém após o alegado o furto, e V. G., electricista, que terá ido ao local verificar o sistema de alarme, a pedido do arguido A. F..
Estas testemunhas prestaram depoimentos parciais e incongruentes, não tendo merecido credibilidade do tribunal, tendo-se denotado que vieram prestar depoimentos “a pedido”.

Vejamos, desde logo estranhamos que as testemunhas que são serralheiros, não saibam distinguir o ferro do alumínio, pois enquanto Manuel referiu que o portão do armazém é em alumínio, tem chapas finas e trancas por dentro, José referiu que o portão é em ferro, alto e grande e fechava a cadeado. Para além disso, adiantou que para entrar no armazém havia uma cancela com rede (quando resultou claro da demais prova produzida, que tal cancela com rede e fecho a cadeado não existe).
Portanto, ficámos com muitas dúvidas se estas testemunhas estiveram no mesmo local, ao mesmo tempo…
A testemunha V. G., após ter dado explicações acerca do sistema de alarme aposto nas instalações da sociedade arguida (coincidentes com as que foram dadas pelas testemunhas militares da GNR que foram ao local), acabou por dizer ter constatado um a dois dias após os factos que um dos sensores de movimento encontrava-se “queimado”, querendo com isto explicar que teria sido por este facto que o furto ocorreu sem o alarme ter disparado.

Sucede que este depoimento não nos convenceu, pois alguém que se dirija a um armazém para furtar nove toneladas de mercadoria, não se trata propriamente de um “A. R.”, nem do chamado “ladrão de ocasião”. Um furto dessa dimensão exige preparação e estudo do local. Nessa medida, se o furto fosse verídico, resulta das regras da experiência comum que quem o executasse, ao aperceber-se da existência de um sistema de alarme, tivesse cortado as linhas do alarme, ou de electricidade, ou mesmo destruído os sensores de movimento, o que não ocorreu no caso concreto.

Nessa medida, entendemos não ser crível que o “ladrão” tivesse aproveitado a simples coincidência de o alarme ter um sensor queimado, sem efectuar qualquer outro procedimento a respeito.
Prestou, ainda, depoimento a testemunha M. R., amigo do arguido e cliente da sociedade arguida.
Sucede que, desde logo, este depoimento foi totalmente despropositado, desprovido de sentido.
Sem ninguém lhe perguntar, a testemunha começou a discursar no sentido de que um dia andava a vindimar e apareceu no local um senhor de nacionalidade espanhola que lhe perguntou onde ficava a Peixe ...…
Ora, apesar de o tribunal ter questionado a testemunha, várias vezes, sobre o que é que essa factualidade teria a ver com os presentes autos, a testemunha não soube dizer.
Sucede que, resultou clara a intenção com a qual a testemunha foi arrolada e veio emitir tais declarações: lançar a dúvida do tribunal sobre se o alegado furto teria sido praticado por esse tal espanhol!
Contudo, dada a falta de espontaneidade, clareza, isenção e falta de sentido, este depoimento não nos mereceu qualquer credibilidade.
N. M., economista e contabilista da sociedade arguida, prestou um depoimento igualmente parcial e confuso, tendo o tribunal ficado convicto que a testemunha tem um conhecimento aprofundado dos factos e não os quis relatar.
Referiu ter dito ao arguido, no dia a seguir ao furto, para contar a mercadoria em falta e que este terá feito o levantamento das existências.
Sucede que, pese embora ter dito que tem ideia que terá sido a seguradora ou a GNR a solicitar tal inventário pós-furto e que o arguido o terá elaborado, como resultou à saciedade dos depoimentos das testemunhas já identificadas que efectuaram uma análise à contabilidade da sociedade arguida, tal inventário não existe (pois não foi entregue à seguradora).

Confrontado com o documento de fls. 143, referiu ter sido o próprio a elaborá-lo, dando uma explicação para a existência das três guias de transporte com os valores aproximados ao alegado valor total da mercadoria furtada, e com datas posteriores ao furto, sem qualquer correspondência com as facturas constantes da contabilidade. Segundo a testemunha, as guias de transporte retiravam valor às existências, porque foram emitidas facturas anteriormente ao transporte das mercadorias (para obtenção de maiores descontos).

Ora, quando o tribunal questionou a testemunha se era normal facturar em Junho, mercadorias transportadas cerca de quatro a cinco meses depois, denotou-se hesitação e atrapalhação na resposta.
Para além do mais, durante todo o depoimento a testemunha revelou sinais de desconforto e de comprometimento nas respostas (através de um sorriso irónico a disfarçar o nervosismo e desconforto).
De relevante, confirmou que em 2015 a empresa “G. M.” entrou em funcionamento nas instalações da sociedade arguida e os produtos aí existentes, foram facturados pela arguida àquela sociedade, cujo sócio é o filho do arguido A. F. (o que no fundo, corrobora o que foi explicado pela testemunha V. P., no sentido da tentativa de “limpeza da escrita ou de stocks” efectuada através da simulação do furto, ou seja, para além de tentarem obter um enriquecimento ilegítimo, tentaram regularizar a contabilidade, tendo, por fim acabado com uma empresa, para dar início a outra, com o mesmo objecto social, e a mesma pessoa por detrás da gerência de facto, o arguido A. F.).
Por último, em tribunal foram inquiridas as testemunhas L. T., reformado, primo do arguido e seu ex-patrão, e V. B., reformado e conhecido do arguido.
Estas testemunhas prestaram depoimento acerca das características de personalidade do arguido A. F., enaltecendo-as, referindo ser uma pessoa séria, honesta, correcta, com quem nunca tiveram problemas.
As testemunhas depuseram de forma honesta e foram relevantes para a prova dos factos relativos à personalidade do arguido, ou à forma como o mesmo é visto pelos seus amigos e conhecidos.

No que toca à prova dos factos constantes na acusação pública, tivémos em consideração a compatibilização da prova testemunhal produzida nos termos supra expostos, com a vasta documentação junta aos autos, designadamente os de fls. 3 a 241 (certidão extraída do processo de inquérito nº 436/14.0GAMNC), 248, 266 a 273, 282, 283, 296 a 298 e 300 a 305, bem como os constantes do apenso (relatório pericial), e aqueles que fizemos referência na análise dos depoimentos.

Quanto às condições económicas e pessoais, considerámos as declarações do arguido e no que respeita à ausência de antecedentes criminais, os certificados de registo criminal juntos aos autos.
*
Apreciação do recurso

Por uma questão de lógica processual, começar-se-á por conhecer do recurso interlocutório, passando depois à apreciação dos recursos da sentença.

Como já se disse a questão trazida à apreciação no recurso interlocutório é apenas a de saber se foi correta, ou não, a decisão de admitir, na qualidade de assistente, X Companhia de Seguros, SA.

Entende o recorrente que, na medida em que está em causa em relação à Companhia de Seguros um crime de burla qualificada na forma tentada, uma vez que não chegou a ser lesada não poderia considerar-se ofendida e, por isso, não poderia assumir nos autos a qualidade de assistente.

Dispõe o artigo 68º, nº 1 do CPP que podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferiram esse direito:

a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos.

O assistente é um dos sujeitos processuais com capacidade de intervir ativamente no processo, como colaborador do Ministério Público (artigo 69º, nº 1 do CPP) com vincada autonomia nos crimes de natureza particular e com possibilidade de acusar subsidiariamente nos crimes de natureza pública ou semi pública.

Numa análise ligeira pode dizer-se que no nosso processo penal há três conceitos que nos reportam à figura da vítima: o lesado, o ofendido, o assistente.

Percebe-se que o recorrente fez corresponder o direito de alguém se constituir assistente à situação de lesado, entendendo este como alguém que sofreu um efetivo dano. Não o tendo sofrido, no entender do recorrente, não poderia assumir o papel de assistente.

O epicentro da legitimidade para a constituição de assistente localiza-se na figura do ofendido (cfr. F. Dias in O Novo Código de Processo Penal, I, Jornadas de DPP, CEJ, Almedina, Coimbra, 1997, 10),

Este é, na definição restritiva de Beleza dos Santos, a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo.

Este entendimento começou por levar a uma conceção também restritiva do bem jurídico e à consequente inadmissibilidade de constituição de assistente nos crimes contra o Estado, por exemplo, quando os interesses a salvaguardar eram supra individuais.

Mas o conceito do ofendido foi-se alterando e foi sendo visto com maior amplitude, alargando-se a possibilidade de constituição como assistente a pessoas não titulares dos interesses imediatamente protegidos pelas normas incriminadoras.

Reflexo de mudança de entendimento foram os diversos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que foram fixando jurisprudência, de que são exemplo os Acórdãos do STJ 08/2006 de 12/10 in DR,I-A, 229 de 28.11.2006, que admite a constituição como assistente num processo por crime de denúncia caluniosa; o Ac. FJ 1/2003 de 16/01 in DR, I, 49 de 27.02 2003, que igualmente admite a constituição de assistente num crime de falsificação de documento; o Ac. FJ 2/2005 de 16/02 in DR, I,-A de 31.03.2005 relativamente a um crime de abuso de confiança contra a segurança social; o Ac. FJ 10/2010 de 17/11/2010 in DR, I, 242, de 16.12.2010, relativamente a um crime de desobediência qualificada.

É certo que, em todos estes acórdãos, mais do que uma ampliação do conceito do ofendido, está em causa o alargamento da legitimidade a não ofendidos, mas o que é certo também é que não há dúvida de que a par da defesa do interesse público vemos o legislador e a jurisprudência a possibilitar a tutela de outros valores de natureza privada a entidades com interesse na participação no processo.

Ora, o recorrente identifica a noção de assistente com a de simples lesado (artigo 74º do CPP). Este é a pessoa singular ou coletiva que sofreu danos ocasionados com o crime, que pode, ou não, ser ofendido, isto é, que pode, ou não ser titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação.

No processo penal o lesado apenas pode sustentar e produzir a prova do pedido de indemnização civil.

Mas a noção de assistente é, já o vimos, mais ampla e só o sendo consegue assumir - retomando a ideia inicial - um papel importante na tramitação processual, com inegável e incontornável importância nos crimes de natureza particular, mas também nos crimes de natureza pública e semipública. É que só fazendo-se ouvir se consegue que a figura do assistente tenha o caráter democrático que lhe é reconhecido (cfr Germano Marques da Silva citando Vitor Guillen in Curso de Processo Penal, I, Verbo, 308).

Acresce que a noção do prejuízo decorrente da prática de um crime pode não ter apenas tradução monetária e os interesses protegidos pela incriminação podem não se ficar, mesmo no caso de burla, por questões financeiras. O bem jurídico tutelado pela burla é o património em geral no sentido económico-jurídico. E mesmo que se não entenda que o bem jurídico protegido abrange também a verdade e autonomia na celebração dos negócios jurídicos, ainda assim, sendo reconhecido à Companhia de Seguros X interesse em agir - na vertente do interesse em que a justiça naquela concreta situação seja realizada – não é o facto de não ter tido prejuízo pecuniário que a impede de poder, com a sua presença e participação no processo, colaborar para a tomada de decisão que venha a ser justa.

Tanto basta para que possa constituir-se assistente, X, Companhia de Seguros, SA, não merecendo reparo a decisão que, nessa qualidade, a admitiu.

Passemos agora à apreciação dos recursos da sentença final, começando pelo recurso da arguida Peixe ..., Lda, sendo certo que a resposta a algumas questões que invoca servirão também para responder a idênticas questões colocadas pelo recorrente pessoa singular.

A recorrente Peixe ..., Lda entende que os pontos 18 a 23 da matéria de facto provada padecem de erro notório na apreciação, devendo ser julgados não provados. (Na motivação do recurso a recorrente convoca também a existência de contradição insanável na fundamentação, mas abandona tal argumento nas conclusões, sendo certo que, a existir, sempre seria um vício de conhecimento oficioso).

Vejamos, então, se estamos perante o invocado erro notório na apreciação da prova.

O vício a que alude a recorrente e que consta da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP é, contrariamente à frequência com que é invocado, um vício muito raro, uma vez que só ocorre quando é detetável por qualquer pessoa – homem médio – em face do texto da decisão recorrida. E é evidente se qualquer pessoa o deteta, também o juiz que elabora o texto dificilmente o deixaria passar.

É o erro que evidencia que as regras da experiência da vida e do normal acontecer foram violadas pelo raciocínio patente no texto da decisão.

Ocorre que, do texto da sentença trazida à apreciação deste tribunal, não se deteta qualquer erro evidente, pelo que o que a recorrente pretende dizer é que o Tribunal a quo apreciou mal a prova produzida em julgamento.

Discorda, então, a recorrente da apreciação feita pelo Tribunal a quo dos depoimentos – v.g. de A. R., A. P. Lacerda e V. P.- que permitiram ao tribunal a quo concluir que um crime de burla qualificada, na forma tentada, foi praticado pela recorrente.

Estamos no âmbito da liberdade na apreciação da prova. Esta como é dito na sentença recorrida - e como é incontroverso -, é antes de mais uma liberdade de acordo com um dever – o de perseguir a verdade material. E, uma vez adquirida a convicção, terá o tribunal de explicar de forma clara e objetiva por que razão foi aquela e não outra a decisão.

Ocorre que a convicção do Tribunal não foi adquirida apenas a partir daqueles concretos meios de prova invocados pelo recorrente. O Tribunal a quo, depois de escalpelizar cada um dos depoimentos ouvidos explicou por que razão uns foram valorizados e outros não, conjugou-os com a documentação dos autos e explicou por que adquiriu a convicção segura de que não existiu qualquer crime de furto, antes sim, uma tentativa de burla.

E olhando o texto da decisão é patente que não foi violada a livre convicção (artigo 127º do CPP), que o raciocínio é lógico, racional, permitindo a quem tem contacto com o texto da decisão perceber claramente por que razão a decisão foi de condenação dos arguidos.

É certo que a recorrente defende que o Tribunal a quo deveria ter chegado à conclusão de que a sociedade arguida foi vítima de um furto.

Só que não diz porquê, não diz como seria possível chegar a tal conclusão; quais as concretas provas que impunham tal decisão (artigo 412º, nº 3, alínea b) do CPP) e quais as concretas passagens das gravações que assim permitiriam concluir (artigo 412º, nº 4 do CPP). Não o fez e, analisando a prova, seguramente não o poderia fazer.

É que, ouvindo a prova, resulta claro que o tribunal a quo teve preocupação em alcançar a verdade material e que a análise que fez não foi arbitrária. E assim foi porque a verdade ficou patente desde muito cedo, isto é, desde que foram ouvidos os militares da GNR que foram ao local e se aperceberam que não havia verdadeiros indícios de furto, nem nas instalações (não obstante o arrombamento de uma porta, faltavam indícios de ter ido ali um veículo pesado transportar as caixas de bacalhau, alegadamente em falta, o alarme não estava danificado …), nem na carrinha que veio a aparecer em Espanha, com as chaves na ignição, aí deixada (mas não atolada) pela testemunha S. C., cujo depoimento só por si permitia perceber que a versão dos factos defendida pela recorrente era absolutamente irrazoável.

Mas também os demais depoimentos ouvidos permitiriam a conclusão segura de que um furto foi inventado pelos recorrentes, irrelevando o acerto ou interpretação dos números em causa feito a este propósito pelo recorrente pessoa singular, na medida em que efetivamente tentaram os arguidos ser indemnizados de prejuízos que não sofreram.

Portanto, outra não podia ser a conclusão a chegar pelo tribunal a quo, pelo que a fixação da matéria provada nos pontos 18 a 23 não merece censura.

Esta conclusão aproveitará também ao recurso do arguido pessoa singular, como se verá.

Entende ainda a recorrente no segmento seguinte do seu recurso que foi cometida uma nulidade insanável, nos termos e para efeitos do artigo 119º do CPP, conjugando-a com a violação do artigo 11º, nºs 2 e 4 do CP e do despacho do PGR 1/2011.

Dispõe o artigo 119º do CPP que constituem nulidades insanáveis, que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase do procedimento, além das que como tal foram cominadas em outras disposições legais:

(…)
d) A falta de inquérito ou da instrução nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.

(…)
(Interessa-nos apenas esta alínea porque é a única que é invocada na motivação do recurso).

Com esta invocação pretende a recorrente dizer que o sócio A. R. devia também ter assinado o termo de constituição da sociedade como arguida, na medida em que também ele era gerente da sociedade.

É a esta omissão que a recorrente chama “falta de inquérito”. Convoca para este entendimento o facto de da certidão permanente da sociedade resultar que a sociedade se obriga com a intervenção de dois sócios e de o despacho do PGR de 1/2011 de 10-10-2011 dizer que:

- Nos casos em que existam fundadas suspeitas da prática de factos ilícitos penalmente imputáveis a uma pessoa coletiva, os Magistrados do Ministério Público deverão instruir o orgão da polícia criminal no qual delegam competência para a investigação ou realização de diligências, no sentido de procederem à sua constituição como arguido, através dos seus atuais representantes legais.
2(…)
3. A constituição de pessoa coletiva como arguida não prejudica a eventual constituição e interrogatório como arguidos dos representantes legais de pessoa coletiva que possam ser pessoal e individualmente responsabilizados pelos factos que constituem o objeto do inquérito.

No que concerne à parte final deste despacho é manifesto que o Ministério Público não encontrou no sócio gerente A. R. qualquer comportamento que pudesse ser considerado ilícito, ao contrário do que sucedeu com o sócio gerente A. F.. Nessa vertente, nada justificava a sua constituição como arguido e nada justificava a abertura do inquérito contra ele, pelo que, neste âmbito, nenhuma nulidade foi cometida.

Diferente questão é a de saber se, não constando a sua assinatura no termo de constituição como arguida da sociedade Peixe ... – Comércio de Produtos Alimentares, Lda da qual ele era sócio gerente foi, por esta via, cometida a nulidade insanável invocada, isto é, se tal corresponde a falta de inquérito.

Também aqui a resposta evidente é negativa. A nulidade prevista na al. d) do artigo 119º apenas se verifica se não foi realizado inquérito ou instrução, devendo sê-lo. Inquérito - isto é a realização de diligências tendentes a investigar a existência do crime e a determinar os seus agentes (artigo 262º, 1 do CPP) - houve, pelo que nenhuma nulidade insanável foi manifestamente cometida.

E mesmo que a recorrente pretendesse invocar a nulidade já não insanável, mas dependente de arguição consubstanciada na insuficiência do inquérito por não terem sido praticados atos legalmente obrigatórios (artigo 120º, nº 2, alínea d) do CPP) como, entende ser a assinatura dos dois gerentes no termo de constituição como arguida da sociedade, o certo é que não o fez, tempestivamente (artigo 120º, nº 3 do CPP).

Defende ainda a recorrente que foi violado o princípio in dubio pro reo.

O princípio in dubio pro reo é um dos corolários do princípio da presunção de inocência. Este, com raízes na Revolução Francesa, foi atravessando os tempos, deixando marca em diversos instrumentos de direito internacional e chegou até nós, após 1976, à Constituição, onde se encontra no art. 32, nº 2.

De acordo com este princípio todo o indivíduo se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, não lhe cabendo, portanto, provar a inocência, porque se encontra, à partida, ficcionada pela lei. E assim se, terminado o julgamento, o julgador permanecer na dúvida sobre os factos, tem o dever de ultrapassar o sofrimento da indecisão com uma resolução favorável ao arguido, para não correr o risco de lesar injustamente alguém. Mas apenas o pode/deve fazer se ficar na dúvida. Portanto, o tribunal só pode lançar mão desta solução quando, no momento da decisão, se depara com uma dúvida insuperável sobre a realidade dos factos. Não sendo o caso - como não o foi nestes autos -, não tinha o tribunal de se socorrer de tal princípio, nem sequer de o equacionar.

Assim sendo, também não ocorre a sua violação, como invocado pelo recorrente.

Improcede, portanto, também nesta parte, o recurso.

Por fim, entende a recorrente que o Tribunal a quo errou na determinação da medida da pena. Alega para tanto que não tem atividade e, como ativo, tem apenas um imóvel arrendado, o que lhe dá um rendimento mensal de 180€.

Considera, assim, que a aplicação de uma multa de 6.600€ é desproporcionada e contradiz as exigências preventivas requeridas pelo caso.

A multa aplicada é analisável em duas vertentes: os dias de multa; a taxa diária. Quanto aos dias de multa o Tribunal a quo fixou-os em 60 dias considerando que militava a favor da sociedade arguida o facto de não ter antecedentes criminais, nem dívidas e, contra, a circunstância de não ter qualquer atividade, tendo transferido o seu ativo para outra sociedade com o mesmo objeto social, logo após a factualidade ocorrida nos presentes autos.

Nos termos do nº 1 do artigo 90º-B do CP os limites mínimo e máximo da pena de multa aplicável às pessoas coletivas e entidades equiparadas são determinados tendo como referência a pena de prisão prevista para as pessoas singulares.

Acrescenta o nº 2 que um mês de prisão corresponde, para as pessoas coletivas e entidades equiparadas, a 10 dias de multa (No caso a moldura oscila entre 10 e 640 dias de multa).

Nos termos do nº 4 os critérios estabelecidos para a fixação dos dias de multa são os do artigo 71º, nº 1 do CP, isto é, em função da culpa e das exigências de prevenção.

A recorrente chama sobretudo a atenção para a fragilidade económica em que se encontra, no entanto, tal fragilidade foi efetivamente tida em conta, porque a multa foi fixada em 60 dias, isto é, praticamente encostada ao mínimo legal.

É evidentemente diferente a perigosidade criminal de uma pessoa coletiva, quando comparada com uma pessoa física, e também a culpa tem diferente natureza - embora se possa raciocinar de forma semelhante para a gravidade do ilícito, para os motivos determinantes, para a capacidade de adotar conduta lícita, por exemplo, mas as razões de prevenção são tão prementes que justificariam, por si só, um afastamento maior do limite mínimo, pelo que se a fixação da pena concreta em 60 dias estivesse errada, seria por defeito.

Vejamos agora a dimensão da pena no que concerne ao valor diário.

Dispõe o nº 5 do artigo 90º-B do CP que cada dia de multa corresponde a uma quantia entre 100€ e 10.000€ que o Tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos com os trabalhadores, sendo aplicável o disposto nos nºs 3 e 5 do artigo 47.

Os limites mínimo e máximo previstos na lei são, efetivamente, muito elevados. A consideração de que as pessoas coletivas possuem maior poder económico do que as pessoas singulares não tem, muitas vezes, reflexo na realidade do nosso país. E se o limite máximo é admissível, porque há sempre grandes empresas que o podem suportar, o limite mínimo pode já não o ser, porque para pequenas e médias empresas é, seguramente, difícil suportar uma taxa diária de 100€, quando multiplicada por dezenas ou centenas de dias de multa, o que leva à determinação de valores “sufocantes”,( usando a expressão de Paulo Pinto de Albuquerque, citado por Nuno Brandão na Revista do CEJ, 1º semestre, 2008, nº 8, Especial, Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 41-54, nota 24).

O tribunal a quo considerando a situação da recorrente que não tendo atividade, também não tem dívidas, mas que dispõe de um rendimento decorrente de uma renda mensal que possui, aplicou o quantitativo diário de 110€, portanto, de novo e igualmente, muito perto do limite mínimo, pelo que carece este tribunal de fundamento legal para alterar o quantitativo da multa. Acresce que, não tendo a recorrente, requerido que fosse equacionada a aplicação de qualquer outra pena, (como o veio a fazer o arguido, relativamente à pena de admoestação) e acabando por pedir tão só a absolvição da recorrente, ter-se-à que manter a pena imposta.
(Á punição da pessoa coletiva se voltará na aplicação do recurso do arguido A. F., na medida em que retoma tal questão).
*
Analisemos, então, agora o recurso do arguido A. F..

A primeira questão invocada respeita à violação do princípio in dubio pro reo na fase do inquérito. Entende, ainda, o recorrente que todo o processado posterior a folhas 240 é nulo.

Assim entende, porque o Ministério Público após arquivar o inquérito respeitante ao participado crime de furto – por não ter sido possível recolher indícios suficientes da verificação do crime e de quem foram os seus autores, - veio a ordenar a extração da certidão de todo o processado por nele ter detetado incongruências suscetíveis de virem a determinar a instauração do procedimento criminal contra o arguido “e outros” por crime de burla qualificada e simulação de crime.

É esta decisão que o recorrente entende ferir o princípio in dubio pro reo na fase de inquérito e, consequentemente, o princípio da presunção de inocência de que goza qualquer pessoa.

A questão posta pelo recorrente, salvo o devido respeito, confunde o âmbito e objeto de fases processuais diversas.

Se é certo que o princípio da presunção de inocência do arguido se estende desde a sua constituição nessa qualidade até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, porque assim decorre da CRP (artigo 32º, nº 2) (e ainda da DUDH e da CEDH), ficando por essa razão isentado de provar a sua inocência, passando a ter e a merecer estatuto próprio de quem é inocente, com tudo o que isso implica em termos de rigor na aplicação, por exemplo, de medidas restritivas de liberdade, também é certo que o papel de cada um dos sujeitos processuais na avaliação do comportamento do arguido ao longo do processo não é equiparável.

Como não é equiparável o grau de exigência na avaliação das aquisições processuais em matéria factual. De facto, para que se dê inicio a um inquérito basta haver a notícia de um crime (artigo 262º do CPP); para que haja acusação é necessário que sejam recolhidos indícios suficientes da verificação de um crime e de quem foi o seu agente (artigo 283º do CPP); para haja pronúncia, com sujeição da causa a julgamento, é necessária a recolha de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que dependa a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança (artigo 308º nº 1 do CPP) e para que alguém seja condenado é necessário que haja prova segura da prática do crime.

Como se percebe do caminho processual sumariamente percorrido e exposto, o processo, que se pode iniciar num estado de dúvida, continuar pela formulação de juízos indiciários, tem que terminar com um juízo de certeza.

Entende o recorrente que havendo dúvidas e sendo o princípio in dubio pro reo uma regra de decisão, não poderia o MP acusar. É manifesta a confusão entre os conceitos de presunção de inocência e a regra de decisão in dubio pro reo invocada pelo arguido. É que este princípio é um corolário do princípio da presunção de inocência. E é neste princípio base que se desenvolve todo o processo. Isto é, o arguido é desde o início e ao longo de todo o processo presumido inocente (e por via disso não impende sobre si qualquer ónus probatório, pode livremente e em condições de igualdade contraditar a acusação, não é obrigado a colaborar com quem quer que seja e o silêncio não o pode desfavorecer, a sua liberdade não pode ser contida a não ser em situações perfeitamente definidas e sempre com caráter transitório e reversível), mas só na decisão final - e por isso se diz que o in dubio pro reo é um corolário, é portanto um resultado, uma consequência, uma decorrência do princípio da presunção de inocência – pode ser definitivamente afirmada, mesmo que de forma ficcionada, a sua inocência.

Assim sendo, o inquérito levado a efeito a partir do despacho e da certidão ordenada extrair a fls 240, de modo algum postergou qualquer princípio fundamental do direito penal e do direito processual penal, sendo certo que nem sequer a decisão de acusação é equiparável a uma sentença, como parece o recorrente querer concluir, ao invocar a nulidade com base na alínea c) do nº 1 do artigo 379º do CPP, que respeita à sentença proferida no final do processo.

Improcede assim a primeira questão invocada no recurso em apreciação.

Invoca depois o recorrente uma nulidade que qualifica como insanável (artigo 119º c) do CPP) e que decorre de, no seu entender, a arguida (sociedade) ter estado ausente do julgamento, por não terem sido os dois sócios a representá-la em julgamento, contrariamente ao que consta da certidão do registo.

Dispõe a alínea c) do artigo 119º do CPP que constitui nulidade insanável (além de outras) a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei exigir a respetiva comparência.

Decorre da certidão do registo comercial que a sociedade se obrigava com a assinatura de dois gerentes.

Esta mesma questão já foi invocada, embora noutra perspetiva, pela recorrente sociedade, já havia sido exposta pelo agora recorrente por requerimento nos autos e também já foi alvo de decisão no início da sessão de julgamento do dia 11/09/2018, onde foi decidido que, a ocorrer qualquer nulidade ela seria dependente de arguição e teria de ter sido invocada anteriormente. Desse despacho interpôs o arguido recorrente recurso interlocutório, na própria ata e simultaneamente com a interposição de recurso quanto à decisão de admissibilidade como assistente da Companhia de Seguros X, mas não veio a apresentar conclusões pelo que a decisão proferida transitou em julgado.

No entanto a questão aqui invocada é-o, em rigor, numa outra vertente, qual seja a de que a arguida esteve ausente do julgamento.

Para suportar tal afirmação o recorrente socorreu-se do conceito de representação do processo civil, invocando que a sociedade se obriga com a assinatura dos dois gerentes (e não apenas de um designadamente do que foi também constituído arguido e sujeito a julgamento).

Ora, uma coisa é a regular representação da sociedade, outra, a sua presença como arguida no julgamento.

É que as pessoas coletivas têm personalidade jurídica diferente da dos sócios e podem por si próprias praticar crimes e responder em juízo pelos crimes praticados. São, portanto, capazes da ação e culpa jurídica penais, sendo que como dizem André Vito e Roger Merle in Tratado de Direito Criminal, I, 743, a vontade coletiva é tão capaz de cometer crimes quanto a vontade individual.

No entanto atuam, necessariamente, através dos titulares dos seus órgãos ou dos seus representantes. Mas uma coisa é a gestão da sociedade e a forma como os sócios convencionaram que ela seja exercida, outra coisa, é o relacionamento de terceiros para com a sociedade, v.g. e, por exemplo, quanto às notificações que lhe são dirigidas.

Dispõe o artigo 261º, nº 3 do Código das Sociedades Comerciais que, no caso de gerência plural, as notificações ou declarações de terceiros à sociedade podem ser dirigidas a qualquer dos gerentes, sendo nula toda a disposição em contrário do contrato da sociedade.

Ora, assim sendo, tendo sido comunicado à sociedade através de um dos seus gerentes que a partir daquele momento assumia a qualidade da arguida, exarado auto em conformidade e tendo a arguida sido notificada de todos os atos processuais praticados, não tendo sido invocado e não havendo, de facto, qualquer interesse conflituante nos autos entre a defesa da sociedade e a do sócio também arguido, sendo igualmente diferentes os defensores de ambos em julgamento, forçoso é concluir não ter estado a requerida ausente do julgamento e não ter sido, portanto, cometida a invocada nulidade insanável.

Invoca, depois, o arguido a nulidade decorrente da violação da alínea b) do nº 3 do artigo 283º do CPP e do artigo 308º do CPP.

Como se percebe das referências legais feitas pelo recorrente, ele entende que a acusação não contém, como devia, nos termos da alínea b) do nº 3 do artigo 283 do CPP, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de pena, incluindo o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe devia ser aplicada. Com a referência ao artigo 308º pretende o recorrente sublinhar a mesma ideia, embora certamente por mero lapso, já que se trata de norma respeitante à instrução que não teve lugar nos presentes autos.

Defende, então, o recorrente que a acusação não contém factos, não concretiza as circunstâncias que permitiriam ao Ministério Público concluir pela prática pelos arguidos dos crimes que lhes foram imputados, v.g. factos reveladores da astúcia necessária à indução de outrem em erro e que não contêm os autos também factos consubstanciadores dos imputados crimes de falsidade de testemunho e simulação de crime.

Necessitamos de noção de facto.

Factos são, na definição de Engish acontecimentos, circunstâncias, relações, objetos e estados, todos eles situados no passado, espaciotemporalmente determinados pertencentes ao domínio da perceção externa ou interna e ordenados segundo leis naturais.

Facto é, usando a definição de Frederico Isasca todo o acontecimento do mundo objetivo que, captado pelos sentidos, se deixa perceber e conhecer pelo sujeito; na definição de Carnelutti é uma peça que se destaca ou se procura destacar do passado para fazer história.

Facto (factum) tem a sua raiz latina no particípio passado do verbo latino facere, significando o que foi feito.

Ora, perante o que foi feito, a função do processo penal é a de dizer quais desses factos constituem crime.

E quem o diz é, num primeiro momento, a acusação.

É na acusação que fica plasmado o "pedaço de vida" destacável do comportamento de um indivíduo que vai ser sujeito a um juízo de subsunção jurídico-penal. E é neste pedaço de vida que perfeitamente delimitado que entronca o princípio da vinculação temática. É neste pedaço de vida que encontramos o objeto do processo.

Ora, lendo a acusação e depois a matéria de facto que consta da sentença recorrida que a replica integralmente e, bem assim, o enquadramento jurídico que é feito não há dúvida de que da sentença recorrida constam factos ( pontos 3 a 10, 18, 21 e 23) que, por um lado, preenchem o tipo legal do crime simulação do crime (existência de uma falsa denúncia da existência de um furto que deu lugar a um inquérito inútil, sabendo o denunciante da ilicitude e punibilidade da conduta) e, bem assim, factos ( 11 a 15, 22 e23) reveladores da intenção não alcançada de ludibriar a Companhia de Seguros X ( e portanto do tipo legal de crime burla qualificada tentada ) na medida em que, invocando factos inverídicos que encenou, o arguido, por carta, solicitou o ressarcimento de prejuízos de valor consideravelmente elevado inexistentes, tudo numa aparência de verdade, suscetível de vir a induzir a Companhia de Seguros à prática de atos que lhe originassem prejuízos.

A astúcia há-de aferir-se tomando em consideração as características do burlado. É evidente que o envio de carta à Companhia de Seguros, retratando uma situação inexistente teria a idoneidade necessária para a consumação de crime, não fosse a realização de diligências por parte da Companhia de Seguros, que levaram à conclusão contrária.

Já quanto ao crime de falsidade de testemunho, ele verifica-se pelo facto de o ora recorrente, enquanto denunciante e perante autoridade policial, prestar depoimentos ( factos 12, 16, 17, 19, 20, 21 e 23) que sabia serem falsos, (mas pelos quais e pelas razões que infra se exporá, não poderá ser punido).

Improcede assim, o recurso do arguido, no segmento em que invoca a falta de factos.

Invoca ainda o recorrente a nulidade da sentença por, no seu entender, ter ocorrido a condenação por factos não descritos na acusação.

Dispõe o artigo 379º, nº 1 alínea b) do CPP que:

1- É nula a sentença:
a) (…)
b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstas nos artigos 358º e 259º do CPP.

Ocorre que, comparando o texto da acusação com o texto da sentença eles são em tudo idênticos, não se percebendo que a sentença contenha factos novos para além daqueles com os que o arguido foi confrontado a partir da acusação.

Afigura-se, portanto, e uma vez que a conclusão M não tem no corpo da motivação qualquer correspondência, ela se terá ficado a dever a mero lapso. Mas mesmo que não seja esse o entendimento da recorrente, não tendo havido qualquer alteração de factos, nenhuma nulidade foi cometida.

Invoca ainda o recorrente a errada apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal no que respeita aos pontos 15 e 18 a 23 da matéria de facto, os quais entende que deveriam ter sido julgados não provados, sob pena de violação do disposto nos artigos 355º e 127 do CPP e dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.

Os pontos da matéria de facto em análise são os seguintes:

15. A companhia de seguros “X”, todavia, acabou por não ressarcir os arguidos nos termos por estes pretendidos, em virtude de ter concluído que os alegados assalto, danos e subtracção de mercadorias participados pelo arguido A. F., em nome da arguida “Peixe ..., Lda.”, não tinham realmente acontecido ou tinham sido provocados pelo próprio, não passando tudo de uma mera encenação do arguido A. F.;
18. O arguido A. F. denunciou (determinou outrem a denunciar) à GNR de Monção um crime de furto que sabia não ter acontecido, bem sabendo que, por força de denúncia, apresentada a órgão competente para a receber, seria instaurado, como foi, um processo de natureza criminal para investigação dos factos denunciados;
19. O arguido A. F. sabia, aquando da prestação de declarações, em 5 de Janeiro de 2015, perante militar da GNR, em 29 de Outubro de 2015 e 29 de Novembro de 2016, perante magistrada do Ministério Público, que estava obrigado a dizer a verdade e que, faltando à verdade, estava a incorrer na prática de crime, sendo a sua conduta de 29/11/2016 punida de forma mais severa - com pena de prisão até cinco anos ou multa até 600 dias -, porque precedida de juramento legal, conforme advertência que na ocasião lhe foi feita;
20. Não obstante, nas três ocasiões referidas em 18., o arguido A. F. mentiu, faltou à verdade, afirmando factos que sabia não terem ocorrido;
21. O arguido A. F. sabia ainda que, ao denunciar factos que não ocorreram, qualificados por lei como crime, e ao prestar declarações não conformes à realidade no processo criminal a que a sua denúncia deu origem, estava a causar prejuízo, como causou, à administração da Justiça, o que quis;
22. O arguido A. F., ao actuar da forma descrita em 3. a 6., 9. a 13., 16. e 17., quis ainda obter para a sua representada e para si próprio uma quantia em dinheiro - € 64.328,48 - a que sabia não ter direito, causando um prejuízo económico de igual montante à companhia de seguros “X”, o que só não alcançou por esta companhia, após várias diligências de averiguação do que teria sucedido, ter concluído que tudo não passaria de uma invenção do arguido A. F.;
23. O arguido A. F. sabia que todas as suas condutas acima descritas, que empreendeu de forma livre e voluntária, com o propósito de obter para si e para a sua representada, a arguida “Peixe ..., Lda.”, a final, benefício económico ilegítimo, eram contrárias ao direito e que o faziam incorrer na prática de crimes.

O tribunal a quo fixou a matéria em causa com base nos depoimentos das testemunhas A. P., V. P., em conjugação, aquela com o documento de fls 144, com as guias 14673, 14707 e 14709 e, bem assim, com os documentos de fls 36 e ss, e este, com o documento de fls 401 e ss, mas sem esquecer os depoimentos dos agentes que tomaram conta da ocorrência e que foram, quer ao local, quer a Espanha onde a carrinha foi encontrada, no confronto com os demais depoimentos, explicando por que razão atribuiu a uns credibilidade e a outros não.

A forma como o fez, já se disse a propósito do recurso da arguida sociedade, não merece a censura que lhe foi assacada pelo recorrente.

Entende o recorrente que os depoimentos prestados não deveriam ter sido considerados, porque não foram objetivos nem fundamentados, contrariamente ao depoimento prestado pelo TOC da sociedade arguida, Dr. N. M., que permitiu concluir indubitável existência de furto nas instalações da sociedade.

Considerou ainda o recorrente que também os depoimentos da GNR não mereceram credibilidade.

Ouvida a prova, mesmo que se considerasse que, pela proximidade aos interesses da Companhia de Seguros os depoimentos das testemunhas A. P. e V. P. não mereciam o valor que lhes foi atribuído, bastaria atentar nos depoimentos dos agentes da GNR e, sobretudo, no depoimento da testemunha S. C., para se perceber que a história inventada pelo arguido foi desde o início muito mal contada e plena de incongruências, não merecendo qualquer censura a apreciação feita pelo Tribunal a quo dos diversos testemunhos apreciados. É que, analisando-os e conjugando-os com a demais prova documental não há qualquer dúvida de que o Tribunal a quo adquiriu um convencimento seguro da realidade que projetou na sentença.

Já atrás se disse quando e em que medida os princípios de presunção de inocência e in dubio pro reo são enformadores das decisões e quando é que o Tribunal não pode deixar de os aplicar, absolvendo os arguidos. É evidente que se da prova resulta uma certeza total e inequívoca de que um ou mais crimes foram praticados, o estado da dúvida desaparece do espírito do julgador. E, no caso, desapareceu depois de ele ter tido contacto com as provas da acusação e com as provas da defesa, com as versões de um lado e do outro, analisadas nos termos do artigo 355º do CPP, isto é, em julgamento e de acordo com a sua livre, mas fundamentada e racional, apreciação ( art. 127º do CPP).

E, sem dúvidas da prática dos crimes, o juiz não podia absolver. Tanto basta para que o segmento em análise do recurso do arguido, igualmente improceda.

Passando agora à questão que no recurso se segue em apreciação, impõe-se aferir se a possibilidade de aplicação do artigo 206º do CP (o recorrente, por lapso, refere Código de Processo Penal) após a reforma de 2007, à burla qualificada na forma tentada, torna este ilícito dependente de apresentação de queixa, donde se teria de concluir pela extinção do procedimento criminal, porque os autos não tiveram início com a apresentação de uma queixa.

Dispõe o artigo 206º do CP com a epígrafe Restituição ou reparação que:

1 - Nos casos previstos nas alíneas a), b) e e) do n.º 1, na alínea a) do n.º 2 do artigo 204.º e no n.º 4 do artigo 205.º, extingue-se a responsabilidade criminal, mediante a concordância do ofendido e do arguido, sem dano ilegítimo de terceiro, até à publicação da sentença da 1.ª instância, desde que tenha havido restituição da coisa ou do animal furtados ou ilegitimamente apropriados ou reparação integral dos prejuízos causados.
2 - Quando a coisa ou o animal furtados ou ilegitimamente apropriados forem restituídos, ou tiver lugar a reparação integral do prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em 1.ª instância, a pena é especialmente atenuada.
3 - Se a restituição ou a reparação forem parciais, a pena pode ser especialmente atenuada.

Por seu turno os nº4 dos art. 217 e 218 do CP dizem ser aplicável ( nas circunstâncias concretamente referidas no caso do art. 218) o art. 206º.
A redação do art. 206º foi, efetivamente introduzida em 2007 pela lei 59/2007 de 04/09 e alterada pela lei 8/2017 de 3.03.

Como resulta da epígrafe e é incontroverso, trata-se de uma norma não especificamente prevista para a burla, mas para uma série de crimes a que poderíamos, de forma simplista, apelidar de criminalidade patrimonial. É uma norma que permite – já permitia a redação de 95 – o entendimento de que se o arguido restitui ou repara a vítima, a necessidade da pena é menor. A reforma de 2007 acentuou este entendimento e passou a permitir que, no caso de haver reparação integral do prejuízo causado sem dano ilegítimo de terceiro até ao início do julgamento em primeira instância, poder-se-á extinguir a responsabilidade criminal se houver acordo entre ofendido e arguido. Esta possibilidade “parecida com uma desistência da queixa” parecia abrir a porta à alteração da natureza jurídica dos crimes aos quais fosse aplicável.

De facto a lei passou a aceitar que ofendido e arguido se entendessem e pusessem fim ao processo, mesmo que já estivesse realizado o julgamento, qualquer que fosse a natureza e gravidade do crime, desde que a lei o permitisse, quando, até aí, só nos crimes menos graves de natureza particular e semipública era equacionável a desistência da queixa.

Ocorre, contudo, que a introdução do artigo 206º no Código Penal não alterou a natureza jurídica do crime de burla qualificada na forma tentada, que continua a ser público, não necessitando de queixa.

E isto porque, como se diz no Acórdão da RP de 22/01/2004 in www.dgsi.pt nos casos em que a natureza das coisas não permitir a reparação do prejuízo causado, funciona a agravativa, sem que se possa ter por discriminados negativamente os agentes. É que, não podendo ser reparado o prejuízo causado pelo agente, não é diminuído o grau da ilicitude por forma a justificar uma moldura penal mais branda.

Isto é, o crime não deixa de ser grave pelo facto de ser apenas tentado; não deixa de ter natureza pública, pelo facto de em determinadas circunstâncias arguido e ofendido poderem chegar a entendimento e pôr fim ao processo. Olhando para o Código Penal vemos que têm natureza particular e semipública os crimes menos graves e aqueles que permitem que seja o titular do bem jurídico respetivo a dispor, como entender, dos interesses violados.

Nos crimes públicos a ofensa, por regra, atinge a sociedade, pelo que cabe ao Estado (MP) prosseguir a ação penal independentemente da vontade dos sujeitos processuais.

Portanto, nos casos em que opera o artigo 206º do CP, v.g. no que nos interessa, no crime de burla qualificada na forma tentada, o legislador não disse que o crime passou a ser menos grave ou que o Estado se passou a desinteressar do exercício da ação penal quanto a eles. O que o artigo 206º veio dizer é que, não obstante a sua gravidade e a sua natureza pública, estando em causa bens jurídicos com reflexos numa dimensão essencialmente individual, no caso de ocorrer a satisfação dos interesses da vítima, se poderá extinguir a responsabilidade criminal.

Aliás, se fosse intenção do legislador mudar a natureza do crime, bastaria conferir-lhe natureza semipública, permitindo desistência da queixa. Se o legislador o não fez é porque ( art. 9º nº 3 do Código Civil) claramente reconhece que continua a justificar-se a necessidade de desencadear o processo independentemente da vontade dos intervenientes.

As condutas a que é possível aplicar o artigo 206º são todas elas graves, configuram lesões intensas dos bens jurídicos tutelados que acarretam a insuscetibilidade de prescindir do princípio da oficialidade.

Nessa medida, e em conclusão, sendo o tipo de crime em apreço de natureza pública, irreleva a ausência de queixa.

Entende ainda o recorrente que o tipo legal simulação de crime consome o crime de falso testemunho e que, a haver condenação ela só poderia ter lugar relativamente à simulação do furto.

Vejamos, então, assim é.

Como é sabido há no direito criminal várias normas cuja aplicação exclui outras. E tal acontece por se reconhecer que existem entre normas relações de especialidade (lex specialis derogat legi generali) de subsidiariedade (lex primaria derogat legi subsidiariae) e de consunção (lex consumens derogat legi consumptae).

Interessam-nos as relações de consunção.

Encontramos uma relação de consunção entre normas quando nos valores protegidos por uma das normas, se contêm já os valores protegidos por outras. Para se chegar a tal conclusão é necessário comparar em concreto os bens jurídicos que foram violados para se saber se uma das normas pode absorver a outra. Necessário se torna também aferir se se verifica entre as condutas um nexo de dependência em que uma constitui um crime meio e outra um crime fim.

O bem jurídico protegido quer no crime de simulação de crime quer no crime de falso testemunho é, a final, a realização da justiça.

Há, então, que ver se, na situação em concreto, a prática do crime de simulação de crime absorve já o crime de falso testemunho, como defende o recorrente.

Analisando a factualidade provada verificamos que o crime de falsidade de testemunho consubstanciado na falsidade do depoimento prestado pelo recorrente ao ser ouvido pela autoridade policial na qualidade de ofendido, aparece como “crime meio”, isto é, como crime instrumental para o cometimento do “crime fim”, o crime de simulação de crime. De facto o ofendido ao pretender simular a ocorrência de um crime, na participação dos alegados factos à autoridade policial tinha forçosamente que prestar falso depoimento. Este apresentava-se como indispensável à consumação daquele, perdendo, por essa razão, autonomia.

Portanto, na análise do concreto pedaço de ilicitude, não há dúvida de que o crime de falsidade de depoimento se contém, é absorvido, pelo crime de simulação de crime, afastando a punição em termos de concurso real de infrações.

Neste segmento o recurso será, portanto, procedente.

Finalmente o recorrente, invocando a sua qualidade de sócio gerente, em defesa da sociedade, pugna pela aplicação à mesma de uma pena de admoestação em substituição da pena de 60 dias de multa que lhe foi imposta.

A aplicação da pena de 60 dias de multa à sociedade arguida foi assim explicada pelo tribunal a quo:

(…) entendemos que milita a favor da sociedade arguida o facto de não ter antecedentes criminais , nem ter dívidas.

Por outro lado, a seu desfavor milita o facto de atualmente não ter qualquer atividade, tendo sido transferido o seu ativo para outra sociedade com o mesmo objetivo social, logo após a factualidade ocorrida nos presentes autos.

Assim sendo, entendemos justa e adequada uma pena de multa de 60 (sessenta) dias de multa.

O Código penal prevê 3 tipos de penas a aplicar às pessoas coletivas: as penas principais (multa e dissolução – artigo 90º-A nº 1), as penas acessórias (artigos 90º-A nº 2 alíneas a) a f), 90º-G, 90º-H, 90º-I, 90º-J, 90º-L e 90º-M) e as penas de substituição (admoestação – artigo 90ª-C, caução de boa conduta – artigo 90º-D e vigilância judiciária).

A pena de admoestação contrariamente ao que ocorre, por exemplo, no artigo 7º nº 1 do DL 28/84 de 20.12 não é uma pena principal. É tal, como ocorre para as pessoas físicas, uma pena de substituição da pena de multa.

Dispõe o artigo 90º-C do Código Penal:

1. Se à pessoa coletiva ou entidade equiparada dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação, aplicando-se correspondentemente o disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 60º.

Isto é, a admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Acrescenta o nº 3 que em regra, a admoestação não se aplica se o agente, nos três anos anteriores ao facto, tiver sido condenado em qualquer pena, incluindo a de admoestação.

Assim, para que o tribunal a quo tivesse optado pela aplicação à sociedade arguida de uma pena de admoestação, limitando-se a censurar solenemente em audiência a conduta empreendida, teria desde logo que verificar que, se estava - à semelhança do que ocorre com a previsão do artigo 60º para as pessoas físicas-, perante um ilícito de reduzida gravidade. De facto, tal como para as pessoas físicas, a pena tem de ser adequada à gravidade do ilícito, com a agravante de, no caso da pessoa coletiva estarmos perante uma entidade que não é capaz de arrependimento ou reeducação porque “não sente, nem compreende, nem quer” (Jean Constant “La responsabilité pénale non individuelle”, X Congresso Internacional de Direito Comparado, Budapeste, 1978, citado por Eduardo Mansilha in verbojurídico.net).

Assim sendo, quando aplicada a pessoas coletivas é necessariamente uma pena de “baixa eficácia preventiva”, usando a expressão de Nuno Brandão in O Regime Sancionatório das Pessoas Coletivas na Revisão do Código Penal, 2008, 43.

Contudo, estando legalmente prevista, é óbvio que há situações em que pode ser aplicada, mas apenas quando transmissível a quem possa ter influência na condução dos destinos da pessoa coletiva e compreenda a necessidade de inverter o rumo que levou à punição.

Ora, no caso em apreço a pessoa coletiva deixou já de ter atividade e, apurou o tribunal a quo, passou os seus ativos para outra sociedade, logo após a ocorrência dos factos.

Nesta situação pergunta-se: que efeito teria para a sociedade a pena de admoestação? É óbvio que a resposta teria de ser que a aplicação de pena de admoestação corresponderia tão só a, na prática, optar por não punir a pessoa coletiva.
Neste segmento é, pois, o recurso improcedente.

III.
DECISÃO:

Em face do exposto decidem os Juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

- Julgar improcedente o recurso da arguida Peixe ..., Comércio de Produtos Alimentares, Lda;
- Julgar improcedente o recurso interlocutório interposto pelo arguido A. F.;
- Julgar parcialmente procedente o recurso da sentença final interposto pelo arguido A. F. e, consequentemente, absolvê-lo da prática dos três crimes de falso testemunho por que havia sido condenado.
- Em tudo o mais manter a sentença recorrida.

Custas pela arguida recorrente Peixe ..., Comércio de Produtos Alimentares, Lda, fixando-se a taxa de justiça em 4 Ucs.
O arguido não suporta custas pela interposição do recurso principal ( art. 513 nº 1 do CPP a contrario sensu), fixando-se a taxa de justiça devida pelo recurso interlocutório em 3 Ucs.
Notifique.
Guimarães, 10 de julho de 2019

Maria Teresa Coimbra
Cândida Martinho