Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2513/19.1T8GMR-B.G1
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: RENOVAÇÃO DA EXECUÇÃO
INTERPELAÇÃO PARA PAGAMENTO
ABUSO DE DIREITO
INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/27/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
– O vencimento imediato das prestações previsto no artigo 808º,nº1 do Código Civil (no caso de falta de pagamento das prestações da dívida exequenda acordada) exige que o credor interpele o devedor nesse sentido, podendo o exequente requerer a renovação da execução para satisfação do remanescente do seu crédito, aplicando-se o disposto no nº4 do art. 850º do CPC.
II – A interpelação pode fazer-se por via extrajudicial ou judicial, seja através da citação do devedor para a ação (ou execução) nos termos do artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil ou por notificação nos termos do art. 850º, nº4 do CPC.
III- Não configura abuso de direito quando os exequentes requerem a renovação da execução por falta de pagamento de duas prestações mensais consecutivas, conforme acordado e num curto espaço de tempo após o vencimento de ambas as prestações ( dois dias), porquanto a renovação da execução a pedido do exequente nem sequer está sujeita a prazo.
IV-Igualmente não configura abuso de direito quando os exequentes requerem a renovação da execução por falta de pagamento de duas prestações mensais consecutivas, conforme acordado e antes disso e durante um ano nada disseram a respeito da falta de pagamento de apenas uma prestação, porque durante aquele hiato temporal referido os exequentes não estariam em condições de exercer o direito de renovação da execução, pois esteve sempre em falta uma prestação quando para o efeito pretendido necessário se tornava que estivem em falta duas prestações mensais consecutivas; assim, não lhes era exigível que fizessem qualquer interpelação durante aquele ano anterior ao pedido de renovação, atento o acordo realizado.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:
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I- RELATÓRIO:

1. O exequente deduziu execução para pagamento de quantia certa contra os executados, peticionando o pagamento da quantia de € 138.447, decorrente da soma das somas das quantias devidas conforme escritura pública realizada entre as partes, e da qual consta, além do mais, um mútuo ao executado em dinheiro pelo prazo de 16 anos, hipoteca e fiança a prestar pela segunda executada; mútuo esse a ser reembolsado mensal e sucessivamente e não tendo sido pagas algumas das mensalidades, o exequente fez apelo ao art. 781º do CC e pretendeu a exigibilidade de toda a dívida.
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2. O executado veio, por apenso à execução, deduzir embargos de executado, os quais foram contestados e conforme ata datada de 17-02-2020 as partes chegaram a acordo, homologado por sentença, nos seguintes termos:

“1. O Executado AA desiste dos embargos de executado que
deram origem ao presente apenso.
2. Desistência essa que os Exequentes aceitam.
3. Com a extinção do presente apenso, as custas são a suportar em partes iguais pelos Exequentes e Executado, sem prejuízo da protecção jurídica de que este beneficia.
4. Exequentes e Executados acordam que o pagamento do valor em dívida (correspondente ao valor mutuado, deduzido das prestações pagas até à presente data) será efectuado em prestações mensais, iguais e sucessivas de € 600,00 (seiscentos euros), pelo menos, reiniciando-se o pagamento das mesmas no dia 10 de Março de 2020 e as restantes até igual dia dos meses subsequentes, ficando, desta forma, concretizado o 3º parágrafo da escritura de confissão de dívida, hipoteca e fiança celebrada em 20 de Abril de 2017.
5. Exequentes e Executados acordam que os Exequentes apenas poderão considerar incumprida a obrigação de pagamento, no caso de ser incumprido o pagamento de 2 prestações consecutivas, nos termos ora acordados.
6. Exequentes e Executados acordam em excluir (da cláusula que constitui o 3º parágrafo da escritura de confissão de dívida, hipoteca e fiança celebrada em 20 de Abril de 2017) a possibilidade de ser alterado o valor da prestação mensal a pagar, consoante o valor dos rendimentos do devedor.
7. Exequentes e Executados acordam que, a partir de Janeiro de 2020, a taxa de juro aplicável será de 4%.
8. No demais, mantém-se o teor da escritura de confissão de dívida, hipoteca e fiança celebrada em 20 de Abril de 2017, designadamente o prazo de pagamento do montante total da dívida e juros em 16 anos.
9. Com a presente transacção, requer-se a extinção dos autos principais (Execução) e do presente apenso A (Embargos de Executado).
10. As despesas e honorários de Agente de Execução (a existirem) ficam a cargo dos Exequentes, bem como as despesas e custas (a existirem) relativas aos autos principais.”
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Em 05-03-2020, a agente de execução fez consignar na execução o seguinte:
“ Extingue-se a presente execução tendo em consideração que:
- A quantia exequenda está a ser liquidada por acordo de pagamento entre as partes nos termos do art.º806 n.º2 do CPC, conforme sentença proferida a 17-02-202”.
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Em 12-03-2021, os exequentes apresentaram requerimento junto da agente de execução, dando conta do incumprimento pelos executados de algumas prestações devidas e pretendiam o prosseguimento dos autos.
Nesse mesmo dia, o executado apresentou requerimento junto da agente de execução sustentando o indeferimento daquele pedido.
Em 18-03-2021, foram os autos enviados ao juiz a quo para efeitos de apreciação nos termos do art. 850º do CPC.
Em 22-03-2021 foi proferido despacho a ordenar a audição das partes quanto à apreciação nos termos do art. 850º do CPC e ambas voltaram a pronunciar-se conforme: -requerimentos datados de 31-03-2021 ( o executado)- sustentou e juntou documentos a demonstrar 3 pagamentos em 08-03-2021 e em 21-03-2021 e 31-03-2021, considerando assim que deveria ser indeferido o requerido;
- e requerimento datado de 16.04.2021 ( os exequentes)- reiterando o pedido já formulado de renovação da execução.

Designada data para as partes, querendo, produzirem prova, o executado requereu a prestação de declarações de parte, tendo o tribunal procedido à audição do mesmo e nesta sequência foi proferido despacho datado de 15-01-2023, nos termos do qual se declarou “ a renovação da execução, nos termos do disposto no artigo 850º, nº 4, do CPC.
Custas pelo executado, que se fixam no mínimo legal.
Notifique..”
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É desta decisão que vem interposto recurso pelo executado, o qual terminou o seu recurso formulando as seguintes conclusões ( que se transcrevem):

“1. Vem o presente recurso interposto do douto despacho proferido a fls. dos autos que declarou a renovação da execução, nos termos do disposto no artigo 850º n.º 4, do CPC.
2. Tal despacho constitui uma verdadeira sentença, tendo procedido à avaliação e julgamento do pedido de renovação da execução requerida pelos Exequentes.
3. Com o devido respeito que o Tribunal a quo merece, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 850 n.º 4 do CPC e 334 do Código Civil, tendo incorrido em erro de julgamento, quer da matéria de facto, quer da matéria de direito, tendo ignorado as circunstâncias do caso concreto, que caso tivessem sido devidamente ponderadas teriam ditado uma decisão diferente.
4. A matéria de facto dada como provada nos pontos 11 e 13 e no parágrafo único dos factos não provados, assenta em erro na apreciação da prova.
5. Não é correto afirmar-se, como consta do ponto 11 dos factos dados como provados que “O executado não pagou as restantes prestações vencidas até à data referida em 10º dentro dos prazos combinados.”
6. O que sucedeu efetivamente, é que em 10 de Março de 2021 (data de vencimento da prestação de Março de 2021) estavam vencidas as prestações de Fevereiro e Março de 2021, cujas circunstâncias o Tribunal a quo ignorou e valorizou incorretamente, sendo certo que, até à presente data, o Executado vem pagamento, escrupulosamente as prestações mensais.
7. Pelo exposto, o ponto 11 dos factos provados carece de alteração, passando a ter a seguinte redação: “11º - O executado não pagou as prestações vencidas em 10 de Fevereiro e 10 de Março de 2021 dentro do prazo.”
8. Quanto ao ponto 13 dos factos provados, não se descortina, com franqueza, qual a motivação do Tribunal (para além da alegação desacompanhada de qualquer prova dos Exequentes) de que a quantia mutuada visou liquidar um outro contrato de empréstimo.
9. A quantia que os Exequentes mutuaram destinou-se, precisamente, à aquisição do imóvel sobre o qual foi constituída hipoteca a favor dos Exequentes, para garantia do bom cumprimento das obrigações decorrentes da dívida.
10. Com efeito, o Tribunal a quo não podia dar como provada, sem mais, a matéria de facto constante do ponto 13, porque tal matéria não foi aceite nem por qualquer forma provada.
11. Quanto ao parágrafo único dos factos não provados, como é facto público e notório, o nosso país foi assolado por uma pandemia (Covid-19) que determinou que a 16 de março de 2020, o Governo decretasse o "Estado de Alerta" que obrigou ao encerramento de escolas, bares, discotecas, restaurantes e restringiu a circulação de pessoas.
12. O Executado AA é profissional liberal/comissionista (vendedor “porta a porta”) com rendimento altamente instável tendo, nesse período, visto os seus rendimentos gravemente afetados pelas medidas de contenção adotadas, que não só limitaram a liberdade de circulação, como também levaram ao encerramento de muitos estabelecimentos a quem fornecia.
13. Sendo facto público e notório a situação de pandemia mundial, parece assim claro que o Tribunal a quo devia ter ponderado tal circunstância e, de acordo com as regras da experiência, dar como provado que o executado, em virtude da sua profissão especialmente afetada pelas limitações impostas, viu os seus rendimentos gravemente afetados.
14. Atenta a relação de confiança entre Exequentes e Executados e tal como o Executado afirmou nas suas declarações, o atraso no pagamento das prestações foi telefonicamente comunicado à Exequente mulher, como, de resto, é habitual nestas situações.
15. Tendo o Tribunal a quo ignorado, inexplicavelmente, tais declarações.
16. A matéria de facto dada como não provada, deverá ser antes dada como provada, em ponto a incluir na matéria de facto provada, com a seguinte redação: Novo ponto: “O atraso no pagamento foi oportunamente comunicado aos Exequentes e deveu-se ao facto de o Executado ter atravessado dificuldades financeiras graves naquele período, atento o facto de a sua atividade ter estado praticamente paralisada devido às limitações inerentes à pandemia Covid-19.”
17. O Tribunal incorreu em erro no julgamento de direito, tendo errado na ponderação sobre a aplicação do instituto do abuso de direito.
18. Independentemente da requerida modificação da matéria de facto dada como provada e não provada, entende o Executado/Recorrente que o Tribunal a quo podia e devia ter configurado a pretensão dos Exequentes em requererem a renovação da execução como abusiva.
19. Após a transação realizada nos autos, o pagamento das prestações reiniciou-se no dia 10 de Março de 2020.
20. Da análise dos pagamentos realizados pelo Executado (constantes do requerimento dos exequentes de 12/03/2021) verifica-se que o Executado “saltou” a prestação de Abril de 2020, período coincidente com o pico de casos da pandemia Covid-19.
21. Com efeito, a partir de Maio de 2020 foi pagando sempre a prestação com o atraso de 1 mês.
22. Em nenhum momento, até ao Requerimento de renovação da execução apresentado em 12/03/2021, os Exequentes comunicaram ao Executado a falta do pagamento da referida prestação em atraso.
23. O Executado em virtude das dificuldades económicas que atravessou e devido a alguma confusão entretanto gerada com o reinício do pagamento das prestações, não estava, nem foi, alertado para tal falha no pagamento.
24. Alerta esse que, até pela confiança que depositava nos Exequentes, esperava.
25. Logo que o Executado se apercebeu que estaria em falta (o que ocorreu após ter tomado conhecimento do requerimento de renovação da execução em 12/03/2021) procedeu ao pagamento e regularização da situação.
26. Pelo que, o incumprimento (de 2 prestações consecutivas – Fevereiro e Março de 2021) prolongou-se por apenas alguns dias.
27. Em síntese, o que se verificou foi que os Exequentes, sem que alguma vez tivessem notificado ou alertado o Executado para a falta do pagamento daquela prestação de Abril de 2020, aproveitando-se da desatenção e situação aflitiva do mesmo e agindo com manifesta má-fé, apressaram-se a, logo 2 dias após o vencimento da prestação de Março de 2021 (período em que se juntaram 2 prestações vencidas) a peticionar a renovação da execução.
28. Sendo notório que, à semelhança do que haviam feito com a Execução original (que propuseram sem qualquer justificação), aguardaram, silenciosamente, durante quase um ano para peticionarem a renovação da execução.
29. Pelo que, a situação dos autos configura uma clara situação de aproveitamento do enriquecido credor às custas do debilitado e afligido devedor.
30. No caso dos autos, é flagrante a circunstância de os Exequentes em momento algum terem notificado ou alertado para o pagamento da prestação de Abril de 2020 em falta, vindo apenas a dar nota de tal incumprimento em 12/03/2021 e para efeitos de requererem a renovação da execução.
31. Este hiato temporal, atendendo à sua extensa duração, é susceptível de causar na contraparte, tendo em consideração as expetativas de um contraente comum (o bonnus pater familiae), um sentimento de confiança justificada de que os Exequentes não lançariam mão de nova execução, sobretudo porque, conforme se referiu supra, se tratavam dos ex-patrões do Executado, pessoas em que o mesmo depositava grande confiança.
32. Pelo que, o comportamento dos Exequentes é suficiente para a constituição de uma situação objetiva de confiança no não exercício do direito.
33. Assim que o Executado teve consciência do incumprimento (Requerimento dos Exequentes de 12/03/2021 a requererem a renovação da execução) procedeu à regularização das prestações em falta [note-se que o requerimento dos Exequentes é de 12/03/2021 e o Executado repôs as prestações em dívida em 21.03.2021 (prestação de Fevereiro de 2021) e 31.03.2021 (prestação de Março de 2021), pelo que o incumprimento verificou-se por poucos dias].
34. É necessário que se pondere o contexto em que tal incumprimento ocorreu (Abril de 2020) coincidente com o pico da pandemia Covid – 19 em Portugal.
35. É em resultado deste contexto de saúde pública, que foi criado um regime de moratória aplicável a contratos de crédito à habitação garantidos por hipoteca e outros créditos hipotecários, de locação financeira de imóveis destinados à habitação, e contratos de crédito com finalidade educação, celebrados com consumidores (Decreto-Lei n.º 10-J/2020) que esteve em vigor até ao dia 30 de setembro de 2021.
36. Foi, precisamente, por ser um período em que as famílias atravessaram por grandes dificuldades financeiras, em virtude dos encerramentos forçados das atividades, que foram criadas medidas de apoio ao devedores e moratórias para pagamento.
37. Sendo, absolutamente, lamentável e abusivo que os Exequentes se pretendam prevalecer de um incumprimento nestas circunstâncias para requererem a renovação da execução, pretendendo precipitar a venda do imóvel, que constitui a casa de morada de família dos Executados.
38. Tendo em conta as circunstâncias em que ocorreu o incumprimento, o curto tempo de duração do mesmo e o comportamento dos Exequentes, devia ter sido considerado ilegítimo o pedido de renovação da execução, por consubstanciar manifesto abuso de direito.
39. Os Exequentes, não emitiram qualquer declaração resolutória do contrato, sem a qual se não efetiva a extinção contratual e consequente vencimento de todo o capital mutuado.
40. Pelo que, ao contrário do douto entendimento vertido na douta motivação da sentença a este respeito, não tendo os Exequentes cumprido tais exigências, não podiam, salvo o devido respeito, peticionar a renovação da execução.
41. Devia ser ponderada a aplicação, por analogia, do regime legal previsto no no art.º 28º do DL 74-A/2017 de 23 de Junho, permitindo-se que o Executado retome o contrato.
42. O douto despacho recorrido violou, por deficiente interpretação e aplicação, o disposto nos artigos 850 n.º 4 do CPC e 334 do Código Civil, impondo-se a sua revogação.”
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Os exequentes não apresentaram contra-alegações:
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O recurso foi admitido como apelação, com subida em separado e com efeito devolutivo.
O recurso foi recebido nesta Relação, considerando-se devidamente admitido, no efeito legalmente previsto.
Assim, cumpre apreciar o recurso deduzido.
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II - Delimitação do objeto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso.

Assim, as questões a decidir, extraídas de tais conclusões, são:

i. Se se verifica erro no julgamento da matéria de facto;
ii. se se verificam os pressupostos para a renovação da execução, nomeadamente, o Recorrente sustenta que não tendo ficado provada qualquer interpelação então não pode ser responsabilizado pelo pagamento de todo o capital mutuado e montante em dívida, porquanto tal interpelação teria de ter sido realizada para, com base na mesma, operar o vencimento antecipado da dívida na sua totalidade.
iii. Se se verifica abuso de direito da parte do recorrente na renovação da execução, atentas as circunstâncias em que ocorreu o incumprimento, o curto tempo de duração do mesmo e o comportamento dos exequentes ( se contribuiu para a constituição de uma situação objetiva de confiança no não exercício do direito).
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III – Fundamentação

A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Da decisão recorrida consta o seguinte“ resulta apurada a seguinte factualidade com interesse para a decisão do presente incidente:
Factos provados
Da prova produzida, consideramos que resulta apurada a seguinte factualidade com interesse para a decisão do presente incidente:
1º- Por transacção celebrada em 17.02.2020, homologada judicialmente e transitada em julgado, Exequentes e Executados “ acordam que o pagamento do valor em dívida (correspondente ao valor mutuado, deduzido das prestações pagas até à presente data) será efectuado em prestações mensais, iguais e sucessivas de € 600,00 (seiscentos euros), pelo menos, reiniciando - se o pagamento das mesmas no dia 10 de Março de 2020 e as restantes até igual dia dos meses subsequentes, ficando, desta forma, concretizado o 3º parágrafo da escritura de confissão de dívida, hipoteca e fiança celebrada em 20 de Abril de 2017.
2º - Exequentes e Executados acordam que os Exequentes apenas poderão considerar incumprida a obrigação de pagamento, no caso de ser incumprido o pagamento de 2 prestações consecutivas, nos termos ora acordados.
3º- Exequentes e Executados acordam em excluir (da cláusula que constitui o 3º parágrafo da escritura de confissão de dívida, hipoteca e fiança celebrada em 20 de Abril de 2017) a possibilidade de ser alterado o valor da prestação mensal a pagar, consoante o valor dos rendimentos do devedor.
4º - Exequentes e Executados acordam que, a partir de Janeiro de 2020, a taxa de juro aplicável será de 4%.
5º - No demais, mantém - se o teor da escritura de confissão de dívida, hipoteca e fiança celebrada em 20 de Abril de 2017, designadamente o prazo de pagamento do montante total da dívida e juros em 16 anos.
6º - Com a presente transacção, requer - se a extinção dos autos principais (Execução)”.
7º - Por decisão de 05.03.2020, a Sr. agente de execução declarou extinta a execução.
8º - Em 12.03.2021, os exequentes requereram à Sr. agente de execução o prosseguimento da execução.
9º - Notificados para esclarecerem as prestações que se encontravam em dívida, no dia 12.03.2021, os exequentes alegaram que “neste momento em falta as prestações dos meses de Fevereiro e Março de 2021, que deveriam ter sido liquidadas até ao dia 10 de cada mês respectivamente, o que não aconteceu, pelo que os executados se encontram em incumprimento em duas prestações consecutivas”.
10º - Na data do vencimento da prestação de Março de 2021, no dia 10 desse mesmo mês, encontravam-se vencidas e não pagas 2 prestações consecutivas, a saber as prestações dos meses de Fevereiro e Março de 2021.
11º - O executado não pagou as restantes prestações vencidas até à data referida em 10º dentro dos prazos combinados.
12º - As transferências realizadas pelo executado em 08.03.2021, 21.03.2021 e 31.03.2021 foram efectuadas, respectivamente, para pagamento das prestações vencidas em 10.1.2021, 10.02.2021 e 10.3.2021.
13º - Os exequentes emprestaram a quantia em causa nos autos ao exequente, à data funcionário daqueles, para que este conseguisse liquidar um outro contrato de empréstimo anterior celebrado com um cidadão suíço de nome BB e não para a compra da casa dos autos.
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Não resultou provado qualquer outro facto com interesse para a decisão do presente incidente, designadamente que o atraso no pagamento foi oportunamente comunicado aos Exequentes e deveu-se ao facto de o Executado ter atravessado dificuldades financeiras graves naquele período, atento o facto de a sua atividade ter estado praticamente paralisada devido às limitações inerentes à pandemia Covid-19.”

B)- FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

1- da impugnação de facto:

a) O recorrente entende que deverá ser alterada a redação do ponto 11 dado como provado pois considera não ser correto dar como provado “ O executado não pagou as restantes prestações vencidas até à data referida em 10º dentro dos prazos combinados” e deveria ser alterada para a seguinte redação: “ O executado não pagou as prestações vencidas em 10 de Fevereiro e 10 de Março de 2021 dentro do prazo”, pois “em 10 de Março de 2021 (data de vencimento da prestação de Março de 2021) estavam vencidas as prestações de Fevereiro e Março de 2021”.
Salvo o devido respeito, não se vislumbra qualquer diferença entre a redação dada pelo tribunal a quo ao ponto 11 e a pretendida alteração, porquanto ambas se reportam a uma verdadeira redundância do que consta do ponto 10º dos factos provados e que não foi impugnado e o qual reza assim: “10º - Na data do vencimento da prestação de Março de 2021, no dia 10 desse mesmo mês, encontravam-se vencidas e não pagas 2 prestações consecutivas, a saber as prestações dos meses de Fevereiro e Março de 2021.”, sendo certo que além daquelas duas prestações vencidas e referidas no ponto 10º, também até àquela data se verificou ainda que a prestação de Janeiro estava vencida e apenas foi paga em 8-03-2021, situação que fica coberta com a redação dada pelo tribunal a quo ao ponto 11 dos factos provados.
Por tudo entendemos ser de manter a redação por ser a mais correta e de acordo com toda a prova produzida.

b) o recorrente entende que deverá ser dada como não provada a matéria constante do ponto 13º dos factos dados como provados e que tem a seguinte redação:

“ 13º - Os exequentes emprestaram a quantia em causa nos autos ao exequente, à data funcionário daqueles, para que este conseguisse liquidar um outro contrato de empréstimo anterior celebrado com um cidadão suíço de nome BB e não para a compra da casa dos autos” porquanto “ não se descortina qual a motivação do Tribunal (para além da alegação desacompanhada de qualquer prova dos Exequentes) de que a quantia mutuada visou liquidar um outro contrato de empréstimo.”.
Na motivação do tribunal lê-se a propósito o seguinte: “ A convicção do tribunal baseou-se essencialmente no teor dos elementos constantes dos autos, designadamente, o alegado pelos exequentes no requerimento de 16.04.2021, relativamente aos pagamentos efectuados pelos executados, datas em qui epos mesmos ocorreram e identificação da respectiva prestação, o que não foi impugnado pela parte contrária, bem como o teor dos documentos juntos aos autos respeitantes às transferências realizadas.
Valoraram-se ainda as declarações de parte prestadas pelo executado AA, que conformou que se atrasou nos pagamentos, em Março de 2021 chegou a ter duas prestações atrasas, o que aconteceu por lapso, pois pensava que “estava a pagar tudo certo”, muito embora tenha admitido que até esse momento sempre teve, pelo menos, uma prestação atrasada, e que o empréstimo que os exequentes lhe fizeram se destinou a pagar a outra pessoa. …”( sublinhado nosso).
Assim sendo, na convicção do tribunal consta que tal prova ressuma primordialmente das declarações de parte do próprio executado, ora recorrente, e não tendo estas sido escortinadas e alvo de um juízo crítico por parte do recorrente/executado, não poderá este tribunal da Relação substituir-se ao mesmo e fazer um qualquer outro juízo crítico da prova, sob pena de as regras acerca da impugnação de factos nos termos do art. 640º do CPC se subverterem.
Por tudo, será de se manter a redação dada ao ponto 13º provado, resultando, assim, improcedente a sua impugnação.

c) O recorrente entende que o facto dado como não provado deverá ser dado como provado, o qual tem a seguinte redação: “o atraso no pagamento foi oportunamente comunicado aos Exequentes e deveu-se ao facto de o Executado ter atravessado dificuldades financeiras graves naquele período, atento o facto de a sua atividade ter estado praticamente paralisada devido às limitações inerentes à pandemia Covid-19”.
Para tanto, sustenta que se trata de “facto público e notório a situação de pandemia mundial, parece assim claro que o Tribunal a quo devia ter ponderado tal circunstância e, de acordo com as regras da experiência, dar como provado que o executado, em virtude da sua profissão especialmente afetada pelas limitações impostas, viu os seus rendimentos gravemente afetados” e ainda faz as seguintes afirmações “Atenta a relação de confiança entre Exequentes e Executados e tal como o Executado afirmou nas suas declarações, o atraso no pagamento das prestações foi telefonicamente comunicado à Exequente mulher, como, de resto, é habitual nestas situações, tendo o Tribunal a quo ignorado, inexplicavelmente, tais declarações”.
Ou seja, no que respeita à indicação das declarações de parte que pretende sejam ponderadas por este tribunal, o recorrente não observa o disposto no art. 640º do CPC, nomeadamente a respeito de qualquer transcrição concreta da gravação.
E ainda que se entendesse que era suficiente o resumo das suas declarações a respeito da matéria, dir-se-á que tais declarações de parte necessitavam, no caso concreto, de mais prova acrescida para corroborar as mesmas, nomeadamente documental, com prova dos rendimentos respetivos e perda dos mesmos durante aquele período, sendo certo que não basta ser facto notório a pandemia ter afetado a capacidade económica e financeira das pessoas em geral, pois por exemplo, grande parte dos cidadãos trabalhadores por conta de outrem, em geral, não foram afetados nos seus vencimentos de forma imediata e, na verdade, nem sequer foram juntos aos autos documentos comprovativos da situação profissional do executado ( se era trabalhador liberal ou por conta de outrem e rendimentos respetivos nos períodos em causa e de molde a proceder-se à comparação respetiva), quanto mais a económica. Assim sendo e se é facto notório a pandemia covid 19 e que teve lugar mundialmente primordialmente no ano de 2020, na verdade, já não se poderá concluir, sem mais, que no caso concreto afetou a capacidade financeira do executado. Nem se poderá concluir, sem mais e apenas baseada nas declarações do executado, que atenta a relação de confiança entre todos, o atraso no pagamento foi comunicado à exequente mulher, porquanto era matéria impugnada e que necessitava de prova acrescida àquelas declarações de parte para merecerem a verosimilhança de um depoimento de uma parte interessada naquele desfecho.
Por tudo o exposto, improcede a impugnação de facto.
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2. A factualidade (provada) a atender para efeito da decisão a proferir é a já constante de III.
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3. Reapreciação de direito.

No despacho recorrido entendeu-se estarem preenchidos os pressupostos para a renovação da execução nos termos do art. 850º do CPC, considerando que :“havendo mora do executado assistia aos exequentes a faculdade de converter tal mora em incumprimento definitivo, tendo em vista exercer o direito potestativo extintivo em que a resolução de um contrato se traduz, requerendo a renovação da execução”, uma vez que que quando o executado efetuou o pagamento em Março de 2021 já se encontravam vencidas duas prestações consecutivas ( a de Fevereiro e a de março de 2021).
O recorrente insurge-se contra esta decisão por não estarem preenchidos os pressupostos de tal dispositivo legal para que, in casu, se possa determinar a renovação da instância pois os “ exequentes não emitiram qualquer declaração resolutória, sem a qual se não efetiva a extinção contratual e consequente vencimento de todo o capital mutuado” ( conclusão 39).
E ainda suscita a questão de ter o tribunal a quo errado na ponderação do instituto do abuso de direito, sustentando a verificação de abuso de direito da parte do exequente na renovação da execução, atentas as circunstâncias em que ocorreu o incumprimento, o curto tempo de duração do mesmo e o comportamento dos exequentes ( se contribuiu para a constituição de uma situação objetiva de confiança no não exercício do direito).
Desde já, dir-se-á que, salvo o devido respeito, não assiste razão ao recorrente em qualquer das questões por si suscitadas.

Vejamos.

1- quanto à verificação dos pressupostos para a renovação da execução:

A renovação da instância executiva pode ter várias causas:

- as previstas no art. 828º e 851º, nº3 do CPC;
- nos art.s 808º,nº1 e 810,nº3 ( incumprimento do plano prestacional ou acordo global) e
- ao abrigo do disposto no art. 850º do CPC.

Nos termos do art. 850º do CPC, o exequente pode renovar a instância executiva quando:

a) o título executivo tenha trato sucessivo ( cfr. art. 850,nº1) e se trate de crédito de prestações que se vençam posteriormente; ou
b) por indicação, superveniente, de bens penhoráveis ( cfr. art. 850º, nº5).

No caso sub judicio, o Recorrente sustenta que não tendo ficado provada qualquer interpelação então não pode ser responsabilizado pelo pagamento de todo o capital mutuado e montante em dívida, porquanto tal interpelação teria de ter sido realizada para, com base na mesma, operar o vencimento antecipado da dívida na sua totalidade.
No fundo, tem em vista o disposto no art. 808º,nº1 do CPC o qual dispõe : “ A falta de pagamento de qualquer das prestações, nos termos acordados, importa o vencimento imediato das seguintes, podendo o exequente requerer a renovação da execução para satisfação do remanescente do seu crédito, aplicando-se o disposto no nº4 do art. 850º”, seguindo a interpretação que a maioria da doutrina dá no caso do art. 781º do CC, inclinando-se, assim, para que a redação não queira, só por si, significar que se está perante um vencimento automático, mas perante uma circunstância que se reflete no prazo, mais exatamente na perda do benefício dele pelo devedor. O que tem como consequência que, faltando o devedor ao cumprimento das prestações conforme acordado, possa o credor exigir-lhe (interpela-lo de acordo com o disposto no art. 805º nº1) o cumprimento da totalidade da obrigação (no mesmo sentido, vide o AC desta RG por nós relatado de 22-09-2022, Proc. Nº 4288/21.5T8VNF-B.G1 e AC STJ uniformizador de jurisprudência nº 6/2022 publicado no DR Nº 184/2022, I.ª SÉRIE DE 22-09-22, P. 5-15, que aborda este tema no âmbito da problemática da prescrição; contra, Galvão Teles, 1997:260 e jurisprudência citada na anotação ao artigo por Ana Afonso, in CC Anotado, UCP, p. 1071: Ac RL 10-02-2000 e 20-10-2009).
De qualquer modo sempre se dirá que o caráter supletivo da norma é reconhecido pela generalidade da doutrina.
“Este nº1 tem carácter supletivo, podendo o exequente e o executado convencionar diversamente, nomeadamente no sentido de que a falta de pagamento de uma ou mais prestações não implica o vencimento de todas, ou que o vencimento das demais prestações só ocorrerá com o atraso no pagamento de certo montante acumulado ( cfr. Nuno Pissarra, em “ O pagamento em processo de execução- alguns problemas, Estudos em Homenagem a Galvão Teles, Vol II, p. 243 e citado in CPC Anotado de G.P.S., Vol. II, p. 226).
Ora, é bem certo que as partes acordaram, além do mais, o seguinte: “ Exequentes e Executados acordam que os Exequentes apenas poderão considerar incumprida a obrigação de pagamento, no caso de ser incumprido o pagamento de 2 prestações consecutivas, nos termos ora acordados”.
Se as partes previram, detalhadamente no acordo que fizeram, o modo como seria reposto o direito dos exequentes, então ao dizerem naquela cláusula que na falta de pagamento consecutivo de duas das prestações previstas consideravam “ incumprida a obrigação de pagamento”, quiseram dizer isso mesmo, que verificada tal hipótese seguia-se aquele resultado, isto é, ocorria o incumprimento do acordado, pelo menos na forma de mora, e tal como ressuma do despacho recorrido “ …Uma vez que a obrigação tinha prazo certo ocorre a mora independentemente da interpelação – artigo 805º, nºs 1 e 2, al. a), do Código Civil, sendo que no momento em que o executado procedeu ao pagamento das prestações de Fevereiro e Março já os exequentes beneficiavam do disposto o artigo 781º, do referido diploma legal, ou seja, da exigibilidade antecipada das restantes prestações em dívida, que se encontravam vencidas.
(…)
Assim, havendo mora do executado assistia aos exequentes a faculdade de converter tal mora em incumprimento definitivo, tendo em vista exercer o direito potestativo extintivo em que a resolução de um contrato se traduz, requerendo a renovação da execução”.

Salvo o devido respeito, e se concordamos com o que é dito a respeito do art. 781º ( e que não atua de forma automática), já quanto à segunda parte supra transcrita, entendemos que não se trata de qualquer resolução do contrato, mas como impressivamente se refere no Ac do Tribunal da Relação do Porto de 21.06.2021, relator Jorge Seabra, disponível in www.dgsi.pt.: “Não se trata, portanto, neste âmbito, como já acima se referiu, de resolver o contrato e de lhe por termo, mas antes de o credor exigir antecipadamente do devedor o seu cumprimento integral, verificadas aquelas condições que importam a perda do benefício do prazo.”.
Diga-se ainda, que é pacífico na jurisprudência e na doutrina (com a voz discordante de Galvão Teles) que a prerrogativa concedida pelo artigo 781º do Cód. Civ. não opera automaticamente, correspondendo antes a uma faculdade concedida ao credor – cfr. Ac. STJ de 25.10.18 (http://www.dgsi.pt, Proc. nº 13426/07.0TBVNG-B.P1.S1), onde se cita numerosa doutrina e jurisprudência.

Perante a falta de pagamento de uma prestação, o credor pode seguir um de três caminhos (Ac. STJ de 12.7.18, in http://www.dgsi.pt, Proc. nº 10180/15.5T8CBRT-A.C1.S1):
- reclamar o pagamento das prestações vencidas e não pagas até ao termo do contrato;
- reclamar o pagamento das prestações vencidas e não pagas até ao momento em que provoca o vencimento antecipado das restantes prestações, reclamando, também, a totalidade da dívida de capital que, nessa altura, ainda subsista;
- resolver o contrato, reclamando uma indemnização pelo não cumprimento.

Tudo direitos alternativos que o credor escolherá o que melhor se adequa aos seus interesses. O exercício do direito traduz-se, in casu, na reclamação de cumprimento antecipado feita pelo credor ao devedor, isto é, na interpelação. E só nessa altura é possível ter-se por vencida a obrigação.
Decorre do exposto que a obrigação exequenda, embora não vencida, vence-se com a interpelação, pelo que é exigível.

Assim sendo, cumpre referir que com o requerimento da renovação da execução – numa altura em que era exigível toda a dívida, nos termos do art. 808,nº1 do CPC e 781º do CC, aquele pedido de renovação da execução sempre teria de se considerar uma interpelação para pagamento, nos termos do artigo 805.º, n.º 1, do Código Civil onde se dispõe que «O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir», sendo certo que os executados foram notificados do mesmo e para se pronunciarem, o que fizeram.
Importa, então, concluir que estão verificados os requisitos de exigibilidade da quantia exequenda tal como pretendido pelos Exequentes na renovação da execução.
Posto que, no quadro normativo aplicável à situação, a notificação (prévia) dos Executados ( aliás nos termos do art. 850,nº4 do CPC) daquele requerimento de renovação da execução permitiu efetivamente e sem dúvida suprir a necessidade da interpelação e o credor exigir antecipadamente do devedor o seu cumprimento integral, verificadas aquelas condições que importam a perda do benefício do prazo, ainda que unu actu com o dito requerimento de renovação da execução.
Conclui-se, assim, que estavam preenchidos os pressupostos para a renovação da instância executiva.
*
2- A segunda questão que se coloca é se tal pedido de renovação da execução constitui abuso de direito dos exequentes, conforme sustenta o recorrente.
No despacho recorrido foi entendido que a atuação dos exequentes não foi de molde a que se possa censurar no âmbito do instituto do abuso de direito.
O recorrente entende que o tribunal a quo errou na ponderação do instituto do abuso de direito, sustentando a verificação de abuso de direito da parte dos exequentes na renovação da execução, atentas as circunstâncias em que ocorreu o incumprimento, o curto tempo de duração do mesmo e o comportamento dos exequentes ( se contribuiu para a constituição de uma situação objetiva de confiança no não exercício do direito).

Vejamos.

Prima facie, e ainda que a decisão recorrida discorra acerca do instituto em causa, relembraremos algumas noções básicas acerca do abuso de direito, apenas para contextualizar.
Na verdade, nos termos do artigo 334º do Código Civil, “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Há abuso de direito quando, embora exercendo um direito, o titular exorbita o exercício do mesmo, quando o excesso cometido seja manifesto, quando haja uma clamorosa ofensa do sentimento jurídico-socialmente dominante.
E não se exige que o titular do direito tenha consciência de que o seu procedimento é abusivo, bastando que os limites tenham sido excedidos de forma nítida e intolerável, não obstante serem relevantes os fatores subjetivos.
O legislador sufragou a conceção objetivista do abuso de direito (que proclama que não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu ato à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico), o que não significa “que ao conceito de abuso do direito consagrado no artigo 334º sejam alheios fatores subjetivos, como, por exemplo, a intenção com que o titular tenha agido” .
A figura do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida.
Serve como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social vigorante em determinada época, evitando que, observada a estrutura formal do poder que a lei confere, se excedam manifestamente os limites que se devem observar tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.
A boa fé apresenta-se aqui como um princípio normativo da ação de cada uma das partes contratantes, no sentido de agirem corretamente em cada momento e no sentido daquilo que cada um espera legitimamente do outro.
“A boa fé significa agora que as pessoas devem ter um comportamento honesto, correto, leal, nomeadamente do exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros” .

Ora, quanto às circunstâncias em que ocorreu o incumprimento, já tivemos oportunidade de analisar aquando da impugnação de facto que não se provou a matéria de facto alegada a respeito da pandemia e nexo de causalidade com o incumprimento e situação financeira do executado, pelo que esta alegação cai pela base.

Quanto ao argumento de que em nenhum momento os exequentes alertaram e comunicaram a falta de pagamento apenas e tão somente com o requerimento de renovação da execução, igualmente a análise supra acerca da necessidade ou não de interpelação para que a dívida fosse exigível responde negativamente à questão suscitada.
Com efeito, a falta de interpelação do devedor antes do requerimento de renovação da execução não constitui nenhum fundamento de um qualquer abuso de direito dos exequentes, nomeadamente na modalidade de “venire contra factum proprium” porquanto estamos perante um credor que visa com aquele requerimento de renovação da execução a cobrança do seu crédito, sendo que a atuação dos exequentes não pode considerar- -se reprovável e atentatória das elementares regras de conduta impostas pela lei a quem pretende deduzir pretensão recorrendo para esse efeito aos incidentes que a lei prevê, mesmo que se considere que não estariam preenchidos todos os requisitos legalmente exigidos para a procedência dos mesmos.
Em suma: não se pode afirmar a existência de abuso de direito dos exequentes por não terem previamente procedido à interpelação extrajudicial do devedor, ora executado, para pagamento da quantia que lhes vêm exigir, atendendo a que quanto à falta de interpelação, o Tribunal a quo e este Tribunal da Relação concluíram que ainda que se entendesse ser necessária estaria colmatada com o requerimento de renovação da execução junto em 12-03-2021 e a notificação para pronúncia do incidente por parte dos executados.

Mutatis mutandis, dir-se-á a respeito do argumento de que se tratou de “ curto tempo de duração do incumprimento” para fundamentar o abuso de direito.
Em verdade, já vimos que radicando a ratio da excecionalidade consagrada do 808ºnº1 e coincidente com a do art.º 781º do C. Civil, sobretudo, na quebra da relação de confiança que esteve na base da celebração do acordo de pagamento fracionado no tempo, provocada pelo incumprimento parcial do pagamento de algumas dessas prestações, justifica-se que o vencimento das demais prestações fique dependente da avaliação que o credor faz da capacidade económica do devedor e da sua vontade em satisfazer as restantes prestações, podendo, inclusive, optar por aguardar algum tempo, confiando em que a dificuldade de pagamento seja temporária e que o devedor tenha capacidade económica para retomar o pagamento regular das prestações acordadas.
É esta interpretação corretiva da letra do art.º 781º do C. Civil que é feita, quase unanimemente, pela doutrina e pela jurisprudência, como igualmente já analisámos supra.
Também vimos que o credor deve manifestar a sua vontade de exigir o pagamento da totalidade das prestações através da interpelação do devedor para as satisfazer, tal como sucede nas obrigações puras, de acordo com o disposto no art.º 805º, n.º 1, do C. Civil, e aquela interpelação pode ser feita extrajudicialmente, através de qualquer dos meios que a lei prevê para a emissão das declarações negociais, ou judicialmente, conforme admite o próprio art.º 805.º, n.º 1, do C. Civil, designadamente através do acto de citação para os termos da acção (art.º 610º, n.º 2, b), do C. P. Civil) ou da execução (art.º 551º, n.º 1, do C. P. Civil), onde se reclame o pagamento dessas prestações ( ou caso já tenha ocorrido citação, através de notificação).
No caso, o credor optou por manifestar a sua vontade de exigir o pagamento da totalidade das prestações quando estavam em dívida e já vencidas duas prestações consecutivas ( de Fevereiro e Março de 2021), conforme acordado, pelo que se o fez apenas dois dias depois não é censurável, já que o podia fazer sem qualquer limite temporal.
Na verdade, entende-se que a renovação da execução a pedido do exequente não está sujeita a prazo ( vide neste sentido, CPC Anotado GPS, vol. II, p. 274 e ac. da RC de 12-03-2019 ali citado e Prof. Rui Pinto, “ A Ação Executiva”, p. 967, ed. 2019).

E o facto de nunca terem efetuado qualquer interpelação anteriormente e a respeito de uma prestação em falta- a mensalidade de abril de 2020- e terem aguardado em silêncio por mais de um ano é suscetível de causar um sentimento de que os exequentes não lançariam mão de nova execução?
Perentoriamente, diremos que não.
Desde logo, como se chegaria a tal conclusão, quando estava em causa a falta de uma prestação ( a de Abril de 2020) e ambas as partes acordaram que consideravam incumprimento apenas a falta de duas prestações consecutivas e tal situação naquele período de ano referido não ocorreu?
Com efeito, o fundamento invocado pelo recorrente enquadra-se no que a doutrina designa por “supressio”: o longo período de tempo em que por exemplo o agente se mantém passivo.
O exercício do direito em tais condições ( decorrido tão longo lapso de tempo) contraria a boa fé.
Sinteticamente, dir-se-á que a « neutralização » é configurada quando o titular do direito deixa passar um longo período de tempo sem o exercer, o que, aliado a uma particular conduta desse titular ou a outras circunstâncias, cria na contraparte a expectativa ou convicção fundada e justificada de que o direito já não será exercido, em termos tais que a leva a adotar medidas ou «programas de ação que, doutro modo, não adotaria ».
Em tal caso, impõe-se que se impeça o exercício do direito, porquanto o seu exercício tardio e inesperado causaria desvantagem considerável, representando simultaneamente consequência ofensiva da boa fé ( cfr. Menezes Cordeiro, op. cit,, pág. 819, Baptista Machado, RLJ, 118°, págs. 11 e 228, Rita Amaral Cabral, RDES, XXXV, págs. 322 e 323, e o Ac. do STJ de 03/05/90, BMJ, 397, 454).
Ora, no caso vertente, tal não se verifica, desde logo, porque nem sequer durante aquele hiato temporal referido pelo recorrente os exequentes estariam em condições de exercer o direito de renovação da execução, porquanto esteve sempre em falta apenas uma prestação quando para o efeito pretendido necessário se tornava que estivem em falta duas prestações mensais consecutivas, pelo que não lhes era exigível que fizessem qualquer interpelação atento o acordo realizado no apenso.

O recorrente, nas conclusões, aflora a questão de se ponderar o contexto de pandemia em que ocorreu o incumprimento, apontando para o mês de abril de 2020 como sendo o pico da pandemia. E, com efeito. assim ocorreu, no ano de 2020, o início da pandemia e pico da mesma. Contudo, como vimos aquele incumprimento ocorrido em 2020 não é relevante para efeitos de ponderação nos presentes autos, porquanto o incumprimento relevante ocorreu em 2021, ano em que é bem certo ainda não tinha terminado aquela epidemia. Contudo, no caso vertente, não se provou qualquer relação ou nexo de causalidade entre a pandemia e o dito incumprimento.

Mais se consigna que o regime de moratórias aplicáveis a contratos de crédito à habitação e cuja aplicação analógica era pretendida pelo recorrente, conforme alegações, nunca poderia ter lugar, desde logo, porque se trata de um regime com normas especiais e insuscetíveis de aplicação analógica e, por outro lado, nem sequer se provou que a quantia mutuada se destinou à aquisição de imóvel, pelo que cai pela base tal fundamento invocado.
Por tudo o exposto, a apelação terá de inevitavelmente improceder, mantendo-se e confirmando-se a decisão recorrida.
Nestes termos, também neste segmento, improcede o recurso do executado recorrente.
*
VI. Decisão.

Por tudo o exposto, acordam os Juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Custas pelo executado/recorrente.
*
Guimarães, 27 de abril de 2023

Assinado eletronicamente por:
Anizabel Sousa Pereira ( relatora)
Jorge dos Santos e
Margarida Pinto Gomes